Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
576/19.9T9GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
SISTEMA DE PONTOS
NE BIS IN IDEM
RESTRIÇÃO DE DIREITOS
DIREITO AO TRABALHO
Data do Acordão: 01/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA GUARDA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 148.º, N.ºS 1. 2, 3 E 4.º, AL. C), DO CÓDIGO DA ESTRADA (REDACÇÃO DA LEI N.º 116/2015, DE 22-08; ARTS. 29.º, N.º 5, 30.º, N.º 4, E 58.º, DA CRP; ART. 65.º DO CP
Sumário: I – A cassação do título condução, medida prevista na alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada (redacção conferida pela Lei n.º 116/2015, de 28-08), não é um efeito automático da subtracção de pontos ao condutor; antes depende do cometimento de duas ou mais infracções rodoviárias donde resulte a perda global do número de pontos casuisticamente atribuídos.

II – Mau grado o evidente sacrifício que pode envolver para a sua vida profissional, a cassação do título de condução não colide com o direito ao trabalho do infractor, mesmo se este for Cabo da GNR.

Decisão Texto Integral:







I. RELATÓRIO

1. A Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária proferiu a decisão de fls. 36 a 38, ordenando a cassação do título de condução nº GD- (...) pertencente a A., decisão essa confirmada pelo Juízo 2 Local Criminal da Guarda, nos presentes autos de impugnação judicial.

2. Inconformado, recorre o arguido, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1ª – A subtração dos pontos ao condutor ora recorrente configura uma decisão de natureza administrativa (ato administrativo tout court), cujos efeitos dependem da notificação que tem que ser feita ao interessado para, querendo, deduzir toda a defesa que tiver por pertinente, sendo que a preterição desse ato essencial acarreta a nulidade da decisão administrativa da subtração dos pontos, recaindo sobre a Administração o risco da falta de prova da verificação dos pressupostos do ato.

2ª – O recorrente apenas teve conhecimento dos dois atos administrativos da subtração dos pontos quando foi notificado para se pronunciar e para impugnar a decisão da ANSR de cassação do título de condução, pelo que esta decisão – da cassação do título de condução – proferida sem que tenha sido, previa e oportunamente, dado conhecimento ao condutor dos atos administrativos da subtração dos pontos é, pois, nula, operando a nulidade “ex tunc”– o que se requer seja reconhecido e declarado, para os devidos e legais efeitos.

3ª – Nos termos da Lei Penal, a sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor e a cassação do título de condução são alternativas entre si, e não cumulativas;

4ª – Aquando da segunda condenação referida nos autos – e no supra artigo 2º – e conforme decorre do artigo 148º, nº 4, alínea c) do Código da Estrada, resultou o início do procedimento de cassação.

5ª – O recorrente, naquele processo, foi condenado na sanção de inibição de conduzir veículos com motor pelo período de 6 (seis) meses – sanção que cumpriu integralmente – sendo certo que para ser aplicada a cassação nunca poderia ter sido aplicada a sanção acessória de inibição de condução;

6ª – Ao confirmar a aplicação da cassação determinada pela Autoridade Administrativa, a douta sentença violou o artigo 69º, nº 1, alínea a) e nº 7 do Código Penal – aplicáveis ex vi artigo 132º do Código da Estrada (DL n.º 114/94, de 03 de maio) e artigo 32º do Regime Geral das Contraordenações (DL n.º 433/82, de 27 de outubro);

7ª – A douta sentença ao confirmar o procedimento e aplicação da cassação, além de violar a Lei Penal nos termos supra expostos, violou ainda o disposto no artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”;

8ª – A ser possível a decisão de cassação nos presentes autos, terá como efeito uma compressão dos direitos profissionais do Impugnante que, no limite, poderão levar à perda de emprego, isto porque o recorrente é cabo da Guarda Nacional Republicana, tendo, entre outras atribuições e funções, que conduzir veículos na prossecução do seu trabalho, nomeadamente quando se encontra a exercer funções de patrulhamento ou quando se encontra de turno/piquete e é chamado a uma deslocação;

9ª – A douta sentença, ao confirmar a decisão da autoridade administrativa e consequente compressão dos direitos profissionais, violou o disposto no artigo 65º, nº 1 do Código Penal – aplicável ex vi artigo 132º do Código da Estrada (DL n.º 114/94, de 03 de maio) e artigo 32º do Regime Geral das Contraordenações (DL n.º 433/82, de 27 de outubro), assim como do artigo 58º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa;

10ª – A aplicação da cassação redundará no impedimento do recorrente trabalhar, ao passo que em vez de reintegrá-lo, será causa da sua marginalização na sociedade, negando-se-lhe o direito a trabalhar e, deste modo, sendo violado pela douta sentença o disposto no artigo 40º, nº 1 do Código Penal – aplicável ex vi artigo 132º do Código da Estrada (DL n.º 114/94, de 03 de maio) e artigo 32º do Regime Geral das Contraordenações (DL n.º 433/82, de 27 de outubro).

