Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
641/19.2T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
ALUGUER DE VEÍCULO
RESTITUIÇÃO
PERICULUM IN MORA
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 06/25/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - F.FOZ - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.5, 362, 590 CPC, 1038, 1043, 1044, 1045 CC
Sumário: 1. Quanto à alegação do periculum in mora em procedimentos cautelares relativos a contratos de aluguer de longa duração de veículos, existem duas orientações jurisprudenciais: (i) uma que entende que a não restituição do veículo automóvel ao seu dono devido a incumprimento contratual implica, nomeadamente, que se desvalorize pelo uso (e o decurso do tempo) e indicia o receio fundado de lesão grave e de difícil reparação, tornando desnecessária a alegação de factos concretos integradores do periculum in mora; (ii) e outra que considera necessária a alegação e demonstração de factos concretos integradores da existência do requisito do justo receio.

2. Perante aquelas duas correntes jurisprudenciais antagónicas sobre uma questão de que depende a decisão de mérito, e se o alegado no articulado inicial, à luz da interpretação que uma delas faz da lei - ao invés da perspectiva seguida pela outra corrente -, possibilitará atender, a final, a pretensão do autor, deve o julgador abster-se de, no despacho liminar, afirmar a perfilhação do outro entendimento jurisprudencial, para assim, com base nele, indeferir liminarmente, por manifesta improcedência do pedido, a petição inicial.

3. Será pois razoável e adequado o prosseguimento do procedimento cautelar, inclusive, com o eventual convite ao aperfeiçoamento da petição, permitindo assim à requerente alegar novos factos que melhor explicitem os já invocados (mormente, visando afirmar e demonstrar o requisito tido por insuficientemente plasmado - inclusive, nas palavras da recorrente, “factos sobre a situação patrimonial da Requerida”) e porventura outros que também suportem a sua pretensão no âmbito de diverso/contrário entendimento que se anteveja igualmente plausível.

Decisão Texto Integral:





            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. B (…), Lda., instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra (Juízo Local Cível da Figueira da Foz) procedimento cautelar comum (sob o enquadramento ou a epígrafe “providência cautelar não especificada, sem audiência prévia do requerido e com inversão do contencioso”) contra F (…) Lda., pedindo, além do mais, que, sem prévia audiência da parte contrária, se ordene a apreensão e entrega imediata à requerente do veículo automóvel marca BMW, com a matrícula (…) chaves e respectivos documentos, oficiando, para o efeito, às autoridades policiais territorialmente competentes.

Alegou, nomeadamente:  

a) É uma sociedade que tem por objecto o exercício, entre outras, da actividade de aluguer de veículos automóveis sem condutor.

b) No exercício da sua actividade, celebrou com a Requerida, em 06.9.2017, o Contrato de Aluguer Operacional (Select) n.º ...5108 (DOC. 1 que junta)[1].

c) O Contrato teve por objecto o veículo automóvel marca BMW, modelo 216, com a matrícula (…), adquirido pela Requerente ao fornecedor designado “(…).”, pelo preço de € 35 556,54, IVA incluído.

d) A propriedade sobre o veículo automóvel objecto do Contrato encontra-se inscrita a favor da Requerente, como se depreende da informação emitida pela Conservatória de Registo Automóvel, sendo a Requerente legitima proprietária do mesmo.

e) O veículo automóvel foi pela Requerente entregue à Requerida, em cumprimento do Contrato (cf. a declaração por esta subscrita, junta sob DOC 4).

f) Nos termos do Contrato celebrado, a Requerida obrigou-se a pagar à Requerente quarenta e oito alugueres mensais, no montante de € 503,12, aos quais acresce o valor de € 3,38 a título de comissões de processamento, IVA incluído à taxa legal em vigor na data dos respectivos vencimentos.

g) A Requerida não pagou à Requerente, nas respectivas datas de vencimento os alugueres referentes à 7ª a 10ª rendas, vencidas entre 05.3 e 05.6.2018, cujo valor global ascende a € 1 544,20, IVA incluído.

h) Em face do exposto, a Requerente comunicou à Requerida, através de carta registada datada de 12.6.2018, expedida para o domicílio contratualmente convencionado, que deveria proceder à liquidação dos alugueres vencidos e não pagos e demais valores indicados na referida missiva, no prazo máximo de 8 (oito) dias, sob pena de se considerar o Contrato automática e imediatamente resolvido[2] nessa data sem necessidade de outra comunicação e, consequentemente, constituída a Requerida na obrigação de proceder à imediata devolução à Requerente, nas instalações desta, do veículo automóvel dele objecto.

i) Tendo decorrido o prazo referido, sem que a Requerida tenha pago à Requerente a totalidade dos alugueres vencidos, considerou-se o Contrato automaticamente resolvido, por força do disposto no n.º 1 do art.º 19º das Condições do mesmo, e a Requerida obrigada a proceder à imediata devolução à Requerente do veículo automóvel objecto do contrato, por força do disposto na alínea a) do n.º 3 do aludido art.º.

j) Sucede que, até à presente data, a Requerida não procedeu à devolução do veículo automóvel à Requerente, ofendendo, manifesta e abusivamente, o seu direito de propriedade!

