Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
401/09.9T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
INCUMPRIMENTO
RESPONSABILIDADE
DEVEDOR
REPRESENTANTE LEGAL
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 05/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
COMARCA DO BAIXO VOUGA - AVEIRO - JUÍZO DE GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 362º DO CÓDIGO COMERCIAL
Sumário: I – O contrato de abertura de crédito é aquele pelo qual o banco se obriga a colocar à disposição do cliente uma determinada quantia pecuniária por tempo determinado ou não, ficando o último obrigado ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respectivos juros e comissões.

II - A responsabilidade do devedor, por acto de incumprimento desse contrato, de um seu auxiliar ou representante legal, é uma responsabilidade ex-contractu.

III - O tipo de acto abusivo representado pelo venire contra factum proprium reclama como pressupostos um comportamento anterior do exercente do direito que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade àquele quer do comportamento anterior quer do comportamento actual; a necessidade e o merecimento do prejudicado com o comportamento contraditório; a existência do investimento de confiança ou baseado na confiança, causado por uma confiança subjectiva, objectivamente justificada.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

Banco S…, SA interpôs recurso ordinário de apelação da sentença da Sra. Juíza de Direito do Juízo de Grande Instância Cível de Aveiro, Comarca do Baixo Vouga, que julgando parcialmente procedente a acção declarativa de condenação, com processo comum, ordinário pelo valor, que contra ele foi por I…, Lda., o condenou a pagar ao último a quantia de € 91.626,24, acrescida de juros, à taxa legal de 4%, contados desde a citação até pagamento.

O recorrente extraiu da sua alegação estas conclusões:

            Na resposta, a recorrida – depois de observar que o recurso deve ser rejeitado por o recorrente não especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida nem indicar as passagens da gravação em que se funda e as normas violadas – concluiu, naturalmente, pela improcedência do recurso.

1.1. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

2.1. Foram seleccionados para a base instrutória, entre outros, os seguintes enunciados de facto:

            2.2. O Tribunal da 1ª instância decidiu os enunciados de facto referidos em 2.1., nestes termos:

2.3. O decisor de facto da 1ª instância adiantou, justificar o julgamento referido em 2.2., esta motivação:

(…).

            2.4. O Tribunal de que provém o recurso julgou provados, no seu conjunto, os factos seguintes:

...

            3. Fundamentos.

            3.1. Delimitação objectiva do recurso.

            Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC).

Nestas condições, tendo em conta os parâmetros de delimitação da competência decisória deste Tribunal representados pelo conteúdo da decisão recorrida e das alegações de ambas as partes, a única questão concreta controversa que há que resolver é a de saber se aquela decisão deve ser revogada e substituída por acórdão que absolva o recorrente do pedido.

A resolução deste problema vincula, naturalmente, à qualificação do acordo de vontades concluído entre o apelante e a recorrida, ao exame, ainda que leve, dos poderes de controlo desta Relação relativamente à decisão da matéria de facto da 1ª instância e à reponderação dessa decisão e, por último, à aferição dos pressupostos do abuso do direito, na modalidade do venire contra factum proprium.

            Entre a matéria de facto e a matéria de direito existe uma relação nítida relação de interdependência e de delimitação recíproca, especialmente na sua confluência para a obtenção de uma decisão num caso concreto. Nestas condições, está indicado que a exposição subsequente se abra com a qualificação jurídica do acordo de vontades concluído entre as partes – até porque a sentença apelada guardou, sobre tal ponto, um absoluto silêncio.

            3.2. Qualificação do acordo de vontades concluído entre as partes.

            De forma deliberadamente simplificadora, bem pode dizer-se que o contrato de abertura de crédito é aquele pelo qual o banco – creditante – se obriga a colocar à disposição do cliente – creditado – uma determinada quantia pecuniária – acreditamento ou linha de crédito – por tempo determinado ou não, ficando o último obrigado ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respectivos juros e comissões[1].

