Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
454/10.7TAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: AMBIENTE
CONTRA-ORDENAÇÃO
ÁGUAS RESIDUAIS
VALORES LIMITE DE EMISSÃO
Data do Acordão: 05/25/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: LEI Nº 58/05 DE 29 DE DEZEMBRO; DEC. LEI 152/97 DE 19 DE JUNHO; ARTº 69º Nº 6 DO DEC. LEI 236/98 DE 1 DE AGOSTO
Sumário: 1.- Para se encontrar os VLE (Valores limite de emissão), compete à entidade fiscalizadora das águas residuais proceder a várias colheitas ao longo do período de 24 horas, não bastando para comprovar que os limites estão excedidos, que se faça apenas uma amostra retirada em determinado dia.
2.- Só desse modo se pode comprovar se os resultados são superiores aos legalmente admitidos por lei para instruir o respectivo processo contra-ordenacional.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado foi proferida sentença na qual se decidiu julgar procedente o recurso de impugnação judicial e absolver o arguido Município da XB... da prática da contra-ordenação imputada na decisão da Administração Regional Hidrográfica do Centro.
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Inconformada, recorre para esta Relação a Magistrada do Mº Pº.
Na motivação do recurso apresenta as seguintes conclusões, que delimitam o objecto do mesmo:
1- A acção de fiscalização em concreto foi levada a cabo na sequência de uma denúncia recebida através da linha SOS Ambiente
2- O Tribunal absolveu a arguida com o fundamento em que para haver condenação seria necessária a recolha de várias amostras a longo de um período de 24 horas, de acordo com o prescrito no art. 17 do D.L. 152/97 de 19-7.
3- O Decreto-Lei nº 236/98 de 1-8 estabelece Valores Limite de Emissão (VLE) de acordo com a definição técnico-científica que o próprio diploma preconiza e que serviram para estabelecer os valores das tabelas em função dos diferentes usos da água.
4- E é á autoridade licenciadora que cabe, de acordo, nomeadamente, com a al. D) do Anexo I àquele diploma, e em sede de licenciamento e dentro dos seus poderes discricionários e face às especiais exigências e sensibilidade do meio receptor, estabelecer as regras para o procedimento do autocontrolo bem, como da aceitação dos métodos adequados para utilização nas acções de fiscalização.
(inexiste conclusão 5)
6- Por alvará de 4-6-2004 o Ministério do Ordenamento do Território e Ambiente concedeu à Câmara Municipal da XB... a Licença de utilização do Domínio Hídrico (rejeição de águas Residuais) com o nº … relativamente à descarga de efluentes tratados na ETAR de … no Rio Liz, a qual se mostra junta aos autos a fls. 8 e segs.
7- Assim, em conformidade com as condições gerais e especiais do alvará, o valor médio do período de amostragem de 24 horas, proporcionais ao caudal ou por escalões de tempo, respeita ao auto-controlo, e deverá realizar-se com a periodicidade mínima mensal, e não à fiscalização, como entendeu o Tribunal.
8- Neste contexto, uma amostra pontual, como no caso em apreço, é para a ARH válida, constituindo o resultado obtido uma indicação do estado daquele efluente no dia, hora e local.
9- Atente-se, como também consta dos autos, que, por exemplo, a amostra de auto-controlo referente ao dia 7-8-2007 também apresentava alguns valores desconformes, para mais, com as tabelas, o que comprova que aquela ETAR já apresentava deficiências no seu funcionamento
10- O Tribunal, ao estender a aplicação do art. 17 do D.L. 152/97 de 19-6 às acções e aos métodos de fiscalização do cumprimento das normas não fez, a nosso ver e salvo o devido respeito, uma correcta aplicação do direito ao caso em apreço.
Deve dar-se provimento ao recurso e, revogar-se a sentença recorrida.
Foi apresentada resposta pelo Munícípio da XB..., que conclui:
1. A apreciação do presente recurso a que nesta sede se responde assenta exclusivamente em matéria de direito, razão pela qual a factualidade provada e não provada fixada na Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo encontra-se, definitivamente assente, com o que o Recorrente se deverá conformar.
2. Argumenta o recorrente que as normas sobre que assentou a Douta Decisão proferida pelo Tribunal a quo respeitam aos critérios de controlo ou auto-controlo e não ao critérios de fiscalização, os quais, são discricionariamente definidos pela autoridade Iicenciadora, considerando assim que uma amostra pontual é para a ARH válida, constituindo o resultado obtido uma indicação do estado daquele efluente no dia, hora e local.
