Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3029/15.0T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO DOMINGOS PIRES ROBALO
Descritores: CASAMENTO
REGIME DE BENS
REGIME DE SEPARAÇÃO ABSOLUTA DE BENS
COMPROPRIEDADE
Data do Acordão: 02/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – JC CÍVEL – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1714º, 1735º E 1736º DO C. CIV.
Sumário: I – Vigorando entre os esposados o regime da separação de bens, cada um deles conserva o domínio e fruição de todos os seus bens, presentes e futuros, podendo dispor deles livremente (art. 1735.º).

II - Para além do poder de livre disposição, atribuído a cada um dos cônjuges sobre todos os seus bens, constituem elementos característicos fundamentais deste regime a separação completa dos bens, presentes e futuros, próprios dos cônjuges, e a inexistência de bens comuns do casal.

III - Face ao princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens do casamento estabelecido no art. 1714.º, a alterabilidade desse regime apenas é permitida a título excepcional nos casos taxativamente enumerados no art. 1715.º.

IV - O facto de no regime de separação haver duas massas de bens autónomas, os bens próprios de cada um dos cônjuges, não impede a cooperação de ambos dentro da sociedade familiar de molde a que possam surgir bens em regime de compropriedade, até porque o legislador no nº 2 do art.º 1736.º estabeleceu uma presunção legal aplicável aos casos em que haja dúvidas sobre a propriedade exclusiva de qualquer dos cônjuges relativamente aos bens móveis. Quando assim seja, ter-se-ão os bens móveis como pertencendo em compropriedade a ambos os cônjuges.

V - Porém, a compropriedade não se confunde com a comunhão. Na comunhão conjugal os bens comuns constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede certo grau de autonomia, e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela.

Decisão Texto Integral:





Acordam na Secção Cível (3.ª Secção) do Tribunal da Relação de Coimbra

1. Relatório

1.1. Na presente acção de processo comum instaurada por R... contra M... pede a primeira seja declarada a compropriedade das partes, em partes iguais, do prédio urbano identificado em 4º da petição inicial, bem como do seu recheio.

Para tanto disse, em síntese, ter sido casada com o réu durante 20 anos encontrando-se divorciados desde Novembro de 2013, mais dizendo que durante a constância do seu matrimónio sempre trabalhou em casa, executando as tarefas descritas em 2º, tendo o réu sido empregado e que adquiriram o prédio identificado em 4º, onde foi edificada a casa de habitação, na qual viveram em economia comum enquanto casal. Afirmando que o regime de casamento era o de separação de bens mais disse que os bens em causa foram adquiridos com dinheiro de ambas as partes e na convicção de que o regime era o da comunhão de adquiridos, sustentando que os referidos bens foram adquiridos em compropriedade e valorizados/melhorados pela intervenção activa de ambos.

 Disse, por fim, ter sido celebrado o contrato de mútuo indicado em 10º.

1.2. Citado o réu impugnou o valor atribuído à acção e defendeu-se por impugnação.

Relativamente ao valor disse que o mesmo deveria corresponder a metade do valor do imóvel, atento o peticionado pela autora (declaração da compropriedade, na proporção de metade).

Impugnando referiu, em súmula, que jamais adquiriu bens em comum com a autora, mais negando que o imóvel descrito em 4º da petição inicial tivesse sido adquirido em compropriedade, dizendo que o mesmo apenas foi adquirido por si, sendo seu bem próprio, recordando que apenas ele interveio como parte na escritura de compra e venda, mostrando-se o mesmo registado unicamente a seu favor na Conservatória do Registo Predial, sendo igual seu bem próprio a moradia que aí foi edificada, por se ter incorporado no dito prédio. Mais impugnou que a conta bancária, recheio da casa e veículo fossem bens comuns, dizendo que a autora não podia ignorar o regime de bens em que se encontrava casada, referindo também que a autora tinha uma conta bancária e que o réu tinha outra depositando reciprocamente em tais contas os rendimentos dos seus trabalhos. Disse, ainda, que a autora não contribuiu para a aquisição/construção da moradia, sendo ele quem suporta as prestações mensais ao banco pelo empréstimo contraído através da sua conta bancária e que é quase exclusivamente movimentada a crédito com rendimentos do seu trabalho. Termina pedindo seja a acção julgada improcedente e, em consequência, seja absolvido dos pedidos contra si formulados.

