Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
763/09.8T3AVR-A.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: CALVÁRIO ANTUNES
Descritores: DIREITO DE QUEIXA
REQUISITOS
Data do Acordão: 03/06/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA - AVEIRO - JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 246.° DO CPP
Sumário: A denúncia, queixa ou participação por crimes semi-públicos não está sujeita a formalidades especiais e, muito menos, a fórmulas sacramentais, bastando que exista uma manifestação inequívoca de vontade de que seja exercida a ação penal. Isto é, o que é necessário e essencial é que dos termos da queixa ou dos que se lhe seguirem se conclua que exista uma inequívoca vontade do ofendido de que seja exercida ação penal.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I.Relatório:

1. Em processo comum e perante Tribunal Singular, o M.P. deduziu acusação contra:

A..., divorciado, com profissão desconhecida, residente na Rua … ,

imputando-lhe a autoria material e em concurso real, de um crime de falsificação de documento e um outro de burla, p. e p. pelos art.º 256.º, 1, alínea e)  e 217º, nº1 do Cód. Penal, respectivamente.                                                                                       ***

Antes do recebimento da acusação o tribunal “a quo”, decidiu como questão prévia:

“.................Assim sendo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, o Ministério Público não tinha legitimidade para acusar pelo crime de burla, sendo a ilegitimidade uma questão prévia de conhecimento oficioso que obsta ao conhecimento do mérito da causa.

 

Nestes termos, face à ilegitimidade do Ministério Público para acusar, ao abrigo do disposto no art. 311º nº 1 do Código de Processo Penal, não recebo a acusação na parte respeitante a crime de burla por que o arguido vinha acusado nos presentes autos.

Sem custas por o Ministério Público delas estar isento (art. 522º Nº 1 do CPP) Notifique.”

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2. Inconformado com tal decisão, veio o Ministério Publico interpor o presente recurso, formulando nas respectivas motivações as seguintes (transcritas) conclusões:

“1. Dispõe o artº 113°, n° 1 do Código Penal, sob a epigrafe "Titulares do Direito de Queixa” que: "Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação" .

2. O legislador visou, assim, a tutela do portador do bem jurídico.

3. No crime de BURLA, o ofendido titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação é o PREJUDICADO, necessariamente (e muitas são as vezes em que não coincide) com o ENGANADO.

4. No caso sub judice:

- A lesada “W... - Comércio e Reparação de Automóveis S.A", apresentou queixa tempestivamente.

- Tinha legitimidade para o fazer por ser a titular dos interesses tutelados pela incriminação prevista no artº 217° do Código Penal (crime de burla).

5. Encontra-se, assim, verificada a condição de procedibilidade para procedimento criminal pelo crime de burla simples e, subsequente ente, o MºPº tem legitimidade para acusar, como fez, o arguido pela prática desse ilícito criminal.

6. Ao entender de modo diverso, o despacho recorrido violou, assim, o disposto nos artºs 113º, 116º e 217º do C.P. e 49° do C.P.P.

Nestes termos e naqueles mais que V.ªs Ex.ªs, se dignarão suprir:

Deve o presente ser julgado procedente, em consequência, revogado o despacho recorrido, substituindo-o por outro que receba a acusação na parte respeitante ao crime de burla por que o arguido vinha, igualmente, acusado nos presentes autos, com as demais consequências legais.

JUSTIÇA!”

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3. Admitido o recurso foi sustentado o despacho recorrido.
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4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, por promoção do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, foi solicitada certidão da participação existente no processo principal.
5. Após a Ex.mª Procuradora-Geral Adjunta, no douto parecer que emitiu (fls. 47/48), pronunciou-se no sentido de acompanhar o recurso interposto.
Notificados o arguido e o demandante, nos termos e para os efeitos consignados no artº 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, os mesmos não responderam.

Foram colhidos os vistos legais.

Procedeu-se a conferência, com observância do formalismo legal, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
***

II. Fundamentação.

1. Delimitação dos poderes cognitivos do tribunal ad quem e objecto do recurso:
É hoje entendimento pacífico que as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Como se alcança dos autos o M.P veio recorrer do despacho que considerou que inexiste queixa do ofendido.
Será, portanto, só nessa parte, que apreciaremos a decisão recorrida.
Face a tal, temos, como 
Questão a decidir:
 
Apreciar se:
- Se o despacho recorrido foi bem proferido ou se deverá ser anulado e ordenado o prosseguimento dos autos para efectuar julgamento, por ser válida a queixa apresentada.
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2. A decisão recorrida é do seguinte teor, (por trancrição):

“QUESTÃO PRÉVIA:

I. Ilegitimidade do Ministério Público para acusar pelo crime de burla

           

Compulsados os autos constata-se que o arguido, e para além de ter sido acusado pelo Ministério Público de um crime falsificação de documento, também se encontra acusado, pelo Ministério Público, da prática de um crime de burla p. e p. no art. 217º n° 1 do Código Penal (cfr. acusação Pública de fls. 178 a 180).

