Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1369/09.7TBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: MEIOS DE PROVA
REGIME
ACÇÃO ESPECIAL PARA CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 01/13/2015
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTºS 3º, Nº 4, E 5º DO DEC.LEI Nº 269/98, DE 01/09.
Sumário: I – O artigo 3º, nº 4 do regime anexo ao Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro, não proíbe o oferecimento de um meio de prova correspondente a um depoimento escrito, nos termos do artigo 5º do mesmo regime, anteriormente à audiência de julgamento.

II – Com efeito, o indicado artigo 3º, nº 4, ao referir que “[a]s provas são oferecidas na audiência […]”, quer significar que as provas podem ser oferecidas na audiência, não inviabilizando que o sejam antes.

III – Assim, a exclusão do processo, sujeito a essa tramitação, de provas apresentadas anteriormente à audiência, por serem consideradas extemporaneamente apresentadas, viola o direito da parte à prova.

IV – A inadmissão e consequente não valoração dessa prova, influindo no resultado da acção, acarreta uma nulidade (omissão de acto que a lei prescreve), nos termos do artigo 195º, nº 1 do CPC, que se projecta (artigo 195º, nº 2 do CPC) na ulterior decisão da acção que foi formulada com descaso dessa prova.

Decisão Texto Integral:
DECISÃO SUMÁRIA

(Artigo 656º do Código de Processo Civil)


            1. Em Setembro de 2009 o Banco A…, S.A. (Requerente e Apelante no contexto do presente recurso) demandou O… (Requerido). Fê-lo utilizando a forma processual especial criada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro, e seguindo a tramitação decorrente do Regime Anexo a este Diploma[1], pretendendo a condenação do Requerido a satisfazer-lhe o valor de €8.646,73, respeitante a capital e juros[2], decorrentes de um contrato sob a forma de mútuo (o consubstanciado no documento junto a fls. 11/12 com o requerimento inicial) incumprido pelo Requerido (Mutuário nesse contrato).

            1.1. Tendo-se constatado a impossibilidade de realizar a citação pessoal do Requerido, por absoluto desconhecimento do seu paradeiro – e prescindimos aqui de relatar, por serem irrelevantes para o recurso, as diversas incidências processuais induzidas por essa circunstância[3] –, foi determinada a citação edital do mesmo, nos termos dos artigos 233º, nº 6, 244º e 248º do Código de Processo Civil (interessa aqui o texto do Código anterior à Lei 41/2013 e valeu a respeito dessa citação o despacho de fls. 76).

            Entretanto, pelo despacho de fls. 82 foi o processo saneado tabelionicamente e marcada a audiência de discussão e julgamento (interessa a este respeito o artigo 3º do regime anexo ao DL 269/98[4]). Na sequência deste despacho, apresentou o Banco Requerente o seguinte requerimento constante de fls. 85:
“[…]
BANCO A…, SA, nos autos de acção com processo especial que, por este Juízo, intentou contra O…, tendo sido notificado do despacho de V.Exa. de fls., que designou o dia 25 de Fevereiro de 2014, pelas 14.00 horas, para ter lugar a audiência de discussão e julgamento, vem com o presente, nos termos que a lei lhe confere, juntar aos autos os depoimentos escritos das testemunhas que indica, ou seja de …, bem como fotocópia dos documentos de identificação de cada um deles para efeitos de conferência das assinaturas, declarando desde já o A., ora requerente, que nem o advogado signatário nem qualquer dos outros mandatários judiciais constantes da procuração de fls. comparecerão neste Tribunal no dia e hora que V.Exa. designou para a audiência de discussão e julgamento.
[…]”.

            E, com efeito, a este requerimento anexou o Banco Requerente os depoimentos dos seus dois funcionários indicados, acompanhando-os de cópias dos respectivos bilhetes de identidade.

