Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
423/10.7SAGRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: INSTRUÇÃO CRIMINAL
ÂMBITO
DECISÃO
Data do Acordão: 12/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 119º, 120º, 123º, 286º Nº 1, 287º Nº 1, 288º Nº 4 E 303º CPP
Sumário: 1. - O requerimento de abertura da instrução constitui o elemento fundamental para a definição, determinação do âmbito e limites da intervenção do juiz de instrução;

2.- Quando houver uma acusação do Ministério Público e outra do assistente e o arguido requerer a abertura da instrução apenas relativamente aos factos que lhe são imputados numa delas, ao juiz de instrução fica vedada a apreciação dos factos relativos à outra, o que quer dizer que não se pode pronunciar sobre os mesmos;

3.- Tendo-se o juiz pronunciado sobre questões de que não podia tomar conhecimento, tal constitui uma irregularidade que deve ser arguida perante o juiz de instrução nos termos do art.º 123º CPP, sob pena da mesma ficar sanada.

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

Nos autos supra identificados foi proferida a seguinte decisão instrutória (transcrição das partes relevantes):

A..., arguido e assistente nos autos, veio requerer a abertura de instrução contra a decisão de acusação proferida pelo Ministério Público, quer na parte em que lhe imputou a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143º/1, do Código Penal (CP), quer na parte em que imputou ao arguido/assistente B... a prática do mesmo tipo legal de crime.

Assim, na perspectiva do requerente, por um lado, não foram colhidos, durante o inquérito, indícios suficientes da prática do crime que lhe é imputado e, por outro lado, devido à lesão provocada pelo arguido B ..., o requerente teve de ser sujeito a intervenção cirúrgica, porquanto existia arrancamento completo da coifa dos rotadores e a sua retracção, bem como um hematoma extenso fibroso e fractura do rebordo inferior da cavidade glenoide. Foi efectuada acromioplastia, reinserção da coifa dos rotadores com pontos transósseos e imobilização toracobraquial em abdução. À data da abertura de instrução encontrava-se em período de repouso pós-operatório e brevemente iria reiniciar reabilitação com fisioterapia.

Acrescenta que irá ficar com incapacidade para o trabalho, sem força e mobilidade suficiente para a sua actividade de bate-chapas, pelo que a conduta do arguido B ... integra a prática de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelo art. 144º/al b), do CP.

Termina pedindo que seja proferido despacho de não pronúncia em relação a si e que seja proferido despacho de pronúncia em relação ao arguido B ..., imputando-lhe a prática, em concurso real, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 144º/al b), de um crime de ameaça, previsto e punido pelos arts. 153º e 155º/al b), e de um crime de dano, previsto e punido pelo art. 212º/1, todos do CP.

(…)

Contudo, há uma questão prévia que importa analisar e clarificar e que se reporta ao objecto da presente instrução.

Com efeito, tal questão deriva da circunstância do arguido/assistente B ... ter deduzido acusação particular contra o arguido/assistente A ..., imputando-lhe a prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo art. 181º/1, do CP, um crime de difamação, previsto e punido pelo art. 180º/1, do CP, um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo art. 365º do CP, e um crime de simulação de crime, previsto e punido pelo art. 366º do CP.

No requerimento de abertura de instrução, o arguido/assistente A ... não faz referência à acusação particular, mas termina pedindo a prolação de um despacho de não pronúncia, pelo que se considera que também os factos que lhe foram imputados na acusação particular fazem parte da pretensão exposta no requerimento de abertura de instrução.

Sendo requerida a abertura de instrução e proferido despacho de pronúncia, é esta decisão instrutória que fixa o objecto do processo, conforme resulta do disposto no art. 311º/2, corpo, do CPP.

Por conseguinte, a presente decisão instrutória terá de incluir e incidir sobre toda a matéria vertida nas peças processuais que, até aqui, cumpriam essa função, designadamente, a acusação pública, a referida acusação particular deduzida pelo arguido/assistente B ... e o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido/assistente A ....

Efectuado este esclarecimento verifica-se, desde logo, quanto à acusação particular, que o arguido A ... não pode ser pronunciado pela prática dos crimes de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo art. 365º do CP, e de simulação de crime, previsto e punido pelo art. 366º do CP, uma vez que são crimes de natureza pública, pelo que a legitimidade para a promoção do processo compete apenas ao Ministério Público – cfr. art. 48º do CPP.

No caso vertente, o Ministério Público não deduziu acusação pública pelos referidos crimes, carecendo o arguido/assistente A ... de legitimidade para o efeito.

Em consequência, nesta parte e pelas descritas razões, impõe-se a prolação de despacho de não pronúncia.

Quanto ao mais, não havendo outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da decisão instrutória, torna-se mister proceder à análise da existência ou não de indícios suficientes.

***

Fundamentação de facto e de direito

(…)

No plano dos factos, consideram-se suficientemente indiciados os factos imputados, na acusação pública, ao arguido B ..., bem como os factos alegados pelo arguido/assistente A ..., no requerimento de abertura de instrução, e os novos factos aditados.

Assim, ambos os arguidos (cfr. fls. 3-verso, 6-verso, 7, 56-verso, 7-verso e 80-verso) confirmaram, no essencial, as circunstâncias de tempo e lugar do episódio em questão, bem como as motivações, pelo que, sem necessidade de análise ou referência a quaisquer outros meios probatórios, não há razões para duvidar da exactidão da factualidade vertida no primeiro parágrafo da acusação pública.

No que respeita aos demais factos, a acusação pública acolheu a versão do arguido/assistente A ... em relação à ameaça (cfr. 2º parágrafo - «Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido B ..., em tom de voz elevado e sério, disse para o arguido A ...: “se voltas a chamar a polícia, mato-te …”»), ao soco no ombro direito (cfr. 4º parágrafo - “No decurso da contenda, o arguido A ..., com força, agarrou o pescoço do arguido B ..., provocando-lhe dores no mesmo”), ao pontapé no rosto (cfr. 5º parágrafo – “Em seguida, com o arguido estatelado no chão, o arguido B ... desferiu um pontapé no rosto do mesmo A ...”) e aos danos causados no seu veículo (cfr. parágrafo 6º - “Na mesma altura, o arguido B ... desferiu socos e murros na chapa do veículo do arguido A ..., da marca Mercedes, que se encontrava estacionado junto dos arguidos, tendo, com essa conduta, provocado algumas amolgadelas no capôt e no pára-choques do referido veículo”.).

A prova produzida que confirma estes factos reconduziu-se às declarações do arguido/assistente A ..., ao depoimento da testemunha H ... s, que ia a passar no local e afirma ter assistido aos factos (cfr. fls. 68 e 69), ao depoimento da mulher do arguido A ..., D..., ouvida durante a instrução, e aos exames médicos e relatórios periciais juntos aos autos e que constam a fls. 5 (1º relatório de urgência), 28 e 29 (relatório de perícia de avaliação do dano corporal efectuada no dia 15.09.2010), 58 (relatório de urgência relativo ao dia 16.09.2010), 128 a 131 e 201 (relatórios médicos elaborados pelo Dr. J...), 235 a 237 e 250 a 251 (relatório de perícia de avaliação do dano corporal efectuada durante a instrução) e aos depoimentos de J..., médico que tem assistido o arguido/assistente A ..., e E ..., filha do arguido/assistente A ... e que acompanhou e assistiu o pai, no dia em questão, no Hospital e durante a fase de recuperação, sendo fisioterapeuta.