3. Sem prejuízo da correcta interpretação que resulta do Douto aresto em crise, a qual, nesta sede se dá por integralmente reproduzida, para os devidos e legais efeitos, o argumento do Recorrente quanto à suficiência da recolha pontual (entenda-se única) carece de sentido, se analisarmos a definição de VLE (Valores Limite de Emissão), sob os quais, incidem as análises efectuadas (mesmo as pontuais) e ainda os limites sob o qual incidirão os resultados.
4. E se atentarmos ao Anexo XVIII do supra referido Diploma Legal, sob a epígrafe "Valores limite de emissão (VLE) na descarga de águas residuais" constatamos que, na anotação ao campo VLE consta "(1) VLE - valor limite de emissão, entendido como média mensal, definida como média aritmética das médias diárias referentes aos dias de laboração de um mês, que não deve ser excedido. O valor diário, determinado com base numa amostra representativa da água residual descarregada durante um período de vinte e quatro horas, não poderá exceder o dobro do valor médio mensal (a amostra num período de vinte e quatro horas deverá ser composta tendo em atenção o regime de descarga das águas residuais produzidas)."
5. É do conhecimento geral e do senso comum que uma Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) é composta de águas residuais com várias composições, as quais, quando são descarregadas, não apresentam, no caudal de saída e durante todo o período da descarga, valores similares.
6. Por essa razão, se impõe o recurso a médias de 24h e médias mensais e é totalmente desprovido de fundamento o argumento de que uma recolha pontual, limitada a uma pequena amostra de produto, é suficiente para determinar os valores da totalidade das águas residuais que vieram a ser descarregadas.
7. Atente-se no exemplo de que os primeiros 20 ou 10 ml de recolha apresentava teores elevados e fora dos limites legais, por alguma contaminação no próprio sistema de tubagem, mas os restantes milhares de litros correspondiam a água "pura" sem qualquer ultrapassagem de valor.
8. Tanto assim é que, conforme se extrai do supra referido anexo, os limites dos VLE respeitam à média mensal, definida como média aritmética das médias diárias e, as médias diárias poderão exceder, até ao dobro a média mensal, por este facto facilmente se constata que, os valores diários também resultam de uma média ponderada de 24h e, podem, exceder os VLE mensais.
9. No absurdo, o que o recorrente defende, é que uma recolha pontual, se apresentar valores superiores à média mensal (é essa e somente essa a definição de VLE) é suficiente para que a entidade que procede à descarga seja punida contra-ordenacionalmente, quanto, na média diária, os valores podem ultrapassar até ao dobro os VLE médios.
10. Não assiste pois qualquer razão ao Recorrente MP pelo que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo.
Deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Nesta Relação, o Ex.mº P.G.A. emitiu parecer, no sentido de que o recurso deve ser julgado procedente.
Foi cumprido o art. 417 nº 2 do CPP.
Não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir:
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É a seguinte a matéria de facto apurada:
1) No dia 17 de Setembro de 2007 a equipa especial de ambiente da Guarda Nacional Republicana, no seguimento de uma denúncia, é após deslocação ao local, verificou a existência de uma descarga da ETAR de … para o Rio Lis.
2) No local onde se encontra a ETAR foi efectuada uma recolha de efluentes à saída do colector da referida ETAR para o rio Lis.
3) O arguido Município da XB... à data dos factos possuía alvará de licença de descarga nº … válido até 30 de Junho de 2006, tendo posteriormente solicitado a renovação de licença nº … de 29 de Maio de 2006, para tratamento de águas residuais urbanas.
4) A licença referida em 3 (835/04) dava ao arguido a possibilidade de manter a descarga no Rio Lis, do efluente tratado na ETAR de …, localizada no lugar freguesia de …, concelho da XB..., sujeita aos parâmetros indicados nas condições especiais para o CQO, CBO, e ph, e ficando obrigada à periodicidade mensal na apresentação de autocontrolos.
5) A data dos factos referidos em 1 e 2 o alvará de licença nº 835/04, tinha caducado.
6) Da análise efectuada à recolha da amostra de efluentes, evidenciam-se valores de SST – 0,19 g/l, sendo o valor limite de emissão de 60mg/l; CBO5- 457 MG/L, sendo o valor limite de emissão de 40mg/l; 02, azoto amoniacal 30mg/l, sendo o valor limite de emissão de 10mg/HH4.
7) A arguida tem conhecimento que o incumprimento dos Valores limites de emissão consubstancia ilícito ambiental.