1.3. Nos termos e pelos fundamentos vertidos no despacho datado de 30/10/2015 e constante de fls. 440/441 foi fixado o valor da acção em € 41.420,00 mais se tendo declarado a incompetência, em razão do valor, da instância central cível da comarca de Viseu e determinado a remessa dos autos para esta instância local.

1.4. Procedeu-se, a fls. 443-445, à elaboração do despacho saneador, tendo-se enunciado os temas de prova, admitido os meios probatórios e designado data para a realização do julgamento.

1.5. A questão decidenda nos presentes autos consiste em saber se a autora é dona, na proporção de metade, do prédio identificado em 4º da petição inicial, bem como do seu recheio.

1.6. Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo, tendo sido proferido sentença onde se decidiu:

a) Declarar que autora e réu são donos e legítimos proprietários, em partes iguais, do prédio urbano sito em ...

b) Absolver o réu do remanescente peticionado.

            1.7. Inconformado com tal decisão dela recorreu o R. terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:

...

            1.7. A recorrida não apresentou contra alegações.

            1.8. Colhidos os vistos cumpre decidir.

                                               2. Fundamentação

                                               2.1. Factos provados

            2.1.1. A. e R. foram casados durante 20 anos e encontram-se separados desde Novembro de 2013, com o esclarecimento que o casamento foi celebrado em 4 de Setembro de 1993.

            2.1.2. Durante a vigência em comum o R. sempre foi empregado e a A. sempre trabalhou em casa na preparação da comida, limpeza, tratamento de roupas, educação dos filhos, realização das compras e tudo o que se revelasse necessário ao casal, com o esclarecimento que a partir de determinado momento a A. também passou a efectuar trabalhos de costura e de confecção de salgados para terceiros, sendo remunerada por tais trabalhos, remuneração essa que também usava para despesas do lar.

2.1.3. A A. e o R. foram casados no regime de separação de bens tendo por essa razão declarado as partes no processo de divórcio que não existiam bens comuns a partilhar, com o esclarecimento de que para a fixação de tal regime celebraram, a 30 de Agosto de 1993 e no Cartório Notarial de ..., a competente convenção antenupcial.

2.1.4. Na constância do matrimónio o réu, por escritura de compra e venda datada de 13 de Janeiro de 2000, adquiriu o prédio urbano sito ....

2.1.5. Tal prédio mostra-se registado na Conservatória do Registo Predial de ... a favor do réu, mediante Ap. 5 de 21/01/2000.

2.1.6. Nesse prédio foi edificada uma casa de habitação, na qual autora, réu e respectiva família viveram em economia comum enquanto casal que eram.

2.1.7. Os bens referidos supra foram adquiridos na constância do matrimónio, tendo a autora contribuído para as suas aquisições, com o esclarecimento de que pese embora soubesse a autora que o regime de bens do casamento era o da separação estava convicta que o mesmo significava que os bens adquiridos na constância do matrimónio se consideravam propriedade de ambos os cônjuges e que os bens adquiridos anteriormente se consideravam propriedade do cônjuge que os havia adquirido.

 Face ao referido sobre o recurso da matéria de facto este ponto passa a ter a seguinte redacção: «Os bens referidos supra foram adquiridos na constância do matrimónio, com o esclarecimento de que pese embora soubesse a autora que o regime de bens do casamento era o da separação estava convicta que o mesmo significava que os bens adquiridos na constância do matrimónio se consideravam propriedade de ambos os cônjuges e que os bens adquiridos anteriormente se consideravam propriedade do cônjuge que os havia adquirido».

2.1.8. As contribuições referidas em 2.1.7. e 2.1.2. foram feitas pela autora por a mesma, nas suas datas, se dar bem com o réu, por estar casada com ele e por não se levantarem quaisquer dúvidas entre eles.

Face ao referido no recurso sobre a matéria de facto este ponto passa a ter a seguinte redacção: «As contribuições referidas em 2.1.2. foram feitas pela autora por a mesma, nas suas datas, se dar bem com o réu, por estar casada com ele e por não se levantarem quaisquer dúvidas entre eles», que será colocada a negrito no factos provados».

2.1.9. Os referidos bens foram valorizados e melhorados pela intervenção activa de ambos.

2.1.10. Autora e réu celebraram um contrato de mútuo com hipoteca com o Banco I..., mediante o qual os dois primeiros receberam a quantia de 17.600.000$00, que investiram na construção da referida casa de habitação, com o esclarecimento que apenas o aqui réu, na qualidade de mutuário e para garantia das responsabilidades assumidas, constituiu hipoteca sobre o prédio indicado em 2.1.4.

