Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3755/15.4T8LRA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: FACTOS ESSENCIAIS
FACTOS COMPLEMENTARES
TESTAMENTO
REVOGAÇÃO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Data do Acordão: 09/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 5 CPC, 405, 473, 2179 CC
Sumário:
1. Recaindo sobre as partes o ónus de alegação dos factos essenciais nucleares – que individualizando o direito em causa, constituem a causa de pedir –, o poder de aditamento concedido ao juiz respeita, tão só, aqueles factos que venham complementar ou concretizar os factos alegados pela parte.
2. O tribunal não se pode socorrer de um facto novo que resulte da instrução da causa quando tal facto configure uma versão diferente e oposta à assumida pelas partes nos seus articulados.
3. Consagrando a lei a livre revogabilidade do testamento, não podem os beneficiários exigir o cumprimento da obrigação acordada com o testador como contrapartida da assistência que lhes foi e iria ser prestada.
4. Não tendo sido acordada qualquer outra forma de remuneração, a compensação pelos serviços prestados só poderia ser alcançada através da via do enriquecimento sem causa, em caso de verificação dos respetivos pressupostos.
Decisão Texto Integral:
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Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):
I – RELATÓRIO
F (…) e M (…) intentam a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra MJ (…),
pedindo a condenação da Ré:
1 - A ressarcir os autores pela responsabilidade contratual dos serviços prestados e não pagos, na quantia liquidada de €63.650,00, sendo €32.350,00 a favor da A. (…) e €28.875,00 a favor do A. (…);
2 - Quando assim se não entenda, tal quantia ser paga aos AA com base no instituto do enriquecimento sem causa;
3 - Em qualquer circunstância, nas quantias acrescidas de juros moratórios à taxa legal em vigor, desde a citação, até efetivo e integral pagamento;
4 - E, após sentença condenatória transitada, acrescidas de juros compulsórios, à taxa, legalmente, estabelecida.
Alegando, para tal e em síntese:
sendo os autores conhecidos da Ré e do seu falecido marido há largos anos (a autora foi madrinha de casamento da Ré), em outubro de 2009 a Ré o seu falecido marido contrataram os autores para lhes prestarem serviços, cuidados e assistência pessoal, para além do tratamento do gado e da exploração agrícola dos seus prédios;
os autores passaram a prestar trabalhos na casa de habitação da Ré, confecionando refeições, fazendo limpezas, realizando trabalhos agrícolas e alimentação de animais domésticos,
transportando ainda a Ré e o seu marido às compras, consultas, tratamentos médicos, etc.;
para tal apoio chegavam a pernoitar na casa de habitação da Ré e do falecido marido, assistindo-os 24 horas pelos dias da semana;
em contrapartida de tais serviços a Ré e o seu falecido marido acordaram, dada a falta de liquidez financeira ou de rendimento, como contrapartida económica, em instituí-los seus únicos sucessores e beneficiários do seu património imobiliário;
após o falecimento do seu marido a 11 de abril de 2010, em cumprimento da sua intenção e como compensação, a Ré instituiu a autora mulher como sua única e universal herdeira através de testamento lavrado perante o Notário, em 15 de novembro de 2010;
os AA. continuaram a prestar assistência à Ré conforme o acordado durante todos estes anos, até que a Ré a 10 de abril de 2015 vedou a entrada na casa à autora, proibindo os AA. de permanecerem na sua habitação, e de continuar a explorar as suas propriedades ou a tratar dos seus animais domésticos;
com esta posição abrupta e injustificada, a Ré demonstra não pretender pagar aos AA. qualquer compensação pelos serviços que lhe foram prestados desde outubro de 2009 a abril de 2015;
tais créditos traduzem-se em 28.875,00 € ao autor e em 32,350,00 € à autora (que os autores calculam multiplicando a quantia de 450,00 € por cada mês de 2009, 475,00€ por cada mês de 2010 a 2014, e 505,00 € por cada mês de 2015);
a Ré encontra-se favorecida em prejuízo dos autores na justa proporção dos serviços prestados sem qualquer correspondência financeira ou outra contrapartida, não se justificando qualquer outra circunstancia ou relação subjacente que legitime tal vantagem patrimonial.
A ré apresentou articulado de contestação/reconvenção, alegando, para tal e em síntese:
a aproximação da A. mulher à Ré e seu falecido marido ocorreu nos anos de 2008/2009, em virtude de os AA. atravessarem uma grave crise financeira e porque precisavam da ajuda da Ré e do marido;
os AA. aproximaram-se da Ré e do seu marido para que estes lhes emprestasse dinheiro para resolverem o problema de penhora de bens, e cerca de um ano e meio antes da morte do seu marido, a A. mulher pediu-lhes ainda para lhe darem guarida na sua habitação;
apenas após a morte do marido da Ré, a autora lhe pediu se o seu marido também podia ir viver na companhia de ambos, já que haviam doado a casa à filha de ambos a fim de evitar ser objeto de penhora;
a partir daí e embora fosse a autora quem confecionava as refeições, foi a Ré que os passou a alimentar, suportando o seu custo e ambos aí passaram a constituir a sua residência;
o autor marido apenas após a morte do marido da Ré passou a agricultar os terrenos mas em proveito próprio;
a Ré apenas outorgou o testamento a favor da autora mulher, por esta lhe haver prometido apoio na velhice, apoio que de imediato esqueceram, chegando uma vez a empurra-la com tal violência que em consequência da queda fissurou a coluna vertebral;
o autor transportava-a porque era a Ré quem cumpria com o pagamento da prestação mensal do veículo que adquiriu, mas com o dinheiro da Ré;
a Ré chamou a GNR com receio das ameaças do Réu, tendo os AA. marcado com a advogada o dia e a hora para procederem ao levantamento dos animais bovinos que ainda mantinham no seu terreno.