            1.1.1. Surge então, a propósito de tal requerimento, o despacho da Exma. Juíza constante de fls. 93-A e B, cujo conteúdo aqui se transcreve:
“[…]
Para os efeitos tidos por convenientes, faço consignar o seguinte entendimento do tribunal: conforme decorre do disposto no n.º 4 do art.º 3º do Regime Anexo ao DL 269/98 de, 01/09, as provas são oferecidas na audiência, regra que, tal como refere Carlos Pereira Gil (Algumas Notas sobre os DLs. 269/98 e 274/97, Centro de Estudos Judiciários, Julho de 2000, pp. 21 e 22), cujo entendimento perfilhamos, se aplica a todas as provas, sejam elas pré-constituídas ou constituendas, aplicando-se assim inclusivamente, no nosso entender, à faculdade de apresentação de depoimento por escrito.
É, aliás, com base nessa mesma regra que, conforme faz notar Salvador da Costa (A Injunção e as Conexas Acção e Execução, 5ª Edição, Almedina, 2005, p. 116), ‘Na hipótese de nem as partes nem os respectivos mandatários comparecerem em audiência de julgamento, mas apresentarem testemunhas para depor, parece que o Tribunal não as pode considerar para o efeito de prova, porque não foram apresentadas por quem o devia fazer e o Juiz não pode presumir, nessa parte, a vontade e o interesse das partes.’
Em face do exposto e em conformidade com o entendimento supra consignado, adverte-se o ilustre mandatário do autor que as provas oferecidas por intermédio do requerimento sob a refc.ª … só serão atendidas caso a parte venha a comparecer em sede de audiência de julgamento ou nela se faça representar por mandatário.
[…]”.

            Pretendeu o Requerente reagir a este despacho interpondo uma apelação interlocutória, a de fls. 96/116. Mais tarde – já depois da decisão final – não foi esse recurso admitido (vale a este respeito a primeira parte do despacho de fls. 137 com a referência citius[5]), formulando o Requerente a reclamação de fls. 141/146, que subiu a esta instância integrada no recurso da decisão final ora apreciado[6].

            1.2. Chegado o dia da audiência de julgamento – ao qual, como anunciara a fls. 85, não compareceu o Mandatário do Banco Requerente – proferiu preambularmente a Senhora Juíza a quo, em acta, o seguinte despacho (o de fls. 118/119):
“[…]
Sem prejuízo do recurso interposto a fls. 84 e seguintes pelo autor, cuja admissão oportunamente será objecto de despacho, uma vez que nem o autor nem qualquer mandatário deste compareceram nesta audiência de julgamento, nem ofereceram aqui qualquer prova, nesta que é a sede própria, afigura-se-nos totalmente inadmissível que o tenham feito por escrito em data anterior à realização da presente audiência de julgamento, conforme entendimento já expendido nos autos a fls. 93-A e seguintes.
Como assim, e sem necessidade de mais considerações, decido não admitir o requerimento em apreço.
[…]”.

            Seguidamente, sempre na mesma acta, desta feita documentada a fls. 119/121, foi proferida a Sentença final – a qual, integrada pelo despacho antecedentemente transcrito, constitui a decisão objecto do presente recurso – julgando a acção totalmente improcedente e absolvendo o Requerido do pedido[7].

            1.3. Inconformado, interpôs o Requerente a presente apelação, formulando a rematar a respectiva motivação as seguintes conclusões:
“[…]

            2. Aqui chegados, relatado o iter processual que conduziu à presente instância de recurso, teremos presente, no que respeita à apelação, que o âmbito objectivo desta foi delimitado pelas conclusões transcritas no antecedente item 1.3. [v. os artigos 635º, nº 4 e 639º do Código de Processo Civil (CPC)]. Adoptaremos na abordagem do recurso a forma singular decorrente do artigo 665º do CPC, dada a simplicidade que reveste, na sua caracterização, o problema colocado pelo Apelante.