2.1.11. A autora interveio na escritura de compra e venda referida em 2.1.4. na qualidade de procuradora do seu então marido, aqui réu.

2.1.12. Apesar de se tratarem de duas contas tituladas por ambas as partes na constância do matrimónio cada um deles, autora e réu, movimentava apenas uma dessas contas e depositavam nessas respectivas contas os rendimentos provenientes dos seus respectivos trabalhos.

2.1.13. Dessas referidas contas bancárias a que a autora movimentava encontrava-se sedeada no B... e a do réu no S..., tendo esta última o número ...

2.1.14. O preço da compra do prédio identificado em 2.1.4. foi pago por intermédio de cheque bancário cujos fundos foram retirados da conta movimentada pelo réu e provisionada com dinheiro a este pertencente.

2.1.15. O custo das obras de construção da moradia foi pago pelo réu através da conta bancária com o número ... e referida em 2.1.13., da qual foram sacados vários cheques a favor do empreiteiro e das entidades certificadoras das instalações do gás e da electricidade.

2.1.16. As prestações mensais devidas em virtude de tal empréstimo, quer na pendência do matrimónio quer posteriormente à sua dissolução, têm sido pagas por intermédio da referida conta com o número ...

2.1.17. A conta com o número ... no S..., e movimentada pelo réu, é quase exclusivamente movimentada a crédito com os rendimentos do trabalho do réu, concretamente pelas transferências bancárias provenientes da sua entidade patronal para pagamento do seu salário.

                                   3. Apreciação
3.1. É, em princípio, pelo teor das conclusões do/a recorrente que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso (cfr. art.ºs 608, n.º 2, 635, n.º 4 e 639, todos do C.P.C.
Assim, as questões a decidir são:
I)-Saber se a matéria de facto fixada em 1.ª instância deve ser alterada.
II)-Saber se a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue totalmente improcedente a presente acção.
Tendo presente que são duas as questões a analisar, por uma questão de método iremos cada uma de per si.
I)-Saber se a matéria de facto fixada em 1.ª instância deve ser alterada.
 Antes demais cabe referir que nada obsta ao conhecimento do recurso da matéria de facto, na medida em que o mesmo observa o preceituado no art.º 640 do C.P.C. vigente.
O recorrente impugna, no presente recurso, a decisão sobre matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido, no segmento em que considerou provados os factos constantes dos números 7, 8 e 9 (agora 2.1.7., 2.1.8. e 2.1.9.).

Vejamos.

O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela

própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.

Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova, o juiz aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto,  que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.  É sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”[1] “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores”[2].

Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.

“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”[3].

Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.

Daí que conforme orientação jurisprudencial prevalecente o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição.

Em conclusão: mais do que uma simples divergência em relação ao decidido, é necessário que se demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante ou quando também eles sejam contrariados por meios de prova de igual ou de superior valor ou credibilidade.

É que o tribunal de 2ª jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si.

Sendo, portanto, um problema de aferição da razoabilidade da convicção probatória do julgador recorrido, aquele que essencialmente se coloca em sede de sindicabilidade ou fiscalização do julgamento fáctico operado pela 1ª instância, forçoso se torna concluir que, na reapreciação da matéria de facto, à Relação apenas cabe, pois,

um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no tribunal a quo lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou.[4].

Casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto serão, por exemplo, os de o depoimento de uma testemunha ter um sentido em absoluto dissonante ou inconciliável com o que lhe foi conferido no julgamento, de não terem sido consideradas - v.g. por distracção -determinadas declarações ou outros elementos de prova que, sendo relevantes, se apresentavam livres de qualquer inquinação, e pouco mais.

A admissibilidade da respectiva alteração por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.

Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão ao apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele pretendidos.

...

Face ao exposto o ponto 7 (agora 2.1.7.) passa a ter a seguinte redacção «Os bens referidos supra foram adquiridos na constância do matrimónio, com o esclarecimento de que pese embora soubesse a autora que o regime de bens do casamento era o da separação estava convicta que o mesmo significava que os bens adquiridos na constância do matrimónio se consideravam propriedade de ambos os cônjuges e que os bens adquiridos anteriormente se consideravam propriedade do cônjuge que os havia adquirido.», matéria que irá ser colocada nos factos provados a negrito.

