Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
178/13.3TBSPS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
TEMPESTIVIDADE
ERRO MANIFESTO
DIREITO DE RETENÇÃO
CONSUMIDOR
ARRENDAMENTO
SINAL
Data do Acordão: 10/13/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU, VISEU, INSTÂNCIA CENTRAL – SECÇÃO DE COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 442.º, N.º 2, DO CC E 102.º, N.º 3, AL. C); 106.º, N.º 2 E 104.º, N.º 5, DO CIRE; LEI DE DEFESA DO CONSUMIDOR – ARTIGO 2.º, N.º 1 DA LEI 24/96, DE 31 DE JULHO, NA VERSÃO INTRODUZIDA PELA LEI N.º 47/2014, DE 28/07
Jurisprudência Nacional: AUJ N.º 4/2014
Sumário: 1. Apercebendo-se o Juiz de que existe erro manifesto na elaboração da lista de credores por parte do Administrador, deve aquele determinar a elaboração de nova lista, rectificada em conformidade e, em seguida, dar às partes a oportunidade de se pronunciarem quanto a ela.

2. Os credores reclamantes que têm a posse das fracções prometidas vender como pagamento do preço dos seus prédios rústicos vendidos aos insolventes e onde foram edificados os imóveis de que fazem parte as fracções, são considerados consumidores a fim de poderem beneficiar do invocado direito de retenção, mesmo no caso de destinarem as ditas fracções ao arrendamento e não para habitação própria e/ou de seus familiares.

3. Nestes casos o crédito do promitente-comprador deverá corresponder ao sinal em dobro.

Decisão Texto Integral:            
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Por sentença proferida em 25 de Novembro de 2013, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de A... e B... , residentes, ele, na Rua (…), São Pedro do Sul, e ela na Rua (…), S. Pedro do Sul.

Foi fixado o prazo de 30 dias para reclamação de créditos.

No seguimento do que o Administrador da Insolvência juntou a Lista de Credores reconhecidos e não reconhecidos (cf. fl.s 3 a 8, dos presentes autos).

Reclamaram de tal lista o H... (cf. fl.s 17 a 23) e a G... (cf. fl.s 33 a 38 – relativamente ao seu próprio crédito e cf. fl.s 50 a 58 – relativamente ao crédito de C... e D... ).

Estes responderam, cf. fl.s 65 a 70, pugnando pela improcedência da reclamação deduzida pela G... , no que ao crédito dos reclamados respeita.

O Administrador respondeu, cf. fl.s 73.

Posteriormente, vieram E... e F... , cf. fl.s 146 a 148, requerer que se declarasse o incumprimento definitivo dos contratos promessa de compra e venda outorgados pelos requerentes e fosse reconhecido e verificado o seu crédito de 347.000,00 €, como privilegiado, com preferência sobre todos os demais credores, incluindo os que beneficiam de hipoteca, por via do direito de retenção de que gozam.

Para tal, alegam que interpelaram o Administrador para cumprimento dos contratos promessa tendo por objecto duas fracções autónomas do prédio inscrito na matriz predial de S. Pedro do Sul sob o artigo (...) e descritas na respectiva Conservatória do Registo Predial sob o n.º I... -H e I... -L, tendo o Administrador optado pelo cumprimento de tais contratos promessa, contra o que se insurgiu a G... , beneficiária de hipoteca sobre tais fracções.

Decidindo-se a final que, a serem cumpridos tais contratos, se manteriam as referidas hipotecas, em face do que os reclamantes não têm interesse na transmissão das referidas fracções, configurando-se o incumprimento definitivo de tais contratos (que não incluíam quaisquer ónus ou encargos), o que lhes dá direito a receber o sinal em dobro e o que gastaram em benfeitorias, gozando do direito de retenção a que se alude no artigo 755.º, n.º 1, al. f), do CC.

Respondendo a G... , defende que o requerimento apresentado pelos reclamantes E... e F... , é extemporâneo, porque estes apenas poderiam reclamar da lista de credores elaborada pelo administrador, nos termos do artigo 130.º do CIRE nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no artigo 129.º do CIRE, o que não fizeram quando da mesma notificados.

Conforme despacho de fl.s 179, foi ordenada a junção de cópia da reclamação de créditos, apresentada junto do Administrador da Insolvência, pelos credores E... e F... , a qual se encontra junta de fl.s 181 a 185 e na qual, estes, formulam o seguinte pedido:

“Sem prescindir do direito dos reclamantes ao cumprimento dos contratos promessa identificados em 1 e 12 desta peça e à impossibilidade do Exmo Administrador recusar o seu cumprimento, nos termos do disposto no art. 106º do CIRE, para o que aqueles expressamente o interpelaram,

Em caso de incumprimento,

deve o presente crédito de €376.250,00, ora reclamado, ser reconhecido, verificado e graduado em primeiro lugar, com preferência sobre todos os demais credores, mesmo com prevalência sobre as hipotecas, tendo em conta o direito de retenção sobre os prédios identificados em 1 e 12 deste articulado.

Ocorrendo o cumprimento dos contratos,

Deve ser reconhecido, verificado e graduado o crédito dos reclamantes decorrente do incumprimento da cláusula 6ª do contrato promessa de permuta identificado no artigo 54º desta reclamação, bem como das despesas e benfeitorias que realizaram nos prédios prometidos vender e que somam um crédito no montante de 41.250,00€.”

Realizou-se tentativa de conciliação, cf. acta de fl.s 209 a 211, no decurso da qual foram reconhecidos os créditos reclamados pelo I... (ex H... ) e G... , como melhor aí consta.

Seguidamente, conforme despacho de fl.s 212 a 216, no que se refere aos créditos reclamados por E... e F... , decidiu-se o seguinte:

“Nesta conformidade, e pelo exposto, o tribunal decide:

- Determinar que o Sr. Administrador da Insolvência apresente, em dez dias, nova lista rectificada, na qual considere os créditos reclamados pelos credores E... e F... , tendo já em conta que a condição resolutiva não se verificou.

- Determinar que a nova lista seja notificada a todos os credores para impugnarem, querendo, mas apenas no que diz respeito a este crédito.

- Declarar que todos os actos já praticados não são afectados pelo erro agora declarado.”.

Para tal, em resumo, baseia-se esta decisão no facto de um dos créditos destes reclamantes ter sido reconhecido, na lista de credores, como crédito comum, sob condição e por o Administrador pretender cumprir os contratos promessa, razão pela qual o Administrador os ignorou, não os relacionando, na parte em que respeitavam ao incumprimento dos contratos.