 k) Mesmo depois de contactada pela Requerente, que lhe transmitiu ser sua obrigação proceder à imediata devolução do veículo automóvel, a Requerida manteve a posição de total desrespeito das suas obrigações, tendo recusado proceder à devolução do mesmo, sabendo que se encontra a tal obrigada.

l) O comportamento ilícito da Requerida está a causar à Requerente prejuízos graves e de difícil reparação.

m) A circunstância de o veículo automóvel propriedade da Requerente continuar a ser utilizado, embora indevidamente, pela Requerida, implica uma desvalorização acentuada do referido bem, sobretudo porque o veículo continua na posse de quem sabe que, mais dia menos dia, será privado do mesmo, não tendo, consequentemente, qualquer interesse na respectiva conservação e manutenção.

n) A desvalorização do veículo automóvel é ainda acentuada pelo mero decurso do tempo, pois, como é sabido, os veículos automóveis têm uma vida útil normal não superior a 5 (cinco) anos.

o) Por outro lado, considerando que o veículo continua em circulação, com todos os riscos inerentes a esse facto, sem que exista qualquer garantia de que o mesmo se encontre coberto por seguro de responsabilidade civil ou tenha sido objecto de seguro contra danos próprios, é bom de ver que a Requerente está a correr o risco, em caso de acidente, de ser responsabilizada civilmente por danos causados a terceiros, bem como de vir a suportar danos que o veículo sofra, que poderão traduzir-se na respectiva perda total.

 p) Para além disso, o veículo em questão poderá estar sujeito a qualquer apreensão ou apropriação sem que a Requerente, sua proprietária, tenha qualquer controlo da situação.

q) Considerando a finalidade conservatória e antecipatória da presente providência, deverá a mesma ser decretada sem audiência prévia da Requerida, pois a mesma, a existir, permitiria à Requerida obstar à apreensão da viatura, ocultando-a facilmente, frustrando-se a finalidade da providência cautelar ora requerida.

r) O seu decretamento não implica à Requerida qualquer prejuízo que deva merecer tutela jurídica, já que foi a mesma que deu causa aos seus fundamentos, adoptando uma conduta manifestamente ilícita e abusiva, violando conscientemente o direito de propriedade da Requerente.

O Mm.º Juiz a quo, por decisão de 12.4.2019, indeferiu liminarmentea presente providência cautelar por falta do pressuposto do fundado receio da requerente de que a requerida cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito” (sic), argumentando, designadamente: «(…) a requerente alegou os factos que preenchem o fundamento de resolução do contrato por falta de pagamento de rendas e direito à restituição do veículo./(…) vem sendo pacífico na doutrina e na jurisprudência defender-se a exigência de prova que conduza à formação dum juízo de certeza sobre a realidade integradora de lesão grave e dificilmente reparável, ainda que tal exigência seja entendida com maior ou menor amplitude./ Nesta medida, não será, assim, toda e qualquer consequência decorrente da violação de um direito que poderá sustentar o decretamento de uma medida cautelar, mas apenas a comprovação de uma lesão grave e dificilmente reparável./ É nosso entendimento que para fundamentar o ´periculum in mora` não basta a alegação de que o veículo automóvel se desvaloriza ou se desgasta, ou alegações que mais não são do que o risco do locador (apropriação por terceiros, envolvimento em acidentes e outros, que sempre existem e são facilmente acauteláveis mediante a celebração dum contrato de seguro, por sinal obrigatório, pelo menos contra terceiros, para a requerente, enquanto proprietária do veículo, mal se compreendendo a sua alegação a este respeito, especialmente considerando o teor da cláusula 11ª do contrato de locação e a circunstância de o mesmo se encontrar resolvido)./ Acresce que a requerente tem o direito aos alugueres do equipamento até à sua efectiva restituição: a título de prestação devida até à resolução do contrato (art.º 1038º, al. a) do Código Civil/CC) e a título de indemnização, desde a resolução até à efectiva entrega (art.º 1045º do CC). A eventual perda ou deterioração do equipamento locado está acautelada nos termos gerais (art.ºs 1043º e 1044º do CC) e nos termos do contrato celebrado com a requerida./ Assim sendo, suceda o que suceder ao bem locado, toda a responsabilidade recai sobre a requerida, fazendo surgir o correspectivo crédito, de natureza monetária, na esfera jurídica da requerente. Ora, nem toda a lesão releva; a mesma tem que ser grave. A gravidade da lesão é apurada em termos concretos, ou seja, em face das concretas circunstâncias do sujeito. Já vimos que o receio da requerente se prende com a eventual não cobrança dum crédito que, pelo decurso do tempo, está a aumentar. A não cobrança dum determinado crédito pode ser grave para uma pessoa e pouco relevante para outra, dependendo do montante do crédito e da situação patrimonial do credor[3]. Nada se alegou quanto a esta[4]./ Essencial seria também que fossem alegados factos da situação patrimonial da requerida, da sua (in)capacidade para cumprir a responsabilidade resultante do contrato, com vista a poder-se concluir pela difícil reparabilidade da lesão, pois tendo a mesma natureza puramente patrimonial, facilmente se repara caso o património da requerida o permita. Uma vez mais, nada se alegou quanto a isto./ Falta, por isso, alegação de matéria que permita, caso resultasse indiciariamente provada, o preenchimento do requisito do receio de lesão grave e dificilmente reparável, pelo que o procedimento estaria sempre votado à improcedência.»