Face à alteração efectuada em 2.1.7. a redacção do ponto 2.1.8 passa a ser «As contribuições referidas em 2.1.2. foram feitas pela autora por a mesma, nas suas datas, se dar bem com o réu, por estar casada com ele e por não se levantarem quaisquer dúvidas entre eles», que será colocada a negrito no factos provados.

Nos termos da alínea c) do n.º 2 do art.º 662 do C.P.C. este tribunal pode modificar a matéria de facto, desde que constem do processo todos os elementos que o permitam.

Tendo presente ao supra referido e tendo este tribunal tirado a referência tendo a A. contribuído para as suas aquisições” do ponto 7 (agora 2.1.7.) dos factos provados em 1.ª instância, esta passará para os factos não provados, aditando-lhe um ponto, com a seguinte redacção « A A. não contribuiu para as aquisições dos imóveis aludidos em 2.1.4. e 2.1.6.», colocado a negrito na respectiva matéria.

No que concerne ao ponto 9 (agora 2.1.9.) com a seguinte redacção «Os referidos bens foram valorizados e melhorados pela intervenção activa de ambos», refere o recorrente que o mesmo é vago,  genérico  e conclusivo, deve ter-se por não escrito.

A respeito de tal matéria cfr. acórdão da Rel. do Porto de 29/5/ 2014, proc. n.º 444/12.5TVLSB.L1-6, relatado por António Martins, referido nas alegações de recurso,   onde se refere « Quando não contenham factos concretos, é evidente que não serão os “temas de prova” a ser julgados provados ou não provados na sentença, «já [que] a decisão sobre a matéria de facto nunca se poderá bastar com tais formulações genéricas, de direito ou conclusivas, exigindo-se que o tribunal se pronuncie sobre os factos essenciais e instrumentais (que devem transitar para a sentença) pertinentes à questão enunciada».

 Tendo presente que o ponto 9 (agora 2.1.9.) dos factos provados são conclusivos, não podem servir para fundamentar a decisão.

 Assim, face ao exposto a pretensão do recorrente no que concerne a esta matéria é procedente.

II)-Saber se a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue totalmente improcedente a presente acção.

Da matéria de facto provada resulta que A. e R. foram casados no regime de comunhão geral de bens e que foram casados um com o outro durante 20 anos e encontram-se separados desde Novembro de 2013 (cfr. pontos 2.1.3. e 2.1.1.).

Vigorando entre os esposados o regime da separação de bens, cada um deles conserva o domínio e fruição de todos os seus bens, presentes e futuros, podendo dispor deles livremente (art. 1735.º).

Para além do poder de livre disposição, atribuído a cada um dos cônjuges sobre todos os seus bens, constituem elementos característicos fundamentais deste regime a separação completa dos bens, presentes e futuros, próprios dos cônjuges, e a inexistência de bens comuns do casal.

O regime da separação caracteriza-se assim, nos dias de hoje, por uma efectiva autonomia dos patrimónios encabeçados pelos dois cônjuges, quer no que respeita ao domínio, fruição e administração dos bens, quer no que concerne à sua alienação e oneração. Ou seja, o fosso profundo cavado entre os bens dos dois cônjuges quase apaga as relações patrimoniais entre eles[5].