Apreciando a credibilidade destes meios de prova, importa começar por referir que A ..., sendo também arguido e, por isso, não estando obrigado a responder com verdade, só por si, não é suficiente para sustentar os factos referidos, pelo que as suas declarações têm de ser conjugadas com os demais meios de prova.

Por sua vez, o depoimento de D ... não foi tido em consideração, pois duvida-se seriamente de que a mesma tenha presenciado os factos. Com efeito, não há nenhuma razão plausível e lógica que explique a circunstância de não ter sido indicada, como testemunha, durante o inquérito. Para além disso, o teor do seu depoimento contém pormenores que suscitam fundadas suspeitas quanto à sua sinceridade. Em primeiro lugar, a testemunha quando descreveu a agressão até ao momento em que decidiu telefonar para a polícia e sem que tivesse ainda sido questionada nesse sentido, demonstrou logo a necessidade de explicar a razão pela qual não saiu de casa e foi, de imediato, socorrer o marido quando viu o arguido B ... a desferir-lhe o soco. Em segundo lugar, as razões apresentadas não são muito plausíveis, à luz das regras da experiência comum, pois referiu que ficou “completamente bloqueada”, “em pânico” e que apenas se sentiu “mais segura” ao ter avistado a testemunha H ..., tendo os factos demorado “um segundo”, ou seja, razões que, de acordo com as regras da experiência comum, não correspondem ao comportamento expectável no referido contexto. Em terceiro lugar, quando contra-interrogada pela ilustre Mandatária do arguido B ..., no sentido de esclarecer se o marido caiu de imediato ao chão ou para cima do veículo, a testemunha foi titubeante, demonstrou uma inequívoca dificuldade em efectuar uma descrição clara daquilo que alegadamente presenciou e fez afirmações como se estivesse a supor ou a deduzir aquilo que aconteceu a partir do local onde o marido caiu, tendo referido que para o marido ter caído para aquele lado onde estava é porque passou por cima do capôt do carro.

Em contrapartida, os demais meios de prova não suscitaram dúvidas sérias quanto à sua credibilidade.

Assim, quanto ao depoimento de H ..., é certo que o arguido B ... e a testemunha G..., sua mulher, afirmaram que mais ninguém presenciou os factos. Contudo, a verdade é que não se apurou nenhuma ligação especial da referida testemunha ao arguido A ..., a não ser o facto de executar algumas reparações em casa deste (facto afirmado pela mulher do arguido, em instrução), pelo que, à partida e tratando-se de pessoa sem interesse nos autos, não há razões para duvidar da sua credibilidade. O seu depoimento confirma todos os factos supra indicados, não tendo sido abalado pela demais prova produzida. Efectivamente, a demais prova produzida reconduziu-se às declarações do arguido B ... e ao depoimento de G.... Sucede que o depoimento de G..., mulher do arguido B ..., não nega, nem exclui a possibilidade de ocorrência do facto referido, aludindo apenas àquilo que viu (cfr. fls. 70 e verso), pelo que a única prova produzida, em sentido contrário, se reconduziu às declarações do arguido B ..., que, atenta a qualidade em que as prestou e não estando, por isso, obrigado a responder com verdade, não são suficientes para abalar a prova referida.

Também não há razões para duvidar da credibilidade dos elementos clínicos e dos depoimentos do médico assistente do arguido A ... e da filha, sendo certo que estes meios probatórios, em conjugação com os elementos clínicos entretanto fornecidos pelo médico de família de A ... (cfr. fls. 314) e pelo Hospital Sousa Martins, atestam as lesões sofridas pelo arguido e o nexo de causalidade.

Assim, em primeiro lugar, verifica-se que, antes da data da ocorrência dos factos, A ... não padecia das lesões em causa.

Efectivamente, segundo o médico de família do arguido, antes do dia 12.09.2010, A ... “não apresentava qualquer lesão a nível do ombro direito, nomeadamente luxação com arrancamento da coifa dos rotadores e a sua retracção, hematoma extenso fibrosado e factura do rebordo interior da cavidade glenoide, nem outra lesão que pudesse ter dado origem às lesões descritas”. Também dos elementos fornecidos pelo Hospital Sousa Martins não se extrai qualquer evidência de que o arguido A ... padecesse das lesões indicadas ou de qualquer outra patologia susceptível de as ter causado antes da data da ocorrência dos factos objecto dos presentes autos. É certo que A ... estava doente, encontrando-se de baixa médica, mas devido a um carcinoma na próstata e a uma hérnia inguinal (cfr. fls. 141), tendo sido reformado, devido a incapacidade por doença natural, a partir de Janeiro de 2011 (cfr. fls. 207).

Em segundo lugar, constata-se que a descrição dos factos suficientemente indiciados atribui a B ... actos adequados a causarem as lesões sofridas por A .... Com efeito, o médico assistente de A ... esclareceu que, pese embora um soco não seja, em regra, susceptível de provocar as lesões sofridas por aquele (dependendo da orientação), uma queda no chão é causa adequada para o efeito. Ora, A ... caiu ao chão, em virtude dos movimentos efectuados por B ....

Em terceiro lugar, a luxação no ombro foi diagnosticada, nesse dia, quando A ... se deslocou ao Hospital Sousa Martins, existindo, por conseguinte, uma sequência e proximidade temporais que não permitem duvidar da origem dessa lesão.

Em quarto lugar, todos os eventos ocorridos após a deslocação ao Hospital são também demonstrativos de que as implicações posteriores tiveram origem na referida luxação do ombro, provocada pela queda, causada por B .... Assim, está demonstrado, nos autos, que no dia 16.09.2010, A ... se deslocou novamente ao Hospital Sousa Martins, tendo sido diagnosticada novamente uma luxação do ombro e foi sujeito a uma nova “redução”. Estes factos foram igualmente confirmados pela filha de A .... Acerca desta segunda luxação, o médico assistente de A ... esclareceu que, no caso, a instabilidade era muito grande, porque a luxação tinha lesões associadas do músculo e dos ossos. Quando a instabilidade é grande, mesmo estando o braço imobilizado, imobilização esta que é sempre relativa e não absoluta, pode haver nova luxação, sem que a mesma tenha tido origem em descuido da parte da pessoa lesionada. Esta segunda luxação tornou-se crónica, ou seja, “o buraco não cicatrizou”. Por conseguinte, segundo o referido especialista, havia necessidade absoluta da operação e da urgência na sua realização, pois A ... fez uma rotura traumática e os músculos estavam todos retraídos, pelo que era urgente ir buscar os músculos, pois os músculos, ao fim de algum tempo, perdem a elasticidade.