Nestes termos,

e com o douto suprimento que expressamente se invoca, deve ser dado provimento ao recurso e julgar-se procedente o presente recurso, decidindo-se de acordo com o propugnado nas precedentes conclusões e, por via dela, ser revogada a douta sentença ora recorrida, substituindo-se por outra que revogue a decisão administrativa de cassação da carta de condução nº GD- (...) , pertencente a A. – pois que assim se fará Justiça»

3. O Digno Magistrado do Ministério Público, em primeira instância, defendeu a manutenção da decisão de recurso.

4. Nesta Relação, o Digno Procurador Geral-Adjunto, secundando os argumentos aduzidos em primeira instância pelo Ministério Público, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre, agora, decidir.

II. A DECISÃO RECORRIDA

A decisão sobre a matéria de facto tem o seguinte teor:

«A., residente na Estrada Nacional (…), veio, a fls. 40 a 46, recorrer da decisão do Sr. Presidente da ANSR (Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária), a qual, no âmbito do respectivo Processo de Cassação n.º 541/2018, decidiu determinar a cassação da carta de condução n.º GD- (...) , de que o aqui recorrente é titular.

Alegou o recorrente para tanto, e em síntese, que, uma vez que pelo menos no segundo processo de natureza criminal em que foi condenado e que aqui se refere lhe foi aplicada a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor (tendo o aqui recorrente cumprido tal pena acessória na íntegra), então nunca poderia ter sido posteriormente decidida a cassação da respectiva carta de condução como o foi na decisão administrativa aqui recorrida, uma vez que ambas as sanções são alternativas (e não cumulativas), nos termos do disposto no artigo 69º, n.º 7, do Cód. Penal. Entende assim o recorrente que se viola o disposto no artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, onde se estabelece que “ninguém pode ser julgado por mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

Mais alega o recorrente que a decisão aqui recorrida viola o disposto no artigo 65º, n.º 1, do Cód. Penal (aqui aplicado subsidiariamente), segundo o qual “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos”, mais sendo que o n.º 2 da mesma norma reza ainda que “a lei pode fazer corresponder a certos crimes a proibição do exercício de determinados direitos ou profissões”, o que quer dizer que tem de resultar da lei a perda de quaisquer direitos, nomeadamente profissionais. Alega o recorrente neste conspecto que exerce a profissão de Cabo da Guarda Nacional Republicana e que, portanto, no âmbito dessa sua profissão, tem de conduzir veículos automóveis, nomeadamente em funções de patrulhamento, quando se encontra de turno ou piquete ou quando é chamado a uma deslocação, e por isso, sendo-lhe cassada a respectiva carta de condução, ficará então impedido de exercer essas funções, o que importará uma redução do respectivo vencimento e poderá mesmo levar à perda do respectivo emprego.

E com base nesta última argumentação, entende ainda o recorrente que a decisão administrativa viola o artigo 40º, n.º 1, do Cód. Penal (aqui aplicado subsidiariamente), na medida em que a aplicação de penas visa a “reintegração do agente na sociedade”, assim como se viola o artigo 58º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “todos têm direito ao trabalho”.

Admitido o recurso interposto, o Tribunal declarou que se encontrava habilitado a decidir por mero despacho, sem necessidade de realização de audiência de julgamento, tendo então obtido a concordância expressa por parte do Ministério Público e do aqui recorrente nesse sentido.

Não existem quaisquer excepções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa, cumprindo decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO:

DOS FACTOS:

Com relevância para a decisão da causa, o tribunal julga como provados os seguintes factos:

A) O recorrente A. é titular da carta de condução n.º (…).

B) O mesmo aqui recorrente exerce a profissão de Cabo da Guarda Nacional Republicana, e no âmbito dessa sua profissão, tem de conduzir veículos automóveis, nomeadamente em funções de patrulhamento, quando se encontra de turno ou piquete ou quando é chamado a uma deslocação.

C) O recorrente foi condenado no âmbito do processo n.º 31/17.1GBCVL, do Juízo Local Criminal da Covilhã, pela prática no dia 2 de Fevereiro de 2017 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena principal de 72 dias de multa, à taxa diária de €8,00, no total de €576,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 meses. Tal condenação foi proferida no dia 23 de Fevereiro de 2017 e transitou em julgado no dia 27 de Março de 2017, tendo as respectivas penas sido já julgadas extintas pelo cumprimento.