Todavia, não foi possível o cumprimento dos contratos promessa, pelo que, agora, importa ter em conta a reclamação em causa, na vertente do incumprimento de tais contratos, o que o Administrador omitiu e o que foi considerado como caso de “erro manifesto”, e em conformidade com o disposto no artigo 130.º, n.º 3, do CIRE, decidiu-se, nos moldes acima transcritos, para rectificar tal erro, em função do que se ordenou a apresentação de nova lista de credores, em que se considerassem os créditos reclamados por E... e F... , por, entretanto, não se ter verificado a condição resolutiva.

A nova lista de créditos acha-se junta de fl.s 218 a 220, ali se incluindo os créditos ora referidos.

Dela notificada, a G... , pugna pela improcedência da reclamação deduzida pelos credores E... e F... , com o fundamento em não se verificar uma situação de “erro manifesto” e, ainda, porque não houve tradição da coisa.

Responderam, estes, pugnando pela improcedência da oposição da G... .

Oportunamente, a G... , interpôs recurso da decisão de fl.s 212 a 216, recurso, que foi recebido, com subida imediata e em separado (cf. despacho de fl.s 270) mas, por decisão deste Tribunal da Relação, decidiu-se que tal decisão não era autonomamente recorrível, pelo que, também se impõe, neste recurso, o conhecimento e decisão dessa questão, o que se fará, no lugar próprio.

Elaborou-se despacho saneador e fixou-se o objecto do litígio e os temas da prova, cf. acta de fl.s 306 a 310.

Teve lugar a audiência de julgamento, com gravação dos depoimentos nela prestados, após o que foi proferida a sentença de fl.s 362 a 376, na qual se fixou a matéria de facto dada como provada e não provada e respectiva fundamentação e a final, se decidiu o seguinte:

“Nesta conformidade, e pelo exposto, o tribunal decide:

- Homologar a relação de créditos reconhecidos apresentada pelo Senhor Administrador da Insolvência a fls. 218 e 219 do presente apenso, com exceção do crédito nº6 que reconheço pelo valor de apenas €367.951,50 nos termos supra expostos.

- Sem prejuízo do pagamento precípuo das dívidas da massa insolvente definidas no art. 51º do C.I.R.E., graduar os créditos verificados pela seguinte ordem:

A) Relativamente ao produto da venda sobre o imóvel descrito na verba nº5 (descrito na CRP de S. Pedro do Sul na ficha nº I... -B da freguesia de S. Pedro do Sul):

1º - Crédito nº9 da Fazenda Nacional por IMI relativo a este prédio (cfr. fls. 221).

2º - Crédito nº8 de C... e D... .

3º - Crédito nº4 reclamado pela “ G... , S.A.” até ao limite constante do registo inscrito através da Ap. 3 de 2003/12/23.

3º - Crédito nº4 reclamado pela “ G... , S.A.” até ao limite constante do registo inscrito através da Ap. 18 de 2008/12/29 convertida em definitiva através da Ap. 2853 de 2012/03/09.

4º - Crédito nº7 do Instituto da Segurança Social na parte garantida.

5º - Todos os restantes créditos em comum e em rateio.

6º - O crédito subordinado da Segurança Social.

B) Relativamente ao produto da venda sobre o imóvel descrito na verba nº7 (descrito na CRP de S. Pedro do Sul na ficha nº I... -H da freguesia de S. Pedro do Sul):

1º - Crédito nº9 da Fazenda Nacional por IMI relativo a este imóvel (cfr. fls. 221).

2º - Crédito nº6 de E... e F... pelo montante de €161.851,50.

3º - Crédito nº4 reclamado pela “ G... , S.A.” até ao limite constante do registo inscrito através da Ap. 1 de 2002/12/17.

4º - Crédito nº7 do Instituto da Segurança Social na parte garantida.

5º - Todos os restantes créditos em comum e em rateio.

6º - O crédito subordinado da Segurança Social.

C) Relativamente ao produto da venda sobre o imóvel descrito na verba nº9 (descrito na CRP de S. Pedro do Sul na ficha nº I... -L da freguesia de S. Pedro do Sul):

1º - Crédito nº9 da Fazenda Nacional por IMI relativo a este imóvel (cfr. fls. 221).

2º - Crédito nº6 de E... e F... pelo montante de €176.850,00.

3º - Crédito nº4 reclamado pela “ G... , S.A.” até ao limite constante do registo inscrito através da Ap. 1 de 2002/12/17.

4º - Crédito nº7 do Instituto da Segurança Social na parte garantida.

5º - Todos os restantes créditos em comum e em rateio.

6º - O crédito subordinado da Segurança Social.

C) Relativamente ao produto da venda sobre o imóvel descrito na verba nº12 (descrito na CRP de S. Pedro do Sul na ficha nº (...) da freguesia de S. Pedro do Sul):

1º - Crédito nº9 da Fazenda Nacional por IMI relativo este imóvel (cfr. fls. 221).

2º - Crédito nº3 reclamado pelo “ I... , S.A.” até ao limite constante do registo inscrito através da Ap. 10 de 1998/11/11.

3º - Crédito nº3 reclamado pelo “ I... , S.A.” até ao limite constante do registo inscrito através da Ap. 11 de 1998/11/11.

4º - Crédito nº7 do Instituto da Segurança Social na parte garantida.

5º - Todos os restantes créditos em comum e em rateio.

6º - O crédito subordinado da Segurança Social.

D) Relativamente ao produto da venda sobre os imóveis descritos nas verbas nº6, 8, 10 e 11 (descritos na CRP de S. Pedro do Sul nas ficha nº (...) , I, N e O da freguesia de S. Pedro do Sul):

1º - Crédito nº9 da Fazenda Nacional por IMI relativo a cada um destes imóveis (cfr. fls. 221).

2º - Crédito nº4 reclamado pela “ G... , S.A.” até ao limite constante do registo inscrito através da Ap. 1 de 2002/12/17.

3º - Crédito nº7 do Instituto da Segurança Social na parte garantida.

4º - Todos os restantes créditos em comum e em rateio.

5º - O crédito subordinado da Segurança Social.

E) Relativamente ao produto da venda sobre os demais imóveis:

1º - Crédito nº9 da Fazenda Nacional por IMI relativo a cada um dos prédios (cfr. fls. 221).

2º - Crédito nº7 do Instituto da Segurança Social na parte garantida.

3º - Todos os restantes créditos em comum e em rateio.

4º - O crédito subordinado da Segurança Social.

Custas pela massa insolvente.”.

Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso, a credora reclamante, G... , o qual foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 406), finalizando as suas alegações de recurso, com as seguintes conclusões:

1ª – O momento processual único e próprio para o credor pedir a alteração da lista de créditos apresentada pelo Administrador de Insolvência, a que se refere o artigo 129º do CIRE, é por via da impugnação prescrita no artigo 130º nº 1 do CIRE.

2ª- Tendo aquela lista sido apresentada em 13/01/2014 e não tendo sido objecto de impugnação por qualquer credor, mormente pelos credores E... e F... , o requerimento por estes apresentado em 05/08/2014 a solicitar o reconhecimento do seu crédito no valor de 347.000,00€, decorrente do incumprimento de contratos promessa de compra e venda, é extemporâneo, sendo processualmente inadmissível.

3ª- Tendo este requerimento sido apreciado pelo Tribunal a quo e em função deste ter-se decidido ordenar ao Administrador de Insolvência que alterasse a lista definitiva de créditos em ordem a acrescentar o crédito de 347.000,00€ dos referidos credores, o Tribunal a quo pronunciou-se sobre questão que lhe estava vedada conhecer, pelo que, cometeu uma nulidade prevista no artº 615º nº 1 alínea d) parte final do CPC, por remissão do artº 17º do CIRE.

Sem prescindir,

4ª- Optando o Administrador de Insolvência, a pedido dos credores promitentes compradores, pelo cumprimento dos contratos promessa de compra e venda, o crédito reclamado por aqueles decorrente da restituição em dobro do sinal prestado, neste caso de 347.000,00€, deixa de existir, seja como crédito efectivo, seja como crédito sob condição suspensiva ou resolutiva, não podendo ser enquadrado no regime jurídico decorrente do artº 50º do CIRE.

5ª- Concludentemente, não existe qualquer omissão na lista de créditos apresentada pelo Administrador de Insolvência quando nela não inclui o crédito referido na conclusão 3ª, pelo que, não existe qualquer erro manifesto, a que se refere o nº 3 do artº 130º do CIRE.

6ª- O erro manifesto a que se refere o artigo 130º nº 3 do CIRE não pode enquadrar as situações em que a lista de créditos reproduz a vontade dos credores e do Administrador de insolvência em cumprir os contratos promessa de compra e venda, com o que, o crédito reclamado sob condição deixa de existir porque o acontecimento incerto e futuro se verificou.

7ª- Sob a cobertura do erro manifesto não se pode proteger um credor que opta pelo cumprimento de contratos promessa de compra e venda, sabendo que sobre o seu objecto incidem hipotecas que podem não ser juridicamente canceláveis por via da opção jurídica do cumprimento dos contratos, sem que tenha, no meio e tempo próprios, impugnado a não inclusão do crédito decorrente de eventual incumprimento dos contratos promessa de compra e venda

8ª - Foram, assim, violados, entre outros, os artigos 130º nº 1 e 3 e 50º, ambos do CIRE e 615º nº 1 alínea d) do CPC.

9ª - Resulta da Sentença de que ora se recorre que, em caso de recusa pelo administrador da insolvência em cumprir o contrato-promessa de compra e venda, só no caso do promitente-comprador tradiciário ser um consumidor é que goza do direito de retenção e tem direito a receber o dobro do sinal prestado.

10ª - Não sendo, porém, consumidor, não lhe assiste tal direito, sendo um credor comum da insolvência.

11ª - Neste sentido foi uniformizada jurisprudência nos seguintes termos:

“No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”.

12ª - Quanto à noção de consumidor estabelece o nº1 do artigo 2º da Lei nº24/96 de 31/7 que se considera consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestado serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.

13ª - Atenta tal definição, não poderão ser os promitentes compradores considerados como consumidores, atenta a prova produzida em Audiência, nomeadamente, o depoimento da testemunha José Manuel de Figueiredo (cujo depoimento se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, o qual ocorreu no dia 06/05/2015 das 11:31:28 às 12:08:38, com a duração total de 00:37:09), e os documentos juntos aos autos, pois que, o objetivo último daqueles promitentes compradores era dar de arrendamento aquelas duas frações, nunca equacionando a hipótese de, eles próprios, a habitarem.

14ª - E apenas os consumidores poderão beneficiar do regime do artigo 442º e 755º, nº 1, al. f), ambos do Código Civil, por serem aqueles que investiram no imóvel as suas poupanças e contraíram uma dívida por largos anos.

15ª - Pese embora o M. Juiz do Tribunal a quo considere os promitentes compradores não-consumidores, em decisão considera que os mesmos são titulares de direito de retenção sobre as frações “H” e “L”, por crédito correspondente ao sinal em dobro.

16ª - Verifica-se, pois, uma clara contradição entre a fundamentação e a decisão em graduar aqueles créditos com direito de retenção, o que, nos termos do artigo 615º, nº 1, al. c) do Código de Processo Civil, é causa de nulidade da Sentença.

17ª - À data da declaração de insolvência, o contrato promessa em crise nos presentes autos não se encontrava resolvido (por definitivamente incumprido), mas sim em vigor (ainda que com mora contratual do promitente vendedor).

18ª - Assim, a promessa de compra e venda em apreço tem que ser apreciada à luz do estatuído nos artigos 102º a 119º do CIRE, por dizer respeito a negócios em curso à data da declaração de insolvência.

E,

19ª - No domínio dos negócios em curso à data da declaração de insolvência, o promitente-comprador de imóvel, com traditio, cujo contrato promessa (com eficácia meramente obrigacional) não foi cumprido pelo administrador da insolvência não tem direito ao recebimento do dobro do sinal previsto no artigo 442º do Código Civil.

20ª - Bem como também não goza do direito de retenção a que se refere a alínea f), do nº 1, do artigo 755º do Código Civil.

21ª - O crédito do promitente-comprador é de natureza comum e o seu montante corresponde ao valor do sinal prestado acrescido da diferença (se positiva) entre o preço convencionado e o valor da fracção à data da recusa do cumprimento do contrato, inexistindo, nestes autos, tal diferença positiva.

22º - O que parece ser confirmado pelo M. Juiz na d. Sentença de que se recorre, pág. 18, quando refere que “... Nessa medida, não é aplicável o disposto no art. 442º, nº2 do C. Civil quanto às consequências do incumprimento”.

23º - Porém, na decisão gradua os créditos daqueles promitentes compradores com base, precisamente, no artigo 442º, nº 2 do Código Civil, atribuindo-lhes a quantia indemnizatória do dobro do sinal prestado.