Conclui pela improcedência da ação, pedindo, em reconvenção, a condenação dos autores a restituírem à Ré as quantias recebidas a titulo de empréstimo e alegadas nos artigos 90, 91º, 92º, 93º, 94º, 95º, 99º e 101º e 103º, da contestação, no total de €28.862,29, ou caso assim não se entenda, com base no enriquecimento sem causa, sempre acrescida dos juros legais contados da notificação até efetivo e integral pagamento, tudo com as legais consequências.
Foi proferido despacho saneador a conhecer de imediato do mérito, julgando totalmente improcedentes os pedidos, considerando não ser necessária a produção de qualquer prova uma vez que os factos alegados pelos autores, ainda que fossem dados por provados não lhes permitiria obter ganho de causa.
Após prolação de Acórdão pelo Tribunal da Relação de Coimbra, a revogar o despacho saneador-sentença, ordenando a sua substituição por outro que determinasse o prosseguimento dos autos, foi proferido novo despacho-saneador a fixar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova.
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Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a:
1. Julgar a ação parcialmente procedente, por provada, e, consequentemente,
a) condenar a Ré a pagar aos Autores a quantia de €57.975,00, acrescida de juros civis legais de mora, devidos desde a data da citação da ré, calculados à taxa legal de 4% (cfr. Portaria n.º 291/03, de 08-04) e até efetivo e integral pagamento, e de juros compulsórios calculados, à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a presente sentença transitar em julgado;
b) Absolver a Ré do demais peticionado;
2. Julgar a reconvenção totalmente improcedente, por não provada.
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Inconformada com tal decisão, a Ré dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
(…)
*
Os Autores apresentaram contra-alegações, defendendo a rejeição da impugnação da matéria de facto, por inadmissibilidade legal, ou, assim não se entendendo, a improcedência do recurso.
Cumpridos que foram os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº2, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Impugnação da matéria de facto – admissibilidade
2. Se é de alterar o decidido
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
A. Matéria de facto
São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida:
1. Em Outubro de 2009, a Ré e seu falecido marido contrataram a A. mulher para lhes prestarem serviços, cuidados e, assistência pessoal, além do tratamento de gado e da exploração agrícola dos seus prédios.
2. A A. mulher, desde então, passou a prestar trabalhos na casa de habitação da Ré e do falecido marido sita na Rua (…), executando as tarefas de harmonia com as necessidades, interesses e instruções da Ré e do marido.
3. Assim, a A., designadamente, passou a confecionar, preparar as refeições e, a servi-las, à limpeza e arrumação da casa, levantar e dar medicação, de forma permanente.
4. Em Maio de 2010, a Ré e seu falecido marido contrataram o A. marido para lhes prestar serviços de tratamento de gado e da exploração agrícola dos seus prédios.
5. O A. marido passou, desde a data referida no ponto anterior a efetuar o tratamento de animais domésticos, a realizar trabalhos agrícolas nas propriedades, dado a impossibilidade física do falecido marido e, da própria Ré, em desempenhar tais tarefas.
6. Assim, passou a, designadamente, lavrar, a sachar, semear, a proceder à plantação de hortícolas, leguminosas, tubérculos, bem como à sua rega, à realização de podas, apanha da azeitona, à vindima e, alimentação de animais domésticos, como galinhas, ovelhas destinadas ao consumo.
7. O A. marido transportava, ainda, a Ré e, o marido no seu veículo automóvel a consultas, a tratamentos médicos, às compras, a repartições públicas, ou seja, onde, necessitavam e lhes determinava.
8. Os AA para prestar todo o apoio aos RR., chegavam a pernoitar na casa de habitação da Ré e, do falecido marido.
9. … assistindo-os, 24h e, pelos dias da semana.
10. Em contrapartida económica, pela prestação de tais serviços (e após o referido no ponto 31, “infra”) a Ré e o seu falecido marido, dada a sua falta de liquidez financeira ou de rendimento, prometeram aos AA, em institui-los seus únicos sucessores e beneficiários do seu património imobiliário.
11. Os AA. confiaram nesse modo de pagamento.
12. A Ré, após, o falecimento do seu marido em 11 de Abril de 2010 e, em cumprimento da sua intenção e, em 15 de Novembro de 2010 no Cartório Notarial de … perante a Notaria (…)celebrou testamento, no qual declarou instituir a Autora como sua única e universal herdeira dos seus bens perante três testemunhas.
13. Os AA, então, continuaram a cuidar, manter e a zelar pela Ré.
14. … a cuidar dos animais, a agricultar os seus terrenos para a subsistência e alimentação da Ré,
15. … o A. (…) a manter as propriedades agricultadas, com matos roçados, colher hortícolas e, leguminosas,
16. … sempre dentro das instruções conforme o convencionado entre AA e Ré e o seu falecido marido.
17. O A. marido, devido às dificuldades financeiras que atravessava, e por nada os AA. receberem da Ré, em Setembro de 2014, teve de procurar outro trabalho.
18. Enquanto, a A. continuou, em casa da Ré de forma regular.
19. No dia 10 de abril de 2015, a A. havia-se ausentado de casa da Ré, apenas, para ir a sua casa pelas 8h00.
20. Quando, regressou encontrou a porta de entrada encostada e, com a chave na porta.
21. … não se, encontrando a Ré, no seu interior.
22. Mais tarde, nesse mesmo dia, surgiu a Ré acompanhada de um advogado, e de uma patrulha da GNR do Posto Territorial de ….
23. A Ré comunicou à Autora que, a partir daquela data, estava proibida de entrar ou permanecer na sua casa de habitação
24. Mais, deveria retirar, de imediato, do seu interior os seus pertences.
25. E, mais, ficava proibida de contactar consigo.
26. Assim, como o A(…) ficava expressamente proibido de continuar a explorar as suas propriedades ou, a tratar os seus animais domésticos.
27. Face, à determinação e imposição da Ré, na presença do seu mandatário e dos agentes da GNR, a A. acabou por retirar parte dos seus objetos pessoais, do interior da residência.
28. Posteriormente, os AA tentaram contactar a Ré, afim de, obterem uma explicação plausível para a decisão, furtando-se a ré, a qualquer contacto.