Quanto aos factos imputados ao arguido A ..., quer na acusação pública (“No decurso da contenda, o arguido A ..., com força, agarrou o pescoço do arguido B ... tendo-lhe provocado dores no mesmo.”), quer na acusação particular, em relação ao crime de injúria (“apelidou-o de cabrão”, dirigindo-lhe as seguintes expressões oh, seu cabrão, o barulho aqui tem de acabar”), considera-se que não há indícios suficientes da prática de tais factos.

Efectivamente, B ... afirmou, a propósito, quando apresentou queixa, que “foi agarrado pelo pescoço, causando-lhe vários hematomas e fortes dores no mesmo” (cfr. fls. 6verso). Mais tarde, quando inquirido novamente sobre os factos, referiu que “já se encontra totalmente curado dos hematomas que lhe foram provocados pelo denunciado” (cfr. fls. 62). Sucede que o arguido foi examinado três dias após os factos e não apresentava quaisquer lesões ou sequelas (cfr. fls. 34), o que não é compatível com os alegados hematomas que afirma ter sofrido.

Para além disso, tal versão dos factos não é sequer confirmada por G.... Efectivamente, a sua mulher não referiu que o arguido A ... agarrou ou tocou no pescoço do marido. Apenas afirmou que “viu o denunciante e denunciado A ... agarrar nos colarinhos da t-shirt do seu marido” (cfr. fls. 70). Facto este que, podendo ser relevante para efeitos de eventual legítima defesa, também se considera não ter apoio em indícios suficientes, uma vez que é excluído pela sequência de eventos descrita pela testemunha H ....

Quanto aos insultos imputados ao arguido A ... também não se mostram suficientemente indiciados, porquanto a única prova produzida sobre a matéria se reconduz às declarações do próprio arguido, negadas pelo assistente A ..., não sendo confirmadas pela demais prova produzida, sendo certo que não há razões para dar mais credibilidade a um em detrimento do outro.

No que concerne aos factos vertidos nos pontos 7º a 14º da acusação particular, as declarações prestadas por A ..., durante o inquérito, confirmam que o mesmo afirma que o arguido B ... e a sua família fazem barulho em casa, perturbando os vizinhos, tendo comunicado tais factos à PSP, por diversas vezes. Considera-se suficientemente indiciado que tais factos correspondem à verdade, pois a testemunha Paulo Joaquim da Costa Gonçalves, vizinha dos arguidos, afirmou que “o denunciante e o denunciado B ..., tem por hábito ligar os aparelhos de som em volume bastante elevado, de forma que o próprio depoente se sente importunado por tal facto, devido às horas a que o faz” (fls. 69).

Expostos os factos suficientemente e não suficientemente indiciados, importa, por último, esclarecer que não há razões para que, em audiência de julgamento, não venham a ser produzidos os mesmos meios de prova aqui considerados e não seja efectuada, com base nos mesmos, a mesma valoração que se deixou exposta.

* Direito:

No plano do direito, os factos suficientemente indiciados integram a prática, pelo arguido B ..., em concurso efectivo e real e em autoria material, de um crime de ameaça, na forma agravada, previsto e punido pelo art. 153º e 155º/1, al a), ambos do CP, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143º/1, do CP, e de um crime de dano, previsto e punido pelo art. 212º/1, do CP.

Assim, há concurso efectivo e real, porquanto estamos perante três condutas distintas, que integram três tipos de ilícitos diferentes, em relação aos quais não existe qualquer relação de especialidade ou consunção – cfr. art. 30º/1, do CP.

O arguido é autor material porque foi o próprio a praticar os factos – cfr. art. 26º do CP.

No que respeita a cada um dos ilícitos, o bem jurídico protegido pelo crime de ameaça agravada é a liberdade de acção e decisão. Efectivamente, as “ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afectam, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade” .

A conduta punida traduz-se na verificação de dois elementos objectivos: em primeiro lugar, a ameaça da prática de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, punível com pena de prisão superior a três anos; em segundo lugar, a ameaça tem de ser adequada a provocar ao destinatário medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.

No que respeita ao primeiro elemento, importa salientar que “[s]ão três as características essenciais do conceito ameaça: mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente”7.

Quanto à adequação da ameaça, “ não se exige que, em concreto, o agente tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado, bastando que a ameaça seja susceptível de a afectar.” . Trata-se, por isso, de um crime de mera acção e de perigo.

“O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado).”9.

Trata-se de um crime doloso, pelo que o agente tem de agir com dolo em qualquer uma das suas modalidades previstas no artigo 14º do CP. Verifica-se o dolo directo quando o agente representa todos os elementos objectivos do tipo legal de crime (elemento intelectual) e quer realizar a conduta (elemento volitivo).

A responsabilidade criminal pressupõe ainda a não verificação de qualquer causa de justificação da ilicitude.

Transpondo estes parâmetros legais para o caso concreto constata-se que o arguido B ... anunciou um mal futuro ao assistente A ..., consubstanciado na prática de um crime contra a vida, objectivamente adequado a causar-lhe receio, não tendo actuado ao abrigo de qualquer causa de justificação da ilicitude e tendo agido com dolo e culpa.

Quanto ao crime de ofensa à integridade física simples, o bem jurídico protegido por este ilícito é a integridade física da pessoa humana.

Por força do art. 143º/1, do CP, pratica o crime em análise quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa.

Trata-se de um crime doloso, pelo que o agente tem de agir com dolo em qualquer uma das suas modalidades previstas no artigo 14º do CP.

O crime de ofensa à integridade física é grave quando, no que ao caso importa, a ofensa ao corpo priva a vítima de importante órgão ou membro, a desfigura de forma grave e permanente ou lhe tira ou afecta, de maneira grave, a capacidade de trabalho ou a possibilidade de utilizar o corpo – art. 144º/als a) e b), do CP.

A privação de importante órgão ou membro “tem lugar sempre que a actuação do agente conduz à supressão de um órgão ou membro, de tal forma que estes ficam impedidos de realizar a sua função como parte integrante do corpo humano.” .

A desfiguração pressupõe uma “alteração substancial da aparência do lesado” . A sua gravidade “terá que ser aferida em função da intensidade da lesão (esta deverá, de acordo com LACKNER § 224 4, assumir uma importância pelo menos equivalente ao menor dos efeitos descritos ao nível deste tipo legal; tornam-se assim relevantes a quantidade da lesão, o local em que ocorreu, bem como a sua visibilidade), e das “relacões naturais e sociais” do lesado” . Por sua vez, a “permanência não vale aqui como exigência de perpetuidade, mas apenas pretende significar que os efeitos da lesão sofrida são duradouros, sendo previsível que perdurem por um período de tempo indeterminado. Existindo a possibilidade da deformação ser afastada através de uma intervenção médica, e sendo a execução dessa intervenção possível e exigível ao lesado, pode considerar-se que deixa de existir uma desfiguração permanente, ficando sem fundamento a agravação que corresponde a este elemento típico” .

