Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1275/05.4TBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GREGÓRIO JESUS
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
COMODATO
DENÚNCIA DE CONTRATO
USO DETERMINADO
Data do Acordão: 09/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTºS 1022º, 1023º, 1135º, AL. H), 1137º, 1140º, 1141º E 1311º DO CC
Sumário: I – A qualificação de um dado contrato como de arrendamento só pode resultar de prova no sentido de que os RR (locatários) se obrigaram a satisfazer uma contrapartida, uma retribuição, pela concessão do gozo temporário do prédio – artsº 1022º e 1023º do CC.
II – Reconhecido o direito de propriedade aos AA sobre um dado imóvel, a sua restituição pelos RR, em cuja detenção se encontra, só não ocorrerá se o reivindicado provar que detém a coisa por um justo título (artº 1311º, nºs 1 e 2, CC).

III – O demandado pode contestar o dever de entrega da coisa, sem negar o direito de propriedade do autor, com base em qualquer relação (obrigacional ou real) que lhe confira a posse ou a detenção da coisa (cujo ónus de prova cabe ao demandado).

IV – O contrato de comodato pode constituir um obstáculo legal à entrega da coisa pelo seu detentor ao proprietário.

V – O “comodato” é um contrato constituído intuitu personae, de natureza real, quod constitutionem, no sentido de que só se completa pela entrega da coisa, com eficácia puramente obrigacional e que caduca com a morte do comodatário (artº 1141º CC).

VI – De entre as obrigações do comodante ressalta aquela em que o mesmo se deve abster de actos que impeçam ou restrinjam o uso da coisa pelo comodatário, podendo mesmo, se tal acontecer, o comodatário lançar mão dos meios de defesa possessórios colocados ao dispor do possuidor, nos termos do artº 1276º e segs. CC (artº 1133º, nºs 1 e 2, CC).

VII – De entre as obrigações do comodatário ressalta aquela de restituir a coisa ao comodante logo que findo o contrato (artº 1135º, al. h), CC).

VIII – O contrato de comodato pode extinguir-se por caducidade (artº 1141ºCC), por denúncia (artº 1137º CC) ou por resolução (artº 1140º CC).

IX – No que concerne à denúncia, resulta do artº 1137ºCC que o contrato de comodato cessa ou termina necessariamente: a) quando finde o prazo certo por que foi convencionado; b) não havendo prazo certo, quando finde o uso determinado para que foi concedido; c) não havendo prazo certo e nem uso determinado, quando o comodante o exija.

X – É entendimento dominante que o “uso determinado” só o é se se delimitar, em termos temporais, a necessidade que o comodato visa satisfazer, isto é, o “uso” da coisa para que seja “determinado” deve conter em si a definição do tempo de uso.

XI – Não poderá considerar-se como “determinado” o uso de certa coisa, se não se souber por quanto tempo vai durar, se foi concedido por tempo indeterminado, o que se entende e concilia perfeitamente na medida em que assente em relações de cortesia e gentileza o comodato visa satisfazer necessidades temporárias.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO


A..., B..., e C..., todos residentes em França, intentaram a presente acção com processo ordinário contra D... e E..., residentes em ..., ..., pedindo que:

a) Se declarem os autores donos e legítimos proprietários do prédio urbano identificado em 1º e 2º da petição;

b) Se condenem os réus a reconhecerem aos autores o direito de propriedade sobre o imóvel em causa e por eles ocupado;

c) Se condenem os réus a restituírem aos autores o imóvel que ilicitamente ocupam, entregando-o livre de pessoas e bens.

Para o efeito alegam, em síntese, serem comproprietários do prédio urbano constituído por uma casa de habitação de rés-do-chão e forro com dois anexos, sito na ..., freguesia de ..., que identificam nos arts 1º e 2º da petição inicial, prédio esse que há cerca de treze anos, por mera tolerância do pai dos autores F..., os réus ocuparam na totalidade até que conseguissem arranjar uma habitação condigna.

No entanto, nunca mais os réus procuraram casa, nem abandonaram o prédio apesar da insistência dos pais dos autores e destes.

Regularmente citados, os réus contestaram e reconvieram.

Em síntese, excepcionaram a nulidade da petição inicial por o prédio descrito na petição inicial fazer parte da herança aberta por óbito dos pais dos autores, não tendo estes o direito de propriedade que se arrogam, assim como a ilegitimidade dos autores por não terem interesse directo em reivindicar um bem que não lhes pertence, e só por todos os herdeiros os direitos relativos à herança poderem ser exercidos.