            2.1. Existe, todavia, uma reclamação por inadmissão de um outro recurso que haveria que considerar cronologicamente anterior a esta apelação. Não obstante, justificando preambularmente a apreciação desde já do recurso de apelação que foi admitido (o recurso relativo ao despacho de fls. 118/119 e subsequente Sentença de fls. 119/121), em detrimento da dita reclamação referida à não admissão do recurso anteriormente intentado, convocamos como argumento justificativo da inversão da ordem cronológica a inteira coincidência dos fundamentos e a completa interdependência das duas situações, operante em termos de a decisão do recurso admitido retirar sentido, por prejudicialidade, ao recurso não admitido e, consequentemente, à reclamação. Vale aqui, quanto à estratégia exposta de abordagem da articulação entre o recurso e a reclamação, o princípio que subjaz ao trecho intermédio do artigo 608º, nº 2 do CPC, no qual colhemos a afloração de um princípio com vocação de generalidade que poderemos identificar como consumpção temática por prejudicialidade, reportada ao sentido de uma decisão, configurando esta em abstracto como decisão anterior, que tira sentido prático a uma segunda decisão (configurada em abstracto como tal). É em função do sentido da decisão deste recurso (decisão anterior; que desde já anunciamos será uma decisão de procedência da apelação) que a reclamação (cuja decisão ora configuramos abstractamente como posterior) perderá sentido: não tem sentido admitir um recurso cujo único fundamento será apreciado e consumido por um outro recurso com o mesmo fundamento.

2.2. Entrando assim na apreciação do recurso, sublinharemos que se trata neste – trata-se na presente apelação, tal como se trata no recurso pretendido interpor e não admitido a fls. 137 – de determinar a admissibilidade das provas consubstanciadas nos dois depoimentos escritos propostos e apresentados pelo Banco Requerente a fls. 85 e a fls. 86/88 e 89/91, baseando-se essa rejeição na circunstância de tais meios de prova – e estamos a indicar o fundamento do despacho de fls. 118/119[8] que determinou o sentido da subsequente Sentença – terem sido oferecidos anteriormente à audiência, resultando do nº 4 do artigo 3º do regime anexo ao DL 269/98, isto no entender da Senhora Juíza a quo, a extemporaneidade de um oferecimento de provas deste tipo anterior à audiência.

Caracterizado assim o tema do recurso – a não admissão de um determinado meio de prova proposto, por precocidade da sua apresentação, que conduziu à não valoração dessa prova e acabou por induzir o sentido da decisão da acção –, caracterizado assim o tema do recurso, dizíamos, é tempo de o abordar.

2.2.1. O meio de prova em causa, o que foi proposto a fls. 85 e ss. pelo Requerente, tem claro respaldo, nesta espécie processual, no artigo 5º do regime anexo ao DL 269/98:

Artigo 5º
Depoimento apresentado por escrito
1 – Se a testemunha tiver conhecimento de factos por virtude do exercício das suas funções, pode o depoimento ser prestado através de documento escrito, datado e assinado pelo seu autor, com indicação da acção a que respeita e do qual conste relação discriminada dos factos e das razões de ciência invocadas.
2 – O escrito a que se refere o número anterior será acompanhado de cópia de documento de identificação do depoente e indicará se existe alguma relação de parentesco, afinidade, amizade ou dependência com as partes ou qualquer interesse na acção.

3 – Quando o entenda necessário, poderá o juiz, oficiosamente ou a requerimento das partes, determinar, sendo ainda possível, a renovação do depoimento na sua presença.