D) O recorrente mais foi condenado no âmbito do processo n.º 6/18.3GHCVL, do Juízo Local Criminal da Covilhã, pela prática no dia 17 de Janeiro de 2018 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena principal de 110 dias de multa, à taxa diária de €7,00, no total de €770,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 6 meses. Tal condenação foi proferida no dia 6 de Fevereiro de 2018 e transitou em julgado no dia 8 de Março de 2018, tendo as respectivas penas sido já julgadas extintas pelo cumprimento.


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Por seu turno, entendemos que não existem quaisquer factos que hajam de ser julgados como não provados e que se mostrem relevantes para a decisão da presente causa.

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MOTIVAÇÃO:

Os factos que se deram como provados resultam da decisão administrativa recorrida, do Registo Individual do Condutor do aqui recorrente que consta de fls. 14, das actas de audiência de julgamento de fls. 6 a 11, e ainda do CRC do mesmo aqui recorrente junto a fls. 62 a 67, sendo certo que, de qualquer forma, tais factos nunca foram colocados em causa pelo recorrente no recurso aqui interposto, tendo ainda o mesmo recorrente comprovado o exercício da respectiva profissão como se deu como provada, mediante o documento de identificação de fls. 47.


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O DIREITO:

Em sede da decisão administrativa agora em crise, foi determinada a cassação da carta de condução n.º GD- (...) , de que o aqui recorrente é titular.

Assim, estabelece antes do mais com interesse a este respeito e para este caso concreto o artigo 121º-A, n.º 1, do Cód. da Estrada, que a cada condutor são inicialmente atribuídos um total de 12 pontos, sem prejuízo de os mesmos poderem ser aumentados ou recuperados, até certos limites, nas condições previstas no subsequente artigo 148º, n.ºs 5 e 7, do mesmo Código.

Por seu turno, o artigo 148º, n.º 2, n.º 4, al. c), n.º 5, n.º 6, n.º 7, e n.º 10, do Cód. da Estrada, igualmente com interesse para este caso concreto, mais nos dizem o seguinte:

“ (…)

2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtracção de seis pontos ao condutor.

(…)

4 - A subtracção de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:

(…)

c) A cassação do título de condução do infractor, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.

5 - No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contra-ordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infracções, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º-A.

6 - Para efeitos do número anterior, o período temporal de referência sem registo de contra-ordenações graves ou muito graves no registo de infracções é de dois anos para as contra-ordenações cometidas por condutores de veículos de socorro ou de serviço urgente, de transportes colectivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxis, de automóveis pesados de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas, no exercício das suas funções profissionais.

 7 - A cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, é atribuído um ponto ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de acção de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento.

(…)

10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.”.

Ora, revertendo aos factos que se deram como provados, facilmente deles se conclui que o aqui recorrente foi condenado por duas vezes, em dois processos judiciais diversos, pela prática de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, assim lhe tendo sido aplicadas correspondentemente duas penas acessórias de proibição de conduzir, tudo no espaço de cerca de um ano.

E assim sendo, dispondo o recorrente de um total de 12 pontos, e nada tendo feito no sentido de eles serem recuperados ou aumentados nos termos dos n.ºs 5 a 7 do supra citado artigo 148º do Cód. da Estrada (não resultando nada provado nesse sentido), é evidente que por isso o aqui recorrente perdeu então 6 pontos como consequência de cada uma de tais duas aludidas condenações, e daí ter perdido portanto o referido total de 12 pontos de que dispunha, e ter sido (correctamente) determinada a cassação da respectiva carta de condução, em processo autónomo que a ANSR organizou para o efeito, tudo à luz das normas legais acima citadas.

Em sentido contrário do que se acaba de dizer, e salvo o devido respeito, entendemos que a argumentação que o recorrente aduziu no presente recurso judicial de impugnação não tem qualquer fundamento nem faz qualquer sentido. Aliás, note-se que caso se entendesse como o aqui recorrente defende, então nunca poderia ser validamente determinada a cassação de qualquer carta de condução de quem quer que fosse à luz das normas legais supra citadas, e muito menos de quem quer que fosse que exercesse uma profissão que por qualquer forma envolvesse a condução de veículos automóveis em vias públicas.

Desde logo, é evidente que a norma constante do artigo 69º, n.º 7, do Cód. Penal, tem de ser conjugada (apenas) com o subsequente artigo 101º do mesmo Código, ou seja, o que se pretende exprimir em tal norma é apenas que o Tribunal, ao condenar pela prática de um crime (neste caso) de condução de veículo em estado de embriaguez, deve afastar a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor (apenas) caso entenda que antes se verificam os pressupostos para a medida de segurança de cassação do título de condução do arguido, nos termos do subsequente artigo 101º do mesmo Cód. Penal.