            Este contrato, de grande alcance prático, serve os interesses de ambas as partes. Por força dele, o cliente sabe de antemão que dispõe de crédito bancário e em que condições; por seu lado, o banco creditante assegura o percebimento de uma remuneração sem risco – a comissão de abertura de crédito ou comissão de reserva – eventualmente acrescida, relativamente aos fundos disponibilizados mas não utilizados pelo cliente, de uma comissão de imobilização, que surge como contrapartida da desvantagem de ter dinheiro tendencialmente imobilizado e não produtivo.

            O contrato de abertura de crédito constitui um contrato nominado mas atípico (artº 362 do Código Comercial).

Trata-se, porém, de um contrato socialmente típico, meramente consensual, num duplo sentido: no sentido de não estar, quanto à sua formação, sujeito a qualquer exigência legal especial, embora a praxis bancária subordine a sua celebração invariavelmente a documento escrito, e possa mesmo ser requerida a escritura pública, se a abertura de crédito incluir um negócio que a exija, como sucede quando surge associada a garantias hipotecárias[2]; no sentido de que a sua validade não se encontra dependente de qualquer acto de entrega do montante pecuniário: ao contrário do que sucede no empréstimo bancário, a abertura de crédito pode ficar perfeita com o mero acordo tendente à disponibilização daquele montante, que, aliás, poderá nem sequer chegar a ser movimentado ou mobilizado pelo cliente. Dito doutra forma: a abertura da conta corrente não é um contrato quoad constitutionem.

            O contrato de abertura de crédito pode assumir diversas modalidades. De harmonia com o critério das suas garantias, a abertura de crédito pode ser caucionada ou a descoberto, conforme o cumprimento da obrigação do creditado seja ou não assegurado por garantias reais, v.g., hipoteca, ou pessoais, v.g., livranças; de acordo com o critério da sua realização, a abertura de conta pode ser simples ou em conta corrente, consoante o crédito é utilizado de uma só vez ou em tranches.

            Quanto ao seu conteúdo, o contrato é fonte de uma pluralidade de direitos e deveres.

Do lado do banco creditante, destaca-se, naturalmente, a obrigação de disponibilização da soma pecuniária convencionada, obrigação que pode ser cumprida de múltiplas formas e através de prestações de tipo diverso, como, por exemplo, a entrega directa de dinheiro ou pagamento de cheques sacados pelo creditado, sendo lícito às partes estipular os pressupostos ou limites da sua realização[3].

            Do lado do creditado, avulta, evidentemente, a obrigação do pagamento de comissões e juros, sendo corrente a prestação, por este, de garantias de reembolso do crédito, v.g., através de livranças[4].

            A abertura de crédito produz, portanto, este efeito fundamental: uma disponibilidade de dinheiro, através de actos subsequentes. Dado que vale, neste domínio, em toda a sua plenitude, o princípio da autonomia privada, tudo dependerá daquilo que for convencionado: o cliente poderá movimentar as importâncias através de pedido escrito dirigido ao banqueiro ou através da celebração sucessiva de verdadeiros e próprios contratos de mútuos bancários, ou mesmo automaticamente, sacando a descoberta sobre uma conta de depósitos à ordem acoplada ou anexa à abertura de crédito.

            Por força da sua atipicidade, um ponto, deveras sensível, que também não é objecto de previsão específica, é o da cessação do contrato. Rege, portanto, também neste domínio, em toda a sua extensão, o princípio da autonomia privada: o modo, a forma e as consequências da cessação do contrato são as reguladas por convenção das partes (artºs 405 nº 1 e 406 nº 1 do Código Civil). Na falta dessa convenção, serão aplicáveis, se for esse o caso, as regras da conta corrente em geral, as regras do mandato, relativamente à disponibilidade, e quanto ao saldo, no caso de cessação, as regras do mútuo. Em qualquer caso, serão sempre aplicáveis, subsidiariamente, as regras do mandato[5].

Assim, por exemplo, se não se tiver convencionado qualquer prazo de duração do contrato, qualquer das partes pode pôr-lhe termo; em tal caso o mutuário dispõe do prazo de 30 dias para pagar o saldo em débito (artºs 349 do Código Comercial e 1148 nº 2 do Código Civil).        

            Discute-se a exacta natureza do contrato de abertura de crédito. Seja ela qual for, neste contrato salienta-se o seu fundamento final - a disponibilidade de dinheiro, mas que não equivale a um crédito: o crédito surge, mas posteriormente, por via potestativa, em simples execução do contrato[6].