            A questão colocada pela Senhora Juíza a quo quando confrontada com a proposição deste tipo de prova pelo Requerente, anteriormente à audiência de julgamento – ou seja, a questão interpretativa que conduziu à rejeição dessa prova apresentada nesse momento –, prende-se com uma determinada interpretação do nº 4 do artigo 3º do regime anexo ao DL 269/98:

Artigo 3º
Termos posteriores aos articulados
---------------------------------------------------------------------------------------
4 – As provas são oferecidas na audiência, podendo cada parte apresentar até três testemunhas, se o valor da acção não exceder o valor da alçada do tribunal de primeira instância, ou até cinco testemunhas nos restantes casos.
--------------------------------------------------------------------------------------.
(destaque acrescentado).

            Resultaria do trecho destacado deste nº 4 – é o entendimento que subjaz ao despacho introdutório da audiência (fls. 118/119) conjugado com o despacho de fls. 93-A e B – que o oferecimento de provas, nesta tramitação especial, anteriormente à audiência de discussão e julgamento, sendo precoce, seria extemporâneo, tornando essas provas inadmissíveis. Isto, quando não fosse renovado formalmente esse oferecimento ulteriormente em audiência pela parte ou pelo seu mandatário. Conduziria essa não repetição do oferecimento dessas provas à sua não consideração. E foi, com efeito, o que sucedeu no julgamento desta acção, sendo a desconsideração das provas previamente apresentadas, não obstante corresponderem ao meio previsto no artigo 5º, nºs 1 e 2 do Regime Anexo ao DL 269/98[9], que conduziu ao funcionamento da regra de decisão decorrente do nº 1 do artigo 342º do Código Civil (CC) e, por esta via, à improcedência da acção com absolvição do Requerido do pedido.

            Reconhece-se que tudo isto teria sido evitado com o comparecimento de um representante da parte devidamente mandatado em julgamento. Todavia, a questão aqui operante é, tão-somente, a colocada pela interpretação conferida pela Senhora Juíza a quo ao nº 4 do artigo 3º do regime anexo ao DL 269/98, com o sentido de excluir a apresentação de meios de prova, mesmo que pré-constituídos, em momento anterior à audiência de julgamento.

             A este propósito, sempre ressalvado o muito respeito devido ao entendimento diverso, vemos como manifestação de uma leitura formalista e descontextualizada do texto da norma convocada (o artigo 3º, nº 4 referido) a ideia de que estaria excluída uma proposição de meios de prova anterior ao julgamento, quando essa expressão literal, no contexto interpretativo em que se insere, nos parece consistente – parece-nos, aliás, teleologicamente determinada – com (por) uma ideia de celeridade, agilização e ductilidade formal do procedimento estabelecido, objectivo que é perfeitamente compatível com uma apresentação ao Tribunal de meios de prova ocorrida em momento anterior ao julgamento que, por isso mesmo, é perfeitamente aproveitável para esse julgamento, sem quebra do fim que preside à fixação desse momento como o adequado ao oferecimento das provas[10]. Outro entendimento é, como dissemos, exacerbadamente textualista, não constituído a mais correcta interpretação desse artigo 3º, nº 4.

            Interpretar uma norma corresponde à captação da mensagem normativa que à mesma subjaz. Com efeito, não podendo a interpretação prescindir do texto, acolhendo sentidos sem um mínimo de correspondência verbal neste (artigo 9º, nº 2 do CC), não se encerra ou esgota a operação interpretativa nesse texto – “[…] não deve cingir-se à letra da lei […]”, diz-se no artigo 9º, nº 1 do CC –, pressupondo antes a reconstituição do pensamento legislativo uma operação reportada a elementos valorativos de alcance bem mais profundo que o induzido pelo elemento gramatical considerado sem mais. Valem, pois, elementos valorativos reportados à “[…] unidade do sistema jurídico, [às] circunstâncias em que a lei foi elaborada e [às] condições específicas do tempo em que é aplicada” (artigo 9º, nº 1 do CC).