A privação ou afectação da capacidade de trabalho e da possibilidade de utilizar o corpo terá de ser grave, ou seja, não poderá ser insignificant[e], transitóri[a], muito embora não se exija a permanência das lesões” Por afectação da capacidade de trabalho deve-se entender a “interrupção da actividade do ofendido relacionada com o exercício da sua força laboral” .

Por último, a “impossibilidade de utilizar o corpo tem desde logo que se reconhecer autonomia em relação à perda ou privação de órgão ou membro, à incapacidade de trabalho, ou à privação ou diminuição da possibilidade de utilizar os sentidos. Trata-se de uma noção de carácter eminentemente funcional, pelo que ao seu preenchimento não basta inclusivamente a perda de um órgão no sentido utilizado pela al. a) deste tipo legal (um rim, por exemplo), se as funções por este desempenhadas no quadro geral do organismo humano continuam a ser asseguradas (pelo outro rim). Para que estejamos perante uma “impossibilidade de utilizar o corpo” é pois necessário o sacrifício de uma função biológica, que tem lugar desde logo em casos de paralisia, ou seja, em todos aqueles casos de “séria lesão da capacidade de movimentação de uma parte do corpo que afecta todo o organismo” (S / S / STREE § 224 6). A perda de mobilidade num braço, o enrijecimento muscular de uma perna que obriga à utilização de muletas, podem ser considerados como paralisia neste sentido, comprometendo a já referida capacidade de utilização do corpo. Relativamente à incapacidade de trabalho ou a privação ou diminuição da possibilidade de utilizar os sentidos, a distinção far-se-á, quanto à primeira das capacidades referidas porque não estamos aqui perante um conceito de significado puramente económico, e quanto à segunda porque se trata de uma noção mais abrangente”16.

No plano subjectivo, o dolo abrange não só os elementos típicos do crime fundamental, como também as consequências que o tornam grave.

Transpondo os parâmetros expostos para o caso concreto, considera-se que o arguido praticou um crime de ofensa à integridade física simples e não grave.

Efectivamente, o assistente A ... não ficou privado do membro superior direito, pois continua a poder movimentá-lo. Também não ficou desfigurado de forma grave e permanente, pois a cicatriz de 9 cm é pequena e localiza-se numa parte do corpo que, em regra, não está exposta. Considera-se igualmente que não ficou afectado na sua capacidade de trabalho, uma vez que se encontra reformado e esteve de baixa antes e após a agressão por motivos diversos da lesão sofrida (cfr. fls. 218). Quanto à impossibilidade ou afectação, de forma grave, da possibilidade de utilizar o corpo, o assistente A ... não perdeu a mobilidade toda do braço, mas apenas de uma parte, que, em termos médicos, não é considerada grave (cfr. fls. 272).

Por último, quanto ao crime de dano, previsto e punido pelo art. 212º/1, do CP, trata-se de um crime contra a propriedade, cuja conduta pode assumir várias modalidades, designadamente: destruição total ou parcial; danificação total ou parcial; desfiguração total ou parcial; e inutilização total ou parcial. «[E]ssencial para a existência do crime é a existência de uma modificação física no objecto do crime ainda que o prejuízo causado não seja quantificado» .

No plano subjectivo, é necessário que o agente do crime actue com dolo, em qualquer uma das suas modalidades previstas no art. 14º do CP, existindo dolo directo quando o arguido representa os factos que preenchem os elementos típicos do crime e quer praticá-los.

No caso vertente, estão verificados todos os elementos indicados, porquanto o arguido B ... danificou parcialmente o veículo do assistente A ..., tendo agido com dolo.

Analisemos, agora, os crimes de injúria e difamação, previstos e punidos pelos arts. 180º/1 e 181º/1, ambos do CP, imputados ao arguido A ....

Por força do art. 180º/1, do CP, no que ao caso importa, pratica um crime de difamação quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivo da sua honra ou consideração.

Por sua vez, comete um crime de injúria quem, tendo praticado a conduta referida, se dirige, não a terceiro, mas à pessoa visada – cfr. art. 181º/1, do CP.

Os ilícitos criminais em estudo visam proteger a honra e a consideração.

A honra é um direito da pessoa, corolário do princípio da irredutível dignidade da pessoa humana, ou seja, “um aspecto da personalidade de cada indivíduo, que lhe pertence desde o nascimento apenas pelo facto de ser pessoa e radicada na sua inviolável dignidade” . O seu conteúdo traduz-se especificamente no direito, comum a qualquer pessoa, de que não lhe sejam imputadas, sob a forma de factos ou juízos, condutas ou características tidas por socialmente desvaliosas.

A consideração consubstancia-se na reputação exterior que o indivíduo goza na sociedade.

Quer um conceito, quer outro, correspondem a uma concepção normativa do bem jurídico em causa, porque radicam num princípio jurídico e, por via do mesmo, são iguais em relação a todas as pessoas, sendo, por essa razão, totalmente alheios “ao juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma19, e ao juízo que os outros fazem dela.

A conduta do agente pode assumir duas modalidades: a imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita; e a formulação de juízos. A primeira incide sobre a reprodução de um dado real da experiência ou de um acontecimento concreto. A segunda corresponde a uma valoração de uma determinada realidade.

A consumação dos crimes de difamação e injúria não exigem a ofensa efectiva da honra e/ou da consideração do visado, nem a criação de uma situação de perigo concreto, ou seja, que a honra ou a consideração da vítima entre no espectro de efeitos da conduta concreta e, apenas por circunstâncias irrepetíveis, não tenha sido atingida. Na verdade, basta que a conduta do agente seja objectivamente adequada a produzir o resultado referido. Por conseguinte, estamos perante crimes de perigo abstracto-concreto .

Assim, o que importa averiguar é a adequação objectiva da conduta para provocar o resultado danoso, o que “se tem sempre de fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização”21.

Congruentemente, no plano subjectivo, não se exige que o agente do crime actue com a especial intenção de ofender a honra ou consideração do visado, ou seja, não se exige um dolo específico. É suficiente o dolo do tipo, em qualquer uma das suas modalidades (cfr. art. 14º do CP), bastando o dolo eventual, isto é, que o agente do crime represente como possível que a sua conduta é objectivamente adequada a atingir a honra e/ ou consideração da vítima, conformando-se com essa possibilidade.

O crime de difamação, tal como qualquer outro ilícito criminal, não é punido quando o agente actua ao abrigo de uma causa de justificação da ilicitude, incluindo-se aqui as causas de justificação comuns a todos os crimes (cfr. art. 31º e seguintes do CP), designadamente o exercício de um direito (cfr. art. 31º/2, al b), do CP), e a causa de justificação estatuída no art. 180º/2. Esta incide exclusivamente sobre a imputação de factos, exige que imputação se destine a realizar interesses legítimos e o agente prove a veracidade dos mesmos ou que, pelo menos, tinha fundamento sério para, tendo cumprido os deveres de informação que o caso impunham, a reputar verdadeira.

No caso vertente, não ficaram suficientemente indiciados os factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de injúria, expostos no artigo 4º da acusação particular.

