Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6/11.4TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO
RETRIBUIÇÃO
Data do Acordão: 03/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. CENTRAL - SEC.COMÉRCIO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 235, 239 CIRE, 264, 265 CT
Sumário: 1. Na determinação do montante tido por razoavelmente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, para efeitos de exoneração do passivo restante [art.º 239°, n.º 3, b) - i), do CIRE], importa ter presente que se as dívidas são perdoadas ao devedor isso constitui um sacrifício imposto pelo Estado aos credores, e deverá implicar, da parte do devedor, sacrifício proporcional às suas capacidades económicas - só há justificação para se aceder a este benefício se houver uma contrapartida meritória assente na assunção de uma vida pautada pela privação e poupança possíveis a favor dos credores durante cinco anos.
2. As componentes retributivas relativas à isenção de horário de trabalho e à remuneração das férias e respectivo subsídio (art.ºs 264º e 265º, do Código do Trabalho Código) integram o rendimento ou proventos do devedor a considerar nos termos e para os efeitos do art.º 239º, do CIRE.
Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

 I. F (…) apresentou-se à insolvência, aduzindo os factos correspondentes e requerendo, além do mais, a exoneração do passivo restante, nos termos do disposto nos art.ºs 235º e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas/CIRE[1] (aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18.3).

Em 31.5.2011, o tribunal recorrido admitiu liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante, uma vez observadas as condições previstas no art.º 239º, e declarou que durante os cinco anos seguintes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível do devedor considera-se cedido à fiduciária.

Declarado o encerramento do processo, com a menção de que “os autos não podem ser remetidos para o arquivo antes de findo o período da cessão”, verificou-se, depois, que, na decisão que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, não fora fixado o montante a excluir do rendimento disponível do devedor, nos termos do art. 239º, n.º 3.

No âmbito das diligências visando o suprimento de tal omissão, a Administradora da Insolvência entendeu dever ser excluído do rendimento disponível o equivalente a 2,75 x SMN; os credores pugnaram pela fixação de montante não superior a dois salários mínimos nacionais; e o insolvente veio pugnar pela exclusão de três salários mínimos nacionais, para além dos montantes recebidos a título de isenção de horário e subsídio de férias.

O Tribunal a quo, por decisão de 27.3.2014, para efeitos do disposto no art.º 239º, n.º 3, alínea b), determinou as seguintes exclusões no rendimento do insolvente a ceder ao fiduciário: a) o equivalente mensal a dois salários mínimos nacionais; b) metade das despesas médicas e medicamentosas comprovadamente suportadas com a filha menor do insolvente.

Inconformado, pugnando pelo integral deferimento do pedido, o insolvente interpôs o presente recurso de apelação formulando as seguintes conclusões:

1ª - Ao sustentar a decisão sobre o rendimento indisponível na capacidade de ganho da companheira do recorrente para afastar, parcialmente, as despesas que este tem com a sua filha menor, o Mmo. Tribunal a quo decidiu mal, com violação do disposto nos art.ºs 1º e 239º, n.º 3, do CIRE, 2º, 3º e 4º, do CPC e 13º, 20º, 202º e 2º, da CRP.

2ª - Consequentemente, ao determinar o montante com o qual o recorrente fica disponível para, entre outras, pagar as despesas com alimentos devidos à sua filha, com recurso não à efectiva capacidade financeira da sua companheira, coobrigada nos alimentos mas sim com recurso à sua putativa capacidade potencial de ganho, violou, entre outros, os art.ºs 36º, n.º 5, 68º, 69º, 73º, 74º e 78º, da CRP.

3ª - A sentença recorrida vai ferida de nulidade, nos termos do art.º 615º, n.º 1, alínea c), do CPC, na medida em que um dos fundamentos da decisão, a 'capacidade financeira de pagar os encargos presumidos com o patrocínio forense', a ser verdadeiro, só ocorreria após a definição do rendimento indisponível, o qual foi definido com recurso a este fundamento - há um manifesto erro de raciocínio, na medida em que a conclusão é simultaneamente o facto do qual ela se extrai.