Ora, se da ponderação racional de toda a adjectivação estabelecida no regime anexo ao DL 269/98 se capta um modelo, logo assumido no preâmbulo do Diploma que o introduz, de agilização e simplificação processual, não se nos afigura consistente que a letra de um preceito seja descontextualizadamente aproveitada, numa espécie de inversão do seu objectivo precípuo, para introdução do efeito prático contrário: o efeito correspondente a uma exacerbação pouco racional de uma expressão isolada na sua forma em detrimento da sua substância significativa. E, enfim, o absurdo interpretativo deste resultado (do resultado induzido pelo entendimento aqui adoptado na primeira instância), sai ampliado quando ponderamos a situação à luz do modelo geral actual do Processo Civil, expresso no Novo Código introduzido em 2013, designadamente, tendo presente o reforço da ideia de adequação formal (artigo 547º do CPC), conferindo-se um particular peso à adaptação do elemento formal dos actos processuais ao fim que estes visam atingir. Note-se que, aqui, a sacralização do factor tempo quanto à prática do acto – quando a prática do acto é antecipada relativamente ao momento definido – surge com um indisfarçável pendor formalista, que consideramos desfasado da finalidade substancial relevante. Essa finalidade – a agilização e simplificação processual – não é frustrada por uma apresentação antecipada de meios de prova cuja particular estrutura lhes confere, à partida, um suporte documental[11] que se abre a uma ulterior ponderação em julgamento. De facto, como facilmente se percebe, o simples facto desses meios aparecerem mais cedo no processo, não inviabiliza – não é sequer afecta – nenhum objectivo que possamos intuir do que se prescreve no trecho inicial do artigo 3º, nº 4 do regime anexo ao DL 269/98, quando este regime é ponderado globalmente na sua motivação teleológica.

É com este sentido que não acompanhamos o entendimento da primeira instância e, em função dessa discordância, formulamos aqui a asserção interpretativa de não estar vedado pelo nº 4 do artigo 3º do referido regime anexo o oferecimento de um meio de prova correspondente a um depoimento escrito, nos termos do artigo 5º do mesmo regime, anteriormente à audiência. Envolve este entendimento, pois, a consideração de que o indicado artigo 3º, nº 4 do regime anexo, ao referir que “[a]s provas são oferecidas na audiência […]”, quer significar que as provas podem ser oferecidas na audiência, não inviabilizando que o sejam antes.

2.3. Interessa agora projectar o entendimento deste Tribunal no julgamento da causa.

Como vimos, a desconsideração pelo Tribunal a quo das provas apresentadas antes do julgamento (das provas consubstanciadas nos dois depoimentos escritos de fls. 80/88 e 89/91) conduziu a um julgamento sem valoração dessas provas[12], que acabou por determinar a improcedência da acção com absolvição do Requerido relativamente ao pedido. Vale isto pela constatação de que essa não valoração de provas por inadmissão das mesmas, que intuitivamente deve ser vista como tendo influído no exame e decisão da causa, traduziu-se na omissão do acto de admissão e de consideração de provas legalmente estabelecidas e propostas ao Tribunal pela parte, provas estas que foram erradamente excluídas do processo.

Estamos, assim, no domínio de uma nulidade, a omissão de um acto que a lei prescreve, devendo ser vista (essa nulidade) como efectivamente operante, nos termos do artigo 195º, nº 1 do CPC[13]. O desvalor processual induzido por essa omissão constitui o tema do presente recurso[14], e trata-se de um objecto decisório passível de impugnação junto desta instância (cfr. artigo 630º, nº 2, trecho final, a contrario do CPC). Consubstancia-se essa nulidade, aliás, na violação do direito à prova do Requerente – e tratou-se de uma violação intensa –, por via da rejeição dos depoimentos escritos atempadamente apresentados[15].

A consideração positiva desta nulidade em sede de recurso, através da revogação do despacho de fls. 118/119, induzindo a obrigação do Tribunal de primeira instância considerar no julgamento da acção a prova por depoimentos escritos que lhe foi presente a fls. 85/91, arrastará a eliminação da Sentença de fls. 119/121, nos termos do nº 2 do artigo 195º do CPC. Implica, pois, o atendimento do recurso que o Tribunal a quo realize um novo julgamento.