29. E a Ré revogou o testamento referido em 12.
30. Para pagamento de uma divida exequenda que os AA contraíram para com D (…) e constante do proc. nº 215/09.6TBANS, em janeiro de 2011, a Ré entregou a quantia de €9.682,29 ao respetivo Agente de Execução;);
O juiz a quo procedeu ainda ao aditamento do seguinte facto, em resultado da produção de prova em audiência final, invocando o disposto no artigo 5º, nº2, al. b) do CPC:
31. Previamente ao referido no ponto 10 dos factos provados, a Ré e o seu falecido marido, como contrapartida económica da prestação dos serviços contratados aos AA, haviam acordado o pagamento, a cada um destes, do montante mensal equivalente a um ordenado mínimo nacional.
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1. Impugnação da matéria de facto
Os tribunais da Relação, sendo tribunais de segunda instância, têm atualmente competência para conhecer tanto de questões de direito, como de questões de facto.
Segundo o nº1 do artigo 662º do NCPC, a decisão proferida sobre a matéria de pode ser alterada pela Relação, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Para que o tribunal se encontre habilitado para proceder à reapreciação da prova, o artigo 640º, do CPC, impõe as seguintes condições de exercício da impugnação da matéria de facto:
1 – Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevante;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”
A impugnação da matéria de facto que tenha por fundamento a errada valoração de depoimentos gravados, deverá, assim, sob pena de rejeição, preencher os seguintes requisitos:
a) indicação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, que deverão ser enunciados na motivação do recurso e sintetizados nas conclusões;
b) indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa, sobre os pontos da matéria de facto impugnados;
c) indicação, ou transcrição, exata das passagens da gravação erradamente valoradas.
Estes requisitos visam assegurar a plena compreensão da impugnação deduzida à decisão sobre a matéria de facto, mediante a identificação concreta e precisa de quais os pontos incorretamente julgados e de quais os motivos de discordância, de modo a que se torne claro com base em que argumentação e em que elementos de prova, no entender do impugnante, se imporia decisão diversa da que foi proferida pelo tribunal.
Tais exigências surgem como uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo Cfr., António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 127., assegurando a seriedade do próprio recurso intentado pelo impugnante.
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A apelante insurge-se contra a decisão proferida relativamente à matéria de facto, alegando “opor-se em bloco a quase todos os factos provados, por o terem sido ou em sentido contrário ao apurado nas audiências, ou, embora parcialmente verdadeiros como admitiu, não permitam alicerçar, como exposto, a sentença proferida”.
Contudo, percorridas as conclusões do recurso, bem como o corpo das respetivas alegações, as únicas referências de que nos podemos socorrer para determinar quais os concretos factos sob impugnação – dentro da factualidade dada como provada sob os pontos 1 a 31 – e qual a decisão que, no entender da apelante, deveria ter sido proferida, encontram-se nos artigos 60º a 67º e 78º e 79º, do corpo das suas alegações de recurso.
Ou seja, apesar de a apelante começar por afirmar “opor-se em bloco a quase todos os factos provados”, da fundamentação das suas discordâncias apenas podemos retirar com um mínimo de segurança que a mesma se opõe à decisão de dar como provado: 1. a existência de um acordo ou “contrato” celebrado entre os AA., por um lado, e a Ré e o seu marido; 2. e os termos em que tal contrato se encontra dado como provado nos pontos 1, 2, 4 e 10, insurgindo-se claramente contra a decisão de dar como provado a ocorrência de um acordo prévio de pagamento a cada um deles do montante mensal equivalente a um ordenado mínimo mensal, como contrapartida económica da prestação dos serviços contratados aos autores, factos estes aditados pelo juiz a quo sob o ponto 31, por terem “resultado provados, no decurso da produção da prova em audiência final, nos termos do art. 5º, nº2, al. b) do CPC”.
Quanto a uma eventual impugnação dos demais factos, a Apelante limita-se a expor a sua indignação relativamente à motivação exposta relativamente à convicção do juiz a quo, nomeadamente quanto ao facto de o juiz a quo ter valorado os depoimentos de parte dos autores e das testemunhas ouvidas por indicação deste, desvalorizando por completo o depoimento de parte da Ré, pessoa humilde e idosa e as testemunhas apresentadas por esta. Perdendo-se em considerações genéricas sobre a credibilidade dos depoimentos tidos em consideração pelo tribunal e em explicações para o facto de a ré e o seu falecido marido terem recorrido ao auxílio dos autores para a execução das tarefas domésticas, tentando convencer o tribunal que a sua versão dos factos é a que se apresenta com mais lógica de acordo com as regras da experiência e a que corresponderá à verdade material, acaba por não especificar, relativamente a cada um dos factos contidos nos referidos pontos 1 a 31 da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, qual a decisão que deveria ter sido proferida relativamente a cada um deles, se um puro e simples “não provado” ou se alguma resposta restritiva ou explicativa.
Por fim, embora critique a credibilidade atribuída pelo juiz a quo às declarações de parte dos autores e ao depoimento das testemunhas indicadas por estes – também aqui de um modo genérico e sem qualquer alusão ao teor das respetivas declarações –, a apelante não adianta quais os concretos meios de prova disponíveis nos autos que imporiam decisão diversa relativamente a cada um dos restantes factos.
Ou seja, a falta de cumprimento dos ónus previstos nas als. a), b), e c) do artigo 640º do CPC, acaba por tornar totalmente incompreensível a impugnação por si deduzida à decisão sobre a matéria de facto em tudo o que ultrapasse os termos do alegado acordo celebrado entre AA. e a Ré o seu falecido marido – acordo este que terá levado a que, durante vários anos (de outubro de 2009 a abril de 2015) os autores tenham prestado assistência à Ré e ao seu marido, bem como a que a Ré tenha instituído a autora mulher como sua única e universal herdeira – deduzindo-se que, em seu entender, a existência de qualquer acordo em termos contratuais deveria ter sido dado pura e simplesmente como “não provado”.