4ª - Aceitar a valoração em prejuízo do recorrente do facto de ter advogado constituído, aceitando em alternativa (ou ainda) a conclusão que se deve impedir o patrocínio forense através da apreensão de rendimentos que o permitam pagar, forçando o patrocinado a optar pela sua alimentação e pagamento de outras necessidades essenciais ou pagar a um advogado é manifestamente ofensivo dos art.ºs 40º e ss CPC, e art.ºs 2º, 208º e 20º, da CRP.

5ª - Deverá expressamente excluir-se a compensação por isenção de horário de trabalho do rendimento disponível, uma vez que não se trata de verdadeiro rendimento, outrossim de uma compensação de natureza pecuniária, cujo objectivo é permitir ao trabalhador atenuar os efeitos na vida pessoal e familiar decorrentes da obrigação de estar permanentemente disponível e em contacto, incluindo nas férias e épocas festivas.

6ª - O direito a férias pagas é um direito com assento constitucional, cf. art.º 59º, n.º 1, al. d), da CRP, pelo que a cessão de créditos que ofenda o seu gozo, por cinco anos, será sempre inconstitucional por violar esta norma!

Não foi apresentada resposta à alegação de recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo (delimitativo do objecto do recurso), coloca-se, sobretudo, a questão de saber se o Tribunal recorrido fixou adequadamente o “rendimento disponível” e se o fez respeitando o quadro normativo vigente.

*

II. 1. Para a decisão do recurso releva o que decorre do precedente “relatório” e a seguinte factualidade:

A) O Tribunal recorrido considerou “relevantes os seguintes factos”:

a) O insolvente vive com uma companheira e a filha comum de ambos, ainda bebé, numa casa arrendada, mediante pagamento de uma renda mensal de € 300.

b) A companheira do insolvente trabalha a tempo parcial, auferindo o vencimento mensal ilíquido de € 250.

c) O agregado do insolvente paga € 128 mensais pela frequência da filha na creche.

d) Suporta mensalmente despesas com água canalizada, electricidade, gás, num total mensal que ronda os € 130.

e) E ainda as despesas de condomínio, no montante de € 20 mensais, bem como despesas em alimentação, higiene, medicamentos, vestuário e calçado.

f) O insolvente aufere o vencimento mensal ilíquido de € 960, a que acresce o valor de € 240 de isenção de horário.

g) O insolvente suporta ainda despesas de combustível para se deslocar entre o seu local de trabalho e casa, em montante não concretamente apurado mas não superior a € 160 mensais.

B) Importa atentar ainda na seguinte factualidade[2]

a) Em 03.01.2011, o requerente/insolvente, nascido a 23.02.1979, instaurou o presente processo e requereu a declaração do seu estado de insolvência.

b) Foi declarado insolvente por sentença proferida em 02.02.2011.

c) Foi apreendida para a massa insolvente uma fracção autónoma com o valor patrimonial de € 100 865,75.

d) Figuram na “relação provisória de créditos”, entre outros, os credores (…) com os montantes (créditos de natureza “comum”, sendo o segundo parcialmente “garantido”) de, respectivamente, € 9 136,89; € 159 922,65; € 29 137,73; € 5 270,53; € 17 374,03 e € 30 642,14.

2. Tendo em consideração o descrito factualismo, o regime jurídico aplicável e a posição que vemos defendida na Jurisprudência, pensamos, salvo o devido respeito por opinião em contrário, que a situação dos autos não reclama solução diversa da encontrada na decisão recorrida.

3. O regime da exoneração do passivo restante, instituído nos art.ºs 235º e seguintes, específico da insolvência das pessoas singulares, é um instituto novo, ‘tributário da ideia de fresh start’, sendo o seu objectivo final a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, «aprendida a lição», este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua actividade económica[3].

Com a publicação do CIRE, o legislador explicitou a finalidade do instituto de exoneração do passivo, referindo: O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência (…) é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».

O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.

A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos — designado período da cessão — ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (…), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.