É o que decisoriamente haverá que determinar a culminar a presente decisão sumária.

2.4. Sumário:
I – O artigo 3º, nº 4 do regime anexo ao Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro não proíbe o oferecimento de um meio de prova correspondente a um depoimento escrito, nos termos do artigo 5º do mesmo regime, anteriormente à audiência de julgamento;
II – Com efeito, o indicado artigo 3º, nº 4, ao referir que “[a]s provas são oferecidas na audiência […]”, quer significar que as provas podem ser oferecidas na audiência, não inviabilizando que o sejam antes;
III – Assim, a exclusão do processo, sujeito a essa tramitação, de provas apresentadas anteriormente à audiência, por serem consideradas extemporaneamente apresentadas, viola o direito da parte à prova;
IV – A inadmissão e consequente não valoração dessa prova, influindo no resultado da acção, acarreta uma nulidade (omissão de acto que a lei prescreve), nos termos do artigo 195º, nº 1 do CPC, que se projecta (artigo 195º, nº 2 do CPC) na ulterior decisão da acção que foi formulada com descaso dessa prova.

            3. Face ao exposto, procedendo o recurso, anula-se o despacho reproduzido em acta a fls. 118/119, determinando-se a consideração pelo Tribunal de primeira instância, nos termos do artigo 5º do regime anexo ao DL 269/98, dos depoimentos escritos apresentados a fls. 85/91. Consequentemente, anula-se o julgamento e a Sentença de fls. 119/121 e ordena-se a repetição desse julgamento.

            Custas pelo vencido a final

            Tribunal da Relação de Coimbra, 13 de Janeiro de 2015.


(J. A. Teles Pereira)


[1] Vale aqui o DL 269/98 na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto:
Artigo 1º
Procedimentos especiais
É aprovado o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000,00, publicado em anexo, que faz parte integrante do presente diploma.
[2] É a seguinte a formulação dada ao pedido:
“[…]
21º
Nestes termos e nos mais de direito, deve a presente acção ser julgada procedente e provada e, por via dela, o R. ser condenado a pagar ao A. a importância de €7.235,76, acrescida de €1.356,70 de juros vencidos até ao presente – 15 de Junho de 2009 – e de €54,27 de imposto de selo sobre estes juros e, ainda, os juros que, sobre a dita quantia de €7.235,76 se vencerem, à taxa anual de 22,148%, desde 16 de Junho de 2009 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à referida taxa de 4%, sobre estes juros recair e, ainda, no pagamento das custas, procuradoria e mais legal.
[…]”.
[3] Que estão documentadas entre fls. 16 e 75 e que decorreram durante dois anos, entre Junho de 2009 e Junho de 2011.
[4]
Artigo 3º
Termos posteriores aos articulados
1 – Se a acção tiver de prosseguir, pode o juiz julgar logo procedente alguma excepção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa.
2 - A audiência de julgamento realiza-se dentro de 30 dias, não sendo aplicável o disposto nos n.os 1 a 3 do artigo 155.º do Código de Processo Civil às acções de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância.
3 - Quando a decisão final admita recurso ordinário, pode qualquer das partes requerer a gravação da audiência.
4 - As provas são oferecidas na audiência, podendo cada parte apresentar até três testemunhas, se o valor da acção não exceder a alçada do tribunal de 1.ª instância, ou até cinco testemunhas, nos restantes casos.
5 - Em qualquer dos casos previstos no número anterior, não pode a parte produzir mais de três testemunhas sobre cada um dos factos que se propõe provar, não se contando as que tenham declarado nada saber.

[5] Aqui transcrevemos esse despacho:
“[…]

Fls. 97 e ss.: Uma vez que o despacho em apreço consubstancia a mera consignação de um entendimento do tribunal a propósito de meio de prova oferecido e não um despacho de rejeição do referido meio de prova, considero não ser de admitir o mesmo.