            Trata-se, assim, de um contrato-quadro, que faz surgir entre as partes uma relação obrigacional complexa[7].

            O contrato de abertura de crédito corresponde a uma operação económica unitária e a um tipo contratual autónomo, sedimentado na praxis comercial e bancária, designadamente através de cláusulas contratuais gerais e usos bancários. Pelos seus efeitos imediatos, é um contrato único, mas exige, no seu desenvolvimento e para que seja possível atingir a sua plena função económico-social a constituição de outras relações jurídicas, designadamente contratuais. Quer dizer, nos seus efeitos imediatos, o contrato de abertura de crédito é susceptível de conduzir à celebração de outros contratos, v.g. de mútuo bancário.

            O reconhecimento desta realidade e a utilização, neste contexto, da categoria do contrato-quadro – para caracterizar a relação entre o contrato inicial e os sucessivos contratos a que pode dar origem – não podem, porém, ter como consequência prejudicar a coerência e a unidade da operação económica nem a autonomia e o carácter unitário do contrato de abertura de crédito. Pelo contrário, deste modo sublinha-se o carácter instrumental e dependente dos sucessivos actos – designadamente contratos – que concretizam o programa fixado no contrato-quadro.

Em face deste recorte sumário dos ingredientes do contrato de abertura de crédito e se voltarmos os olhos para a matéria de facto apurada na instância recorrida – que neste ponto particular não é o objecto de controversão – tem-se por certo que entre o apelante e a apelada foi concluído, em 28 de Janeiro de 2004, um contrato daquela espécie.

Se avançarmos na qualificação de um tal contrato, dir-se-á ainda que se trata de um contrato de abertura de conta caucionada. O cumprimento das obrigações do cliente foi assegurado por garantia real prestada por terceiro – penhor bancário, que pode ser definido como o contrato pelo qual um banco – credor pignoratício – em garantia de um crédito concedido a um cliente – devedor – e com preferência sobre os demais credores comuns, passa a gozar do direito de ser pago pelo valor de determinada coisa ou direito da titularidade do último ou de terceiro. E penhor bancário especial ou atípico, dado que tem por objecto instrumentos financeiros – valores mobiliários (artºs 1 do Decreto-Lei nº 29 833, de 17 de Agosto de 1939 e único do Decreto-Lei nº 32 032, de 22 de Maio de 1942 e 81 e 103 do Código dos Valores Mobiliários)[8].

No direito português, as modalidades de responsabilidade - obrigacional e aquiliana – distribuem-se em consonância com o interesse atingido pela acção ou omissão ilícita – e não segundo a origem contratual ou extracontratual do acto ilicitamente realizado ou omitido: se o dano afecta o interesse contratual, a responsabilidade é sempre obrigacional (artº 798 do Código Civil); se o prejuízo atinge um interesse extracontratual, a responsabilidade é sempre delitual. Contudo, qualquer destas modalidades de responsabilidade é conjugável com a outra dessas formas de ilicitude, quer porque a violação do interesse contratual pode implicar responsabilidade delitual do lesante, quer porque a infracção do interesse extracontratual pode envolver um interesse contratual. Ainda assim, nenhuma destas formas de responsabilidade consome a outra responsabilidade, nem sequer através de uma relação de especialidade, porque, na sistematização legal, a cada uma dessas responsabilidades corresponde um interesse atingido.

Isto é especialmente saliente na qualificação delitual da responsabilidade originada pela omissão de um dever contratual e na distinção entre o regime da responsabilidade do comitente pelos actos do comissário - e na regulação da responsabilidade do devedor pelos actos dos seus auxiliares (artº 800 do Código Civil).

Assim, no caso de danos resultantes de um incumprimento por um auxiliar do devedor, perante o lesado, o devedor responde contratualmente e o auxiliar delitualmente. Neste contexto, a responsabilidade do devedor é sempre contratual, com todas as consequências que derivam dessa qualificação, designadamente, a fundamental presunção de culpa do devedor remisso (artº 799 nº 1 do Código Civil).