Impugnaram também os factos invocados, alegando que não ocupam a totalidade do prédio, celebraram com os pais dos autores um contrato de arrendamento sobre os anexos existentes no prédio em questão, onde, pelo menos, desde o ano de 1985 residem de forma pacífica e reiterada, à vista de toda a gente, tendo sido acordado que pagariam a renda de 500$00 por mês, a entregar na casa do senhorio.

 Sucede que, a certa altura, o pai dos autores recusou-se a receber as rendas, solicitando aos réus que quando tivessem possibilidade tentassem arranjar outro local para habitar, pelo que temendo o despejo por falta de pagamento de rendas os réus passaram, desde Janeiro de 1986, a proceder ao seu depósito na Caixa Geral de Depósitos até à presente data.

Admitem ainda a existência de um contrato de comodato, a que não foi estipulado prazo certo para a sua restituição, mas tendo sido acordado o uso a dar à coisa, a sua habitação, a devolução do imóvel só se realizará quando cessar o uso para o qual foi emprestado.

Mais alegam que não têm possibilidades económicas para arrendarem outro espaço, e que quando se mudaram para o imóvel em causa, onde sempre permaneceram de boa-fé, colocaram um telhado novo tendo gasto então cerca de 100,00€, ao longo dos anos pintaram regularmente as paredes e foram substituindo as chapas do telhado que se deterioram tendo gasto cerca de 60,00€, há um ano tornou-se novamente necessário fazer um telhado novo no que pagaram 260,00€, pelo que devem ser indemnizados em 420,00€ pelas benfeitorias necessárias realizadas.

Concluem sustentando a improcedência da acção, e pedem em reconvenção:

– Se condenem os autores a reconhecerem a existência de um contrato de arrendamento válido, celebrado entre os seus pais e os réus referente aos anexos e terreno contíguo existentes no prédio identificado na petição inicial, e a absterem-se da prática de qualquer acto que impeça a utilização do prédio pelos réus.

– Se assim não se entender, condenar-se os autores a reconhecerem o direito dos réus a permanecer no prédio acima referido, por contrato de comodato celebrado entre eles e os pais dos autores, uma vez que os réus continuam a dar à coisa o fim para o qual esta foi emprestada, e a absterem-se da prática de qualquer acto que impeça a utilização do prédio pelos réus.

- Se assim não se entender, deve condenar-se os autores ao pagamento aos réus do valor de 420,00€, a título de indemnização pelas benfeitorias úteis realizadas no prédio em causa, e ainda ordenar-se a devolução de 598,85€ depositados pelos réus a título de renda junto da Caixa Geral de Depósitos.

Replicaram os autores, defendendo o infundado das excepções invocadas, mas em todo caso requereram a intervenção principal provocada dos restantes herdeiros

Quanto ao mais, contrariaram a existência de tal contrato de arrendamento e admitem a existência do contrato de comodato celebrado pelo pai mas a titulo provisório, gratuito e por um curto espaço de tempo, e os réus que desde início agiram e continuam a agir de má-fé deverão ser condenados em multa e indemnização nunca inferior a 1.500,00€.

Concluem pedindo a improcedência do pedido reconvencional.

Foi admitida a intervenção principal provocada activa dos demais co-herdeiros identificados na réplica.

No despacho saneador decidiu-se a improcedência das excepções invocadas na contestação, admitiu-se a reconvenção, e seleccionaram-se as matérias assente e controvertida.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgando procedente a acção declarou os autores proprietários do prédio urbano identificado, condenou os réus a reconhecerem esse direito de propriedade, na titularidade dos autores, e a restituírem aos autores o referido imóvel, livre de pessoas e bens.

O pedido reconvencional foi julgado improcedente.

Inconformados, apelaram os réus que das suas alegações tiram as seguintes conclusões:

[…]

Os apelados não contra-alegaram.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


ª

As conclusões dos recorrentes – balizas delimitadoras do objecto do recurso (arts. 684º nº3 e 690º nº 1º do Cod. Proc. Civil) – consubstanciam as seguintes questões:

a) Nulidade da sentença nos termos da al. c) do n.º 1 do artigo 668º do CPC;

b) Alteração da matéria de facto;

c) Se se mostra celebrado um contrato de arrendamento entre os réus e o pai dos autores;

d) Se com o contrato de comodato dispõem, ou não, os recorrentes de título jurídico que justifique a sua ocupação do prédio.