Inconformada, a requerente apelou, terminando a alegação com as seguintes conclusões:

1ª - Foi feita uma incorrecta interpretação dos factos, na medida em que para aferir do fundado receio de lesão grave e irreparável o Tribunal se socorre essencialmente da argumentação de que independentemente do fim e destino do veículo objecto dos autos dado pela Requerida irá surgir o respectivo direito de crédito na esfera da Requerente, o que não se admite!

2ª - O receio da Requerente é a lesão do seu direito de propriedade sobre o veículo objecto dos presentes autos e não a eventual não cobrança de um crédito!, pelo que a lesão do direito da Requerente que se visa acautelar não tem natureza puramente patrimonial mas sim natureza real.

3ª - Não sendo um direito de crédito o direito a acautelar com a apresentação da presente providência, não foi pela Requerente concretizada especificamente a situação patrimonial da Requerida.

4ª - Não obstante, sempre se dirá que atendendo a que a Requerida deixou de cumprir definitivamente o pagamento dos alugueres mensais a que se encontrava adstrita logo desde o aluguer mensal n.º sete, e tendo sido interpelada para proceder ao pagamento dos mesmos não agiu em conformidade, é notório da falta de capacidade económica daquela para fazer face às suas obrigações contratuais para com a Requerente.

5ª - Por outro lado, atente-se que se a Requerida não tem poder económico para face fazer ao pagamento dos alugueres mensais devidos praticamente desde o início de vigência do Contrato, não vê a Requerente como é que aquela poderá pagar à Requerente os alugueres do veículo desde a resolução do contrato até à efectiva devolução do mesmo, à qual se tem furtado, como se alegou na petição.

6ª - Mais, se a Requerida não tem poder económico para face fazer ao pagamento dos alugueres mensais devidos quase desde o início de vigência do Contrato, o que culminou na resolução do contrato, não vê a Requerente como é que aquela poderá pagar à Requerente qualquer indemnização decorrente da resolução contratual ou da eventual perda ou deterioração do veículo em causa.

7ª - Atente-se que estamos perante um contrato de aluguer operacional, cujo objecto é um veículo de propriedade da Requerente, sendo concedido o gozo do mesmo à Requerida mediante o pagamento de alugueres mensais, sendo neste caso justificáveis a desvalorização e os riscos que correm por conta do locador.

8ª - Já não são justificáveis a desvalorização e os riscos sérios que correm por conta do locador quando a Requerida mantém na sua posse o veículo, após a resolução do contrato por incumprimento, sem qualquer título que a legitime.

9ª - Refira-se ainda que, uma vez que no caso sub judice o seguro automóvel não foi contratado através da Requerente, pese embora aquando da celebração do contrato tenha sido apresentada declaração exigida nos termos do disposto no art.º 11º das Condições Gerais do Contrato, facto é que o contrato de seguro e, bem assim, a cobertura de danos próprios, podem ser cancelados subsequentemente, sendo a Requerente responsabilizada, em caso de acidente pelos danos causados a terceiros e, bem assim, a suportar os danos decorrentes do mesmo ou de uma eventual perda total do veículo sua propriedade.

10ª - Por outro lado, atente-se que a Requerida, tendo conhecimento de que está obrigada a proceder à entrega do veículo, e tendo-se furtado sempre à sua devolução, manifesta clara intenção de não cumprimento das suas obrigações mesmo que estas lesem gravemente o direito de propriedade da Requerente, pelo que não terá interesse na boa conservação e manutenção do veículo.

11ª - Impunha-se, assim, ao Tribunal a quo tomar em consideração todos os factos ou concretização dos factos alegados e que resultem da instrução da causa, tomando em consideração todas as provas carreadas (cf. art.ºs 5º, n.º 2, alínea b) e 413º do Código de Processo Civil/CPC) - ao invés de considerar tais factos, optou o Tribunal a quo por indeferir liminarmente a providência cautelar, sem qualquer possibilidade de produção da demais prova requerida pela Requerente, designadamente prova testemunhal, nem formulando convite ao aperfeiçoamento.

12ª - Não pode o Tribunal sustentar o indeferimento liminar da providência cautelar pela alegada falta de alegação de matéria de facto quanto à situação patrimonial da Requerida, mormente, para concluir que a providência estaria sempre votada à improcedência, sendo que - reitera-se, ainda que não esteja em causa nos presentes autos um direito de crédito mas sim o direito de propriedade da Requerente sobre o veículo em questão - deveria a Requerente ter sido convidada ao aperfeiçoamento do seu requerimento inicial, ao abrigo dos princípios da economia processual, da cooperação e do inquisitório.

13ª - Ao invés de indeferir liminarmente a providência cautelar, deveria o Tribunal ter convidado a Recorrente ao aperfeiçoamento do seu requerimento inicial.