Mais se provou (em sede de audiência/factos alegados pelo recorrente):
8) A equipa especial de ambiente da Guarda Nacional Republicana apenas procedeu à recolha de uma amostra de efluentes, num único período de tempo.
9) Não foi feita qualquer contra análise aos resultados referidos em 6.
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Conhecendo:
A questão suscitada no recurso e que já o era na impugnação respeita a saber se a fiscalização das águas residuais pode ser efectuada com base numa colheita única, ou se necessita de várias colheitas ao longo do período de 24 horas.
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Provado está que apenas uma amostra foi recolhida.
Na sentença recorrida entendeu-se que, e lançando mão do disposto no art. 17, do Dl. 152/97 de 19-06, ANEXO I (Requisitos de tratamento das águas residuais urbanas), que dispõe:
“D) Métodos de referência para o controlo e a avaliação dos resultados
2- Serão colhidas amostras de vinte e quatro horas, proporcionais ao caudal ou por escalões de tempo, num ponto bem definido à saída e, se necessário, à entrada da estação de tratamento, para controlar o cumprimento dos requisitos aplicáveis às descargas de águas residuais tal como estabelecidos no presente decreto-lei”.
Entendendo-se que, “Ao referir a lei amostras de 24 horas, tal significa, que não basta para comprovar que os limites estão excedidos, que se faça apenas uma amostra retirada em determinado momento de um determinado dia.
É necessário portanto, que se recolha durante um dia mais do que uma amostra ou então que nessa única amostra estejam resíduos de mais do que um momento”.
…” No entanto, aqui chegados temos que concluir que não se pode partir de uma única amostra com valores superiores aos limites legais para sem mais imputar a contra-ordenação que vinha imputada à arguida.
Era necessário, e tal não foi efectuado, que as análises abarcassem um período de tempo maior do que aquele que realmente o foi, para averiguar em concreto, se ao cabo de um dia estavam a ser despejados resíduos para as linhas de águas superiores àquilo que a lei impõe”.
…” Competia então à entidade administrativa recolher durante 1 dia várias amostras, analisá-las conjugadamente, e após tal, caso se comprovasse que os resultados eram superiores aos legalmente admitidos por lei instruir o respectivo processo contra-ordenacional.
Ora violando tais requisitos, os factos dados como provados por si só não são suficientes para se concluir pela prática da contra-ordenação imputada”.
Concluindo pela absolvição.
Entendimento sufragado pelo recorrido Município da XB....
O recorrente Mº Pº Entende que o controlo pelo período de 24 horas apenas respeita ao auto-controlo a efectuar pela entidade que gere a ETAR e não ao acto de fiscalização pela entidade competente.
Que no contexto em que decorreu, “uma amostra pontual, como no caso em apreço, é para a ARH válida, constituindo o resultado obtido uma indicação do estado daquele efluente no dia, hora e local”.
Vejamos, quanto ao ponto a analisar em concreto:
Refere o Dl 152/97 que:
Artigo 12.º (Controlo)
1 - A entidade licenciadora especificará, de acordo, nomeadamente, com a alínea D) do anexo I ao presente diploma, os procedimentos de autocontrolo para cada descarga, devendo constar da respectiva autorização a periodicidade com que os mesmos lhe deverão ser remetidos.
2 - Compete igualmente à entidade licenciadora proceder ao controlo da qualidade do meio aquático nos casos em que haja fundados receios de que este esteja a ser deteriorado por descargas das águas residuais a que se reporta o presente diploma, excepto quanto às águas costeiras, relativamente às quais esta competência será exercida pelo Instituto da Água.
3 - A entidade licenciadora, conjuntamente com o Instituto da Água, adoptará os procedimentos que se revelem necessários para o controlo do meio aquático receptor, a fim de que possa ser dado cumprimento ao disposto no n.os 3 e 4 do artigo 15.º da Directiva n.º 91/271/CEE, do Conselho, de 21 de Maio”.
Artigo 13.º (Fiscalização)
“A fiscalização do cumprimento do disposto no presente diploma compete à entidade licenciadora, bem como aos serviços de inspecção dos Ministérios do Ambiente e da Saúde, no âmbito das competências que lhes são atribuídas na vigilância sanitária da qualidade das águas”.
A especificação a que se reporta o nº 1 do art. 12 constará do alvará de licenciamento.