Na espécie do recurso, a sentença apelada, depois de dar como assente que um funcionário da recorrente não acatou a instrução da recorrida de liquidação da conta corrente, através do produto do resgate das aplicações financeiras dadas de penhor, conclui que o apelante ofendeu, com culpa, ao menos presumida, uma obrigação contratual e constituiu-se, por isso, na obrigação da reparação do dano causado com essa violação: a restituição dos juros cobrados, que não fora essa violação, não lhe seriam devidos.

Mas esta decisão, sustenta o recorrente decorre, desde logo, de um error in iudicando, pelo tribunal recorrido, da matéria de facto relevante, resultante do erro na aferição da prova testemunhal produzida.

A impugnação dirige-se, portanto, contra a decisão da questão de facto. Mas logo se coloca este problema prévio: o de saber se o recorrente cumpriu ou não, com uma pontualidade religiosa, o ónus dessa impugnação a que a lei de processo o adstringe.

3.3. Cumprimento pelo apelante do ónus de impugnação da decisão da matéria de facto.

3.5. Abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium.

Apesar de o abuso do direito ser de conhecimento oficioso[9], o mais distraído dos operadores ou observadores judiciários não pode deixar de notar que quase não há processo em que as partes, per abundantiam, ou á míngua de outros argumentos, não invoquem o abuso do direito. Por contraste – e por certo também em consequência da erosão que o instituto sofre com a sua indevida convocação - há casos em que tal arguição de todo se justificaria, mas em que, inexplicavelmente, se omite a sua invocação.

O abuso do direito deve ser usado sempre que necessário. O que não deve é ser banalizado, exigindo-se sempre uma ponderação cuidadosa dos seus requisitos e, portanto, a correcção, no caso concreto, da sua intervenção, sobretudo quando esta conduza a uma solução contrária à lei estrita[10].

De outro aspecto, o abuso do direito, exprimindo um nível último e irrecusável de funcionalização dos direitos à realização dos interesses que justificam o seu reconhecimento, é um instituto de carácter poliédrico e multifacetado como logo se depreende a partir da tipologia dos actos abusivos que se incluem na categoria e com os quais se procura densificar a indeterminação do conceito correspondente.

Assim, são reconduzidos ao abuso do direito, por exemplo, o venire contra factum proprium, quer dizer, a proibição do comportamento contraditório e a supressio (supressão)[11], ou seja, a neutralização de um direito que durante muito tempo se não exerceu, tendo-se criado, pela própria conduta, uma expectativa legítima de que não iria ser exercido, e a surrectio, i.e., o surgimento de um direito por força de um comportamento contraditório qualificado pelo decurso do tempo[12] - e o desequilíbrio objectivo no exercício, comportamento abusivo cujo desvalor se objectiva na desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem, e que compreende todas as situações em que se exercem poderes sanção por faltas insignificantes, como sucede quando uma parte resolva o contrato, alegando uma violação sem relevo de nota, em termos de causar a esta um grande prejuízo.

Como já se notou, na doutrina portuguesa, a proibição do venire contra factum próprio tem sido localizada dentro dos quadros do abuso do direito[13]. Mas não falta quem o situe na tutela da confiança - formulando como requisitos para a proibição do comportamento contraditório a existência de uma situação objectiva de confiança, o investimento de confiança do lado da pessoa a proteger e a imputabilidade ao agente daquela situação[14] - ou o análise no quadro das regulações típicas de comportamentos abusivos[15]. Neste último enquadramento, a locução venire conta factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Reclama, portanto, dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo - o primeiro - o factum proprium - é contrariado pelo segundo[16]. Trata-se de tutelar uma situação de confiança, enquanto factor material da boa fé[17]. Deste modo, há venire contra factum proprium, por exemplo, quando uma pessoa, em termos que, especificamente, não a vinculem, manifesta a intenção de não praticar determinado acto e, depois, pratica-o, violando a confiança da contraparte de que isso não ocorreria.

 Assim, por exemplo, uma pessoa que manifeste, por qualquer modo, a intenção de não exercer um direito potestativo ou um simples direito subjectivo, mas que acaba por exercê-lo, actua contra facta propria. O exercício do direito, nestas condições, é inadmissível. Haveria abuso do direito (artº 344 do Código Civil)[18].