No caso em apreço resulta provado que  na constância do matrimónio o réu, por escritura de compra e venda datada de 13 de Janeiro de 2000, adquiriu o prédio urbano sito em ..., constituído por um terreno para construção urbana com 768 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... (cfr. ponto 2.1.4.), que tal prédio mostra-se registado na Conservatória do Registo Predial de ... a favor do réu, mediante Ap. 5 de 21/01/2000 (cfr. ponto 2.1.5.), que nesse prédio foi edificada uma casa de habitação, na qual autora, réu e respectiva família viveram em economia comum enquanto casal que eram (cfr. ponto 2.1.6.), que tais bens foram adquiridos na constância do matrimónio, com o esclarecimento de que pese embora soubesse a autora que o regime de bens do casamento era o da separação estava convicta que o mesmo significava que os bens adquiridos na constância do matrimónio se consideravam propriedade de ambos os cônjuges e que os bens adquiridos anteriormente se consideravam propriedade do cônjuge que os havia adquirido (cfr. ponto 2.1.7), que Autora e réu celebraram um contrato de mútuo com hipoteca com o Banco I..., mediante o qual os dois primeiros receberam a quantia de 17.600.000$00, que investiram na construção da referida casa de habitação, com o esclarecimento que apenas o aqui réu, na qualidade de mutuário e para garantia das responsabilidades assumidas, constituiu hipoteca sobre o prédio indicado em 2.1.4. (cfr. ponto 2.1.10.), que a autora interveio na escritura de compra e venda referida em 2.1.4. na qualidade de procuradora do seu então marido, aqui réu (cfr. ponto 2.1.11.), apesar de se tratarem de duas contas tituladas por ambas as partes na constância do matrimónio cada um deles, autora e réu, movimentava apenas uma dessas contas e depositavam nessas respectivas contas os rendimentos provenientes dos seus respectivos trabalhos (2.1.12.), dessas contas a autora movimentava encontrava-se sedeada no B... e a do réu no S..., tendo esta última o número ... (cfr. ponto 2.1.13.), que o preço da compra do prédio identificado em 2.1.4. foi pago por intermédio de cheque bancário cujos fundos foram retirados da conta movimentada pelo réu e provisionada com dinheiro a este pertencente (cfr. ponto 2.1.14.), que o custo das obras de construção da moradia foi pago pelo réu através da conta bancária com o número ... e referida em 2.1.13., da qual foram sacados vários cheques a favor do empreiteiro e das entidades certificadoras das instalações do gás e da electricidade (cfr. ponto 2.1.15.) e que as prestações mensais devidas em virtude de tal empréstimo, quer na pendência do matrimónio quer posteriormente à sua dissolução, têm sido pagas por intermédio da referida conta com o número ... (cfr. ponto 2.1.16.).

A sentença recorrida, para chegar à conclusão de que o prédio urbano sito em ..., assenta na compropriedade ao referir «verificam-se, pois, todos os requisitos da compropriedade e sem que com tal se esteja a violar o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais, previsto no art.º 1714, n.º 1, do Código Civil, e o regime de bens estabelecidos entre as partes, pois que, como já afirmado, o regime de separação de bens é compatível com a compropriedade de bens entre cônjuges».

Como se sabe há jurisprudência que advoga essa tese, desde que verificados determinados pressupostos, como contribuírem ambos os cônjuges para a aquisição do imóvel, ainda que depois fique apenas em nome de um, nunca esquecendo que estamos a falar no regime de separação de bens[6].

Porém, não advogamos essa tese, pelo que não acompanhamos a sentença recorrida, nesta vertente, desde logo, face ao princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens do casamento estabelecido no art. 1714.º. Cuja alterabilidade apenas é permitida a título excepcional nos casos taxativamente enumerados no art. 1715.º (irrelevante no caso vertente), considerar o bem como comum, na prática ocorreria uma autêntica alteração do regime de bens do casamento contra aquele princípio da imutabilidade que o legislador consagrou[7].

Ora, o facto de no regime de separação haver duas massas de bens autónomas, os bens próprios de cada um dos cônjuges, não impede a cooperação de ambos dentro da sociedade familiar de molde a que possam surgir bens em regime de compropriedade, até porque o legislador no nº 2 do art.º 1736.º estabeleceu uma presunção legal aplicável aos casos em que haja dúvidas sobre a propriedade exclusiva de qualquer dos cônjuges relativamente aos bens móveis. Quando assim seja, ter-se-ão os bens móveis como pertencendo em compropriedade a ambos os cônjuges[8].

Porém, a compropriedade não se confunde com a comunhão. Na comunhão conjugal os bens comuns constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede certo grau de autonomia, e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela[9].

Como tal, essa massa patrimonial não se reparte entre os cônjuges por quotas ideais, como acontece na compropriedade, pertence “à colectividade” por eles formada, e tem como seus traços característicos que a distinguem da compropriedade o facto de o direito dos contitulares não incidir directamente sobre cada um dos elementos que constituem o património, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário, bem como não poder qualquer deles pedir a divisão desse património colectivo enquanto não cessar a causa determinante da sua constituição, enquanto que na compropriedade podem os cônjuges dela sair mediante o processo de divisão de coisa comum, como dos arts. 1412.º e 1413.º do C.C.[10].

A comunhão é, pois, uma figura mais ampla do que a compropriedade, e a decisão sob escrutínio para além de não atentar em que no regime de separação não há bens comuns, de igual modo desconsiderou a destrinça da comunhão face à compropriedade[11].