Conforme se verifica do alvará de licença concedido ao arguido Município, constante de fls. 8 a 10 dos autos é que se determina o modo de efectuar o auto-controlo, referindo-se que as condições de descarga são as constantes do Dl. 152/97, devendo ser cumpridos os valores limites indicados no quadro anexo e que o auto controlo realizar-se-á com a periodicidade mensal e as amostras colhidas deverão ser de 24 horas, proporcionais ao caudal ou por escalões de tempo.
VLE, (Valores limite de emissão) é nos termos do nº 58 do artigo 3º do Dl. nº 236/98 de 01 de Agosto (diploma que estabelece normas, critérios e objectivos de qualidade com a finalidade de proteger o meio aquático e melhorar a qualidade das águas em função dos seus principais usos) consiste na “massa, expressa em unidades específicas para cada parâmetro, a concentração ou o nível de uma emissão de determinada substância que não deve ser excedido durante um ou mais períodos determinados de tempo por uma instalação na descarga no meio aquático e no solo. Os VLE podem igualmente ser fixados para determinados grupos, famílias ou categorias de substâncias, designadamente os referidos no anexo XIX. A quantidade máxima pode ser expressa, ainda, em unidade de massa do poluente por unidade do elemento característico da actividade poluente (por exemplo, por unidade de massa de matéria-prima ou por unidade de produto)”;
Por outro lado, a lei nº 58/05 de 29 de Dezembro que define o enquadramento para definição das águas superficiais designadamente às águas interiores, de transição e costeiras, e das águas subterrâneas refere a propósito do VLE no artigo 4º alínea fff «Valores limite de emissão» a massa, expressa em termos de determinados parâmetros específicos, a concentração ou o nível de uma emissão que não podem ser excedidos em certos períodos de tempo, a definir em normativo próprio”;
Decreto-Lei nº 236/98 de 01-08-1998, indica os valores limite, no ANEXO XVIII - Valores limite de emissão (VLE) na descarga de águas residuais.
Para SST, expresso em mg/l, o VLE de 60, sendo que da amostra constava 0,19 g/l, ou seja, 190 mg/l, pelo que ultrapassa em mais do dobro.
CBO5, expresso em mg/l, o VLE de 40, sendo que da amostra constava 47 mg/l (e não 457, como por lapso se indica na decisão recorrida), pelo que ultrapassa em 7 mg/l.
Azoto amoniacal, expresso em mg/l, o VLE de 10, sendo que da amostra constava 30 mg/l, pelo que ultrapassa em 20.
Porém, este mesmo mapa anexo ao Decreto-Lei nº 236/98 refere que os VLE - “valor limite de emissão, entendido como média mensal, definida como média aritmética das médias diárias referentes aos dias de laboração de um mês, que não deve ser excedido. O valor diário, determinado com base numa amostra representativa da água residual descarregada durante um período de vinte e quatro horas, não poderá exceder o dobro do valor médio mensal (a amostra num período de vinte e quatro horas deverá ser composta tendo em atenção o regime de descarga das águas residuais produzidas)”.
Donde resulta que para encontrar os VLE são necessárias várias colheitas e não uma só.
Mesmo o valor diário deve reportar-se a amostra representativa da água residual durante um dia.
E face aos factos provados referidos em 2 e 6 desconhece-se completamente como foi colhida a amostra, bem como se a mesma é representativa da água residual descarregada durante o período de 24 horas.
E, dos autos não se verifica que se possa vir a demonstrar que tal amostra era representativa da água residual durante um dia, pelo que não tem relevância invocar o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão.
Se o valor limite de emissão, relativo a amostra diária (referente a período de 24 horas) pode ir até ao dobro do valor médio mensal, é manifesto que pode haver amostras diárias que tenham valores superiores ao valor limite mensal e outras que obtenham valores inferiores.
E, se a amostra diária deve ser composta, atendendo ao regime da descarga das águas residuais produzidas, é manifesto que não basta chegar à ETAR, colher quantidade de água residual, só uma vez, e remetê-la para análise.
Isso mesmo resulta dos referidos art. 17 e ANEXO l d) do Dl. Nº 152/97 bem como do ANEXO XVIII Decreto-Lei nº 236/98, que também se reporta a valor médio diário (sendo que um valor médio nunca pode resultar de uma única amostra).
Assim que entendamos que bem se decidiu, pelo que é de manter a decisão recorrida de absolvição do arguido Município da XB....
E, por conseguinte, improcedente o recurso.
Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação e Secção Criminal em, julgar improcedente o recurso interposto pelo Magistrado do Mº Pº e, em consequência, manter a decisão recorrida.
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Sem custas.

Jorge Dias (Relator)
Brízida Martins