Quanto aos demais, susceptíveis de integrarem a prática de um crime de difamação, reproduzidos nos artigos 7º a 12º da acusação particular, está demonstrada a veracidade dos factos, sendo certo que A ... tinha um interesse legítimo em comunicá-los às autoridades policiais, uma vez que o ruído é susceptível de afectar o direito à saúde (cfr. art. 70º do Código Civil) e são as autoridades policiais quem, nos termos do art. 26º/al f), do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo DL nº 9/2007, de 17.01, têm competência para fiscalizar o ruído de vizinhança, pelo que a conduta de A ... se mostra justificada ao abrigo do disposto no art. 180º/2, do CP.

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Dispositivo

Em face de todo o exposto e nos termos do art. 308º/1 e 2, do CPP:

I) Não pronuncio A ... pela prática dos crimes de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143º/1, do CP, que lhe foi imputado na acusação pública, e pelos crimes de injúria, previsto e punido pelo art. 181º/1, do CP, de difamação, previsto e punido pelo art. 180º/1, do CP, de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo art. 365º, do CP, e simulação de crime, previsto e punido pelo art. 366º do CP, que lhe foram imputados na acusação particular.

II) Não pronuncio B ... pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelo art. 144º/al b), do CP, que lhe foi imputado pelo assistente A ... no requerimento de abertura de instrução.

III) Pronuncio, a fim de ser submetido a julgamento, em processo comum, perante Tribunal Singular (uma vez que o Ministério Público aplicou o disposto no art. 16º/3, do Código de Processo Penal):

B ..., casado, filho de (...) e de (...), nascido a 18.01.1956, natural da freguesia de São Pedro, Celorico da Beira, Técnico, titular do B.I. n.º (...), residente na (...), na Guarda,

Pelos seguintes factos:

1) No dia 12 de Setembro de 2010, pelas 19H25, na via pública, na Av. Fernanda Ribeiro, São Miguel da Guarda, gerou-se uma discussão entre os arguidos motivada pelo facto de A ..., na noite anterior, pelas 23h. e 30 m., ter telefonado para a Polícia de Segurança Pública alegando que em casa do arguido B ... existia excesso de ruído, o que determinou a deslocação de agentes da Polícia de Segurança Pública à casa deste arguido, durante a noite.

2) Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido B ..., em tom de voz elevado e sério, disse para o arguido A ...: “se voltas a chamar a polícia, mato-te …”.

3) De seguida, o arguido B ... desferiu um soco no ombro direito do arguido A ..., tendo-o projectado ao solo.

4) Em seguida, com o arguido A ... estatelado no chão, o arguido B ... desferiu um pontapé no rosto do mesmo A ....

5) Na mesma altura, o arguido B ... desferiu socos e murros na chapa do veículo do arguido A ..., da marca Mercedes, que se encontrava estacionado junto dos arguidos, tendo, com essa conduta, provocado algumas amolgadelas capôt e no pára-choques do referido veículo.

6) Com a actuação acima descrita, o arguido B ... provocou luxação no ombro direito do A ..., com arrancamento da coifa dos rotadores e a sua retracção, hematoma extenso fibrosado e factura do rebordo inferior da cavidade glenóide.

7) Devido às lesões descritas em 6), A ... teve de ser submetido a uma cirurgia, com acromioplastia, reinserção da coifa dos rotadores com pontos transósseos, seguida de imobilização toraco-braquial em abdução.

8) As lesões descritas em 6) determinaram um período de doença de 129 dias, com afectação da capacidade de trabalho geral.

9) Mais determinaram, para A ..., as seguintes sequelas: cicatriz nacarada com vestígios de pontos no ombro direito, irregular, medindo 9 cm de comprimento depois de rectificada; diminuição da força muscular ao nível do braço e antebraço contra resistência; em comparação com o contralateral; limitação das mobilidades do ombro (flexão e abudção até 90º).

10) Com a actuação descrita em 3) e 4), o arguido B ... provocou ainda a A ... um hematoma e ligeira escoriação na região temporal esquerda e escoriações no joelho esquerdo, que deixaram as seguintes sequelas: várias cicatrizes na face anterior do joelho esquerdo, a maior medindo 1,5cmx1cm e a menor medindo 0,6cm de comprimento.

11) O arguido B ... actuou com intenção de ofender, como ofendeu, a integridade física do outro arguido.

12) Mais actuou com intenção de intimidar e de perturbar a liberdade de determinação do arguido A ..., bem sabendo que a supra descrita conduta era idónea a produzir esse resultado.

13) Quis este arguido danificar coisa que sabia não lhe pertencer, sabendo que actuava contra a vontade e sem o consentimento do dono do carro.

14) O arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era ilícita e punível por lei.

Tais factos integram a prática, pelo arguido B ..., em concurso efectivo e real e em autoria material, dos seguintes crimes:

- um crime de ameaça, na forma agravada, previsto e punido pelo art. 153º e 155º/1, al a), ambos do CP;

- um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143º/1, do CP;

- e um crime de dano, previsto e punido pelo art. 212º/1, do CP.”

Inconformado com o decidido, o arguido/assistente B ... interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

“A) Não poderia haver lugar a Despacho de Não Pronuncia relativamente ao arguido A ... pela prática dos crimes de ofensa à integridade física simples, injúria, difamação, denúncia caluniosa e simulação de crime, pelo facto de, no requerimento de abertura de instrução, não terem sido alegados factos que conduzissem à sua não pronuncia.

B) A ..., arguido e assistente nos autos, veio requerer a abertura de instrução contra a decisão proferida pelo Ministério Público, única e simplesmente, na parte em que imputou (a si e ao arguido, ora recorrente, B ...) a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p.p. pelo artigo 143°, n.º 1 do C. Penal, tendo, assim, o objecto da Instrução ficado definido e circunscrito apenas à discussão de tal aspecto.

C) A decisão instrutória só pode recair sobre os factos que foram objecto da instrução, ficando o objecto do processo delimitado pelo conteúdo daquele requerimento, não podendo o juiz de instrução intrometer-se na delimitação do objecto do processo, no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao aperfeiçoamento feito ao assistente requerente da abertura da instrução

D) Ficando o objecto do processo delimitado pelo conteúdo do requerimento de abertura de instrução, não pode a decisão instrutória recair sobre factos que, tão pouco, foram alegados, por inobservância do preceituado no artigo 287.°, n.º 2, do C. P. Penal (o qual remete para a aplicação do disposto no artigo 283.°, n.º 3 alo b) e c) do mesmo diploma legal).

E) A omissão dos elementos de facto, a inobservância dos requisitos de uma acusação (ou não acusação, no caso de se pretender uma não pronuncia), em que no fundo e estruturalmente se deve converter o requerimento, conduzindo à não formulação e delimitação do thems probendum, fazem com que a suposta acusação (ou não acusação), pura e simplesmente, falte, não exista, ficando a instrução sem objecto.