14ª - A decisão em crise parte de uma premissa errada, qual seja a de que estão em causa interesses de natureza exclusivamente patrimonial, podendo a Recorrente ser ressarcida da eventual perda do veículo automóvel, bem como, da sua desvalorização decorrente do uso do mesmo.

15ª - O direito que a Recorrente pretende acautelar nos presentes autos é o direito à restituição do veículo objecto do contrato de ALD celebrado com a Requerida/Recorrida, direito decorrente do seu direito de propriedade sobre o veículo (direito de natureza real e não obrigacional), sendo que, naturalmente, o periculum in mora tem de ser analisado e apreciado relativamente ao direito que é invocado pelo Requerente da providência cautelar e não relativamente a qualquer direito que daquele seja sucedâneo ou substitutivo, como o direito à indemnização pelos prejuízos daí decorrentes;

16ª - O Tribunal não pode impor à Requerente o sacrifício do direito real e a substituição involuntária pela indemnização sucedânea, não cabendo ao Tribunal pronunciar-se sobre a possibilidade de a Requerente obter um valor que a compense da privação do veículo mas apenas decidir se a tutela provisória do direito real está justificada.

17ª - Ainda que se considere não ser possível aplicar aos procedimentos cautelares relacionados com contratos de aluguer o regime especificamente previsto para os contratos de locação financeira ou de compra e venda com garantia hipotecária ou reserva de propriedade, sempre se dirá que, aplicando-se as regras gerais do procedimento cautelar comum, e tendo em conta a unidade do sistema jurídico, a existência daqueles regimes jurídicos não pode passar despercebida na interpretação da lei geral e na subsunção dos factos concretos a essa mesma lei.

18ª - A proceder o entendimento do Tribunal a quo, estar-se-ia a esvaziar de conteúdo o procedimento cautelar comum, conferindo tutela ao Requerente apenas quando houvesse o risco de a lesão que se pretende evitar não poder ser satisfeita pela via indemnizatória - tal exigência redundaria na criação de um pressuposto que a Lei não exige.

19ª - A posição da Requerida, de recusa da entrega do veículo à Requerente, única e exclusiva proprietária, apesar de não ter mais qualquer direito obrigacional que lhe confira o gozo do veículo, ou qualquer título que legitime a sua posse e utilização, constitui uma ameaça fundada de lesão grave e dificilmente reparável do direito de propriedade da Requerente, estando assim demonstrada a existência do periculum in mora.

20ª - Sendo que, como resulta da factualidade alegada, e bem assim da experiência comum, a circulação do veículo implica, atenta a natureza do bem em causa, uma desvalorização acentuada, igualmente acentuada pelo mero decurso do tempo, sendo admissível o recurso às presunções judiciais na apreciação do pressuposto do periculum in mora.

21ª - A circulação do veículo acarreta ainda inúmeros riscos, designadamente o risco de perda total do bem, bem específico cuja entrega se requer.

22ª - Toda esta factualidade, alegada no requerimento inicial permite concluir pela existência de uma ameaça fundada de lesão grave e dificilmente reparável do direito de propriedade da Requerente, que se pretende acautelar, pelo que mal andou o Tribunal a quo ao indeferir liminarmente a presente providência cautelar, violando o disposto nos art.ºs 362º do CPC e 1305º do CC.

            Remata dizendo que deve ser revogada a sentença recorrida e substituída por decisão que ordene o normal prosseguimentos dos autos de procedimento cautelar até final.

Não se notificou a requerida para responder (art.º 641º, n.º 7, parte final, do CPC e despacho de 03.5.2019).

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, a questão a solucionar consiste em saber se os factos alegados na petição serão susceptíveis de configurar fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável ao direito da requerente (periculum in mora), de modo a permitir o prosseguimento dos presentes autos em substituição do indeferimento liminar decretado - se o Tribunal a quo podia, em lugar de fazer prosseguir os autos (ainda que com o eventual aperfeiçoamento da petição) com vista a, a final, proferir decisão sobre o peticionado, indeferir liminarmente a providência requerida.


*

II. 1. A tramitação e os factos a considerar na decisão do recurso são os indicados no procedente relatório.

2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560º[5] (art.º 590º, n.º 1 do CPC). Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a, nomeadamente, providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes (n.º 2, alínea b)). Incumbe ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido (n.º 4)[6].

E sabemos também que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas (art.º 5º, n.º 1 do CPC), sendo que, além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar e os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções (n.º 2).

3. Constitui objecto do presente recurso a decisão de indeferir a providência cautelar requerida ao abrigo do n.º 1 do art.º 362º do CPC, concretamente a apreensão de um veículo automóvel e a sua entrega à requerente.

Decorre da decisão sob censura, que o Mm.º Juiz a quo enquadrou o interesse patrimonial da requerente na mera não cobrança dum determinado crédito, e veio a considerar que esta nada alegou relativamente à situação patrimonial do devedor/requerida, sua (in)capacidade para cumprir a responsabilidade resultante do contrato, com vista a poder-se concluir pela difícil reparabilidade da lesão, concluindo, depois, que  falta alegação de matéria que permita, caso resultasse indiciariamente provada, o preenchimento do requisito do receio de lesão grave e dificilmente reparável.

