Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1409/07.4TBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
SEGURO
COMPRA E VENDA
VEÍCULO
INVALIDADE
INEFICÁCIA
SUBROGAÇÃO
Data do Acordão: 03/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 2º, Nº 3; 21º, Nº 2, AL.B); 25º, Nº 1; E 29º, Nº 1, AL. A), DO DEC. LEI Nº 522/85, DE 31/12; 325º, Nº1, E 328º DO CPC
Sumário: I – O FGA garante a satisfação da indemnização por lesões materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido e eficaz (artº 21º, nº 2, al. b), do Dec. Lei nº 522/85, de 31/12).

II - O FGA, tendo pago a indemnização devida aos lesados – como garante ou responsável subsidiário -, fica sub-rogado nos direitos destes, podendo exigir do lesante aquilo que pagou (artº 25º, nº 1, do Dec. Lei nº 522/85, de 31/12, atenta a data do evento).

III – Logo, existindo seguro válido e eficaz, não compete ao FGA garantir a responsabilidade civil, sendo a seguradora quem responde pelos danos causados pela condução (artº 29º, nº 1, al. a) do DL referido).

IV – O “seguro de garagista” é obrigatório para aqueles que exercem actividades de compra e/ou venda de veículos, e garante a responsabilidade dessas pessoas quando utilizam os veículos no âmbito da sua actividade profissional e por causa das suas funções (artº 2º, nº 3 do Dec. Lei nº 522/85).

V – Assentando o pedido de reembolso por parte do FGA na inexistência de seguro válido e eficaz, a demanda contra o lesante é justificada, não sendo, por isso, fundamento para se ditar a improcedência da acção caso se venha a apurar que existe seguro válido e eficaz deste.

VI – Chegando-se à conclusão, na acção, de que o seguro de garagista outorgado entre o Réu, como lesante, e uma seguradora, chamada à lide como interveniente principal, é válido e eficaz e que abrange os danos provenientes do acidente em questão, deve o Réu inicialmente demandado ser excluído da acção por ilegitimidade e deve a seguradora interveniente ser condenada no pedido.

Decisão Texto Integral:          ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

         I- RELATÓRIO

         I.1- O «Fundo de Garantia Automóvel» (FGA) intentou em 12.9.07 acção com processo ordinário, contra A...., pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 53.443,11 € a que acresce a quantia das demais despesas de gestão que se apurarem até final do processo a apurar em incidente de liquidação, bem como os juros de mora vincendos desde a citação, correspondente ao que pagou, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais a três lesados, em consequência de acidente de viação ocorrido em 1.12.05, em que foram intervenientes as viaturas SN-00-00 e 00-00-PG, por culpa do condutor e proprietário desta última que não era titular de seguro, salvo seguro de garagista.

         Na contestação, o R. impugna a versão do acidente atribuindo ao condutor do SN a culpa do mesmo, reputa exagerados os valores pagos pela A., e alega que na altura do acidente ia entregar a um cliente a viatura PG que conduzia, a qual tinha a responsabilidade civil transferida para a seguradora «B....» no âmbito do chamado “seguro de garagista”, e por outro lado é proprietário de um veículo seguro também na «B.....». Pede a intervenção desta seguradora ao abrigo do disposto nos arts.325º e segs. C.P.C.

         Sem oposição da A., foi admitido o incidente de intervenção provocada e citada a requerida, que contestou, opondo a sua própria ilegitimidade, por o seguro de garagista não cobrir danos provocados por veículos da propriedade do tomador, como é o caso, e impugnando as circunstâncias em que se verificou o acidente.

         No despacho saneador foi julgada improcedente a invocada excepção dilatória, seleccionaram-se os factos assentes e organizou-se a base instrutória.

         Realizado o julgamento, foi proferida sentença datada de 1.7.09, na qual se julgou a acção improcedente por não provada, absolvendo-se o R. do pedido.

         I.2- Inconformada, apelou a A. «FGA».

         Concluiu assim a alegação de recurso:

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         I.3- Não foram apresentadas contra-alegações.

         Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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         II - FUNDAMENTOS

         II.1 - de facto

         A factualidade em que assentou a sentença não vem impugnada nem há motivo para a sua alteração. Assim, remete-se para todos os factos que foram considerados provados na sentença, que aqui se dão por reproduzidos, nos termos do art.713º/5,C.P.C..