A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.[4]

Assim, não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante[5], o juiz proferirá despacho inicial (art.º 239º, nºs 1 e 2) determinando que, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência (o período da cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, o fiduciário, para os fins do art.º 241º, entre os quais, a remuneração e despesas do fiduciário e a distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.

4. Preceitua-se no art.º 239º: Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial (…) (n.º 1). O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário (…) nos termos e para os efeitos do artigo seguinte (n.º 2). Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: (…) b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional (n.º 3).

5. À semelhança de outras situações submetidas a reapreciação da 2ª instância, na dilucidação do caso vertente releva, principalmente, a interpretação a dar à citada subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do art.º 239º.

Aquele normativo corporiza “uma solução valoradora de um conflito de interesses”, assumindo o direito a sua dimensão/função normativa de tutela e realização de interesses sociais, pelo que, também aqui, se deverá partir de uma interpretação teleológica visando uma juridicamente correcta ponderação de interesses socialmente afirmados e socialmente conflituantes[6], no contexto do ordenamento jurídico vigente e da realidade social e económica do País.

Ademais, “o objecto problemático da interpretação jurídica não é a norma como objectivização cultural (…), mas o caso decidendo, o concreto problema prático que convoca normativo-interpretativamente a norma com seu critério judicativo (…), o que significa, evidentemente, que é o caso e não a norma o prius problemático-intencional e metódico”.[7]

6. Tem-se entendido, na jurisprudência, que o sentido da norma é o de que o valor correspondente ao "sustento minimamente digno" em determinado caso concreto será fixado, em regra, até 3 vezes o salário mínimo nacional/retribuição mínima mensal garantida, e que, se a intenção do legislador fosse a de estabelecer um montante fixo (critério objectivo), tê-lo-ia dito de uma forma simples e directa, sendo que a expressão “do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno” (conceito aberto/indeterminado) aponta para a necessidade de efectuar uma ponderação das circunstâncias do caso e dos interesses em presença tendo em vista o montante a fixar.

Assim, há que concluir que na exclusão prevista na subalínea i) da al. b) do n.º 3 do art.º 239º o legislador estabeleceu, primeiro, um limite mínimo por referência a um critério geral e abstracto (o razoavelmente necessário ao sustento minimamente condigno do devedor e seu agregado familiar), a preencher pelo aplicador em cada caso concreto, conforme as circunstâncias peculiares do devedor; depois, estabeleceu um limite máximo por referência a um critério quantificável objectivamente (o equivalente a três salários mínimos nacionais), sendo certo que este limite máximo pode ser excedido em casos justificados, mas excepcionais.[8]

7. Tendo em conta a unidade do sistema jurídico, não nos parece, que possamos afirmar que o legislador, quando [normalmente, com uma periodicidade anual], fixa o montante do salário mínimo nacional, considera e avalia o montante que fixa como 1/3 do montante necessário a um sustento minimamente digno.

E, como é óbvio, “sustento minimamente digno” não se confunde com mínimo de sobrevivência, sendo que existe igualmente no ordenamento jurídico, num patamar inferior ao do salário mínimo, como critério orientador ou apontando para um tal limite mínimo de sobrevivência, o rendimento social de inserção[9].

Deve, pois, interpretar-se o art.º 239º, n.º 3, b) - i) no sentido de que a exclusão aí prevista tem como limite mínimo o que seja razoavelmente necessário para garantir e salvaguardar o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar e como limite máximo o valor equivalente ao triplo do salário mínimo nacional (valor máximo que poderá ser excedido em casos excepcionais, devidamente fundamentados).[10]

8. O estabelecimento de um salário mínimo, bem como a sua actualização, é a expressão de que a retribuição do trabalho deve garantir uma existência condigna, um mínimo de existência socialmente adequado, ou seja, deve assegurar não apenas o mínimo vital mas também condições de vida, individuais e familiares, compatíveis com o nível de vida exigível em cada etapa do desenvolvimento económico e social (cf. art.º 59º, n.ºs 1, alínea a) e 2, alínea a), da CRP).[11]

O salário mínimo deverá assegurar o mínimo necessário a uma sobrevivência humanamente digna.[12]

9. No caso em análise, o “sustento minimamente digno” do devedor ficou traduzido no equivalente mensal a dois salários mínimos nacionais, acrescido de metade das despesas médicas e medicamentosas comprovadamente suportadas com a filha menor do insolvente.