4. Sem quebra do devido respeito por opinião em contrário e sabendo-se estarmos perante problemática não isenta de dificuldades, afigura-se que será porventura razoável e avisada uma solução que passe pelo prosseguimento dos autos, atendendo, sobretudo, por um lado, à clara divisão verificada na jurisprudência acerca dos requisitos conducentes ao deferimento da pedida providência cautelar e, por outro lado, à fase incipiente dos presentes autos e suas “possibilidades”.

Ademais, acolhendo (também) o próprio Tribunal recorrido o entendimento de que a requerida “não deva ser ouvida” antes do (eventual) decretamento da providência cautelar (veja-se, de novo, o despacho de 03.5.2019, aludido em I, supra), aqui talvez mais um motivo para que se reanalise a situação dos autos no contexto da realidade jurisprudencial e adjectiva por ela convocada.

5. As divergências da recorrente em relação à decisão recorrida suscitam essencialmente as seguintes questões: a) saber qual o direito que a requerente quer acautelar com a providência; b) interpretação do n.º 1 do art.º 362º do CPC, na parte em que se refere à lesão dificilmente reparável do direito; c) saber se alegou factos suficientes para caracterizar como dificilmente reparável a lesão ao seu direito.

O n.º 1 do art.º 362º do CPC - que estabelece que sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado - define o âmbito do procedimento cautelar comum onde se integram as denominadas providências cautelares não especificadas, ou seja, as providências destinadas a acautelar o risco de lesão de direitos (risco resultante da demora da decisão definitiva da causa), que não está prevenido por algum dos procedimentos cautelares tipificados/especificados na lei (restituição provisória da posse, suspensão de deliberações sociais, alimentos provisórios, arresto, embargo de obra nova e arrolamento).

Assim, podemos afirmar que, na resposta a dar a um pedido de providência cautelar deduzido ao abrigo do n.º 1 do art.º 362º do CPC, o julgador deverá: a) identificar o direito que o requerente da providência pretende acautelar; b) determinar se a demora - inevitável - na resolução definitiva do litígio comporta algum perigo para o direito do requerente; c) em caso de resposta afirmativa, determinar se esse perigo, a concretizar-se, é de caracterizar, em relação ao direito, como lesão grave e de difícil reparação.

6. Na situação em análise, como em casos similares, defende-se, na alegação de recurso, que o que está em causa não é (essencialmente) o direito de crédito, consistente em obter o pagamento dos “alugueres”/rendas vencidos e não pagos pela recorrida e o demais devido pelo incumprimento do contrato, mas o direito de propriedade sobre o veículo dado de aluguer.

Porém, em bom rigor e numa primeira abordagem, o direito visado acautelar com a providência, atento o circunstancialismo alegado na petição, é o direito à restituição do veículo em consequência da resolução do contrato de aluguer. Apesar de a requerente afirmar que é a proprietária do veículo, a relação que serve de fundamento ao procedimento é o contrato de aluguer do veículo celebrado entre a requerente, como locadora, e a requerida, como locatária. E é com base na resolução do aluguer, por incumprimento contratual da requerida, que a requerente reclama a restituição do veículo [cf., sobretudo, a alegação vertida nas alíneas i) a k) do ponto I., supra].

7. No que concerne à interpretação feita pela decisão recorrida do n.º 1 do art.º 362º do CPC, na parte em que faz depender o recurso ao procedimento cautelar comum do requisito do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável ao direito da requerente, antolha-se evidente que o Mm.º Juiz a quo acentuou a natureza puramente patrimonial do dano (efectivo e potencial) na esfera da requerente, e que esta não terá alegado matéria para o eventual preenchimento do requisito do receio de lesão grave e dificilmente reparável, o que sempre conduziria à improcedência do procedimento cautelar.

Ou seja, o Mm.º Juízo a quo entendeu que em nada relevaria a alegação contida, nomeadamente, nas alíneas m) a q), como se reproduziu no ponto I., supra.

8. Relativamente à interpretação/aplicação da parte do n.º 1 do art.º 362º do CPC que se refere “ao receio de lesão … dificilmente reparável ao seu direito” - maxime, a questão da alegação do periculum in mora nos procedimentos cautelares relativos a contratos de aluguer de longa duração de veículos automóveis - importa considerar a existência de uma prolongada contraposição de duas orientações jurisprudenciais divergentes.

Se por um lado há quem siga o entendimento de que quando o direito que se quer acautelar tiver natureza patrimonial, a lesão receada só será de qualificar como de difícil reparação quando, atendendo às possibilidades concretas do requerido para suportar economicamente uma eventual reparação do direito do requerente, se concluir que o mesmo não tem condições económicas para suportar a reparação da lesão causada - estando em causa lesões patrimoniais nos direitos do locador, só se poderá falar em lesão dificilmente reparável quando o locatário não dispusesse de meios para o ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo locador em consequência da não restituição ou da demora na entrega do veículo[7], do outro lado, em clara oposição, defende-se que mantendo-se o locatário a utilizar o automóvel, na sequência da resolução do contrato e sem pagar as rendas, e denotando a sua oposição ao procedimento cautelar comum, interposto pelo locador, a intenção de assim continuar, deve ter-se por verificada a existência de periculum in mora (perante o incumprimento do contrato, que levou à sua resolução, a não entrega pela requerido/locatário de um bem que não lhe pertence, que se desvaloriza pelo uso normal e decurso do tempo e cuja utilização se tomou ilícita por força dessa mesma resolução, indicia fundado receio de lesão grave e difícil reparação).[8]