Vai assim rejeitada, na parte restante, a impugnação deduzida à decisão proferida quanto à matéria de facto, por incumprimento dos ónus previstos no artigo 640º, nº1, alíneas a), b) e c), do CPC, limitando a reapreciação da matéria de facto a efetuar por este tribunal, aos pontos 1, 2, 4 e 10 da matéria de facto dada como provada.
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Da leitura dos articulados constata-se que as partes se encontram, no essencial, de acordo, relativamente à seguinte factualidade:
- a partir de outubro de 2009, a autora mulher terá passador a prestar assistência à Ré e do seu falecido marido, pernoitando na casa destes e, após o falecimento do marido da Ré, também o marido da autora aí passou a dormir, prestando ambos os autores (pelo menos) alguma assistência à Ré;
- foi na sequência dessa assistência e no convencimento de que a mesma se manteria que a Ré, no dia 15 de novembro de 2010, celebrou testamento a favor da autora mulher, instituindo-a sua universal herdeira, assim como, terá sido em vista desse benefício que os autores terão prestado apoio à Ré de outubro de 2009 até abril de 2015, altura em que a Ré os impediu de entrar em sua casa, prescindindo do seu apoio;
Autores e Ré divergem, apresentando teses diversas, relativamente aos exatos termos de tal acordo:
na tese dos autores, terá sido celebrado um “contrato” entre os autores, a Ré e o seu marido, segundo o qual os autores se obrigavam a prestar serviços domésticos e trabalhos agrícolas, acordando, dada a sua falta de liquidez ou de rendimento, “como contrapartida económica de tais serviços em institui-los seus únicos sucessores e beneficiários do seu património imobiliário” (cfr., arts. 8 a 16 e 17 a 21, da Petição inicial);
na tese da Ré, não terá existido qualquer “contrato” – a autora e o seu marido terão ido viver para a casa da Ré por atravessarem uma grave crise financeira, tendo doado a sua casa à filha para evitarem a sua penhora, e ainda porque pretendiam a ajuda da Ré, que lhes emprestou várias quantias em dinheiro; embora fosse a autora a confecionar as refeições era a Ré que suportava os respetivos gastos e o autor marido cultivava os prédios rústicos mas para seu próprio proveito.
Insurge-se a Apelante contra a decisão proferida pelo juiz a quo em sede de matéria de facto, com a alegação de que dá como provados quase todos os factos provados pelos AA., retirando credibilidade a todos os testemunhos perante si prestados com exceção dos depoimentos dos AA, da sua filha e uma das testemunhas que apresentou.
(…)
Analisemos, assim, os meios de prova em que se apoia a sentença recorrida para dar como provada:
1. a celebração de um contrato entre autores e a Ré e o seu falecido marido pelo qual os autores se obrigavam a aprestar assistência aos Réus no que fosse necessário, lides domésticas e na agricultura;
2. e que terão acordado como contrapartida económica pelos serviços a prestar pelos autores, o pagamento de um montante mensal a cada um destes, de um montante mensal equivalente a um ordenado mínimo nacional.
Antes de mais, há que salientar que o facto aditado pelo juiz a quo, e que veio a ser dado como provado sob o ponto 31 da sentença recorrida, não consiste num mero facto “novo” – por não alegado por qualquer das partes nos respetivos articulados – mas sim, num facto que representa uma versão diferente da configurada pelos autores, quer no requerimento inicial da presente ação, quer no da providência cautelar apensa.
Com efeito, tendo os autores no Requerimento inicial da presente ação (assim como na providência cautelar apensa que instauraram contra a aqui Ré) alegado terem acordado como contrapartida para os seus serviços virem um dia a ser compensados com os bens da requerida e do seu falecido marido, tal providência veio a ser indeferida liminarmente precisamente com fundamento em que, por um lado, “a pretensão dos requerentes virem um dia a ser compensados com os bens da requerida não tem proteção legal, por não ser judicialmente exigível, por violar norma imperativa”, e ainda que a prestação de serviços por parte dos requerentes não se traduziria num enriquecimento no património da requerida em quantia equivalente a dois salários mínimos (sentença que veio a ser confirmada pelo Tribunal da Relação).
Ou seja, quer na presente ação, quer na providência cautelar apensa (que deu entrada em tribunal cerca de 15 dias após a propositura da presente ação), os autores fazem radicar o fundamento do seu crédito sobre a Ré no incumprimento da obrigação assumida pela Ré de lhes deixar os seus bens como contrapartida da assistência que lhe vinham dando. E, a título subsidiário, para o caso de improcedência do pedido formulado a título principal, invocam então um enriquecimento injusto da Ré pelo facto de ter beneficiado da assistência que lhes foi prestada, calculando o enriquecimento por referência a um valor mensal de 450 € em 2009, 475 € em 2010, 485 € de 2011 a 2014 e de 505€ em 2015, valor esse que, de facto, corresponde ao rendimento mínimo garantido em vigor em cada um desses anos, mas sem que alguma vez aleguem ter sido acordado entre as partes o pagamento a cada um deles do equivalente a um salário mínimo mensal. Ou seja, o valor do rendimento mínimo nacional é aí invocado pelos autores como mera forma de cálculo para chegar ao valor da compensação a atribuir aos autores pelos serviços prestados e do enriquecimento injusto do réu e da sua esposa (à falta de outro critério) e não por, entre as partes, alguma vez ter sido acordado o pagamento de um salário mínimo a cada um deles.
E os autores instauram a providência cautelar mantendo a mesma versão que haviam apresentado na presente ação: a contrapartida económica acordada entre AA. e Ré (e o seu falecido marido), para a sua prestação de serviços, consistia na instituição dos aqui AA. como seus únicos herdeiros do seu património imobiliário.
Tal aditamento poderá ser encarado sobre duas perspetivas: 1. (i)licitude de tal aditamento ao abrigo do disposto no artigo 5º, nº2, al. b), do CPC; 2. A ser lícito o seu aditamento, por se tratar de um facto relevante, se o mesmo deve ser dado como “provado” ou como “não provado”.