Na jurisprudência, a proibição do venire é também reconduzida ao abuso de direito. Faz-se notar, aliás, que dentro da boa fé em sentido objectivo, o instituto com que com mais frequência se depara na jurisprudência é o venire contra factum proprium[19]. Está nessas condições, por exemplo, a possibilidade de obstar à invocação de nulidade resultante de vício de forma, através do abuso de direito[20].

O venire contra factum proprium - que constitui reflexo do afinamento ético do Direito moderno - é um tipo não compreensivo de exercício inadmissível de direitos e, como tal, tem uma grande extensão.

Mas nem toda conduta contraditória do exercente lhe é redutível. Exige-se, para que essa redução seja possível, um investimento de confiança realizado pela contraparte contra quem o direito é exercido, fundado na expectativa, lícita ou legítima, de que tal exercício não ocorreria, uma qualquer situação de confiança que deva ser protegida contra o exercício do direito pela contraparte.

Assim, em primeiro lugar, reclama-se um comportamento anterior do exercente do direito que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança; exige-se, depois, a imputabilidade aquele quer do comportamento anterior quer do comportamento actual; de seguida, há que verificar a necessidade e o merecimento do prejudicado com o comportamento contraditório; por último, há que averiguar a existência do investimento de confiança ou baseado na confiança, causado por uma confiança subjectiva, objectivamente justificada.

Note-se que a aplicação destes pressupostos, após a sua enumeração e verificação no caso concreto, não é automática: antes devem ser objecto de uma ponderação global, in concreto, para se aferir se existe uma exigência ético-jurídica de impedir a conduta contraditória, designadamente por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante e – o que é mais – por a situação conflituar, exasperadamente, com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta – com os ditames da boa fé em sentido objectivo.

O principal efeito quer do venire é, naturalmente, o da inibição do exercício de poderes jurídicos ou de direitos, em contradição com o comportamento anterior.

Assentes estes parâmetros, deve começar por se notar que não há razão nenhuma para atribuir aos actos posteriores da recorrida o significado de ratificação do acto – ilícito – do recorrente traduzido no desacatamento da ordem de encerramento e liquidação da conta caucionada.

Abstraindo da circunstância de a ratificação de que aqui se fala não se tratar de ratificação em sentido técnico – que consiste no acto unilateral que estabelece, a posteriori, um vínculo de representação - não tem esse sentido, decerto, o contrato de abertura de crédito concluído em 2007. É que – ao contrário do que sugere o recorrente – não se trata de um novo contrato – mas apenas da (re)formalização do contrato celebrado em 2004, determinada pelo desaparecimento das garantias dadas para o seu bom cumprimento – inteiramente imputável ao recorrente – razão pela qual se faz retrotrair a sua eficácia àquela data. E sem a reconstituição dessas garantias não seria sequer possível dar execução à ordem de encerramento e liquidação da conta – dado que essa liquidação operava justamente pelo produto do resgate das aplicações financeiras dadas de penhor.

Também não deve atribuir-se um tal significado ao contrato, da mesma natureza – documentado através do instrumento inserto a fls. 179 a 184 - concluído em 29 de Fevereiro de 2008. É que se trata de um contrato outro, de um novo contrato, sem qualquer conexão com o contrato em torno do qual gravita o litígio das partes e, portanto, perfeitamente asséptico relativamente às vicissitudes decorrentes da sua violação - e cuja conclusão talvez melhor se explica, pela facto de a recorrida se ter vinculado a não mobilizar os valores da conta corrente objecto da controvérsia que viessem a ser libertadas pelos resgates posteriores das aplicações dadas de penhor.

A recorrida reiterou, em 2 de Fevereiro e 3 de Março de 2009 a sua vontade de encerramento e liquidação da conta corrente, através do resgate antecipado da totalidade das aplicações financeiras dadas de penhor, instrução que, designadamente, em Março de 2009, suspendeu com a finalidade de minimizar o dano decorrente para o titular dos valores dados em garantia com o seu resgate antecipado. A única variação da conduta da recorrida é, portanto, posterior à instrução dada em Fevereiro de 2009. Todavia, essa variação do comportamento da recorrida explica-se pela variação do contexto: recorde-se que nesse momento as aplicações financeiras eram diversas das originariamente dadas de penhor, relativamente às quais se colocava o problema da penalização decorrente da antecipação dos resgates.