No caso concreto, em ambas as condenações que sofreu, nos processos judiciais que se referem nos factos provados, o aqui recorrente foi ambas as vezes condenado em (duas) penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, tendo o Tribunal, em ambos esses momentos, optado nesse sentido, em lugar da cassação da carta de condução do aqui recorrente nos termos do artigo 101º do Cód. Penal, cujos pressupostos para o efeito não se verificariam.

Assim sendo, a alternatividade entre uma sanção e outra a que o aqui recorrente se refere operou apenas naqueles momentos daquelas condenações judiciais que o mesmo sofreu nos processos que se referem nos autos provados, sendo que obviamente já não opera neste momento nem impede que o recorrente possa ainda assim ver cassada a respectiva carta de condução ao abrigo do disposto nos artigos 121º-A e 148º, ambos do Cód. da Estrada, como aqui sucedeu.

Na verdade, repita-se, o pressuposto para a cassação da carta de condução do aqui recorrente que aqui se verificou e que o recorrente aqui impugna reside justamente na aplicação anterior de duas penas acessórias de proibição de conduzir veículos a motor por parte do Tribunal, em sede de processos judiciais criminais, penas essas que causaram a perda da totalidade dos 12 pontos de que o recorrente dispunha, e consequentemente implicaram a instauração de processo administrativo de cassação da carta de condução do condenado, por parte da ANSR, como aqui se verificou e aqui se decidiu.

E mais se diga que, como é óbvio, o aqui recorrente em momento algum foi julgado ou condenado duas vezes pela prática do mesmo crime, não existido claramente qualquer violação do princípio “ne bis in idem” previsto no artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

Por outro lado ainda, não se trata aqui da perda de quaisquer direitos, nomeadamente profissionais, na medida em que não é por via da decisão aqui recorrida que o aqui recorrente se vê impedido de exercer a respectiva profissão, como até o próprio concede nesse sentido.

E mesmo que isso sucedesse, ainda mais directamente isso se verificaria então no caso de o aqui recorrente exercer, por exemplo, a profissão de motorista profissional de veículos, sendo certo que nunca seria por isso que o aqui recorrente (ou qualquer motorista profissional de veículos) se veria por essa via autenticamente imune à cassação da respectiva carta de condução, mesmo que se verificassem os respectivos pressupostos legais (como aqui se verificam), num claro benefício totalmente injustificado e injustificável que lhe seria então concedido perante a generalidade dos demais cidadãos.

E mais ainda, sem prescindir, sempre mais se dirá que o “direito ao trabalho” a que o recorrente se refere, com o conteúdo positivo de verdadeiro direito social e que consiste no direito de exercer uma determinada actividade profissional, se é verdade que confere ao seu titular, por um lado, determinadas dimensões de garantia, e, por outro lado, se impõe ao Estado o cumprimento de determinadas obrigações, não é contudo um direito que, à partida, se possa configurar como não podendo sofrer determinadas limitações no seu âmbito, quando for restringido ou sacrificado em virtude de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

A esta luz, a constrição do direito ao trabalho que possa resultar para o recorrente da aplicação da medida sancionatória aqui em causa apresenta-se, de um ponto de vista constitucional, como plenamente justificada, tanto mais que se trata de um meio de salvaguarda de outros interesses constitucionalmente protegidos, quer, por um lado, na perspectiva do aqui recorrente, a quem é imposta e destinada a medida aplicada, quer, por outro lado, na perspectiva da sociedade, posto que se visa proteger essa sociedade e, simultaneamente, como que “compensá-la” do risco a que os seus membros foram sujeitos com a prática de sucessivas infracções estradais que levem à perda total de pontos da carta de condição do infractor, tendo-se tratado neste caso até infracções de cariz criminal, como sendo a condução de veículos em estado de embriaguez.

Enfim, por todo o exposto, conclui-se no sentido de que a decisão administrativa aqui recorrida não merece qualquer reparo, improcedendo todos os argumentos em sentido diverso que foram invocados pelo recorrente no presente recurso, o que deverá levar, portanto, à improcedência total do presente recurso, como se decidirá.


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DECISÃO:

Face ao exposto, o tribunal decide julgar totalmente improcedente o presente recurso judicial de contra-ordenação interposto pelo recorrente A. e, em consequência, mantém-se a decisão administrativa recorrida nos seus precisos termos».

III. DO MÉRITO DO RECURSO

1.Nulidade da decisão por violação da notificação da subtracção de pontos

Defende o recorrente a nulidade da decisão administrativa, em virtude de não ter sido notificado dos actos administrativos da subtracção de pontos.

Manifestamente sem razão.