O Código de 2013 continua a consagrar o princípio do dispositivo que implica que os factos que constituem a causa de pedir e as exceções têm de ser alegados por estas – nº1 do artigo 5º do atual CPC –, sendo que o artigo 615º, nº1, als. d) e e), continuam a fulminar com a nulidade a sentença que conheça de questões de que não podia tomar conhecimento ou condene em pedido diverso do deduzido Maria França Gouveia, “O Princípio Dispositivo e a Alegação de Factos em Processo Civil: a incessante procura da flexibilidade processual”, p.604, estudo disponível in http://www.oa.pt/upl/%7Bede93150-b3ab-4e3d-baa3-34dd7e85a6ef%7D.pdf. .
Recaindo sobre as partes o ónus da alegação dos factos essenciais Segundo Paulo Pimenta a formulação do artigo 5º do CPC assenta na dicotomia de duas categorias de factos: os essenciais, isto é, aqueles de cuja verificação depende a procedência das pretensões deduzidas, e os instrumentais, ou seja, aqueles que permitem a prova indiciária dos factos essenciais – “Ónus de Alegação e de Impugnação das Partes e Poderes de Cognição do Tribunal”, in II Colóquio de Processo Civil de Santo Tirso”, Coord. Paulo Pimenta, p. 93. Dentro dos factos essenciais, a doutrina distingue ainda os que, identificando ou individualizando o direito em causa, constituem a causa de pedir (os factos essenciais nucleares) e aqueles que, não desempenhando tal função, se revelam, contudo, imprescindíveis para que a ação proceda, por também serem constitutivos do direito invocado (factos essenciais complementares) – António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina, p. 27. que constituem a causa ou causas de pedir ou que se baseiam as exceções invocadas – nº1 do artigo 5º CPC – para além destes, poderão ser considerados pelo juiz: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa (também estes essenciais), desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar.
Mantendo-se o efeito preclusivo quanto aos factos principais que integrem a causa de pedir (factos essenciais nucleares), que tem de ser alegados nos articulados – a sua não alegação inicial impede a posterior alegação –, momento da fixação do objeto do processo, com a consequente inadmissibilidade da sua alteração.
Os factos principais (ou essenciais) que não alterem o objeto do processo – factos complementares ou concretizadores – podem também ser alegados até ao fim do julgamento Segundo Paulo Pimenta o teor da al. b), do nº2 do artigo 5º revela que não há preclusão quanto a factos que sejam complementares ou concretizadores de outros inicialmente alegados, factos que, embora necessários para a procedência das pretensões deduzidas (daí serem, também eles, essenciais), não cumprem uma função individualizadora do tipo legal – “Ónus de Alegação e Impugnação (…)”, local citado, p. 93., podendo, inclusivamente vir a ser apreciados oficiosamente pelo juiz, desde que, relativamente aos mesmos seja cumprido o contraditório Paulo Pimenta, artigo e local citados, p.94..
Para Mariana França Gouveia Artigo citado, p. 616., não há alteração da causa de pedir sempre que estes factos principais tenham com os factos principais inicialmente alegados pelo menos uma identidade parcial, o que significa que os factos principais alegados na petição inicial e na contestação têm uma função não de preclusão absoluta de alteração, mas de delimitação do âmbito possível da posterior alteração.
Alegando os autores na petição inicial que “Em Outubro de 2009, a Ré e o seu falecido marido (…) contrataram os AA. para lhes prestarem serviços, cuidados e assistência pessoal, além do tratamento de gado e da exploração agrícola dos seus prédios” e que “Em contrapartida de tais serviços, a Ré e o seu falecido marido acordaram, dada a falta de liquidez financeira ou de rendimento, como contrapartida económica, em instituí-los seus únicos sucessores e beneficiários do seu património imobiliário( artigos 8º e seguintes e 17º e ss., cujos factos são articulados sob a epígrafe “b) Da prestação de serviços e respetiva contrapartida” e “c) Do pagamento dos serviços prestados”.
Face à versão dos factos trazida aos autos pelos autores, os factos aditados pelo juiz a quo sob o ponto 31 configuram uma versão distinta e oposta – acrescentando precisamente um facto que, na providência cautelar, o tribunal considerou não ter sido alegado (que as partes tivessem acordado uma concreta remuneração mensal) e que, em seu entender, importaria a improcedência da pretensão dos autores –, versão esta que não encontra qualquer apoio no Requerimento Inicial da presente ação (nem no Requerimento Inicial da providência cautelar apensa).
Contudo, tal facto não foi alegado pelos autores (de que teria sido acordado o pagamento de uma remuneração mensal equivalente ao salário mínimo nacional) porquanto, na tese que trazem aos autos no seu requerimento inicial, não foi assim que as coisas se passaram: segundo o contrato celebrado entre os autores e a Ré e o seu marido, a contrapartida acordada para os serviços a prestar pelos autores seria os réus virem a deixar-lhes todos os seus bens.
Ouvidos em depoimento de parte, o autor marido e a autora mulher vieram na audiência final dizer que, afinal, não teria sido bem assim: “inicialmente” teriam acordado a fixação de um salário mínimo para cada um e que só mais tarde (em momento que também acabam por não concretizar) é que, face às dificuldades da ré e do seu marido em cumprir, é que teriam acordado em que a contrapartida dos seus serviços seria instituir os autores como herdeiros dos seus bens. Com tal alegação, os autores trazem um novo e distinto fundamento para a sua pretensão de virem a ser remunerados pelos serviços prestados: a existência de um acordo prévio de que seriam remunerados através do pagamento mensal de um salário mínimo para cada um. Tal acordo não só extravasa a causa de pedir invocada na petição inicial como, de certo modo, é contraditório com o acordo que, na petição inicial, os autores alegam ter sido celebrado entre os AA. e a Ré e o seu marido.