24ª - Os promitentes compradores em contrato com eficácia meramente obrigacional, com traditio e que não obtiveram o cumprimento daquele por parte do Administrador da Insolvência, por não serem consumidores, não gozam, pois, do direito de retenção previsto no artigo 755º, nº 1, al f) do Código Civil.

25ª - Pois que, ab initio, os promitentes compradores sempre pretenderam arrendar as frações em discussão.

26ª - Tanto assim é que, como resulta do depoimento da testemunha José Manuel de Figueiredo (cujo depoimento se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, o qual ocorreu no dia 06/05/2015 das 11:31:28 às 12:08:38, com a duração total de 00:37:09), foram os próprios promitentes compradores que trataram de toda a parte burocrática, v.g., elaboração de projeto, contacto com arquiteto, pedidos na Câmara de viabilidade de construção, entre outros.

27º - E, após seleção de empreiteiro, celebraram contrato de promessa de permuta, tendo-lhes sido entregues as frações “H” e “L” por conta do terreno de que eram proprietários, pretendendo, desta forma, obter dividendos com aquelas frações, nomeadamente, dando-as de arrendamento.

28º - Assim, mal andou o M. Juiz do Tribunal ao considera-los titulares de direito de retenção e ao atribuir-lhes a quantia indemnizatória de 335.000,00€, correspondente ao dobro do sinal prestado.

29ª - Foi, assim, violado o AUJ nº 4/2014 e, entre outros, os artigo 615º nº 1 alínea c) do CPC e artº 755º nº 1 alínea f) do Código Civil.

Termos em que,

Com o sempre mui Douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso de Apelação ser julgado procedente e, em consequência, proceder-se à revogação da douta Decisão de 17/11/2014, declarando-se a sua nulidade.

Mais deve o presente recurso da douta Sentença de verificação e graduação de créditos de 28/05/2015, com referência 73997762, ser julgado procedente, por provado, alterando-se a decisão aí aposta no sentido em que o crédito dos credores E... e F... seja verificado e graduado no montante de 167.500,00€ e ser classificado como comum, assim se fazendo Justiça.

Contra alegando, os reclamantes E... e F... , pugnam pela manutenção da decisão recorrida, estribando-se nos fundamentos nesta invocados, designadamente que o juiz podia ter ordenado a junção de nova lista de créditos, incluindo o seu; que têm de ser considerados como consumidores e têm direito ao sinal em dobro.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do NCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Se o requerimento apresentado pelos credores reclamantes E... e F... , em 05/08/14 (fl.s 146/148), solicitando o reconhecimento do seu crédito no montante de 347.000,00 €, é extemporâneo e, por isso, inadmissível;

B. Se os credores reclamantes E... e F... , não podem ser considerados como consumidores, a fim de poderem beneficiar do invocado direito de retenção e;

C. Se os mesmos não têm direito ao sinal em dobro.

É a seguinte a factualidade dada como provada na sentença recorrida:

1. Por sentença proferida em 25 de Novembro de 2013, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de A... e B... .

2. Foi fixado o prazo de 30 dias para reclamação de créditos.

3. A fls. 218 a 221 do presente apenso, veio o Sr. Administrador da Insolvência apresentar a lista de créditos retificada a que alude o art. 129º do C.I.R.E.

4. Foram impugnados os créditos dessa lista correspondentes aos números 6 e 8. Os demais não foram impugnados.

5. Vieram igualmente reclamar créditos através de acção de verificação ulterior de créditos os seguintes credores:

- Estado Português representado pelo Ministério Público – Apenso D).

6. Foram apreendidos a favor da massa insolvente os imóveis constantes do auto de apreensão de fls. 14 a 19 do apenso respectivo. – apenso B).

7. Os imóveis objeto de contrato promessa dos credores reclamantes E... e F... (verbas nº7 e 9), e C... e D... (verba nº5) estão onerados com hipotecas constituídas a favor da “ G... , S.A.”.

8. Por acordo escrito datado de 24-04-2001 que epigrafaram de “Contrato Promessa de Compra e Venda”, os credores reclamantes C... e mulher D... e o insolvente A... acordaram entre si permutar os seguintes imóveis:

a) um prédio rústico sito no lugar das Termas de S. Pedro do Sul, inscrito na respectiva matriz da freguesia da Várzea sob o artigo (...) º, e descrito na Conservatória do Registo Predial de São Pedro do Sul sob a ficha 292, pertença dos Credores Reclamantes, e ao qual foi atribuído o valor de Esc. 5.000.000$00 (€24.939,89);

b) a fracção autónoma identificada sob a letra B do edifício denominado “ (...) ”, sito nesta cidade de S. Pedro do Sul, descrito na Conservatória do Registo Predial de São Pedro do Sul sob a ficha I... ao qual foi atribuído o valor de Esc. 16.000.000$00 (€79.807,66).

9. O teor das cláusula e) e f) do contrato referido em 8 é o seguinte:

e) O 2º outorgante toma posse imediata do terreno permutado, podendo nela praticar todos os actos integrados no direito de propriedade plena da mesma;

f) O 2º outorgante compromete-se a entregar o apartamento até 30 de Setembro de 2001, prazo máximo para a realização da escritura”.

10. Em cumprimento do acordado os credores reclamantes entregaram ao insolvente, a título de sinal e antecipação do preço, as quantias pecuniárias de €20.000,00 e 27.500,00.

11. Durante o ano de 2003, os insolventes entregaram aos credores reclamantes a fracção referida na al. b) do ponto 8 dos factos provados.

12. Os credores reclamantes habitam intermitentemente aquela fracção desde Agosto de 2004, tendo para o efeito mobilado a mesma com móveis e electrodomésticos, e procedido à ligação às redes de abastecimento de água, gás e electricidade.

13. O insolvente foi por diversas vezes interpelado pelos credores reclamantes para proceder ao agendamento da escritura de compra e venda, o que não ocorreu.

14. Pela apresentação 3, 23-12-2003, os insolventes constituíram em benefício da “ G... , S.A.” uma hipoteca voluntária para garantia de um empréstimo sobre a fracção referida na alínea b) do ponto 8 dos factos provados.

15. Pela apresentação 18, 29-12-2008, os insolventes constituíram em benefício da “ G... , S.A.” uma hipoteca voluntária para garantia das obrigações assumidas ou a assumir por uma sociedade terceira sobre a fracção referida na alínea b) do ponto 8 dos factos provados.