É exacto que durante todo esse tempo – mesmo durante o arco temporal que mediou entre a primeira ordem de encerramento e liquidação da conta e a regularização do contrato e a reconstituição das garantias, reclamados pelo acto ilícito do funcionário do apelante - este continuou a cobrar os juros. Mas não é menos – como de diz eloquentemente na decisão da matéria de facto que, neste ponto, também não é objecto de impugnação – que a recorrida fez várias interpelações ao réu para que lhe devolvesse o montante dos juros.

Nestas condições, não se pode afirmar qualquer contrariedade directa entre o anterior e o actual comportamento da recorrida, nem mesmo, vistas as coisas mais de perto, um qualquer comportamento anterior – factum proprium – da mesma recorrida que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança. E como este pressuposto, resultante da conduta anterior do exercente, é imprescindível, não há razão para invocar o acto abusivo representado pelo venire.

O que parece contrário à boa fé é continuar a exercer direitos fundados num contrato, com completa indiferença pelas anormais vicissitudes que o atingiram, assacáveis a um facto ilícito pelo qual o recorrente é inteiramente responsável.

Portanto, a conclusão, a tirar é inteiramente homótropa àquela a que chegou a sentença apelada: o recorrente violou, de forma que se presume culposa, uma obrigação contratual e, constitui-se, por isso, numa responsabilidade ex-contractu e no correspondente dever de reparar todos os danos causados ao credor com esse incumprimento (artºs 562, 563, 566 nºs 1 e 2, 798, 799 nº 1 e 800 nºs 1 e 2 do Código Civil).

            O recurso deve, pois, improceder.

As proposições argumentativas mais salientes, que justificam esta decisão de improcedência, podem resumir-se nestas palavras: o contrato de abertura de crédito é aquele pelo qual o banco se obriga a colocar à disposição do cliente uma determinada quantia pecuniária por tempo determinado ou não, ficando o último obrigado ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respectivos juros e comissões; a responsabilidade do devedor, por acto de incumprimento desse contrato, de um seu auxiliar ou representante legal, é uma responsabilidade ex-contractu; o tipo de acto abusivo representado pelo venire contra factum proprium reclama como pressupostos um comportamento anterior do exercente do direito que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade àquele quer do comportamento anterior quer do comportamento actual; a necessidade e o merecimento do prejudicado com o comportamento contraditório; a existência do investimento de confiança ou baseado na confiança, causado por uma confiança subjectiva, objectivamente justificada.

As custas do recurso serão satisfeitas pelo sucumbente: o apelante (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente.

                                                                                                         

                                                                                              Henrique Antunes (Relator)

                                                                                              Regina Rosa

                                                                                              Artur Dias


[1] José A. Engrácia Antunes, Contratos Comerciais. Almedina, Coimbra, 2009, pág. 501, Sofia Gouveia Pereira, O Contrato de Abertura de Crédito Bancário, Principia, Cascais, 2000, págs. José Simões Patrício, Direito Bancário Privado, Quid Iuris, Lisboa, 2004, pág. 310 e Ricardo Benoliel de Carvalho, “Notas sobre a abertura de crédito bancário”, Revista Bancária, nº 29, 1972, págs. 25 a 27; Acs. da RL de 20.04.89, CJ, XIV, pág. 141, do STJ de 25.10.90, BMJ nº 400, pág. 583, de 13.10.00, CJ, STJ, III, pág. 174 e de 21.10.08, CJ, STJ, III, pág. 78
[2] Ac. da RP de 09.10.92, CJ, XVII, V, pág. 209, e J. Calvão da Silva, Direito Bancário, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 365.
[3] Ac. da RC de 26.11.02, CJ, XXVII, V, pág. 21.
[4] Ac. da RL de 15.11.01, CJ, XXVI, I, pág. 121.
[5] Ac. do STJ de 08.06.93, BMJ nº 428, pág. 528.
[6] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 544.
[7] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, cit. págs. 542, nota 1359.