10. Retomando o aduzido em II. 3., supra, a exoneração do passivo restante corresponde à concessão de um benefício aos insolventes, pessoas singulares, traduzido num perdão de dívidas, exonerando-os dos seus débitos com a perda, para os credores, dos seus correspectivos créditos, pelo que o interesse destes credores interligar-se-á com o benefício que o devedor vai obter, salvaguardado um valor equilibrado para o devedor ter um sustento minimamente digno.

Na data em que se apresentou à insolvência, o recorrente recebia os valores indicados em II. 1. A), supra.

O Tribunal recorrido, na determinação do montante a excluir do rendimento disponível, considerou, nomeadamente:

- o equivalente a dois salários mínimos nacionais será suficiente para acautelar a sua sobrevivência, sem pôr em causa as necessidades básicas do seu agregado, em condições mínimas de dignidade, não se lhe atribuindo quantia superior a essa sob pena de subverter as finalidades visadas com o presente incidente, na perspectiva dos credores insatisfeitos;

- "No período da cessão os insolventes têm também de ter contenção nos seus gastos, o que poderá implicar alguns sacrifícios, de outro modo, nada sobrando para pagar aos credores, estaríamos perante um verdadeiro perdão de dívida em que os credores ficam prejudicados e os insolventes continuariam a fazer a sua vida normal, como se nada se tivesse passado. A lei não impõe que haja uma correspondência directa entre o valor a retirar do rendimento disponível para garantir o sustento do insolvente e o montante global das despesas por ele indicadas".

- Havendo apenas que atender, nesta sede, à dignidade da pessoa humana, a que se reporta o conceito de "sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar" e não cumprindo assegurar que o insolvente possa continuar a manter determinado padrão de vida, não se justifica estar a comprimir ainda o interesse dos credores para além do equivalente a dois salários mínimos nacionais (para além de metade das despesas de saúde com a filha menor).

- Na verdade, as despesas com a habitação, com o sustento do agregado e as tidas com a filha menor são da responsabilidade quer do insolvente, quer da sua companheira, em relação à qual não vem invocada qualquer incapacidade de trabalhar e auferir rendimentos, sendo certo que até trabalha em tempo parcial, auferindo remuneração mensal (…) (vive em comunhão de vida com o insolvente e, por isso, terá de contribuir para os encargos e despesas do agregado).

- Face à composição do agregado, que inclui uma filha bebé, afigura-se também ajustado excluir as despesas médicas e medicamentosas tidas com a mesma, na proporção de metade (atendendo à parte que também compete à mãe suportar), já que podem constituir um encargo pesado em caso de doença, não havendo lugar a quaisquer outras exclusões.

- No que se refere às restantes despesas suportadas pelo agregado do insolvente, as mesmas deverão, se for caso disso, ser comprimidas de forma a caber não ultrapassar a soma do equivalente a dois salários mínimos nacionais e do rendimento da companheira do insolvente.

- Não se justifica, pois, excluir quaisquer outras quantias, nomeadamente por isenção de horário, subsídios de férias/natal, dadas as especificidades do período em curso e as finalidades visadas com o mesmo.

- Tal entendimento não põe em causa o mínimo de existência socialmente adequado, tendo por referência o padrão decorrente do salário mínimo nacional com o qual sobrevivem, embora a custo, muitas famílias portuguesas, sendo certo, para além do mais, que o rendimento do insolvente lhes permite suportar os encargos decorrentes da relação de mandato, que se presume onerosa, estabelecida com o seu Mandatário constituído a fls. 18.