16. Por sentença proferida em 26-10-2011, no âmbito do processo nº238/10.2TBSPS do do T.J. de S. Pedro do Sul, em que foram autores os ora reclamantes C... e D... e réus os aqui insolventes, estes foram condenados a pagar aos reclamantes a quantia de €95.000,00, correspondente ao dobro do valor recebido pelos insolventes a título de sinal, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde 28-03-2011 até efectivo e integral pagamento.

17. Pela mesma sentença foi reconhecido a favor dos aí autores o direito de retenção sobre o imóvel composto por fracção autónoma identificada sob a letra B do edifício denominado “ (...) ”, sito em São Pedro do Sul, descrito na Conservatória do Registo Predial de São Pedro do Sul sob a ficha nº I... , que os insolventes prometeram vender aos aqui reclamantes para garantia do crédito resultante do incumprimento do contrato promessa no montante referido em 8).

18.Os credores reclamantes C... e D... residem alternadamente na fracção referida na al. b) do ponto 8) e em Lisboa na Rua Augusto Costa “Costinha”, nº6, 1º Esquerdo, 1500-063 Lisboa.

19. Esta última morada, pertencente a um filho, corresponde ao seu domicílio fiscal.

20. Por contrato-promessa outorgado em 30 de Abril de 2009 os insolventes prometeram vender e os credores reclamantes E... e F... prometeram comprar a fração autónoma designada pela letra “H” correspondente ao rés do chão direito, segunda fase, destinada a habitação de tipologia T três, garagem na cave e compartimento no sótão, que faz parte integrante do prédio urbano em propriedade horizontal sito ao (...) , designado por “Edifício (...) – 2ª Fase”, freguesia e concelho de S. Pedro do Sul, inscrito na matriz sob o artigo (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de São Pedro do Sul sob o nº1.258-H, livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, pelo preço de €80.000,00.

21. O preço foi integralmente pago pelos credores reclamantes.

22. O pagamento do preço resultou do cumprimento de um contrato promessa de permuta outorgado em 15 de Julho de 1997 nos termos do qual os credores reclamantes prometiam vender o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 601 da freguesia e concelho de S. Pedro do Sul, o que concretizaram por escritura outorgada em 29 de Julho de 1997, e como pagamento do preço os insolventes faziam a transmissão de três fracções autónomas, uma arrecadação e três arrumos construídas em tal prédio rústico, designadamente a identificada em 20).

23. No contrato promessa referido em 20) foi ainda estabelecido que o contrato definitivo de compra e venda seria outorgado em data, hora e local a designar por qualquer dos outorgantes mediante aviso prévio de 15 dias para que os promitentes vendedores, os ora insolventes, ficaram obrigados a obter a documentação necessária ao gozo e fruição do bem e a assegurar o cancelamento de hipoteca que incide sobre o prédio prometido vender.

24. Os promitentes compradores, ora credores reclamantes, em 17 de Outubro de 2013, interpelaram os promitentes vendedores, ora insolventes, para a celebração do contrato definitivo, o que estes não cumpriram.

25. Ao contrato promessa foi conferido o benefício da execução específica.

26. No contrato promessa referido em 20) as partes declararam que “…em Junho do ano de 2008 procederam à tradição do imóvel, objecto deste contrato promessa de compra e venda, tendo entregue aos segundos outorgantes, e estes aceitaram, as chaves da fracção autónoma, garagem e arrumos.”

27. Desde Junho de 2008 os credores reclamantes têm usado sem qualquer restrição exercendo todos os actos e poderes para o seu gozo e fruição.

28. Com o conhecimento e consentimento dos insolventes os promitentes compradores têm realizado benfeitorias necessárias ao gozo e fruição do prédio, designadamente aquisição de todo o mobiliário de cozinha, electrodomésticos, armários, roupeiros, móveis para o quarto de banho e outros.

29. Bem como asseguraram o pagamento de diversas despesas, designadamente contratação de fornecimento de energia eléctrica, gás, água e saneamento, pagando as respectivas taxas impostos, honorários e despesas.

30. Nas obras, benfeitorias e despesas que já realizaram os promitentes compradores gastaram um montante de, pelo menos, €1.851,50.

31. Por contrato-promessa outorgado em 19 de Maio de 2011 os insolventes prometeram vender e os credores reclamantes E... e F... prometeram comprar a fração autónoma designada pela letra “L” correspondente ao primeiro andar esquerdo, segunda fase, destinada a habitação de tipologia T três, garagem na cave e compartimento no sótão, que faz parte integrante do prédio urbano em propriedade horizontal sito ao (...) , designado por “Edifício (...) – 2ª Fase”, freguesia e concelho de S. Pedro do Sul, inscrito na matriz sob o artigo (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de São Pedro do Sul sob o nº1.258-L, livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, pelo preço de €87.500,00.

32. O preço foi integralmente pago pelos credores reclamantes.

33. O pagamento do preço resultou do cumprimento de um contrato promessa de permuta outorgado em 15 de Julho de 1997 nos termos do qual os credores reclamantes prometiam vender o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 601 da freguesia e concelho de S. Pedro do Sul, o que concretizaram por escritura outorgada em 29 de Julho de 1997, e como pagamento do preço os insolventes faziam a transmissão de três fracções autónomas, uma arrecadação e três arrumos construídas em tal prédio rústico, designadamente a identificada em 31).

34. No contrato promessa referido em 31) foi ainda estabelecido que o contrato definitivo de compra e venda seria outorgado em data, hora e local a designar por qualquer dos outorgantes mediante aviso prévio de 15 dias para que os promitentes vendedores, os ora insolventes, ficaram obrigados a obter a documentação necessária ao gozo e fruição do bem e a assegurar o cancelamento de hipoteca que incide sobre o prédio prometido vender.

35. Os promitentes compradores, ora credores reclamantes, em 17 de Outubro de 2013, interpelaram os promitentes vendedores, ora insolventes, para a celebração do contrato definitivo, o que estes não cumpriram.

36. Ao contrato promessa foi conferido o benefício da execução específica.

37. No contrato promessa referido em 30) as partes declararam que “…em Junho do ano de 2008 procederam à tradição do imóvel, objecto deste contrato promessa de compra e venda, tendo entregue aos segundos outorgantes, e estes aceitaram, as chaves da fracção autónoma, garagem e arrumos.”

38. Desde Junho de 2008 os credores reclamantes têm usado sem qualquer restrição exercendo todos os actos e poderes para o seu gozo e fruição.

39. Com o conhecimento e consentimento dos insolventes os promitentes compradores têm realizado benfeitorias necessárias ao gozo e fruição do prédio, designadamente aquisição de todo o mobiliário de cozinha, electrodomésticos, armários, roupeiros, móveis para o quarto de banho e outros.