Na verdade, o Recorrente foi notificado da intenção de cassação do título de condução nº (…), conhecendo todos os factos imputados – condenação pela prática de dois crimes de condução sob o efeito do álcool, por sentenças transitadas em julgado, número de pontos subtraídos (6) por cada crime e bem assim, as normas legais aplicáveis – possibilitando-lhe o exercício de defesa em toda a plenitude, como aliás o fez, nos termos que constam a fls. 23 a 26.

  Além de que, mesmo que se entendesse, como sugere o Recorrente, que, para além da notificação supra referida, ainda teria que haver lugar a uma outra, para lhe dar a conhecer a subtracção de pontos na carta de condução, a omissão dessa hipotética notificação já se encontraria sanada, por falta de arguição atempada.

É que o recorrente não arguiu a alegada irregularidade nos três dias seguintes à notificação de fls. 22, no acto de defesa que apresentou, em 10 de Janeiro de 2019 (fls. 23 a 26), nem na impugnação judicial da decisão administrativa de fls. 45 a 46, encontrando-se, por isso, sanada, nos termos do artigo 123º, do Código de Processo Penal, que reza assim:

«Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado».

Improcede, pois, este segmento do recurso.

2. Procedimento de aplicação da cassação da carta de condução viola o artigo 29º da Constituição da República e artigo 69º, nº 7 do Código de Processo Penal

Defende o Recorrente que, acordo com o disposto no artigo 69º, nº 7, do Código Penal, não pode haver lugar a acumulação da sanção acessória de proibição de conduzir veículos automóveis e de cassação da licença de condução.

E, diga-se que lhe poderia assistir razão, se o tribunal, pela prática de um mesmo crime o tivesse condenado, em simultâneo, na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis e a cassação da carta de condução.

Mas não foi esse o caso.

O Recorrente foi condenado, em dois processos-crime, por sentenças transitadas em julgado, pela prática de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, com pena principal e acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por períodos concretamente definidos em cada um deles.

     Em causa está, não a condenação pela prática do mesmo crime em sanções penais cumulativas, mas a cassação da carta de condução por efeito da perda de pontos resultantes da conduta estradal do Recorrente.

O sistema da perda de pontos na carta de condução constitui um método utilizado pelo legislador para a contagem das infracções que podem implicar a cassação da carta de condução, cujo regime veio sendo alterado ao longo do tempo.

Na versão inicial do Código da Estrada aprovada pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio, com as alterações levadas a cabo pelos Decretos-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro e nº 265-A/2001, de 28 de Setembro, a cassação da carta não era automática, incumbindo ao tribunal apreciar a inaptidão (versão 1998) ou a idoneidade (versão 2001) do condutor e a sua personalidade, de acordo com os critérios estabelecidos, primeiro no artigo 150º, depois, no artigo 148º, do Código da Estrada.

Este paradigma altera-se com a revisão do Código da Estrada de 2005.

Precedida da Lei nº 259/2004, de 4 de Novembro, que autorizou o Governo a proceder à revisão do Código da Estrada e a criar um regime especial de processo para as contra-ordenações emergentes de infracções ao Código da Estrada, seus regulamentos e legislação complementar, a Autorização Legislativa contemplava, entre outros, a qualificação como contra-ordenações de todas as infracções rodoviárias e a aplicação do regime contra-ordenacional previsto no Código da Estrada a todas elas [alínea g)]; a cassação do título de condução quando o infractor tenha sido condenado, nos 5 anos anteriores, pela prática de três contra-ordenações muito graves ou de cinco entre graves e muito graves, bem como da proibição da concessão de novo título de condução durante o período de dois anos e a atribuição ao director geral de Viação a competência exclusiva para determinar aquela cassação [alínea q)].

Na sequência da autorização legislativa concedida pela Lei 17/2008, de 17 de Abril, o Decreto-Lei nº 113/2008, de 11 de Julho dá a seguinte redacção ao artigo 148º em análise:

A prática de três condenações muito graves ou de cinco contraordenações, entre graves ou muito graves num período de cinco anos tem como efeito necessário a cassação ao condutor do título de condução do infractor.

Posteriormente, a Lei nº 72/2013, de 03 de Setembro, procedendo, de novo à alteração do Código da Estrada, mantém a competência exclusiva do Presidente da ASNR para decidir a cassação da carta de condução e os pressupostos de que dependia a aplicação da medida, nos termos do artigo 148º.

A cassação do título de condução do infractor constituía um efeito necessário da prática e condenação definitiva de três contraordenações muito graves ou de cinco contraordenações entre graves ou muito graves, num período de cinco anos (artigo 148º, nº 1 e 2 do Código da Estrada).

O modo de contabilização das infracções que tinham por efeito a cassação do título de condução dependia do tipo e da natureza das infracções (graves e/ou muito graves) durante um período de tempo (cinco anos).