9. Perante a apontada divergência na jurisprudência e tendo em atenção o desiderato último de todo e qualquer procedimento cautelar, qual seja, o de assegurar o efeito útil à decisão definitiva da causa (cf. o art.º 362º, n.º 1, in fine, do CPC), pelo que a lesão que se receia há-se ser considerada de difícil reparação quando existir o risco de insatisfação do direito (risco resultante da demora na decisão definitiva da causa), importa pois saber se a requerente/recorrente alegou factos suficientes para caracterizar como dificilmente reparável a lesão ao seu direito, caso não fosse decretada a apreensão e a entrega do veículo automóvel dado de aluguer, pelo menos, a luz de um dos referidos entendimentos.

Analisada a petição verifica-se que o perigo de desvalorização contínua do veículo foi um dos perigos que fundamentou a pretensão da requerente/recorrente [cf. alíneas m) e n), ponto I., supra]; mas a requerente fundamentou a sua pretensão com a alegação de outros perigos, designadamente, o de o veículo ser dissipado ou ocultado pela requerida [alínea q), ibidem – perspectiva de algum modo acolhida pelo Tribunal a quo ao proferir o despacho a que alude o art.º 641º do CPC], o de continuar em circulação sem que exista qualquer garantia de que o mesmo se encontre coberto por seguro de responsabilidade civil ou tenha sido objecto de seguro contra danos próprios, podendo a requerente ser responsabilizada civilmente por danos causados a terceiros e/ou a suportar danos que o veículo sofra [alínea o), ibidem] ou o de poder estar o veículo sujeito a qualquer apreensão ou apropriação sem que a requerente, sua proprietária, tenha qualquer controlo da situação [alínea p), ibidem].

Ora, se alguns dos alegados “perigos” são comuns ao normal uso de um veículo, outros, como os associados a um potencial uso imprudente ou à possibilidade de descaminho ou ocultação pela requerida, enquanto decorresse a acção principal, já se apresentam porventura atendíveis no contexto da eventualidade de o direito à restituição poder vir a ser lesado em termos irreversíveis (comprometendo a efectividade do direito que a requerente quer acautelar), sendo que, havendo a probabilidade séria da existência do direito à restituição do veículo, em consequência da resolução do contrato de aluguer, assiste ao locador a faculdade de requerer a providência adequada a assegurar a efectividade de tal direito (cf. os art.ºs 2º, n.º 2 e 362º, n.º 1 do CPC; o direito que a recorrente pretende acautelar é o direito à restituição do veículo objecto do “contrato de aluguer operacional” celebrado com a requerida/recorrida, direito esse decorrente do seu direito de propriedade sobre o veículo), naturalmente, pelo menos, no âmbito da segunda das perceptivas explanadas em II. 8., supra, razão pela qual sempre seria de considerar ter a requerente alegado factos susceptíveis de caracterizar o receio de lesão grave e dificilmente reparável do seu direito (direito à restituição do veículo).[9]

10. Como se viu, o Mm.º Juiz a quo indeferiu liminarmente a “providência cautelar por falta do pressuposto do fundado receio da requerente de que a requerida cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito”.

Porém, a manifesta improcedência é situação que só se verifica quando o pedido formulado na petição não possa, à luz de qualquer das soluções plausíveis que a questão de direito comporte, ser atendido.

No presente caso, sobre aquela questão principal para a atendibilidade da pretensão da requerente, há, essencialmente, as duas correntes jurisprudenciais com significado expressivo aludidas em II. 8., supra, que, face à interpretação que fazem da lei, dão soluções divergentes, sendo que à luz de uma delas a viabilidade da providência, em face do que é alegado, é excluída, enquanto à luz da interpretação que, dos preceitos legais pertinentes, faz a outra corrente jurisprudencial, a pretensão pode proceder se a prova a produzir confirmar o alegado pela requerente, o que desde logo excluirá a manifesta improcedência da pretensão como fundamento de indeferimento liminar.

Na verdade, já se entendeu - e não vemos razão para não acolher tal perspectiva das coisas - que decidindo no liminar, havendo outra corrente jurisprudencial expressiva que permitia que a providência viesse a ser decretada a final, está o julgador a cortar, desde logo, qualquer hipótese de, mais tarde, produzidas as provas, poder decidir segundo essa outra corrente, no caso de, entretanto, ter mudado o seu entendimento, hipótese que sempre é bom deixar em aberto; depois, não sabe o julgador, na ocasião do liminar, se vai ser ele quem vai decidir a providência, podendo dar-se o caso de o decisor [o próprio ou outro] enfileirar na corrente que permita, em face da prova que se haja produzido, viabilizar a pretensão; por último, mas com decisiva importância, o indeferimento liminar da petição, sendo dele interposto recurso, irá dar azo a uma inevitável demora na obtenção da solução da pretensão da requerente – o que assume maior relevo, no âmbito de um procedimento cautelar, que se quer célere –, pois nesse caso, caso a Relação discorde do assim decidido, os autos terão de baixar para prosseguirem na 1ª Instância, o que não sucederia se, ainda que, mantendo o entendimento inicial, o julgador da 1ª Instância viesse, de acordo com ele, a final, a indeferir a providência, pois nesta última hipótese, já poderia a Relação, aproveitando a prova produzida, proferir decisão definitiva sobre a matéria, fosse o seu entendimento coincidente ou não com o do Tribunal “a quo”.[10]