40. Bem como asseguraram o pagamento de diversas despesas, designadamente contratação de fornecimento de energia eléctrica, gás, água e saneamento, pagando as respectivas taxas impostos, honorários e despesas.

41. Nas obras, benfeitorias e despesas que já realizaram os promitentes compradores gastaram um montante de, pelo menos, €1.850,00.

42. Os promitentes compradores têm arrendado as fracções referidas em 20) e 31).

43. Por carta datada de 20 de Dezembro de 2013 os credores reclamantes E... e F... interpelaram o Sr. Administrador da Insolvência para a realização dos contratos definitivos de compra e venda livres de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades para o que fixaram o prazo até 20 de Janeiro de 2014, com a advertência expressa para o disposto no art. 106º do CIRE. Notificaram-no ainda para, se assim, o decidir exercer a sua opção de executar ou recusar o cumprimento dos contratos promessa.

44. O Sr. Administrador dispôs-se a cumprir os contratos-promessa mas, após a decisão proferida a fls. 37 a 39 do apenso C), os contratos prometidos não foram celebrados por não ser possível transmitir os imóveis livres de ónus.

45. No termos da cláusula 6ª do contrato promessa de permuta referido em 22) e 33), os insolventes obrigaram-se a transmitir aos reclamantes 22,5% de qualquer construção, ou do seu valor, que viesse a ser edificada na parte sobrante do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 601º, que os credores reclamantes vieram a transmitir por contrato de compra e venda de 29 de Julho de 1997, que não fosse ocupada com a construção da fase 1 e 2.

46. Na parte sobrante do prédio inscrito na matriz sob o artigo 601º da freguesia de São Pedro do Sul foi edificada a fracção autónoma designada pela letra “G” correspondente ao sótão esquerdo, primeira fase, destinada a arrumos, com uma parcela de terreno com a área de 600m2, e faz parte integrante do prédio urbano em propriedade horizontal sito ao (...) , designado por “Edifício (...) – 2ª Fase”, freguesia e concelho de S. Pedro do Sul, inscrito na matriz sob o artigo (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de São Pedro do Sul sob o nº (...) .

47. O sótão que compõe tal fracção tem valor não inferior a €30.000,00.

48. E a área de terreno que a compõe tem valor não inferior a €100.000,00 pois pode vir a ser autonomizada por via de destaque e tem aptidão para construção de, pelo menos 3 fracções autónomas destinadas a habitação cada uma com a tipologia T3.

49. Os credores reclamantes são emigrantes em França e quando se encontram em Portugal residem no lugar e freguesia de Candal.

Factos não provados.

- O imóvel referido na al. b) do ponto 8) não mostra sinais de se encontrar habitado.

- Os credores reclamantes C... e D... não são vistos a entrar e a sair da fracção referida na al. b) do ponto 8).

- Os credores reclamantes E... e F... recusaram celebrar os contratos prometidos.

Os credores reclamantes E... e F... , desde Junho de 2008, usam os prédios prometidos vender para a sua habitação, de familiares e amigos.

A. Se o requerimento apresentado pelos credores reclamantes E... e F... , em 05/08/14 (fl.s 146/148), solicitando o reconhecimento do seu crédito no montante de 347.000,00 € é extemporâneo e, por isso, inadmissível.

No que a esta questão respeita, alega, em súmula, a recorrente que tendo sido apresentada a lista de credores em 13/01/2014, sem que haja sido objecto de qualquer reclamação, designadamente, por parte dos ora recorridos, não podia a mesma vir a ser posteriormente objecto de impugnação, em conformidade com o disposto no artigo 130.º, n.º 1, do CIRE.

Por outro lado, constando, como consta, de tal lista de credores que apenas se reconhecia o crédito dos recorridos, na perspectiva de que os contratos promessa iriam ser cumpridos e sem que estes quanto a isso reagissem, não podem, agora, pretender o reconhecimento do seu crédito, na vertente do incumprimento, que ali não consta, contra o que poderiam e deveriam ter reagido, no prazo legal para tal fixado, pelo que tal “omissão” do Administrador não pode ser enquadrada na hipótese do “erro manifesto”, a que se alude no n.º 3 deste preceito.

Como acima referido, ao invés, na decisão ora em apreço (constante de fl.s 212 a 216), considerou-se que tendo o Administrador omitido, ao elaborar a lista de credores, o crédito reclamado pelos credores E... e F... , na parte relativa ao seu crédito cuja condição era o não cumprimento dos contratos promessa, tal configura a hipótese de “erro manifesto” a que se alude no artigo 130.º, n.º 3, do CIRE, já que se trata da não inclusão de um crédito reclamado, nas listas de créditos reconhecidos ou não reconhecidos.

Efectivamente, como resulta do relatório elaborado, ao reclamarem o seu crédito, os credores E... e F... (cf. fl.s 181 a 185), concluíram os respectivos termos, configurando a hipótese de incumprimento e de cumprimento dos contratos promessa.

É pacífico que na lista de credores apenas consta o ora referido crédito na vertente do incumprimento de tais contratos promessa, pelo que, efectivamente, se trata de caso em que se omitiu/excluiu o crédito em apreço, na vertente do incumprimento dos contratos promessa.

O que se impunha ao Administrador é que, ao elaborar a lista de credores, contemplasse ambas as hipóteses que baseavam a reclamação de créditos em análise e não apenas uma e a final, se veria qual delas era a eficaz.

Não o tendo feito, como não fez, isso traduz-se na omissão do crédito reclamado pelos credores E... e F... , na vertente do incumprimento dos contratos promessa, sendo que, pelas razões que constam dos factos provados, os mesmos vieram, efectivamente, a não ser cumpridos pelo Administrador.

Ora, de acordo com o disposto no artigo130.º, n.º 1, do CIRE:

“Nos 10 dias seguintes ao termo fixado no n.º 1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorreção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.”.

Ressalvando-se, porém, no seu n.º 3 que:

“Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação de créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista.”.

Daqui decorre pois que, em geral, o prazo para a impugnação da lista de credores, deve ser feita no prazo de 10 dias contados do termo do prazo fixado no artigo 129.º, n.º 1, do CIRE, podendo fundar-se na indevida inclusão ou exclusão de um crédito ou incorrecções do montante ou da qualificação do crédito reconhecido, do que resulta que pode constituir fundamento para a impugnação ali prevista, o facto de certo crédito constar da lista de créditos reconhecidos, quando devia constar na dos não reconhecidos ou de ter sido excluído da lista dos créditos reconhecidos, devendo dela constar.