F) Face ao exposto, deve concluir-se que, não tendo o arguido, no requerimento de abertura de instrução, alegado factos que conduzissem à sua não pronuncia pelos crimes de ofensa à integridade física simples, injúria, difamação, denúncia caluniosa e simulação de crime, não pode o mesmo ser NÃO PRONUNCIADO pela prática de tais crimes, devendo, consequentemente, neste ponto concreto, a decisão instrutória ser revogada.

G) Sem prescindir, tendo a decisão instrutória não pronunciado o arguido A ... pela prática de um crime de injúrias e um crime de difamação, incorre na nulidade prevista na al. c) do artigo 479° do C. P. Penal (aplicável em sede de instrução), sendo vedado ao assistente/arguido requerer a abertura de instrução relativamente a crimes de natureza particular.

H) A decisão recorrida viola as normas constantes dos artigos 283°, 287º, 308°, n.º 1 e 2 e 309°, 379°, alínea c) do C. P. Penal e artigo 32°, n.ºs da CRP.

Nestes termos e mais de direito, revogando a douta Decisão, considerando o arguido A ... acusado pela prática dos crimes de ofensa à integridade física simples, injúria, difamação, denúncia caluniosa e simulação de crime, Vossas Excelências, como sempre, farão, JUSTIÇA”

Respondeu o Ministério Público defendendo a manutenção da decisão recorrida nas seguintes conclusões:

“1- O “objecto do processo” na instrução requerida pelo arguido é fixado pelos factos constantes da acusação do Ministério Público ou do assistente.

2- O assistente/arguido B ... deduziu acusação particular contra o arguido/assistente A ..., imputando-lhe a prática do crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º n.º l do CP, um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180º n.º 1 do C.P, um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365º do C.P e um crime de simulação de crime, previsto e punido pelo artigo 366º do C.Penal.

3- Os factos constantes da acusação do assistente também integram o objecto da presente instrução.

4- Assumindo tais crimes natureza pública e não tendo o Ministério Público deduzido acusação quanto a estes, carecia o arguido/assistente B ... de legitimidade para tal, podendo apenas e quanto a esses que julgava indiciariamente verificados requerer a abertura de instrução.

5- A ilegitimidade do assistente é de conhecimento oficioso e havendo instrução, o momento próprio para dela conhecer é o início do despacho de pronúncia ou não pronúncia;

6- O recorrente, podia apenas quanto a esta parte e julgando indiciariamente verificados tais tal factualidade requerer a abertura de instrução.

7 - O momento próprio para conhecer das questões processuais, como o é a ilegitimidade, nos casos em que tenha havido instrução, é o início do despacho de pronúncia ou não pronúncia (art. o 308 n.º 3 do CPP) e aquela é de conhecimento oficioso.

Nestes termos e nos melhores de Direito deve ser declarado totalmente improcedente o recurso apresentado pelo arguido, confirmando-se, em consequência a Douta Decisão recorrida”

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer do qual ressalta o seguinte excerto:

“(…)

6. Sobre o objecto do recurso, com o devido respeito por diferente opinião, parece-nos que em termos processuais penais haverá da parte do tribunal recorrido excesso de pronúncia no despacho final da instrução.

Com efeito, diga-se desde logo que o recurso não vem impugnar as soluções em termos indiciários na parte em que é pronunciado o arguido, ora recorrente, pela prática dos crimes de dano, ameaça e ofensa à integridade física.

Por outro lado, parece-nos que, de facto a instrução fica delimitada pelo teor do requerimento para abertura da instrução e, como é o caso, havendo alguns factos que são imputados de forma recíproca, na parte em que se acusam de se terem agredido, há-de nessa parte a instrução de pronunciar-se com toda a abrangência sobre os mesmos e sobre a sua qualificação juridica indiciária, quer resultem da acusação do Ministério Público, quer resultem de acusação particular.

Porém, já em relação a factos delituosos diferentes entre os mesmos intervenientes, se os mesmos não resultarem do pedido de abertura da instrução, já nos parece que extravasa o seu objecto.

E será assim mesmo se, em relação a algum ou alguns deles, faltar algum pressuposto processual para o seu prosseguimento para julgamento, pois que em relação a estes haverá o tribunal de pronunciar, no âmbito das legais competências atribuídas pela lei no seu art.º 311º do CPP, quando o juiz do julgamento sanear o processo.

Dito de outra forma, será admissível, perante distintas factualidades constantes de acusações pública e particular no mesmo processo, o pedido de abertura da instrução parcial, isto é relativa a apenas alguns dos crimes, sem que o tribunal de instrução possa pronunciar-se sobre a sua totalidade, mesmo que estejamos perante a falta de algum pressuposto processual.

Pelo exposto e independentemente de, em substancia poder ter razão o decidido, tal como defende o Ministério Público na lª instância e com o que também desde já afirmamos estar de acordo, parece-nos, salvo melhor opinião, que o despacho de pronúncia ultrapassou os limites do objecto da instrução, devendo ter relegado o pronunciamento sobre tais questões para o juiz de julgamento, nos termos do art.º 311º do CPP.

x

Nestes termos, não acompanhando o Ministério Público na l.ª instância, somos de parecer que deverá ser ponderada a possibilidade de o recurso ser julgado procedente na parte em que solicita se considere existir excesso de pronúncia.”

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal não houve resposta.

Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.

Cumpre conhecer do recurso

Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.

É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).

Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” a quer se refere o artº 379º, nº 1, alínea c., do Código de Processo Penal, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entende-se por “questões” a resolver, as concretas controvérsias centrais a dirimir[[1]].

Questão a decidir: Consequência de, em sede de decisão instrutória, o juiz de instrução haver apreciado questões que apenas constavam da acusação particular, quando o requerente da instrução apenas requereu a abertura da mesma para apreciação de factos constantes da acusação pública

Com interesse para a causa, para além das peças supra transcritas ou parcialmente transcritas, relevam:
1) A acusação pública que imputou
a. Ao arguido A ..., a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art.º 143.º, nº 1, Código Penal
b. Ao arguido B ..., a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art.º 143.º, nº 1, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos art.ºs 155º, n.º 1, alínea a. e 153º, n.º 1 e de um crime de dano, previsto e punido pelo art.º 212º, todos do Código Penal
2) A acusação particular deduzida B ... contra A ..., imputando-lhe a prática de um crime de injúria previsto e punido pelo art.º 181º, n.º 1, de um crime de difamação, previsto e punido pelo art.º 180º, n.º 1, de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo art.º 365, n.º 1 e de um crime de um crime de simulação de crime, previsto e punido pelo art.º 366º, n.º 1 todos do Código Penal
3) O requerimento para abertura da instrução onde, para além do mais, consta o seguinte:

“(…)

Nos autos foi deduzida acusação pelo MP contra B ... e o requerente A ..., pelos seguintes factos:

“No dia 12 de Setembro de 2010 pelas 19.25 horas, na via pública, na Av. Fernanda Ribeiro, São Miguel da Guarda, gerou-se uma discussão entre os arguidos motivada pelo facto de A ..., na noite anterior, pelas 23.30 horas, ter telefonado para a Policia de Segurança Publica, alegando que em casa do arguido B ..., existia excesso de ruído, o que determinou a deslocação de agentes da PSP a casa deste arguido, durante a noite.

Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido B ..., em tom de vos elevado e sério, disse para o arguido A ...: “Se voltas a chamar a polícia, mato-te...”.

No decurso da contenda, o arguido A ..., com força agarrou o pescoço do arguido B ..., tendo-lhe provocado dores no mesmo.

Em acto contínuo, o arguido B ... desferiu um soco no ombro direito do arguido A ..., tendo-o projectado ao solo.

Em seguida com o arguido A ... estatelado no chão, o arguido B ..., desferiu um pontapé no rosto do mesmo A ....

Na mesma altura, o arguido B ..., desferiu socos e murros na chapa do veiculo do arguido A ..., da marca Mercedes, que se encontrava estacionado junto dos arguidos, tendo com essa conduta, provocado algumas amolgadelas no capot e no pára-choques do referido veiculo.

Com a actuação acima descrita, o arguido B ..., provocou luxação no ombro direito do A ..., pequeno edema da região frontal esquerda e múltiplas escoriações no joelho esquerdo, conforme melhor resulta do relatório da perícia de fls. 28 e 29 e do doe. de fls. 5 que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

Estas lesões sofridas pelo queixoso A ... demandaram para a sua cura um período de 60 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho.

O arguido B ... actuou com intenção de intimidar e de perturbar a liberdade de determinação do arguido A ..., bem sabendo que a sua descrita conduta era idónea a produzir esse resultado.

Quis este arguido danificar coisa que sabia não lhe pertencer, sabendo que actuava contra a vontade e sem o consentimento do dono do carro.

Ao actuar da forma acima descrita, cada um dos arguidos, actuou com intenção de ofender, como ofendeu, a integridade física do outro arguido.

Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era ilícita e punida por lei.

Desta forma o arguido A ..., constituiu-se autor material de um crime de ofensa á integridade física pp. 143° n.º 1 do C. Penal.

O arguido B ... constituiu-se autor material em concurso real, de um crime de ofensa à integridade física pp. no art.° 143° do C. Penal, um crime de ameaça pp. no art.º 153° e 155º n.º 1 al. a) e de um crime de dano pp. no art.º 212° n.º 1 do CP.

Da acusação do crime de ofensas corporais de A ... a B ...

Tal ofensa corporal não se encontra minimamente indiciada nos autos, sendo impossível ter acontecido. Vejamos:

Tal versão resulta somente da queixa que o mesmo B ... apresentou, não confirmada pela própria esposa, que diz ter assistido aos factos I....

O agente da PSP C ..., que contactou o mesmo aquando dos factos, e para o que foi chamado pela esposa de A ... D ..., ouviu do B ...” que tinha agredido o vizinho, para se defender de uma tentativa de agressão a murro, por parte daquele”.

A testemunha presencial H ... A ... , também não refere ter presenciado qualquer ofensa corporal, causada a B ....

Por outro lado, o depoimento da esposa de B ..., também não oferece credibilidade, porquanto o A ... ficou caído no local, onde a PSP o encontrou, local de onde foi transportado para o hospital da Guarda, pela filha e genro do mesmo, E... e F....

Evidente que não podia ver o A ... levantar-se e seguir o seu caminho para a sua residência.

Por outro lado é de todo impossível, que o A ... agarrasse o B ... pelo pescoço com as mãos, e este conseguisse dar um murro no ombro do mesmo A ..., com tal intensidade, que causasse os ferimentos que os exames médicos documentam.

O A ..., não agarrou no pescoço do B ....

O A ..., encontrava-se doente e em convalescença de operação, extracção de um carcinoma da prostata, e uma hérnia inguinal, operado na Clínica de Santa Filomena em Coimbra, movendo-se com dificuldade, encontrando-se de baixa médica, factos que B ... conhecia, e por tal facto é que a musica em som demasiado elevado incomodava o A ..., o que o levou a telefonar varias vezes para a policia.

O A ... foi agredido, sem qualquer razão que o justificasse e sem qualquer intervenção deste.

O B ..., estacionou a sua viatura ao lado do Mercedes do A ..., de modo a impedir que a mesma entrasse ou saísse da garagem, e quando o mesmo se dirigia para a viatura surge o B ... com o propósito de causar as ofensas corporais que causou.

O B ... disse para o A ... “se voltas a chamar a polícia mato-te” agredindo-o de imediato a murro e pontapé, como consta da acusação do MP, bem como causou os danos na viatura.

A esposa do A ..., D ..., que assistiu aos factos, telefonou à PSP e à filha e genro, que de imediato ocorreram ao local.

A filha e genro transportaram o A ... do local onde se encontrava caído, para o Hospital da Guarda, onde foi assistido, o ligaram e imobilizaram o braço direito, conforme consta de relatório médico, e do exame do Instituto de Medicina Legal.

As dores cada vez eram mais intensas, pelo que o seu médico de família o mandou examinar pelo médico ortopedista no Hospital da Universidade de Coimbra, Dr. J..., com consultório na Cliniguarda na Guarda, após a realização de Tac, verificou que mantinha um défice funcional marcado, observando rotura completa da coifa dos rotadores, fractura do rebordo inferior da cavidade glenoide.

Dada a urgência clínica da resolução cirúrgica desta rotura, da coifa dos rotadores, foi programada a cirurgia para 23/11/2010 na Casa de Saúde de Santa Filomena em Coimbra.

Nesse dia-foi- operado, “tendo-se verificado - existir” arrancamento completo da coifa dos rotadores, e a sua retracção, hematoma extenso fibrosado, e fractura do rebordo inferior da cavidade glenoide.

Foi efectuada acromioplastia, reinserção da coifa dos rotadores com pontos transósseos e imobilização toracobraquial em abdução.

Neste momento encontra-se em período de repouso pós-operatório e brevemente vai reiniciar reabilitação com fisioterapia. (doc. n.º 1)

O mesmo A ... irá ficar com incapacidade para o trabalho, sem força e mobilidade suficiente para a sua actividade de bate-chapas.

Por conseguinte, o A ..., não se encontra curado, mas irá ficar com um grau de incapacidade bastante elevado para o trabalho.

Nesta parte entende o queixoso A ..., que o crime indiciado é o previsto no art.º 144° al. b) e não o art.º 143° n.º 1, como foi acusado o B ... pelo MP.               

Por tais factos, deve ser alterada a acusação contra o arguido B ..., devendo ser proferido despacho de pronúncia contra o mesmo nesse sentido.

Assim, entende o queixoso A ... que da prova produzida, e a que ora se requer, seja proferido despacho de não pronuncia, contra o A ..., e seja pronunciado o B ..., em concurso real de um crime de ofensa à integridade física pp. pelo art.º 144° al. b), um crime de ameaça pp. 153° e 155° n.º 1 al. b) e um crime de dano pp. art.º 212° n.º 1 do C. Penal.”