Tal crime de burla reveste natureza semi-pública (cfr. art. 217º nº 3 do Código Penal), sendo, pois, necessário, para que o Ministério Público pudesse promover a acção penal, o prévio exercício do direito de queixa por parte dos respectivos ofendidos/burlados (que, segundo a acusação seria os funcionários do banco BES ou o próprio banco BES, em relação ao cheque alegadamente depositado no BES).

Ora, da análise dos autos, em lado algum dos mesmos resulta que qualquer das pessoas ou entidade atrás referida tivesse apresentado queixa ou alguém, por eles mandatado, tivesse evidenciado qualquer manifestação de vontade no sentido de desejar procedimento criminal quanto aos factos relacionados com o imputado crime de burla.

           

Não houve, pois, qualquer queixa por parte de qualquer dos "burlados".

Acontece que dada a natureza do semi-pública do referido crime de burla e face à falta de qualquer manifestação de vontade no sentido de ser desejado procedimento criminal contra o arguido pelos titulares do direito de queixa, o Ministério Público não tinha legitimidade para acusar por tal crime de burla.

           

Com efeito, dispõe o art. 49° nº 1 do CPP que: "Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que estas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo".

Por sua vez dispõe o nº 2 do mesmo normativo: "Para o efeito do número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele".

E dispõe o nº 3 daquele mesmo preceito que: "A queixa é apresentada pelo titular do direito respectivo ou por mandatário com poderes especiais".

E como atrás referimos não houve qualquer manifestação de vontade por parte dos ofendidos "burlados" ou seu representante legal, no sentido de desejar procedimento criminal contra o arguido, ou seja, não houve queixa (formal ou não) em relação ao referido crime de burla.

Há que acentuar que o direito de queixa, regulado nos arts. 113º a 116° do CP, funciona como uma condição de procedibilidade (cfr. neste sentido, e perfeitamente adaptável ao Código Penal em vigor, o Ac. da Relação de Évora de 26 de Abril de 1983, in BMJ nº 328, pag. 633).

Assim sendo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, o Ministério Público não tinha legitimidade para acusar pelo crime de burla, sendo a ilegitimidade uma questão prévia de conhecimento oficioso que obsta ao conhecimento do mérito da causa.

            Nestes termos, face à ilegitimidade do Ministério Público para acusar, ao abrigo do disposto no art. 311º nº 1 do Código de Processo Penal, não recebo a acusação na parte respeitante a crime de burla por que o arguido vinha acusado nos presentes autos.

Sem custas por o Ministério Público delas estar isento (art. 522º nº 1 do CPP) Notifique”

                                                 

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3. APRECIANDO.

Da existência de queixa e da legitimidade do Ministério Publico.

        Insurge-se o recorrente contra o facto de o juiz do tribunal "a quo" ter decidido que o Ministério Publico não tinha legitimidade para deduzir acusação na parte respeitante ao crime de burla, alicerçando essa sua decisão no facto de, no seu entendimento (dele tribunal a quo), não ter existido denúncia por parte dos titulares do direito de queixa, que intitula de "ofendidos/burlados", e que para si seriam, no caso em apreço, os funcionários do B. E. S. ou o próprio banco B.E.S.       

Vejamos então.  

Estipula o art º 113°, n º1 do Código Penal, sob a epigrafe "Titulares do Direito de Queixa" que: "Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação".

Defende o recorrente que não se verifica, in casu, a falta de condição criminal de procedibilidade para procedimento criminal pelo crime de burla simples e, subsequentemente, a falta de legitimidade do MºPº para acusar o arguido pela prática desse ilícito criminal.

Na verdade, o arguido vinha acusado pela prática de um crime de burla p. e p. no art. 217º n° 1 do Código Penal (cfr. acusação Pública de fls. 178 a 180).

Tal crime tem natureza semi-pública, nos termos do n.º 3 de tal norma.

Será que com tal se pode entender, como pretende o recorrente, que foi feita queixa pelo ofendido?