Por outro lado, como resulta do n.º 3 do artigo 130.º do CIRE, não havendo impugnações, é de, imediato, proferida sentença de verificação e graduação de créditos, em consonância com a lista apresentada pelo Administrador, resumindo-se, em tal caso, o papel do Juiz a homologar a referida lista.

O que só assim não sucederá se o Juiz entender que se verifica um caso de “erro manifesto”, caso em que o Juiz não deverá homologar a lista de credores que lhe foi apresentada.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2.ª Edição, Quid Júris, Lisboa, 2013, a pág. 555:

“a inexistência de impugnações não constitui garantia significativa da correcção das listas elaboradas pelo administrador da insolvência. Este reparo deve ser entendido em função dos curtos prazos concedidos pela lei, quer ao administrador da insolvência, para elaborar as listas, quer aos interessados para as impugnar. Nota tanto mais relevante quanto é certo serem, na grande maioria dos casos, em número significativo os créditos reclamados e volumosos os documentos que instruem as reclamações.

Por outro lado, impressiona, no que respeita às garantias, que a sua constituição esteja normalmente dependente do preenchimento de requisitos formais ad substantiam, cuja falta seja, afinal de contas, puramente ignorada ou desconsiderada por mero efeito da falta de impugnação.

Por isso, defendemos que deve interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar para o que pode solicitar ao administrador os elementos de que necessite.”.

O mesmo defende Mariana França Gouveia, Verificação do Passivo, Revista Themis, Edição Especial, 2005, Novo Direito da Insolvência, a pág. 156, que ali refere:

“No lugar paralelo da sentença de homologação, desistência ou transacção (artigo 300.º do CPC), o juiz examina o objecto e a qualidade das pessoas para apurar a validade do negócio. E a sentença que profere é uma sentença de mérito, produzindo caso julgado material. Não deve pois interpretar-se a norma do artigo 130º, n.º 3 como uma oposição ao juiz, até porque ele é o autor da sentença. Deve antes entender-se a regra como uma possibilidade de simplificação processual à sua disposição.”.

Esta faculdade concedida ao juiz de não homologar “cegamente” a lista que credores que lhe foi apresentada, radica nos poderes de fiscalização que lhe são conferidos pelo disposto no artigo 58.º do CIRE, onde se inclui o poder de fiscalizar se o Administrador da insolvência elaborou a relação de créditos com observância de todas as determinações legais, quer de ordem formal, quer substancial.

Apercebendo-se o Juiz de que existe erro manifesto na elaboração da lista de credores por parte do Administrador, deve aquele determinar a elaboração de nova lista, rectificada em conformidade e, em seguida, dar às partes a oportunidade de se pronunciarem quanto a ela – cf. Acórdãos do STJ, de 25/11/2008, Processo 08A3102 e de 30/09/2014, Processo 3045/12.4TBVLG-B.P1.S1, ambos disponíveis no respectivo sítio do itij.

Ora, no caso em apreço, verifica-se, como antes já referido, que ao elaborar a lista de credores, no que respeita aos reclamantes E... e F... , o Administrador omitiu o seu crédito, na vertente do incumprimento dos contratos promessa.

Estamos, assim, em face da exclusão de um crédito, hipótese prevista na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 130.º do CIRE, como fundamento da impugnação da lista de credores elaborada pelo Administrador.

Por outro lado, esta exclusão/omissão da relacionação de tal crédito radica no facto de inicialmente o Administrador se propor cumprir os mencionados contratos promessa, o que não veio a suceder, face à impossibilidade da transmissão dos bens sobre que incidiam, livres de ónus ou encargos, contrariamente ao acordado e daí que tal crédito só tenha sido relacionado na perspectiva do cumprimento.

Como acima já mencionado, deveria o Administrador relacionar tal crédito, abarcando ambas as possibilidades referidas/alegadas no requerimento de reclamação de créditos, o que não fez.

A omissão do crédito em causa, na perspectiva do incumprimento dos contratos promessa traduz-se em “erro manifesto”, pois que, face ao exposto, a sua relacionação deveria abarcar ambas as possibilidades. Erro a que incumbia por termo, determinando-se a sua correcta relacionação, com respeito pelo contraditório das partes (veja-se, neste sentido, o citado Acórdão do STJ, de 25/11/2008), o que, assim, foi feito, sem que a decisão ora em apreço mereça a censura que lhe assaca a recorrente, sendo a mesma, ao invés, de manter.

A questão a decidir é a de averiguar da tempestividade da reclamação de créditos em causa, o que se afere pelas disposições legais citadas, concluindo-se pela respectiva tempestividade, pelo que não se verifica a invocada nulidade da decisão em apreço.

A decisão em apreço decidiu o que tinha que decidir e só isso.

            Assim, face ao exposto, quanto a esta questão, improcede o presente recurso.

            B. Se os credores reclamantes E... e F... não podem ser considerados como consumidores, a fim de poderem beneficiar do invocado direito de retenção.

            Os credores ora identificados, como resulta do já anteriormente exposto, radicam a reclamação do seu crédito no facto de terem outorgado dois contratos promessa versando sobre as fracções autónomas acima identificadas, de que já têm a posse, pelo que invocam direito de retenção sobre as referidas fracções, ao abrigo do disposto no artigo 755.º, n.º 1, al. f), do Código Civil.

            Na sentença recorrida, com base no AUJ, n.º 4/2014, de 13 de Março de 2014, in DR, I.ª Série, n.º 95, de 19 de Maio e porque se consideram os mesmos como consumidores, foi-lhes reconhecido o invocado direito de retenção.

            Contra o que se insurge a recorrente, com o fundamento em os mesmos destinarem as ditas fracções ao arrendamento e não para habitação própria e/ou de seus familiares.

            Conforme item 42 dos factos provados, demonstrou-se que os credores E... e F... têm arrendado as fracções em causa, não provando que os usam para a sua habitação e de familiares e amigos (cf. último item dos factos não provados).

            No AUJ acima referido uniformizou-se a jurisprudência no sentido de que:

            “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º n.º 1 alínea f) do Código Civil.”.

No entanto, não se colhe deste AUJ o que se entende por consumidor, pelo que a respectiva definição terá de se buscar na designada Lei de Defesa do Consumidor – Lei 24/96, de 31 de Julho, que já vai na 6.ª versão, sendo a última a que lhe foi introduzida pela Lei n.º 47/2014, de 28/07 – de acordo com a qual, cf. seu artigo 2.º, n.º 1:

“Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.”.