O poder de aditamento de factos concedido ao juiz respeita aos factos principais que as partes não tenham alegado nos articulados mas que venham complementar ou concretizar os factos por ela alegados Os factos complementares são completadores de uma causa de pedir (ou de uma exceção) complexa, isto é de uma causa petendi (ou de uma exceptio) aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros constitutivos do seu núcleo complementar; os factos concretizadores são mais específicos, são os que concretizam uma questão fáctica apurada, pormenorizando, minuciando ou particularizando os factos anteriormente alegados – José António Cacete, “O princípio Dispositivo e a Aquisição dos Factos no Processo Civil, in Balanço do Novo Processo Civil, Ebook do CEJ p. 87-88, http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Balanco_NPCivil.pdf. .
Aqui não podemos falar de um facto complementar ou concretizador da causa de pedir, mas de uma alteração do circunstancialismo factual que rodeou a prestação de serviços tal como se acha narrada na petição inicial, segundo a qual a contrapartida acordada para os seus serviços terá sido outra que não a por si alegada no artigo 17º da petição inicial.
Como sustenta Salazar Casanova “Poderes de Cognição do Juiz em Matéria de Facto”, in Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2014-I, p. 9 a 11., a noção de facto concretizador ou a de facto complementar parece pressupor uma situação de insuficiência de alegação. No que respeita aos factos concretizadores e complementares, estes referenciam-se a factos alegados – é sempre por referência aos factos alegados que importa atender para se considerar que o novo facto revelado na instrução da causa deve ser admissível enquanto facto concretizador ou complementar.
No caso em apreço não nos encontramos perante qualquer insuficiência de alegação, a colmatar com o aditamento de factos complementares ou concretizadores, mas perante a introdução de um facto que importa uma versão dos factos diferente e, diríamos, mesmo, contrária à consubstanciada no requerimento inicial.
Os factos complementares ou concretizadores Paulo Pimenta dá como ex. de facto “essencial nuclear”, numa ação pauliana, o facto relativo à alienação geradora da diminuição da garantia patrimonial, sendo “essenciais complementares” os factos relativos à natureza não pessoal do ato, à data da constituição do crédito, à impossibilidade de obter a satisfação do crédito (ou o seu agravamento) e à má-fé dos intervenientes, sendo onerosa a alienação; como factos “essenciais concretizadores” numa ação pauliana, dá o exemplo se ter alegado que o crédito é anterior ao negócio impugnado, mas sem explicitação da data – “Os Temas da Prova”, p. 43, notas 45 e 46, disponível in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Texto_comunicacao_Paulo_Pimenta.pdf. são aqueles que completam uma causa de pedir complexa, ou que, sendo simples acabem por ser integrados por vários factos concretos, não englobando a possibilidade de alegação de factos que contrariem a versão trazida aos autos pela parte nos respetivos articulados.
Assim sendo, o conhecimento de tal facto integraria uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia, por se tratar de uma questão (de facto) de que não podia tomar conhecimento, nos termos da al. b), nº1 do artigo 615º do CPC, o que importaria a sua eliminação do elenco dos factos apreciados pelo juiz para o efeito de o dar como provado ou como “não provado”.
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De qualquer modo, e ainda que se considerasse admissível o seu “aditamento” ao abrigo do disposto no artigo 5º, nº2, al. b), do CPC, tal facto não poderia ser tido em consideração pelo tribunal porquanto, embora o mesmo tenha de facto sido objeto de instrução, tendo sido trazido à discussão pelo teor do depoimento dos autores, em nosso entender, a prova produzida nos presentes autos não é de molde a dá-lo como “provado Como salienta J. F. Salazar Casanova, o juízo sobre a admissibilidade dos factos é prévio e indiferente ao juízo de prova sobre esses mesmos factos: se o tribunal entender que um facto revelado durante a instrução da causa não é admissível, não pode obviamente declará-lo provado ainda que sobre ele haja incidido prova – designadamente a que o revelou – que levaria a considera-lo provado – “Poderes de cognição do juiz em matéria de facto”, Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2014 – I, p.15., passando-se assim, à análise da 2ª questão que nos suscita tal aditamento.
É certo que, ouvidos na íntegra os depoimentos do autor marido e da autora mulher prestados na audiência final, temos de reconhecer que ambos afirmam que a Ré e o seu marido começaram por acordar em lhes pagar o salário mínimo e que, só depois, por dificuldades económicas, tal contrapartida terá sido substituída pela instituição da A. como herdeira.
Contudo, o facto de, só agora, o virem dizer, alterando a sua versão inicial dos factos (depois de, com a decisão proferida na providência cautelar, terem tomado consciência de que o facto que veio a ser aditado os poderia beneficiar na presente ação Reproduzindo-se aqui o seguinte trecho do acórdão da Relação de Coimbra que aí veio a confirmar o indeferimento liminar da providência cautelar, que terá levado os autores a, na pendência da ação e aquando a sua audição em depoimento de parte, alterarem a sua versão dos factos: “Porém, a dificuldade em entender que retribuição foi acordada consiste em os requerentes expressamente referirem que não foi estipulada qualquer importância, mensal ou periódica, fixa ou variável, dizendo tão só que a requerida com o seu marido, se haviam comprometido a deixar os seus bens” aos requerentes e que em 11 de abril de 2010, a requerida propôs aos Requerentes como compensação financeira da sua assistência permanente, instituir a Requerente como sua única herdeira, por testamento. (…) Neste contexto continua a ser necessário perguntar qual seria, afinal, a remuneração pela prestação de serviços já que, com a instituição da requerente, e apenas da requerente, como herdeira universal da requerida, parece resultar que os serviços prestados pelo requerente não teriam remuneração. Não tendo, por exemplo, sido convencionado que os requerentes ficariam com o valor das reformas recebidas pela requerida e seu marido como contrapartida (mesmo que parcial) dos serviços prestados, tem muito mais sentido e articula-se melhor com o que, com tanta reserva e quase contradição, é alegado pelos requerentes, entender que não foi acordada qualquer contraprestação pelos serviços prestados, deixando-se apenas firmada “a ideia obrigacionista” de que os serviços que os requerentes prestariam não seriam gratuitos mas o seu pagamento seria feito apenas quando a requerida morresse, ficando para a requerida os bens da herança” – fls. 6 e 7 do Acórdão da Relação que veio a confirmar o indeferimento liminar da providencia cautelar apensa. ) constitui um sério indício de que tal facto não será verdadeiro: se os autores e a Ré efetivamente tivessem começado por acordar como contrapartida de tais serviços o pagamento de uma quantia mensal equivalente a um sálio mínimo para cada um, por que motivo não o alegaram, desde logo, quer nos presentes autos quer na providência cautelar?