Este regime vigorou até à alteração do Código da Estrada de 2015, levada a cabo pela Lei nº 116/2015, de 28 de Agosto. O procedimento para a contagem das infracções cometidas para efeitos de cassação de carta, é alterado, passando, agora, a atribuir-se e a subtrair-se pontos na licença de cada condutor, conforma a conduta estradal deste (cf. artigo 121º e 148º, do Código da Estrada).

Assim:

De acordo com o disposto no artigo 121º- A, nº 1, do Código da Estrada, é atribuído a cada a cada condutor, 12 pontos, podendo estes ser acrescidos de: a) 3 pontos até ao limite máximo de 15,[se, em cada período três anos, inexistir no registo de contra-ordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infracções (artigo 121º A, nº 2, e 148º, nº 5, do Código da Estrada)]; 1 ponto até ao limite de 16, [se, em cada período de revalidação da carta de condução, não constarem registo de crimes de natureza rodoviária e o condutor, voluntariamente, frequentar acções de formação (artigo 121º, nº 3 e 148º, nº 7, do Código da Estrada)];

Ou seja, se o condutor não sofrer sanção contra-ordenacional ou penal pela prática de qualquer uma das infracções referidas, beneficia de pontos, podendo atingir o máximo de 16.

Já a subtracção de pontos, corporizada no artigo 148º, do Código da Estrada, sanciona a o comportamento rodoviário do condutor, conforme as infracções praticadas. De todas interessa para o caso, a condenação em pena acessória de proibição de conduzir, a retirar 6 pontos na licença de condução (nº 2, do citado artigo 148º).

A evolução legislativa do Código da Estrada, em especial do artigo 148º, consolidou, assim, a implementação do regime da cassação do título de condução, como uma medida inevitável da condenação do condutor pela prática de determinadas infracções, durante um certo período.

Antes da revisão de 2015 do Código da Estrada, tipificando o número e a natureza das infracções (graves ou muito graves) praticadas no período de 5 anos, depois da revisão de 2015, atribuindo a cada condutor pontos na respectiva licença de condução, que, em caso de determinadas infracções, serão subtraídos (cf. artigo 121º e 148º, do Código da Estrada).

Todavia, a perda de pontos de uma infracção rodoviária não determina automaticamente a cassação da carta de condução. Esta só é determinada, se o condutor cometer várias infracções, com condenação definitiva, e se a soma de todas elas ultrapassaram o número de pontos atribuídos à licença de condução que, como já assinalámos, pode atingir o limite máximo de 16 pontos.

A perda de pontos é, pois, consequência da prática de uma infracção com reflexos na condução estradal, sendo maior ou menor conforme a gravidade daquela, não se assemelhando, nem natureza, no conteúdo e nos efeitos à sanção acessória de proibição de conduzir.

Enquanto esta reveste a natureza de pena (ainda que acessória) e impede o agente de conduzir durante um certo período, a perda de pontos não constitui qualquer sanção ou medida de segurança penal, antes se prefigura como uma medida de avaliação negativa da conduta estradal dos condutores, conforme a gravidade da infracção cometida. Em caso algum, a prática de uma única infracção tem como consequência directa e necessária a subtração da totalidade dos 12, 15 ou 16, pontos atribuídos à licença de condução, ou impede que o infractor continue a conduzir.

A restrição do direito de circulação rodoviária do condutor só é determinada em função do comportamento estradal deste, e após a instauração do devido procedimento com vista a cassação da carta de condução.

Veja-se que, no caso, não foi a pena acessória de proibição de conduzir que determinou a cassação da carta de condução, mas a circunstância de o arguido ter praticado um outro crime de condução em estado de embriaguez.

Vale isto para dizer que, a perda de pontos pela prática de uma infracção estradal, ainda que, posteriormente conduza à cassação da licença de condução, não constitui uma nova condenação em sanção acessória do arguido pelos mesmos factos, mas um efeito da sanção acessória de proibição de conduzir, determinada pela segurança rodoviária, que limita o direito do cidadão a conduzir.

De igual modo a cassação da carta de condução por efeito da perda de pontos, não constitui uma condenação pela prática dos mesmos factos/crime conforme parece concluir o Recorrente, com violação do princípio in bis idem, segundo o qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez sobre os mesmos factos.

O Recorrente não foi submetido a julgamento, nem punido pelo mesmo pedaço de vida criminoso, mais do que uma vez.

A realidade dos autos é bem diferente. O arguido sofreu as consequências penal e legalmente previstas, pela prática de dois crimes, cada um deles punidos com pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, e não uma dupla condenação e punição pela prática dos mesmos factos.

O objecto do processo tendente à aplicação da medida de cassação da carta de condução por efeito da perda de pontos, não foi apreciado, nem decidido em nenhum dos processos-crime em que o arguido foi condenado, inexistindo, assim, qualquer identidade entre o objecto conhecido naquele e nestes processos.