Como refere J. Calvão da Silva, in Venda de Bens de Consumo, Comentário, Almedina, Maio de 2003, a pág. 44, consagra-se neste preceito uma noção de consumidor em sentido estrito – pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado, pessoal, familiar ou doméstico, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, mas já não aquele que obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa, acrescentando que todo aquele que adquira bens ou serviços destinados a uso não profissional deverá ser tido como consumidor.

Esta noção restrita de consumidor veio a ser a acolhida, entre outros, no Acórdão do STJ, de 25/11/2004, Processo 7617/11.6TBBRG-C.G1.S1, disponível no mesmo sítio dos anteriores, em que se coloca a tónica na aquisição de um bem ou serviço para uso privado, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, por contraponto à aquisição de bens ou serviços para satisfação de necessidades da sua profissão ou empresa.

Como resulta do item 49 dos factos provados, os credores E... e F... , são emigrantes em França e residem na freguesia de Candal quando se encontram em Portugal.

E têm arrendado as fracções em causa, como resulta do item 42.º.

Por outro lado, como consta dos itens 22 e 33, os mesmos eram os donos dos prédios rústicos onde foram edificados os imóveis de que fazem parte as fracções prometidas vender e como pagamento do respectivo preço, os insolventes transmitiam-lhe várias fracções autónomas de tais imóveis.

            Ou seja, os reclamantes E... e F... , eram proprietários de prédios rústicos que venderam aos insolventes e receberiam em troca as acordadas fracções dos prédios que neles viesse a ser construídos.

            Concluídos os imóveis receberam as ditas fracções que têm arrendado.

            Este facto leva a que os mesmos sejam considerados como não consumidores para os fins em referência?

            Em nossa opinião tal não afasta que devam ser considerados como consumidores, atento o acima exposto.

            Efectivamente, a aquisição das ditas fracções, como referido, não constitui a satisfação de necessidades profissionais ou de uma empresa, caindo a situação sub judice no âmbito da “economia familiar”, mais não traduzindo do que uma forma de investimento.

            De resto, se as fracções em causa tivessem sido adquiridas com capitais provenientes de poupanças e posteriormente os reclamantes as tivessem destinado ao arrendamento, somos em crer que não se suscitariam dúvidas de que se tratava de consumidores, para os efeitos em referência.

            A única diferença é a de que se tratou de fracções adquiridas em troca da venda do terreno onde foram edificados os imóveis de que as referidas fracções fazem parte, não vislumbrando nós razões para que, só por isso, não se trate de consumidores, atentos os fins em causa.

            De resto, como refere F. Gravato Morais, in Cadernos de Direito Privado, n.º 46 Abril/Junho de 2014, a pág. 53, deve considerar-se uma protecção mais abrangente do que a que se reduz ao retentor-habitacional.

            Por tudo isto, devem os credores E... e F... ser considerados, como o foram na sentença recorrida, consumidores, nos termos e para os efeitos ora tidos em vista.

            Pelo que, igualmente, quanto a esta questão, improcede o presente recurso.

            C. Se os credores E... e F... têm direito ao sinal em dobro.

No que a esta questão concerne, alega a recorrente que os credores reclamantes ora identificados não têm direito ao recebimento do sinal em dobro, por inaplicabilidade à situação de insolvência do disposto no artigo 442.º do Código Civil, sendo, ao invés, de aplicar o disposto nos artigos 102.º e seg.s do CIRE.

Na sentença recorrida, considerou-se que os mesmos têm direito ao sinal em dobro, com o fundamento em que tem aplicação o disposto no artigo 442.º do CC, porque o juízo sobre o incumprimento culposo do insolvente se basta com a recusa de cumprimento por parte do administrador da insolvência, por imputabilidade reflexa da culpa aquele.

No AUJ n.º 4/2014, já acima citado refere-se o seguinte:

“Não se aduza ainda, contra o entendimento exposto, que não há imputação de culpa a fazer em caso de insolvência porque com a declaração desta última, a relação jurídica existente, então reconfigurada, não a poderá comportar, já que ao insolvente se substitui e passa a figurar em juízo apenas a massa falida e o administrador; é para nós claro o cariz redutor deste entendimento; a insolvência não surge do nada, radicando antes e à partida no comportamento de uma entidade que se mostrou não ter cumprido as suas obrigações. Nestes casos já foi decidido e bem, neste Supremo Tribunal de Justiça, que se verifica uma imputabilidade reflexa considerando o comportamento da insolvente na origem do processo falimentar; acresce que, sempre seria a esta última que cumpriria afastar a culpa, que se presume, em matéria de responsabilidade civil contratual – artigo 799º n.º 1 do Código Civil. Por último diremos que o artigo 97º do CIRE que se reporta à extinção de privilégios creditórios e garantias reais, com a declaração de insolvência não enumera “o direito de retenção” no elenco dos extintos. Adiante-se ainda que, como bem salienta o recorrente, bastaria, caso contrário, que uma empresa promitente vendedora e incumpridora do contrato, se apresentasse à insolvência para evitar as consequências do incumprimento.

Em suma concluímos que não sendo afectado o contrato-promessa, mantêm-se os efeitos do incumprimento a que se reporta o artigo 442º nº 2 do Código Civil.”

Como se refere no Acórdão do STJ, de 09/07/2014, Processo 1206/11.2TBLSD-H.P1.S1, disponível no mesmo sítio dos anteriormente citados, no AUJ 4/2014, a tese que obteve vencimento é aquela segundo a qual o crédito do promitente-comprador deverá corresponder ao sinal em dobro, cf. artigo 442.º, n.º 2, do CC e não em singelo, nem de acordo com o disposto nos artigos 102.º, n.º 3, al. c); 106.º, n.º 2 e 104.º, n.º 5, do CIRE.

Ali se concluindo que se trata “de entendimento que, muito embora não integre o segmento da uniformização, encerra o valor de premissa lógica necessária que o antecede e, nessa medida, deverá assumir o mesmo carácter vinculativo.”.

O entendimento de que o promitente-comprador, nestes casos, tem direito ao sinal em dobro é, também, perfilhado por F. Gravato Morais, in ob. cit., pág.s 54 a 56, por entender ser de aplicar o regime civilista do sinal, por a questão não estar expressamente regulada à luz do CIRE.

Assim, igualmente, neste segmento é a decisão recorrida de manter, improcedendo o recurso, quanto a esta questão.

            Nestes termos se decide:      

            Julgar improcedente o presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

            Coimbra, 13 de Outubro de 2015.

Arlindo Oliveira (Relator)

Emidio Francisco Santos

Catarina Gonçalves