         Para a apreciação da questão decidenda, importa destacar os seguintes factos:

1- No dia 1.12.05, pelas 8.45 H, na A/25 ao KM 122,8, ocorreu um acidente de viação;

2- Nele foram intervenientes os veículos com matrículas: 00-00-PG, veículo ligeiro de passageiros, de marca «Mercedes»; SN-00-00, veículo ligeiro de passageiros, de marca «Fiat»;

3- O PG era, à data do acidente, do R., sendo por ele conduzido;

4- À apólice de seguro com o nº000xxxxx na seguradora «B....» para o veículo PG, corresponde a um seguro de garagista;

5- O R. A.... é comerciante de veículos automóveis;

6- O veículo PG foi adquirido pelo R. na C...., para revenda, no exercício da sua actividade de vendedor de veículos automóveis;

7- O R., na data do acidente, ia entregar o PG ao sr. D..., pessoa ligada à «E....» e à « F..... », sociedades com quem o R. mantém um historial de negócios há mais de 10 anos;

8- Pois o sr. D.... tinha um cliente que viria experimentar o veículo PG nessa mesma manhã, com vista à sua aquisição.

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         II.2 - de direito

         Como ressalta das transcritas conclusões, a recorrente coloca à apreciação deste Tribunal a questão de saber se a seguradora interveniente, «B....», teria de ser condenada no pedido, com base na factualidade provada.

         Vejamos.

         A acção foi proposta contra o R., condutor da viatura PG, justificando o F.G.A. essa demanda com o facto de a circulação do FG não estar segurada em qualquer companhia de seguros, beneficiando antes de um seguro de garagista que no caso, e segundo a A., não cobria os danos advindos da circulação do tomador com veículos próprios.

         Na contestação, o R. alega que não circulava com veículo próprio, destinado ao seu uso pessoal, mas sim, com um veículo que comprou para revenda no âmbito da sua actividade comercial, possuindo seguro de garagista. Requereu então a intervenção principal da seguradora «B....», na qualidade de ré.

         Admitido o incidente de intervenção principal provocada, e citada a requerida, apresentou esta contestação, na qual arguiu a sua ilegitimidade e impugnou, por desconhecimento, as circunstâncias em que se verificou o acidente e os danos.

         No despacho saneador, foi julgada improcedente a arguida excepção dilatória, e a interveniente julgada parte legítima. A decisão transitou em julgado.

         Na sentença, e perante os factos provados, entendeu-se que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do R., condutor do PG, mas a final, julgou-se a acção improcedente com a absolvição daquele R. do pedido.

         O raciocínio do decisor da 1ª instância é este: 1- a responsabilidade advinda da circulação do PG estava segurada na «B....», através do seguro de garagista, tendo-se provado que tal veículo foi adquirido pelo R. para revenda, e que na altura do acidente ia entregá-lo a pessoa ligada a uma sociedade comercial com quem mantinha negócios, e que tinha um cliente que iria experimentar o veículo com vista à sua aquisição; 2- ao FGA competiria alegar e provar que o PG, à data do acidente estava registado em nome do R. ou que o detinha e utilizava com carácter duradouro, porque só assim se justificaria a exclusão do seguro invocado pelo R. na altura do acidente; 3- concluindo-se pela existência de seguro de garagista válido beneficiando a favor do R. no momento do acidente, deveria ter sido demandada a seguradora e não o R.; a «B....» interveio nos autos chamada pelo R., não tendo sido contra ela formulado qualquer pedido pelo FGA.

         Com o devido respeito, não temos por acertada esta posição, que não resulta da lei nem é a justa.

         Não se discutem os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual, nem a culpabilidade exclusiva do R. pelo evento danoso, e também não se questiona que a A., tendo pago a indemnização devida aos lesados, fica sub-rogada nos direitos destes, podendo exigir do lesante aquilo que pagou (art.25º/1 do DL 522/85, de 31.12, aqui aplicável atenta a data do evento).

Também não vem questionado e resulta da factualidade provada, que aquando do acidente, o R. conduzia o PG por virtude e no exercício da sua actividade comercial de compra e venda de automóveis, dispondo da existência de seguro de garagista.

Tal seguro é obrigatório para aqueles que exercem, como no caso, actividades de compra e/ou venda de veículos (art.2º/3 do referido DL). Só garante a responsabilidade dessas pessoas quando utilizam os veículos no âmbito da sua actividade profissional e por causa das suas funções. Essa a situação aqui retratada.

A questão está então em saber se a seguradora «B....», que através do seguro de garagista que celebrou com o R., cobria o veículo PG, deve ser responder pelos danos por este causados no acidente e ressarcir a A..