11. No essencial, a referida perspectiva do Tribunal afigura-se correcta.

Na verdade, face aos interesses em presença, e apelando ao referido critério do razoável, fixado na lei, o caso vertente é daqueles em que dois salários mínimos, com o referido acréscimo, será suficiente para fazer face às despesas de uma forma digna, para que o devedor/insolvente tenha um sustento minimamente digno, sem olvidar que não findou a responsabilidade do recorrente para, na medida das suas possibilidades e no limitado período de cinco anos, continuar a pagar os débitos reconhecidos na insolvência, pois se as dívidas são perdoadas ao devedor isso constitui um sacrifício imposto pelo Estado aos credores, o que implica que a medida seja acompanhada da assunção de um comportamento similar por parte do devedor, retribuindo este com outro sacrifício, proporcional às suas capacidades económicas.

Exigindo-se sacrifícios ao devedor, como contrapartida à medida da «exoneração do passivo restante», os sacrifícios têm de ser efectivos; só há justificação para se aceder a este benefício se houver uma contrapartida meritória, sendo esta constituída pela assunção de uma vida pautada pela privação e poupança possíveis a favor dos credores durante cinco anos.[13]

O sacrifício financeiro dos credores justifica, assim, proporcional sacrifício do insolvente, tendo como limite a respectiva vivência minimamente condigna.

12. E não podemos ignorar que, actualmente, estima-se que mais de seiscentos mil Portugueses auferem o salário mínimo nacional, muitos deles com família constituída e vivendo de apenas um salário mínimo nacional; existem numerosas famílias a viver de rendimento inferior a esse valor (mínimo), como o denominado rendimento social de inserção; e são muitos os reformados/pensionistas com reformas/pensões não superiores a € 275/mensais que, nos últimos três/quatro anos, viram “congelado” o seu rendimento (nominal) disponível[14], com evidente diminuição (real) das respectivas disponibilidades económico-financeiras, sendo que, e porventura a maioria, terão, por exemplo, gastos de saúde de montante não inferior ao despendido pelo recorrente.

13. Diga-se, ainda, ante as concretas “matérias” versadas na alegação de recurso, que não vemos a menor razão para não se atender à (demonstrada) “capacidade de ganho da companheira” do requerente, não apenas por integrar o mesmo agregado familiar mas também porque dúvidas não restam quanto ao dever que sobre ela impende de contribuir, na medida das suas possibilidades, para o seu próprio sustento e os alimentos da filha do casal [cf., designadamente, os art.ºs 36º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 2003º, 2004º e 2009º, do Código Civil].

Por outro lado, não se poderá dizer que tenha sido valorado o ”patrocínio”. A Mm.ª Juíza a quo veio a admitir que o requerente terá suportado com o seu “rendimento (…) os encargos decorrentes da relação de mandato, que se presume onerosa”, mas tal não constituiu fundamento da decisão tomada, apenas mera “constatação” que indiciaria o acerto do decidido e cuja alusão - precisamente no final do excurso argumentativo -, de per si, nada de relevante acrescenta, nem podia acrescentar, à precedente fundamentação [constituindo, pois, mera e derradeira ilação, sem qualquer tradução na realidade a considerar…].

No apontado circunstancialismo e tratando-se porventura de um segmento dispensável, a sua existência em nada prejudicou ou influiu o sentido da decisão sob censura, a qual, ao contrário do sustentado pelo recorrente, não padece de qualquer ambiguidade ou obscuridade (art.º 615º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil), e sendo também por demais evidente que não é possível concluir que a descrita actuação do Tribunal a quo esteja eivada das “ilegalidades” e “inconstitucionalidades” que lhe são imputadas!

Por último, não vemos a menor razão para que dos rendimentos a considerar venham a ser excluídas as componentes retributivas relativas à isenção de horário de trabalho (art.ºs 218º, 219º e 265º, do Código do Trabalho) e à remuneração das férias e respectivo subsídio/benefício pecuniário adicional (art.ºs 237º e 264º, do mesmo Código), sob pena de uma completa inversão da realidade quer no âmbito dos princípios e normas do direito do trabalho (maxime, no que concerne ao significado e função da retribuição do trabalho ou da disponibilidade do trabalhador, bem como da retribuição do período de férias e subsídio), quer da figura da exoneração do passivo restante.[15]

14. Afigura-se assim razoável que o rendimento disponível do devedor/insolvente compreenda os valores supra referidos, sem prejuízo da sua eventual alteração, a pedido do devedor, ponderadas que sejam outras/novas despesas relevantes e autonomamente atendíveis, devidamente quantificadas e comprovadas [art.º 239º, n.º 3, alínea b) – iii)][16].