******

Apreciando

Podemos resumir a questão em apreço da seguinte forma:

A acusação pública imputou ao arguido A ... a prática de
è um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art.º 143.º, nº 1 do Código Penal

e ao arguido B ..., a prática de
è um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art.º 143.º, nº 1,
è um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos art.ºs 155º, n.º 1, alínea a. e 153º, n.º 1
è um crime de dano, previsto e punido pelo art.º 212º, todos do Código Penal

e a acusação particular, deduzida pelo arguido/assistente B ..., imputou ao arguido A ... a prática de
è um crime de injúria previsto e punido pelo art.º 181º, n.º 1,
è um crime de difamação, previsto e punido pelo art.º 180º, n.º 1,
è um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo art.º 365, n.º 1
è um crime de um crime de simulação de crime, previsto e punido pelo art.º 366º, n.º 1 todos do Código Penal

Discordando, o arguido A ... requereu a abertura da instrução pedindo que o tribunal proferisse despacho de não pronúncia relativamente ao crime de ofensa à integridade física simples por que fora acusado pelo Ministério Público e que pronunciasse o arguido B ... como autor de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelo art.º 144° alínea b., de um crime agravado de ameaça, previsto e punido 153° e 155° n.º 1 al. b) e de um crime de dano, previsto e punido art.º 212° n.º 1 do C. Penal.

Realizada a instrução, o tribunal “a quo” proferiu despacho no qual decidiu

não pronunciar o arguido A ... pela prática dos crimes
è de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art.º 143º/1, do Código Penal, que lhe foi imputado na acusação pública, e pelos crimes
è de injúria, previsto e punido pelo art.º 181º, n.º 1, do Código Penal,
è de difamação, previsto e punido pelo art.º 180º, n.º 1, do Código Penal,
è de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo art.º 365º, do Código Penal, e
è de simulação de crime, previsto e punido pelo art.º 366º do Código Penal, que lhe foram imputados na acusação particular.

não pronunciar o arguido B ... pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelo art.º 144º, alínea b., do Código Penal, que lhe foi imputado pelo assistente A ... no requerimento de abertura de instrução.

pronunciar o arguido o B ..., pelos factos que descreve, como autor      
è de um crime de ameaça, na forma agravada, previsto e punido pelo art.º 153º e 155º, n.º 1, alínea a., ambos do Código Penal
è de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art.º 143.º, nº 1, Código Penal e
è de um crime de dano, previsto e punido pelo art.º 212º, n.º 1, do Código Penal

Perante esta decisão, o arguido/assistente B ... veio recorrer alegando que “não poderia haver lugar a despacho de não pronuncia relativamente ao arguido A ... pela prática dos crimes de ofensa à integridade física simples, injúria, difamação, denúncia caluniosa e simulação de crime, pelo facto de, no requerimento de abertura de instrução, não terem sido alegados factos que conduzissem à sua não pronuncia”, visto que “ A ..., arguido e assistente nos autos, veio requerer a abertura de instrução contra a decisão proferida pelo Ministério Público, única e simplesmente, na parte em que imputou (a si e ao arguido, ora recorrente, B ...) a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p.p. pelo artigo 143°, n.º 1 do C. Penal, tendo, assim, o objecto da instrução ficado definido e circunscrito apenas à discussão de tal aspecto” e por isso “ficando objecto do processo delimitado pelo conteúdo do requerimento de abertura de instrução, não pode a decisão instrutória recair sobre factos que, tão pouco, foram alegados, por inobservância do preceituado no artigo 287.°, n.º 2, do C. P. Penal (o qual remete para a aplicação do disposto no artigo 283.°, n.º 3 alo b) e c) do mesmo diploma legal).

Considera ainda o recorrente que “tendo a decisão instrutória não pronunciado o arguido A ... pela prática de um crime de injúrias e um crime de difamação, incorre na nulidade prevista na al. c) do artigo 479° do C. P. Penal (aplicável em sede de instrução)”, foram violadas “as normas constantes dos artigos 283°, 287º, 308°, n.º 1 e 2 e 309°, 379°, alínea c) do C. P. Penal e artigo 32°, n.ºs da CRP”.

Vejamos:

A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art.º 286º, n.º 1 do Código de Processo Penal[[2]]) e pode ser requerida pelo arguido relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação ou pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (art.º 287, n.º 1), ou seja,

– o arguido pode requerer a instrução quanto a factos constantes de acusação contra si deduzida e

– o assistente pode requerer a instrução relativamente a factos que, não respeitando a crimes particulares, não haja o Ministério Público deduzido quanto a eles acusação.

Acresce que “o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução” (art.º 288º, n.º 4), ou seja, é o teor do requerimento de abertura de instrução que baliza o âmbito e limites da intervenção do juiz de instrução.

E por aí se limita e fixa o objecto da instrução, sendo certo que, na sequência de tal limitação e assegurando o âmbito apertado do mesmo, a lei imponha que se ocorrer uma alteração substancial dos factos[[3]] descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução não pode a mesma “ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância” (art.º 303º, n.º 3) e se ocorrer uma alteração não substancial “o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido sobre ela sempre que possível e concede-lhe, a requerimento, um prazo para preparação da defesa não superior a oito dias, com o consequente adiamento do debate, se necessário” (n.º 1), regime este que se aplica à alteração pelo juiz da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou no requerimento para a abertura da instrução (n.º 5).

Como corolário deste balizamento do objecto da instrução, quando, em casos como o dos autos, houver uma acusação do Ministério Público e outra do assistente e o arguido requerer a abertura da instrução apenas relativamente aos factos que lhe são imputados numa delas, ao juiz de instrução fica vedada a apreciação dos factos relativos à outra, o que quer dizer que não se pode pronunciar sobre os mesmos.

No entanto, uma vez que tal não constitui uma nulidade — não consta do elenco dos art.ºs 119º e 120º (a invocação do art.º 379º, n.º 1, alínea c. pelo recorrente não faz qualquer sentido uma vez que este normativo apenas diz respeito à sentença) — mas sim uma irregularidade, se o interessado a não arguir nos termos do art.º 123º, a mesma fica sanada.

Foi o que aconteceu: o agora recorrente B ... esteve presente na leitura da decisão instrutória e não arguiu a irregularidade, o que a sanou.

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Assim sendo e uma vez que a conclusão G) não encontra qualquer suporte na motivação “stricto sensu”, ou seja, não tem causa de pedir, e que a discordância do recorrente apenas incide sobre o facto de o tribunal “a quo” se haver pronunciado sobre factos constantes da acusação particular, quando o requerente da instrução requereu a abertura da instrução apenas pelos factos constantes da acusação pública, nada mais há a apreciar.

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Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso.

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Custas pelo recorrente, fixando-se em 5 UC a taxa de justiça.

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Luis Ramos (Relator)

Olga Maurício


[1] “(…) quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista. O que importa é que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que as partes se apoiam para sustentar a sua pretensão” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2011, acessível in www.dgsi.pt, tal como todos os demais arestos citados neste acórdão cuja acessibilidade não esteja localmente indicada)
[2] Diploma a que pertencerão, doravante, todos os normativos sem indicação da sua origem 
[3] “Alteração substancial dos factos: aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis” — art.º 1.º, alínea f.