Aliás, no caso em apreço não resulta provado que a A. tenha contribuído para a aquisição dos imóveis referidos em 2.1.4. e 2.1.6. (este com empréstimo, tendo sido provado que as mensalidades do mesmo são pagas pelo R. (ponto 2.1.15. e 2.1.16. e aquele pago por intermédio de um cheque bancário cujos fundos foram retirados da conta movimentada pelo R. e provisionada com dinheiro a este pertencente (ponto 2.1.14.), tendo a A. intervindo na escritura na qualidade de procuradora (ponto 2.1.11.), pelo que também por aqui não se vê como lançar mão do regime da compropriedade.

A sentença recorrida alude também à figura de abuso de direito para chegar à conclusão a que chegou ao referir «aponta-se, por fim, que a pretensão do cônjuge marido aqui R., de após cerca de 20 anos de vida em comum com a aqui autora e de economia comum como se estivessem casados em regime de comunhão, pretender agora invocar o regime de separação de bens para ser o único proprietário formal do imóvel a que estes autos se reportam o qual, repete-se, também foi adquirido com esforço da A., configura uma situação de abuso de direito, prevista no art.º 334, do C.C. e que dispõe o seguinte “ É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito “ – neste sentido Ac. S.T.J. de 14/5/2015)».

Neste vertente também não acompanhamos a sentença recorrida.

Refere-se no acórdão citado na sentença recorrida «poder-se-á inclusive questionar se, mesmo no regime de separação de bens, o cônjuge que na ausência de um contrato de mútuo, por exemplo, adquire, ainda que em nome próprio, imóveis, com dinheiro que é também do outro, não o fará antes na execução de um mandato tácito (cfr. Sobre a utilização neste contexto, pelas jurisprudências alemã e francesa de contratos tácitos (mandato tácito e sociedade tácita) cfr., por todos, MARIA RITA ARANHA DA GAMA LOBO XAVIER, Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 466 e ss., que refere, aliás, a proposta de uma parte da doutrina germânica de reconhecer aqui um contrato sui generis de cooperação) e se não corresponderá à vontade das partes que a utilização de dinheiro dos dois cônjuges corresponda a uma aquisição para os dois. Na verdade, perguntámo-nos se não assistirá razão a MARIA RITA ARANHA DA GAMA LOBO XAVIER quando afirma que “[mesmo nos regimes de separação de bens] na maior parte dos casos, a comunhão de vida acaba por provocar uma interpenetração de facto dos bens” (cfr. MARIA RITA ARANHA DA GAMA LOBO XAVIER, ob. cit,, p.453.), ou, como afirma um Autor alemão citado por aquela Autora, a obrigação de comunhão de vida implica que os cônjuges levem a cabo “realizações económicas conjuntas” (CHRISTIAN ROTHEMUND, cit apud MARIA RITA ARANHA DA GAMA LOBO XAVIER, ob. cit., p.457, n.49). Recorde-se, de resto, que a separação de bens nem sequer é obstáculo a que um dos cônjuges possa contrair dívidas que responsabilizam o outro por serem em proveito comum do casal (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/4/2008 (PEREIRA DA SILVA): “O proveito comum do casal inerente às dívidas a que se reporta a alínea c) do n.º1 do art. 1691.º do Código Civil pode verificar-se mesmo no regime de separação de bens”).

Mas o certo é que o caso em análise apresenta especificidades atendendo aos factos dados como provados. Foi dado como provado, designadamente, que os cônjuges ignoravam que o seu casamento estava sujeito ao regime imperativo de separação de bens, acreditando estarem casados em um regime de comunhão. Aliás, o cônjuge marido fez referência ao casamento em (suposto) regime de comunhão quando procedeu ao registo das aquisições.

Nessas condições – isto é, se vigorasse efectivamente entre os cônjuges, como estes acreditavam, um regime de comunhão de bens – das próprias regras da comunhão resultaria o carácter comum dos prédios adquiridos a título oneroso, sem que fosse necessário que, por exemplo, a Autora figurasse como compradora na escritura. Em suma, a convicção partilhada pelos dois de que estavam casados em regime de comunhão explicaria a desnecessidade de rodear a utilização do dinheiro dos dois para aquisição de imóveis de quaisquer especiais cautelas: não era necessário celebrar qualquer mandato, mesmo que tácito, ou de figurar a Autora também como compradora, para que os bens fossem comuns.