E, se foi acordado o pagamento de um salário mínimo para cada um, por que motivo tal pagamento viria a ser substituído, não pela deixa de bens a cada um dos membros casal, mas unicamente pela instituição da autora mulher como herdeira?
Por outro lado, não só nenhum indício encontramos nos autos que possa corroborar a ocorrência do tal acordo prévio, como os poucos elementos de prova de que dispomos apontam precisamente no sentido oposto.
(…)
Assim sendo, e na procedência parcial da impugnação deduzida pela Ré à decisão proferida quanto à matéria de facto, introduzem-se as seguintes alterações à redação dada aos pontos 1, 2 e 4 e 10, da matéria de facto dada com provada:
1. Em outubro de 2010, a ré e o seu falecido marido acordaram com a Ré mulher que esta lhe prestaria serviços, cuidados e assistência pessoal, além do tratamento do gado e da exploração agrícola dos seus prédios;
2. A A. mulher, desde então, passou a prestar trabalhos na casa de habitação da Ré do falecido marido sita na Rua …, executando as tarefas que se afigurassem necessárias.
4. Em maio de 2010, a Ré Nesta data o marido da Ré havia já falecido, como salienta a apelante nas suas alegações de recurso. acordou com o autor marido que este a auxiliava no tratamento do gado e na exploração agrícola dos seus prédios.
10. Em contrapartida económica pela prestação de tais serviços a Ré (eliminado) e o seu falecido marido (eliminado) prometeram aos autores instituir a autora como sua única sucessora e beneficiária do seu património imobiliário.
Mais se determina a eliminação do ponto 31. da matéria de facto dada como provada, matéria essa que consideramos como “não provada”:
Previamente ao referido no ponto 10 dos factos provados, a Ré e o seu falecido marido, como contrapartida económica da prestação dos serviços contratados aos AA. haviam acordado o pagamento, a cada um destes, do montante mensal equivalente a um ordenado mínimo nacional”.
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B. O Direito
2. Obrigação da Ré de pagamento dos valores peticionados pelos autores – com base no contrato ou com fundamento no enriquecimento sem causa
Os autores intentam a presente ação pela qual pedem a condenação da Ré no pagamento ao autor marido da quantia de 28.875,00 € e na quantia de 32.500,00 € à autora mulher, pelo pagamento dos serviços domésticos e trabalhos agrícolas que prestaram àquela (e ao seu falecido marido), invocando como causa de pedir:
- a título principal, a celebração de um contrato de prestação de serviços pelo qual se obrigavam a prestar-lhe toda a assistência que estes necessitassem e sob as suas ordens e instruções, tendo ainda acordado, face à falta de liquidez da Ré e do seu falecido marido, como contrapartida de tais serviços, que os mesmos lhes deixariam todos os bens; prescindindo dos seus serviços e revogando o testamento celebrado a favor da autora e pelo qual a instituía sua única herdeira, a Ré teria incorrido no incumprimento definitivo do contratado entre ambos, tendo direito a ser remunerada pelos serviços por prestados no âmbito de tal contrato;
- a título subsidiário, porquanto, a sua posição abrupta e injustificada, demonstra não pretender pagar aos autores qualquer compensação pelos serviços prestados pelo autores desde outubro de 2009 a abril de 2015, ficando assim locupletada e o seu património enriquecido à custa do empobrecimento do património dos autores.
Num caso e no outro, procedem ao cálculo do valor dos serviços por si prestados, bem como ao cálculo do enriquecimento da Ré e do seu empobrecimento, a partir do valor correspondente ao rendimento mínimo garantido em vigor à data dos factos.
A sentença recorrida, vindo a dar como provado a celebração de um contrato de prestação de serviços e que autores e ré (e seu falecido marido) teriam acordado como contrapartida para os serviços da Ré o pagamento de um salário mínimo mensal a cada um deles – facto este que aditou à matéria de facto invocando o artigo 5º, nº2, al. b), CPC, dando-o como provado sob o ponto 31 –, condenou a Ré no pagamento aos autores dos valores respeitantes aos meses de outubro de 2009 a abril de 2015, no montante de 57.975,00 €.
Quanto ao pedido reconvencional, considerando a sentença recorrida que a Ré não logrou provar que a entrega dos 9.682,29 €, ao agente de execução para pagamento da dívida exequenda na execução onde a autora era executada, tenha sido feita a título de empréstimo, afastada fica a pretensão da Ré à sua devolução, seja com recurso à figura da sub-rogação – por falta de prova de que o tenha feito com um interesse direto no cumprimento –, seja mediante a via do enriquecimento sem causa – por ausência de prova de falta de causa justificativa.
Insurge-se a Ré apelante contra o decidido, quer em sede de impugnação da matéria de facto dada como provada – pretensão que já foi objeto de apreciação por parte deste tribunal e que foi julgada parcialmente procedente –, quer alegando nunca ter pretendido aproveitar-se do trabalho alheio, nunca lhes tendo pedido um cêntimo do que lhes entregou a vários títulos, tendo sido os AA. quem planearam e executaram este complexo plano de enriquecimento à sua custa.
Pugna assim, pela revogação da sentença recorrida e sua substituição por outra que decrete a improcedência da ação e a procedência da reconvenção.