Na verdade, como bem referido foi, pelo recorrente, a denúncia (queixa ou participação, como indistintamente a lei denomina) por crimes semi-públicos não está sujeita a formalidades especiais (artigo 246.° do CPP) e, muito menos, a fórmulas sacramentais, bastando que exista uma manifestação inequívoca de vontade de que seja exercida a acção penal. Isto é, o que é necessário e essencial é que dos termos da queixa ou dos que se lhe seguirem se conclua, de modo inequívoco, a manifestação de vontade de perseguir criminalmente o autor de um facto ilícito.

Que exista uma inequívoca vontade do ofendido de que seja exercida acção penal.

Ou, como é referido no acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 06-10-2010, Processo: 1123/08.3 TAGRD.C1, Relator: BRÍZIDA in WWW.dgsi.pt “…………. a ideia essencial de que, na verdade, a validade da queixa não exige uma fórmula especial ou a expressa declaração com utilização do termo «queixa», bastando-se com qualquer manifestação inequívoca do titular do direito de queixa, no sentido de pretender desencadear o procedimento criminal.”

E será que isso resulta destes autos?

É manifesto que sim.

Na verdade, não exigindo a validade da queixa uma fórmula especial ou a expressa declaração com utilização do termo «queixa», bastando-se com qualquer manifestação inequívoca do titular do direito de queixa, no sentido de pretender desencadear o procedimento criminal, temos que no documento junto a fls. 43 /45, a queixosa W..., manifestou o seu desejo de procedimento criminal contra o autor dos factos, então desconhecido, pela factualidade que relata e que consubstancia os crimes imputados ao arguido.

A questão coloca-se, pois, que, em saber quem é que, no caso em análise, é o portador do bem jurídico/titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação prevista no artº 217º do Código Penal: o "lesado/prejudicado" ou o "enganado".

Da análise do referido 113°, n º1 do Código Penal, decorre que o legislador visou a tutela do portador do bem jurídico.

O crime de burla é um crime contra o património em geral que tem como bem jurídico tutelado, o património, globalmente considerado, entendido este como o conjunto de bens ou utilidades com valor económico detidos por um cidadão e protegidos ou, pelo menos, tolerados, pela ordem jurídica.

O ofendido do crime de burla é pois, apenas e sempre, o titular do património afectado com o seu cometimento. Sendo a burla um crime de execução vinculada, resulta da análise do respectivo tipo que, se em regra, coincidem as pessoas do burlado e do ofendido, o seu preenchimento não depende, necessariamente, da reunião destas duas qualidades na mesma pessoa, como claramente resulta de no art. 217º, nº 1, do C. Penal se prever que o errante [o burlado] pratique acto causador de prejuízo a terceiro [o ofendido].

Ora, no caso dos autos e contrariamente ao decidido entendemos que a verdadeira titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação prevista no artº 217º do Código Penal, é a sociedade “W... ", a qual foi desapossada, contra sua vontade e pelo arguido, do cheque cuja cópia se encontra a fls. 57 dos auto, e se viu prejudicada, porque privada, do montante de €270,00, titulado pelo cheque e que lhe pertencia, em consequência do acto praticado por outrem que agiu por engano sobre factos que o arguido astuciosamente causou. Até porque a instituição bancária B.E.S., não pode, in casu, exercer o direito de queixa, no que ao crime de burla concerne, na medida em que, desde logo, não resultou, para si, qualquer prejuízo patrimonial decorrente daquela conduta, pois que o BES se limitou a pagar uma vez o dito cheque e foi a W... que ficou desapossada da quantia titulada pelo cheque se destinava a pagar uma prestação de serviços efectuada pela ofendida W....

Ou seja, neste caso concreto estamos perante uma situação em que o ofendido titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (isto é, o PREJUDICADO) não coincide com o ENGANADO, que foi o BES.

Na verdade, nada nos chega que permita a conclusão de que aquela instituição bancária tenha sofrido qualquer prejuízo no seu património. Por outro lado o único prejuízo detectado será o sofrido pela W... que terá visto o seu património prejudicado pelo desconto do cheque e não o banco que, por isso, não se constitui como a titular do interesse protegido pela norma que incrimina a burla (o património).

Assim sendo, concluímos que foi apresentada queixa contra o arguido, pelo prejudicado/ofendido, pelo que o Ministério Publico tem legitimidade, para exercer a acção penal.

Consequentemente, mal andou o tribunal “a quo”, pelo que se julga procedente o recurso e se ordena a alteração da decisão recorrida.


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            III – Decisão.

  Posto o que precede, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar o recurso procedente, revogando o despacho recorrido o qual deverá ser substituído por outro que determine o recebimento da acusação deduzida contra o arguido, pela prático do referido crime de burla.
Sem custas.

                                        *

Calvário Antunes (Relator)
Fernando Chaves