Ora constitui abuso de direito – o qual é do conhecimento oficioso do Tribunal – a pretensão do cônjuge marido de, após quase quatro décadas de vida em comum e de economia comum como se estivessem casados em regime de comunhão, pretender agora invocar o regime da separação para ser o único proprietário formal de imóveis que foram adquiridos com dinheiro dos dois (cfr. No mesmo sentido cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/11/2006 (SILVA SALAZAR): “A reconhecer-se que o Réu tinha direito de propriedade exclusiva (e não apenas de compropriedade na proporção de metade) sobre o imóvel em causa, sempre haveria abuso de direito da sua parte, excedendo a sua actuação os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim económico do direito em causa, por pretender locupletar-se sozinho com o produto da contribuição da Autora”. Tratou-se da construção com dinheiro dos dois, na pendência de um casamente em regime imperativo de separação de bens, de uma vivenda em terreno que ambos tinham comprado, tendo o Réu formalizado a compra do terreno em escritura pública de compra e venda apenas em seu nome e registado o terreno apenas em seu nome). E não havendo bens comuns nos regimes de separação, deverá considerar-se que tais bens foram adquiridos em compropriedade pelos dois cônjuges, hoje Autora e Réu na presente acção).

O acórdão citado parte de um pressuposto que não se verifica no caso em apreço, que consiste na aquisição de um bem imóvel em nome próprio, com dinheiro que também é do outro.

No caso em apreço não resulta provado que a A. tenha contribuído para a aquisição dos imóveis referidos em 2.1.4. e 2.1.6. (este com empréstimo), tendo sido provado que as mensalidades do mesmo são pagas pelo R (ponto 2.1.15. e 2.1.16.) e aquele pago por intermédio de um cheque bancário cujos fundos foram retirados da conta movimentada pelo R. e provisionada com dinheiro a este pertencente (ponto 2.1.14.), tendo a A. intervindo na escritura na qualidade de procuradora (ponto 2.1.11.), pelo que não se vislumbra o abuso de direito[12].

            Assim, face ao exposto esta pretensão do recorrente tem de proceder.

                                               4. Decisão

Desta forma, por todo o exposto, acorda-se:

a) - Julgar procedente a pretensão do recorrente em ver alterada a matéria de facto.

b)- julgar procedente a presente apelação em ver revogada a sentença recorrida e, em consequência, revoga-se a mesma e reconhece-se que o prédio urbano sito em ... é um bem próprio do R.

Custas a cargo da recorrente (devendo ter-se presente o apoio judiciário).

Coimbra, 07/02/2017

                             Des. Pires Robalo (relator)

                                Des. Sílvia Pires (adjunta)

                             Des. Jorge Loureiro (adjunto) 


[1] -cfr. Abrantes Geraldes in “Temas Prova, II Vol. cit., p. 201).
[2]cfr. Abrantes Geraldes in “Temas de Prova”  II Vol. cit., p. 273.
[3] cfr. Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[4]cfr. Miguel Teixeira de Sousa obra citada, pág. 348.
[5]cfr. A. Varela e Pires de Lima, In Código Civil Anotado, vol. IV, 2ª ed., pág. 447 e  ainda Antunes Varela, Direito da Família, 1987, pág. 446.
[6] cfr. neste sentido Ac. Rel. do Porto, de 6/10/2000, processo n.º 1347/00, da 3.ª Secção.
[7]cfr. Ac. do S.T.J. de Lisboa, 29/04/14, processo n.º 1071/10.7TBABT.E1.S1, relatado por Gregório Silva Jesus.
[8]veja-se Antunes Varela, ob. cit., págs. 447/448 e Pereira Coelho, Curso de Direito de Família, 1986, pág. 501.
[9] cfr. Pereira Coelho, Curso de Direito de Família, 1986, pág. 478.
[10] cfr. Cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, 1966, vol. I, págs 225/226, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., vol. III, 2ª ed., págs. 347/348 e Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, págs. 231/235.
[11]cfr. Ac. do S.T.J. de Lisboa, 29/04/14, processo n.º 1071/10.7TBABT.E1.S1, onde foi relator Gregório Silva Jesus.
[12]  (cfr. Ac. Rel. do Porto de 26/6/1990, proc. n.º 012462, relator Cardoso Lopes, in www.dgsi.pt, onde se refere é irrelevante, para o caso, invocar-se a ignorância do regime legal de bens do casamento e também não pode o cônjuge invocar o abuso de direito para se lhe atribuir um direito de condomínio sobre o bem adquirido só pelo outro)