11. Estando os procedimentos cautelares sujeitos a despacho liminar do juiz (cf. o art.º 226, n.º 4, alínea b) do CPC), tal despacho, sendo de indeferimento da petição, deve assentar num dos fundamentos legais que permitem ao Tribunal essa rejeição, sendo que, de harmonia com o disposto no art.º 590º do CPC a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560º.

Daí que se considere prematuro que a 1ª Instância faça valer, logo na fase liminar do procedimento, o entendimento que tem sobre [a] irrelevância do alegado pela requerente para preenchimento do requisito do “periculum in mora”, indeferindo “in limine”, a providência, quando existe interpretação legal seguida por corrente jurisprudencial expressiva contrária a esse entendimento e que, impedindo alicerçar esse indeferimento na inviabilidade manifesta do pedido, era susceptível de permitir o futuro acolhimento da pretensão da Requerente[11], sendo pois mais razoável e adequado o prosseguimento do procedimento cautelar, inclusive, com o eventual convite ao aperfeiçoamento da petição permitindo à requerente alegar novos factos que melhor explicitem os já invocados (mormente, para a afirmação do requisito que se considerou insuficientemente plasmado, inclusive, nas palavras da recorrente, “factos sobre a situação patrimonial da Requerida”)[12] e porventura outros que também suportem a sua pretensão no âmbito de um diverso/contrário entendimento que se anteveja igualmente plausível.

Daí que, sem quebra do devido respeito por entendimento contrário, se conclua não haver motivo para o indeferimento liminar decretado pelo tribunal a quo e dever prosseguir o procedimento cautelar em apreço.

12. Procedem, desta forma, as “conclusões” das alegações de recurso.


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            III. Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e decide-se revogar o despacho recorrido, prosseguindo os autos como se indica em II. 11., supra.

Sem custas.


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25.6.2019

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Alberto Ruço


           


[1] Contrato reproduzido a fls. 6 e seguintes do processo físico.
[2] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[3] Existirá lapso manifesto, porquanto se quis escrever “devedor”.
[4] Negrito nosso (este e os seguintes).

[5] Que reza o seguinte: O autor pode apresentar outra petição ou juntar o documento a que se refere a primeira parte do disposto na alínea f) do art.º 558º, dentro dos 10 dias subsequentes à recusa de recebimento ou de distribuição da petição, ou à notificação da decisão judicial que a haja confirmado, considerando-se a acção proposta na data em que a primeira petição foi apresentada em juízo.

[6] Corresponde ao n.º 3 do art.º 508º do CPC de 1961 (pós reforma de 1995/96) impondo agora ao juiz o dever de convidar as partes a suprir as deficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada.

[7] Cf., de entre vários, os acórdãos da RP de 11.9.2008-processo 0736163 e 26.01.2016-processo 7401/15.8T8VNG.P1, da RL de 23.4.2009-processo n.º 5937/08.6TBOER e 15.12.2011-processo n.º 746/11.8TVLSB [aresto que também efectua uma breve recensão da jurisprudência, constando da parte final do respectivo sumário: «para a requerente o automóvel a apreender constitui um bem cujo significado se reduz ao seu valor económico, seja na vertente de bem transaccionável, seja de bem capaz de produzir um determinado rendimento enquanto bem locável, estando assim em causa interesses meramente patrimoniais, cuja lesão (emergente da perda do veículo ou da demora na sua recuperação) pode ser perfeitamente reparada mediante a prestação de uma indemnização em dinheiro; assim, a reparabilidade da lesão afere-se pela suficiência ou insuficiência do património da requerida ou pelo perigo do desaparecimento ou diminuição relevante dessa garantia patrimonial»] e da RC de 28.4.2010-processo n.º 319/10.2TBPBL, 07.9.2010-processo n.º 713/09.1T2AND, 19.10.2010-processo n.º 358/10.3T2ILH [subscrito pelo aqui relator e assim sumariado: «1. Num procedimento cautelar comum em que se alega o direito à devolução de veículo cedido em aluguer sem condutor, por resolução do contrato por falta de pagamento das respectivas rendas, tem a requerente de alegar e provar factos com que integre o receio de lesão grave e de difícil reparação, nomeadamente, os que permitam concluir que o locatário não disporá de meios para o ressarcimento dos prejuízos sofridos pela locadora em consequência da demora na entrega do veículo. 2. A lei não dispensa a locadora da prova dos factos constitutivos do ´periculum in mora` e este não se retira da circunstância de a locadora ser proprietária do veículo, de dele se encontrar privada e de o mesmo se poder depreciar, sendo que aquela poderá vir a ser ressarcida em sede própria. 3. Do n.º 4 do art.º 17º do DL n.º 354/86, de 23.10, não se deverá extrair a presunção ´juris et de jure` de que a falta de devolução do veículo locado importa para a locadora ´periculum in mora`.»], 13.11.2012-processo n.º 460/12.7T2ILH e 01.10.2013-processo n.º 589/13.4T2AVR, publicados no “site” da dgsi.