Nestes autos, não se reapreciam os factos julgados nos processos crime, nem cada uma das sanções principais e acessórias em que foi condenado, nem há lugar a nova condenação do recorrente numa pena.

O procedimento processual com vista à cassação da carta de condução visa apreciar o estado de perigosidade do agente (aqui evidenciado pelo número de perda de pontos atribuídos a cada infracção estradal), não constituindo uma sanção penal (e muito menos nova) pela prática de crime rodoviário, designadamente, pela prática de crime de condução em estado de embriaguez.

Donde, se conclui, que o Recorrente não foi julgado, nem condenado, pelos mesmos factos, mais que uma vez, com violação do principio no bis idem, com consagração constitucional, no artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.

Não assiste, assim, razão ao Recorrente.

Prossegue o Recorrente, alegando que a cassação da carta de condução implica a perda do seu direito ao trabalho, em desconformidade com o disposto nos artigos 65º, do Código de Processo Penal e 58º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.

A discussão centra-se, assim, na questão de saber se a cassação da carta da carta de condução por efeito da perda de pontos integra o conceito de perda do direito ao trabalho em consequência directa da pena acessória de proibição de conduzir.

Sendo inquestionável que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos (artigos 58º e 30º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa e artigo 65º, do Código Penal), cabe indagar se a cassação da carta de condução implica a perda do direito ao trabalho do Recorrente.

Adiantando a nossa posição, a resposta terá de ser negativa.

Em primeiro lugar, não demonstram os autos que o arguido deixe de ser titular do direito ao trabalho ou fique necessariamente impedido de exercer a profissão de Cabo da Guarda Nacional Republicana, por via da cassação da licença de condução.

Em segundo lugar, porque contrariamente ao defendido pelo Recorrente, a cassação da licença de condução não tem como um efeito automático a imperativa perda de emprego.

Em terceiro lugar, porque, como acima já se referiu, a cassação da carta não decorre directa e automaticamente da condenação da primeira pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis, mas da conduta do arguido superveniente àquela condenação, que justificou a perda do número de pontos na sua licença de condutor.

Como salienta Damião da Cunha, in Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda e Rui Medeiros, pág.s 686-687,  não é pelo facto do legislador associar a um crime (ou a uma pena) de alguma gravidade um “efeito”, que atinja esses direitos [os direitos civis, profissionais ou políticos], que fica violado um qualquer principio constitucional, desde que seja sempre respeitado o principio da proporcionalidade, tanto em abstracto como em concreto, p. ex. através da determinação, por moldura legal, do tempo de privação do uso do direito ou, então através de uma cláusula de salvaguarda por “manifesta desproporção”».

Em quarto lugar, porque, como tem vindo a decidir o Tribunal Constitucional (entre outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 276/ 2002, in DR de 29 de Novembro de 2002, Série II, a propósito da compatibilização do direito ao trabalho com a sanção de proibição de conduzir veículos motorizados:

O direito ao trabalho, com o conteúdo positivo de verdadeiro direito social e que consiste no direito de exercer uma actividade profissional, se confere ao trabalhador, por um lado, determinadas dimensões de garantia, e, por outro, se impõe ao Estado no cumprimento de determinadas obrigações, não é um direito que à partida, se possa configurar como não podendo sofrer, pontualmente, quer numa, quer noutra perspectiva, determinadas limitações no seu âmbito, quando for restringido ou sacrificado por mor de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

(…)

Ainda que demonstrada (…) que o recorrente inelutavelmente necessitava de conduzir veículos automóveis para o exercício da sua profissão (…) a objectiva “constrição” que porventura resultaria da aplicação da medida sancionatória em causa se apresenta, de um ponto de vista constitucional, como justificada.

Efectivamente, uma tal justificação resulta das circunstâncias de a sanção de inibição temporária da faculdade de conduzir se apresentar como meio de salvaguarda de outros interesses constitucionalmente protegidos, nomeadamente, quer por um lado, na perspectiva do arguido recorrente a quem é imposta e destinada a pena aplicada, quer, por outro lado, na perspectiva da sociedade – a quem, reflexamente, se dirige também aquela medida -, na medida em que se visa proteger essa sociedade e, simultaneamente, compensá-la do risco a que os seus membros ficam sujeitos com a prática de uma condução sob o efeito do álcool.

(…)

A faculdade de conduzir, ao menos por parte de quem não faz exercício da condução o seu modo de vida, como sucede no presente caso, não implica que aquele que não pode desfrutar dessa faculdade não tenha ao seu dispor toda uma panóplia de oportunidades para desempenhar o seu labor.