No seguimento do exposto na sentença e acórdãos proferidos na providencia cautelar apensa, e que corresponde ao nosso entendimento sobre tal questão, se as partes na celebração de contratos, ao abrigo do princípio da liberdade contratual consagrado no artigo nº 405º do Código Civil (CC), gozam de ampla liberdade na fixação do conteúdo dos contratos e das respetivas clausulas, a extensão da liberdade contratual tem vindo a ser objeto de restrições cada vez mais apertadas de modo à sua articulação com o principio da igualdade das partes Ana Prata, Código Civil Anotado, Vol. I, Almedina 2017, Coord. Ana Prata, pp.505 e 506..
A preocupação de proteger a parte mais fraca, subjacente à imposição de limites à liberdade formal das partes, leva o legislador à previsão de normas imperativas como é o caso do artigo 2311º do CC, segundo o qual o testador não pode renunciar à faculdade de revogar, no todo ou em parte o seu testamento, tendo-se por não escrita a cláusula que contrarie a faculdade de revogação.
A essência do testamento é a sua livre revogabilidade, o que faz com que este seja sempre um ato de ultima vontade e que os sucessíveis testamentários não tenham qualquer garantia de virem a suceder, pois até ao momento da morte o testamento pode ser alterado por via de uma revogação Cristina Pimenta Coelho, Código Civil Anotado, II Vol. Almedina 2017, Coord. Ana Prata, pp.1159..
A caraterística da sua livre revogabilidade resultava já da própria noção de testamento prevista no artigo 2179º Cristina Araújo Dias, Código Civil Anotado, Livro V, Direito das Sucessões, Almedina 2018, p.482. .
Não podendo a parte renunciar à sua vontade de revogar o testamento, não podem os autores exigir da Ré o cumprimento da obrigação acordada entre ambos como contrapartida para a assistência prestada aos autores.
E será que os autores poderão ainda sustentar a sua pretensão a uma indemnização pelo esforço e tempo que despenderam com a Ré mediante a invocação do instituto do enriquecimento sem causa?
Antes de mais, o princípio da proibição do enriquecimento sem causa previsto no artigo 473º do CC, pressupõe, em primeiro lugar, que ocorra um enriquecimento do devedor.
Contudo, no caso em apreço, não se descortina um claro enriquecimento da Ré ao aceitar a assistência dos autores, sendo certo que dos factos dados como provados resulta que a autora mulher e o autor marido viviam de facto em casa da Ré, onde teriam os seus pertences, cultivavam os terrenos desta, com a inerente poupança de despesas da sua parte, tendo ainda sido dado como provado que, pelo menos uma vez, a Ré lhes deu uma ajuda considerável ao proceder ao pagamento de uma dívida da autora no montante de 9.682,29 €, que se encontrava em cobrança no âmbito de uma ação executiva, evitando assim a penhora e venda de bens dos autores. E a haver enriquecimento também não se nos afigura que o mesmo fosse sem justa causa – a existência de relações de amizade e quase familiares que os uniam (a autora foi madrinha de casamento da Ré e esta e o seu marido não tinham filhos).
Também não reconhecemos a existência de qualquer empobrecimento por parte dos autores, sendo que os mesmos nem sequer alegaram que se não estivessem a dar apoio à autora estariam empregados num outro lado qualquer, sendo certo que se provou que o Réu a certa altura terá procurado trabalho deixando de dar apoio regular à autora.
Por fim, sempre diremos que, alegando os autores terem acordado com a Ré que, por esta e o seu marido não possuírem liquidez financeira para procederem ao pagamento de uma quantia mensal aos autores, viriam a receber os bens desta à sua morte, virem agora pedir – quando esta revogou o testamento dentro de um direito alienável que lhe é concedido por lei –, com retroativos, o valor correspondente a um salário mínimo nacional, para cada um, tal pretensão sempre surgiria como manifestamente excessiva e contrária aos ditames da boa-fé.
Concluímos, assim, não terem o direito à compensação pretendida pelo tempo e esforço despendido no apoio que prestaram à Ré e ao seu falecido marido, quer com base em incumprimento contratual, quer com base no enriquecimento sem causa.
Quanto à pretensão da Ré a ser-lhe devolvida a quantia de 9.682,29 € (e respetivos juros) correspondente ao montante que despendeu para proceder ao pagamento da quantia exequenda de que a autora mulher era devedora também não tem qualquer cabimento legal, quer com base no enriquecimento sem causa – tal pagamento terá sido efetuado como uma liberalidade, perfeitamente justificada à data em que ocorreu, em que autores e ré ainda se davam bem e esta tinha como vantagem correspetiva o apoio que recebia dos mesmos, constituindo como que uma compensação por esse mesmo apoio.
A apelação será de proceder unicamente na parte em que respeita à ação principal, improcedendo quanto à reconvenção.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se a decisão recorrida quanto à ação principal que se julga totalmente improcedente, absolvendo a Ré dos pedidos contra si formulados, confirmando-se, no mais, o juízo de improcedência da reconvenção.
Custas a suportar, quanto à ação principal pelos autores/apelados, e quanto ao pedido reconvencional, pela Apelante/Ré, quer na 1ª instância quer em sede de recurso.
Coimbra, 25 de setembro de 2018


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. Recaindo sobre as partes o ónus de alegação dos factos essenciais nucleares – que individualizando o direito em causa, constituem a causa de pedir –, o poder de aditamento concedido ao juiz respeita, tão só, aqueles factos que venham complementar ou concretizar os factos alegados pela parte.
2. O tribunal não se pode socorrer de um facto novo que resulte da instrução da causa quando tal facto configure uma versão diferente e oposta à assumida pelas partes nos seus articulados.
3. Consagrando a lei a livre revogabilidade do testamento, não podem os beneficiários exigir o cumprimento da obrigação acordada com o testador como contrapartida da assistência que lhes foi e iria ser prestada.
4. Não tendo sido acordada qualquer outra forma de remuneração, a compensação pelos serviços prestados só poderia ser alcançada através da via do enriquecimento sem causa, em caso de verificação dos respetivos pressupostos.

Maria João Areias ( Relatora )
Alberto Ruço
Vítor Amaral