A solução encontrada não colide, pois, com quaisquer preceitos da lei ordinária ou da lei fundamental [invocados a esmo na alegação de recurso!], mormente com o direito a um mínimo de existência condigna inerente ao princípio do respeito da dignidade humana, decorrente das disposições conjugadas dos art.ºs 1º e 2º da CRP, assegurando-se ao recorrente o mínimo indispensável à sua sobrevivência condigna e do seu agregado familiar.[17]

15. Em conclusão, atentos os elementos disponíveis, entende-se como justa e equilibrada a decisão impugnada, porquanto o Tribunal a quo aplicou correctamente a “cláusula do razoável” pressuposta no art.º 239º, n.º 3, alínea b), subalínea i), soçobrando desta forma as “conclusões” da alegação de recurso.

*

III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.
  Custas pelo devedor/insolvente (art.º 248º, do CIRE).

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17.3.2015

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Fernando Monteiro


[1] Diploma a que respeitam os normativos adiante citados sem menção da origem.
[2] Atendendo aos documentos juntos aos autos (v. g., a fls. 14, 94 e 141) e ao já decidido.
[3] Vide Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 3ª edição, págs. 102 e seguinte.
[4] Cf. o ponto 45 do preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18.3.
[5] Que integra os créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento (art.º 235º).
[6] Vide A. Castanheira Neves, Introdução ao Estudo do Direito - Interpretação Jurídica, Coimbra, 1985/1986, págs. 51 e seguinte.
[7] Cf., do mesmo Autor, O Actual Problema da Interpretação Jurídica, in RLJ, ano 118, págs. 257 e seguinte.
[8] Neste sentido, cf., entre outros, os acórdãos da RC de 20.4.2010-processo 1426/08.7TBILH-F.C1 e 05.4.2011-processo 1783/09.8T2AVR-B.C1, publicados no “site” da dgsi.
   Manifestando posição parcialmente diversa, vide Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Quid Juris-Sociedade Editora, 2009, pág. 788.
[9] Criado pela Lei n.º 13/2003, de 21.5, e que consiste numa prestação que visa conferir apoios para a satisfação das necessidades básicas/essenciais da vida.
[10]   Cf., ainda, de entre vários, relativamente aos pontos II. 6. e 7., da presente decisão, os acórdãos da RP de 15.7.2009-processo 268/09.7TBOAZ-D.P1 e da RC de 25.5.2010-processo 469/09.8T2AVR-C.C1, publicados no “site” da dgsi.
   Vide, também, Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, in Themis, 2005, págs. 174 e seguintes.
[11] Vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, págs. 772 e 775.
[12] Cf. o acórdão da RP de 11.12.1997, in CJ, XXII, 5, 219.
[13] Cf., neste sentido, o acórdão da RC de 28.9.2010-processo 1826/09.5T2AVR-C.C1, publicado no “site” da dgsi.
[14] Cf., por último, os art.ºs 115º da Lei n.º 66-B/2012, de 31.12; 114º da Lei n.º 83-C/2013, de 31.12 e 118º da Lei n.º 82-B/2014, de 31.12 e a Portaria n.º 432-A/2012, de 31.12.
[15] Vide, designadamente, Maria do Rosário Palma Ramalho, Da Autonomia Dogmática do Direito do Trabalho, Almedina, págs. 494, nota 122, 640 e 779; Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 11ª edição, Almedina, págs. 393 e seguintes e 417 e seguintes e Jorge Leite, Direito do Trabalho, Vol. II, Coimbra, 1999, págs. 168 e seguintes e 202.

[16] Será assim possível, nos termos do art.º 239º, n.º 3, al. b), subalínea iii), a requerimento do devedor, ressalvar determinadas e concretas despesas que entretanto venham a surgir e cujo valor seja razoável excluir da cessão.
[17] Cf., ente outros, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 509/2002, publicado no “site” da dgsi.