[8] Cf., entre outros, os acórdãos da RP de 18.6.2008-processo 0833386, 09.7.2009-processo 11881/08.0TBVNG.P1, 20.4.2017-processo 575/17.5T8VNG.P1 [tendo-se concluído: «I - O fundado receio de lesão grave ou dificilmente reparável (´periculum in mora`) não é um facto naturalístico mas um conceito normativo que carece de concretização jurisprudencial em função da factualidade demonstrada, da função instrumental da tutela cautelar, do princípio da efectividade dos direitos e do princípio da utilidade da intervenção judicial. II - A finalidade da providência cautelar de entrega de veículo cedido em regime de ALD não é acautelar o ´direito de crédito` da requerente mas acautelar o seu ´direito de propriedade` sobre o veículo e o conteúdo próprio desse direito (o direito ao uso e fruição). III - O tribunal não pode impor à requerente o sacrifício do direito real e a substituição involuntária pela indemnização sucedânea, pelo que não cabe ao tribunal pronunciar-se sobre a possibilidade de a requerente obter um valor que a compense da privação do veículo mas apenas decidir se a tutela provisória do direito real está justificada. IV - Um veículo automóvel tem natureza perecível e é um bem sujeito a uma contínua desvalorização, pelo que, excepto se algo em contrário tiver sido demonstrado pelo locatário, existe ´periculum in mora` desde que o locatário não tenha procedido à restituição do veículo na sequência da cessação do contrato.»] e 07.01.2019-processo 903/17.3T8VNG.P1 - bem como o “voto de vencido” no acórdão da RP de 26.01.2016-processo 7401/15.8T8VNG.P1 -, da RL de 12.10.2010-processo n.º 5549/09-7, 18.11.2010-processo n.º 339/10.7TBSSB.L1-8 [considerando-se, designadamente, que “estando provado que o requerido mantém em seu poder e está a utilizar a viatura, apesar da resolução do contrato (quando devia proceder à sua entrega), completamente fora da álea do contrato que celebrara, sem qualquer controlo e contrapartida para a Requerente – não poderá essa conduta deixar de ser considerada lesão grave e de difícil reparação ao direito de propriedade sobre a viatura cuja entrega está a ser pedida por aquela”] e 26.02.2015-processo 1617/14.1T8SNT.L1-6 e da RC de 28.11.2018-processo 3440/17.2T8LRA.C1 [com o seguinte sumário: «I - Visto os procedimentos cautelares servirem para dar utilidade ao que for decidido na acção a favor do requerente, para assegurar a efectividade do direito que lhe for reconhecido, a lesão que se receia acontecer enquanto se aguarda pela decisão definitiva da acção será considerada como de difícil reparação quando, na hipótese de ela se concretizar, retirar efeito útil à decisão definitiva da causa ou impedir a efectividade do direito que for reconhecido ao requerente na decisão definitiva. II – No âmbito de um procedimento cautelar comum em que o locador de um veículo automóvel requer a apreensão e a entrega desse veículo [aluguer de longa duração], configura receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito à restituição do veículo, em consequência da resolução do contrato de aluguer, o receio fundado de dissipação ou ocultação do veículo enquanto se aguarda pela decisão definitiva da causa.»], publicados no “site” da dgsi.
[9] Cf., neste sentido, o cit. acórdão da RC de 28.11.2018-processo 3440/17.2T8LRA.C1 e admitindo-se, agora, uma perspectiva porventura mais alargada que a defendida no cit. acórdão da RC de 19.10.2010-processo n.º 358/10.3T2ILH.

[10] Sobre esta matéria cf., sobretudo, a decisão sumária desta Relação de 24.3.2015-processo 286/15.6T8FIG.C1 [assim sumariada: «Havendo duas correntes jurisprudenciais expressivas e antagónicas sobre uma questão de que depende a decisão de mérito, sendo que o alegado no articulado inicial, à luz da interpretação que uma delas faz da lei - ao invés daquilo que sucede na perspectiva legal seguida pela outra corrente -, possibilitará atender, a final, a pretensão do autor, deve o julgador abster-se de, no despacho liminar, afirmar a perfilhação do outro entendimento jurisprudencial, para assim, com base nele, indeferir liminarmente, por manifesta improcedência do pedido, a petição inicial.»] e o acórdão da RE de 13.7.2017-processo 879/17.7T8BJA.E1, publicados no “site” da dgsi.
[11] Ibidem.
[12] Se bem que se possa considerar, como no acórdão da RP de 24.9.2009-processo 4481/09.9TBMAI.P1, em situação com algum paralelismo, que «o requerimento inicial da providência não é completamente desprovido de factos concretos relevantes (que, até agora, estão apenas alegados) para o conhecimento do respectivo pedido, de modo a poder afirmar-se que é inepto por falta absoluta de causa de pedir ou manifestamente improcedente».