[8] Não se trata, porém, de penhor financeiro, como passou a ser considerado com a publicação do Decreto-Lei nº 105/2004, de Maio – alterado e republicado pelo DL nº 85/2011, de 8 de Maio - o penhor de valores mobiliários. Todavia, este diploma não é aplicável ao caso, quer porque, de harmonia com a norma direito transitório de que se faz, acompanhar só é aplicável aos contratos de garantia financeira concluídos depois da sua entrada em vigor (artº 23), quer porque as pessoas singulares não podem ser partes nos contratos de garantia financeira (artº 3). Cfr. Margarida Costa Andrade, O Penhor Financeiro com Direito de Disposição de Valores  Mobiliários,2010, in, www.estudogeral.sib.uc.pt/bistream/penhorfinanceiro, e Hugo Ramos Alves, Do Penhor, Almedina, 2010, pág. 267.
[9] Cfr., v.g., Acs. do STJ de 22.11.94 e 25.11.99, CJ, STJ, II, III, pág. 157 e VII, III, 124.
[10] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, 2ª edição, Almedina, 2000, págs. 247 e 248.
[11] Cfr., v.g., os Ac. da RE de 26.11.87, CJ, XII, V, pág. 268 e de 23.01.86, CJ, XI, I, pág. 231, e do STJ de 03.05.90, BMJ nº 397, pág. 454 e de 11.03.99, www.dgsi.pt.
[12] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, cit. págs. 250 a 262 e Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, Coimbra, 1984, § 30, págs. 797 e ss.
[13] A proibição era já conhecida antes do actual Código Civil. Cfr. Manuel de Andrade, Algumas questões em matéria de injúrias graves como fundamento do divórcio, Coimbra, 1956, pág. 73 e Adriano Vaz Serra, Abuso do direito (em matéria de responsabilidade civil) BMJ nº 85, pág. 331.
[14] Baptista Machado, Tutela da confiança e venire contra factum proprium, Obra Dispersa, Braga, 1991, págs. 345 a 420.
[15] António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, Coimbra, 1984, § 28.
[16] Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, pág. 742 e 745 e Baptista Machado, Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium, RLJ ano 118, págs. 9, 101, 169 e 227 e Acs. do STJ de 22.11.94, BMJ nº 441, pág. 305, de 04.10.79, BMJ nº 290, pág. 352, de 03.05.90, BMJ nº 397, pág. 454, de 03.10.91, BMJ nº 410, pág. 776, da RC de 03.12.91, CJ, V, pág. 79, da RL de 17.06.86, CJ, IV, 143 e da RC de 11.05.89, CJ 89, III, pág. 192 e de 18.11.93, CJ, V, pág. 219.
[17] Acs. da RP de 19.12.96, CJ, V, pág. 226, da RL de 29.11.94, CJ, V, pág. 50, da RP de 18.11.93, CJ, V, pág. 219, da RC de 3.12.91, CJ, V, pág. 79, e da RP de 15.5.90, CJ, III, pág. 194.
[18] Acs. da RP de 29.09.97, CJ, V, pág. 200 e do STJ de 3.05.90, BMJ nº 397, pág. 454. Para uma definição doutrinária de abuso de direito, cfr. Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, pág. 43.
[19] Paulo Mota Pinto, Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no Direito Civil, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, volume comemorativo, Coimbra, 2003, págs. 294 e 295.
[20] Trata-se, aliás, de um domínio em que a invocação do venire é feita de forma intensiva. Cfr., v.g., Acs. da RE de 11.11.93, da RC de 16.01.90, da RL de 26.11.87, RP de 11.05.89 e de 29.9.97, CJ, V, pág. 283, I, pág. 87, V, pág. 128, III, pág. 192 e IV, 200, respectivamente. A solução não é inteiramente isenta de reparos. É que tratando-se de nulidade típica, esta além de arguível por qualquer das partes é de ofício cognoscível pelo tribunal (artº 289 do Código Civil). Cfr. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé, cit., vol. II, pág. 754 e Acs. da RL de 18.03.93 e de 02.02.95, CJ, II, pág. 111, e I, pág. 115.