Notifique.
[6] Referimos esta questão no final da nota 2, supra.
[7] Para compreensão do sentido dessa decisão aqui se transcrevem os trechos mais significativos da mencionada Sentença:
“[…]


III - Os Factos

A) Não se mostram provados quaisquer factos com relevo para a decisão da causa.

B) No que diz respeito aos factos não provados, resultaram todos os alegados pela requerente, nomeadamente que a requerente celebrou com o requerido um contrato mediante o qual aquela emprestou a este a quantia de €4.888,40, tendo as partes acordado que a falta de pagamento de qualquer uma das prestações convencionadas, na data do respectivo vencimento, implicava o vencimento imediato de todas as demais, e que, em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acresceria uma indemnização correspondente à taxa de juros contratual ajustada, sendo que o requerido não procedeu ao pagamento da 5.ª prestação e seguintes, vencida a 1.ª em 10-08-2008.


Motivação:

Para alicerçar a sua convicção, e na ausência de qualquer prova produzida pela requerente, o tribunal teve em consideração o disposto no art. 342.º, n.º1 do Código Civil no que concerne à repartição do ónus da prova, sendo que, in casu, a prova dos factos alegados pela requerente, e constitutivos do respectivo direito, lhe competia.

Mais teve o tribunal em consideração o disposto no art. 568.º al. b) do Novo Cód. Proc. Civil no que se reporta aos efeitos da revelia, que, in casu, é inoperante.

Assim sendo, outro juízo probatório não poderia ter resultado que não fosse a falta de prova dos factos alegados pela requerente.


IV - Decisão

Nestes termos e pelo exposto, julgo a presente acção integralmente improcedente e, em consequência, absolvo o requerido do pedido.
[…]”.
[8] Que, em rigor, remete para os fundamentos indicados a fls. 93-A e B e, por isso, os absorve.
[9] E considerá-las teria podido passar, até, pelo uso do mecanismo de renovação previsto no nº 3 do mesmo artigo 5º.
[10] E não tem sentido, porque foi questão que aqui pura e simplesmente se não colocou e não foi determinante, sequer, do despacho recorrido, saber como se processaria uma possível opção pela faculdade conferida ao juiz pelo nº 3 do artigo 5º do Regime Anexo ao DL 269/98. Com efeito, o que se disse na primeira instância (e disse-se por duas vezes) foi que a falta da parte ou do mandatário desta no julgamento para apresentar – e perdoe-se-nos a franqueza da linguagem – o que já estava apresentado levaria à não consideração desse meio de prova.
[11] O depoimento escrito corresponde a um documento particular.
[12] Para além delas apenas existe no processo, junto que foi com o requerimento inicial, o documento de fls. 11/12 (o contrato de mútuo) cuja consideração como fonte assente ficou prejudicada pela situação de revelia.
[13]Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
[14] O Apelante suscita, mesmo com outro enquadramento jurídico, essa questão (essa nulidade) e podemos dizer que o despacho de admissão de fls. 137 implicitamente desatende essa nulidade.
[15]Refere o artigo 515º, nº 1 do CPC [artigo 413º do NCPC] que ‘o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las (…)’. Este preceito, que consagra o princípio da aquisição processual, deve ser compreendido à luz do direito à prova, decorrente do direito de acesso aos tribunais e do direito a um processo equitativo (artigos 20º, nºs 1 e 4 da Constituição) e, como tal, ser objecto de uma interpretação declarativa lata: com a referência a ‘provas produzidas’, devem entender-se incluídas, não só as provas constituendas (produzidas em juízo), mas também as pré-constituídas (produzidas antes dele)” (Isabel Alexandre, Provas Ilícitas em Processo Civil, Coimbra, 1998, pp. 232/233).