Se assim não fosse, e no limite, poder-se-ia chegar à conclusão de que quem quer abraçar uma profissão para a qual o único meio de a prosseguir é o exercício da condução, nem sequer se haveria de sujeitar às condições necessárias para poder ter acesso à condução, ou nem sequer teria que respeitar uma reprovação nas provas prévias exigidas para a condução de veículos automóveis, pois essas condições constituiriam um atentado ao direito ao trabalho».

Numa outra perspectiva, ainda que em relação à caducidade da carta de condução em caso de condenação na sanção acessória de inibição de conduzir ou de condenação pela prática de crimes rodoviários, o Tribunal Constitucional (v.g, entre outros Acórdãos nºs 461/2000, 134/2000, 574/2000, 45/2000 e 472/2000) tem entendido que o direito ao exercício da condução não integra um direito absoluto, estando condicionado à verificação de um conjunto de condições de perícia e de comportamento psicológico, avaliado num processo com várias fases, que exige o preenchimento de vários requisitos positivos e negativos, o que é justificado pelos potenciais riscos dessa actividade para bens jurídicos essenciais.

O regime da cassação da carta por perda de pontos não pode deixar de ser balizado por estes princípios.

A licença de condução não assume cariz definitivo e imutável, situado no âmbito dos direitos absolutos. O seu carácter transitório revela-se, não só na periodicidade da respectiva validade e na sujeição a diversas restrições, renovações e actualizações tendentes a verificar se as condições físicas e psíquicas do agente se mostram adequadas ao exercício da condução de veículos (cf. artigos 121º, 122º a 130º, do Código da Estrada), mas também, no sistema de aquisição e perda de pontos, acima referenciado (artigo 121º A e 148º, do Código da Estrada).

A vigência do título que habilita conduzir veículos automóveis depende, assim, do comportamento estradal do condutor, conforme este observe ou viole as regras estradais. No primeiro caso são atribuídos pontos à sua carta de condução, no segundo são-lhe retirados pontos, de acordo com a gravidade da infracção cometida.

Por último, importa ter presente que a cassação do título de condução constitui, uma das medidas de segurança rodoviárias, visando evitar e reduzir os perigos decorrentes da circulação dos veículos automóveis.

O flagelo da sinistralidade nas estradas é responsável pela perda, em média por ano, de 1,2 milhões de pessoas, sendo considerado com um problema de saúde pública à escala global pela Organização Mundial de Saúde.

Além das vítimas mortais, todos os anos ficam feridas cerca de 50 milhões de pessoas em acidentes de viação.

A estimativa da OMS é de que, no planeta, nas próximas duas décadas o número deverá aumentar em 65%, caso não haja alterações na forma de enfrentar esta realidade.

E este drama que se vive nas estradas, não é unicamente uma realidade mais acutilante em nações menos desenvolvidas, com infraestruturas rodoviárias de menor qualidade, veículos mais envelhecidos ou condutores menos disciplinados.

A Europa também é vítima. Em França, por exemplo, desde há oito anos que morrem anualmente uma média superior a 3.500 pessoas em acidentes nas estradas. Na Alemanha, as mortes ficaram também acima das três mil no ano passado.

Em Portugal, segundo a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) morreram, em 2017, 602 pessoas nas estradas. Até 21 de novembro de 2018 a contabilidade de vidas perdidas em acidentes rodoviários estava já nas 446 vítimas.

Estes e outros dados evidenciam a necessidade de reduzir os acidentes de viação, através de acções a vários níveis, onde se incluam medidas de educação contínua dos cidadãos, incentivando-os a adoptar um melhor comportamento, designadamente, através do cumprimento das regras rodoviárias e da previsão de medidas restritivas da atribuição das licenças de condução.

O direito de conduzir, como já se assinalou, não é um direito absoluto, na medida em que só é concedido, temporariamente e na medida em que se verifiquem os pressupostos que o determinaram.

A circunstância do Recorrente ser militar da GNR e necessitar de conduzir em determinadas tarefas que desempenha, não o distingue dos demais cidadãos que precisam de utilizar veículo para fins profissionais. Os custos profissionais advindos do impedimento de conduzir mostram-se proporcionais e adequados à irresponsabilidade estradal manifestada pelo arguido e às exigências de segurança rodoviária.

Conclui-se, pois, que a cassação da carta de condução não colide com o direito ao trabalho do recorrente, mau grado o evidente sacrifício que pode envolver para a sua vida profissional e familiar.

Donde, também neste segmento, o recurso não merece provimento.

 

IV. DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação em julgar não provido o recurso.

Custas pelo Recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4UCS.

Coimbra, 18 de Dezembro de 2019

Alcina da Costa Ribeiro (relatora)

Ana Carolina Cardoso (adjunta)