Pelo art.21º/2-b) do DL 522/85, o FGA garante a satisfação da indemnização por lesões materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido e eficaz. Daqui decorre que o FGA não é mais do que um garante, um responsável “subsidiário”; o principal é sempre é sempre o responsável civil.[1]

Logo, existindo seguro válido e eficaz, não compete ao FGA garantir a responsabilidade civil. Será a seguradora quem responde pelos danos causados pela condução (art.29º/1-a) do DL referido).

Na situação em análise, a existência de seguro válido só foi apurada em julgamento. Até aí, o FGA não dispunha de elementos que o habilitassem a determinar que o seguro que cobria o veículo causador do acidente era eficaz, por desconhecer que no momento do acidente, o R. o conduzia no âmbito da sua actividade profissional de compra/venda de automóveis e por causa dela. Daí ter garantido, nos termos daquele art.21º, a satisfação das indemnizações aos lesados que seguiam na viatura SN, e ter demandado, em sub-rogação, o próprio R., civilmente responsável, que na contestação alegou a existência de seguro válido e eficaz e requereu o chamamento, através do incidente de intervenção, da respectiva seguradora.

Ou seja, assentando o pedido de reembolso na inexistência de seguro válido e eficaz para a circulação do veículo PG, a demanda inicial contra o lesante foi justificada, não sendo, por isso, fundamento para se ditar a improcedência da acção.

Mas chegando-se à conclusão de que o seguro de garagista outorgado entre o R. lesante e a «B....», abrange os danos provenientes do acidente em questão, e considerada aquela seguradora parte legítima, não obstante não ter sido inicialmente demandada pela A., deve o R. ser excluído da acção por ilegitimidade e a interveniente condenada no pedido. De contrário, e seguindo a posição da sentença, cabe então perguntar qual a utilidade, qual o papel na acção, da seguradora «B....», chamada à intervenção principal em litisconsórcio com o R.?

 É verdade que a instância é inicialmente conformada pelo autor na petição inicial, nos seus elementos subjectivos e objectivos, fixando a citação do réu os elementos definidores da instância, só alterável, quanto ás pessoas e no que aqui interessa, em virtude dos incidentes da intervenção de terceiros (arts.268º e 270º-b) do C.P.C.).

Estes incidentes são o de intervenção principal (arts.320º e 325º do C.P.C.), o de intervenção acessória e o de oposição (arts.330º, 334º, 342º e 347º do mesmo diploma). A intervenção principal abrange todos os casos em que o terceiro se constitui parte principal em litisconsórcio com o autor ou o réu primitivo, coligado com o autor ou, no caso do art.325º/2, coligado com o réu.

Dispõe o art.325º/1, que qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.

Assim, a intervenção principal pode surgir na sequência do seu chamamento pelo autor ou pelo réu.

Na situação vertente, a seguradora foi chamada a intervir pelo R.. Interveio e  apresentou articulado. Esta intervenção, mediante a constituição de um novo sujeito processual na posição de réu, em litisconsórcio com o réu primitivo, implicou, pois, uma modificação da instância.

De harmonia com o disposto no art.328º/C.P.C., o interveniente goza de todos os direitos da parte principal, pelo que, assumindo a posição de autor ou de réu, a sua situação jurídica terá de ser considerada na sentença, que, obviamente, constituirá caso julgado em relação a ele.[2]

 E assim, não obstante o pedido da A. não ter sido inicialmente dirigido contra a seguradora, isso não era fundamento para a absolvição do R. primitivo, como decidiu a 1ª instância. Deste modo está a retirar-se qualquer efeito útil à admitida intervenção de terceiro, como bem salienta a recorrente.

Logo, assegurada a legitimidade da seguradora «B....» para figurar na acção como responsável pela satisfação do reembolso pedido pela A., justificado o accionamento directo inicial do responsável civil, aquela deve ser condenada e este absolvido da instância, por ilegitimidade, em virtude de o pedido se confinar ao limite do seguro obrigatório da responsabilidade civil automóvel (art.29º/1-a), DL 522/85 e doc. fls.35).

Dito isto, o recurso merece provimento.

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III - DECISÃO

Acorda-se, pelo exposto, na procedência da apelação, em revogar a sentença, absolvendo o R. da instância e condenando a seguradora «B....» a solver á A. a quantia reclamada incluindo juros de mora.


[1]   Cfr. Ac.R.C. de 15.1.02, CJ I/02-11
[2]   Cfr. J. Lebre de Freitas, «C.P.C. anotado», Vol I, 2ª ed., pág.623