ª


II-FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

Vem dada por provada a seguinte matéria fáctica:  

[…]


ª

            DE DIREITO

[…]

[…]

C) Se se mostra celebrado um contrato de arrendamento entre os réus e o pai dos autores

Contrariamente ao que sustentam os recorrentes, os factos provados nos autos não permitem concluir que se possa qualificar a ocupação do anexo pelos réus como adveniente de um contrato de arrendamento.

Tal qualificação só poderia proceder se da prova disponível, com relevo para a sua interpretação, resultasse que os réus se haviam obrigado a satisfazer uma contrapartida, retribuição, pela concessão do gozo temporário do prédio, assim se reunindo os elementos essenciais típicos do contrato de arrendamento encontrados a partir da conjugação dos artigos 1022º e 1023º do Código Civil (diploma a que pertencerão todos os normativos referidos ao diante sem outra indicação).

Cumpre quanto a este ponto recordar que os réus vieram a juízo alegar haverem acordado com os pais dos autores o gozo temporário do prédio mediante a renda mensal de 500$00 a entregar na casa do senhorio. No entanto, não lograram fazer tal demonstração como resulta da resposta negativa dada ao quesito 9º. Antes vem provada a simples tolerância dos pais dos autores nesse gozo sem qualquer contrapartida (alíneas E) e F)), sabendo-se ser “essencial à perfeição do arrendamento que as partes tenham acordado no montante da retribuição que deve ser paga pelo locatário ou no critério que permita a sua fixação[1].

Por isso, a nossa anterior afirmação da irrelevância da iniciativa dos réus de a partir de desde Fevereiro de 1986 passarem a proceder ao depósito de montantes por virtuais rendas, procurando travestir a realidade existente. Ao contrário do que supõem os recorrentes na sua alegação, não têm esses depósitos, só por si, qualquer virtualidade para converterem um acto de tolerância num contrato de arrendamento, daí a inocuidade da sua imputação, seja a “palheiro”, seja à “sua casa”, seja ao “prédio”, ou sequer ao “prédio urbano constituído por uma casa de habitação de rés-do-chão e forro com dois anexos, sito na ... “.

Em suma, não estamos perante um contrato de arrendamento, entendimento perfilhado na 1ª instância que aqui se reitera.

D) Se com o contrato de comodato dispõem, ou não, os recorrentes de título jurídico que justifique a sua ocupação do prédio

Por fim, invocam os apelantes terem alegado, subsidiariamente, a existência de um comodato tendo-se entendido na sentença recorrida estar-se perante um comodato em sentido próprio com determinação pelas partes de que o mesmo vigorava até que os réus arranjassem uma casa.

Como tal, não tendo prazo certo, mas tendo uso determinado, nos termos do disposto no art. 1137º, o comodante ou os seus sucessores mortis causa não gozam da faculdade de pedirem, em qualquer altura, a restituição da parte do imóvel emprestada, não podendo o tribunal a quo oficiosamente determinar que 13 anos é o prazo de duração do contrato de comodato.

Vejamos.

Estamos no âmbito de uma acção de reivindicação que se caracteriza pelos seus dois pedidos: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condennatio), por outro.

Sobre o reivindicante recai o ónus de provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou na detenção do réu. O direito de propriedade sobre o imóvel foi reconhecido aos autores pela sentença ora impugnada, tal como, e já vimos, o imóvel está na posse dos réus, o que não vem questionado.

Reconhecido tal direito ao reivindicante a restituição só não ocorrerá se o reivindicado provar que detém a coisa por um justo título (art. 1311º, nºs 1 e 2). O demandado “poderá contestar o seu dever de entrega, sem negar o direito de propriedade do autor, com base em qualquer relação (obrigacional ou real) que lhe confira a posse ou a detenção da coisa[2].

Significa isto, que serão os réus que, tal como decorre dos arts. 1311º, nº 2, e 342º, nº 2, terão de alegar e fazer prova de que possuem título (vg. usufruto, contrato de arrendamento ou comodato) que impede que o autor venha a obter a restituição do aludido prédio, ainda que lhe venha a ser reconhecido o seu direito de propriedade sobre o mesmo.

Os factos provados revelam, tal como se concluiu na sentença recorrida, que F... (pai dos autores) e os apelantes celebraram um contrato de comodato, cujo objecto mediato foi o anexo do prédio urbano em causa, para o fim de a estes proporcionar habitação. Os réus encontram-se, pois, numa situação de posse titulada como comodatários do anexo.

O contrato de comodato, com previsão e disciplina nos arts. 1129º a 1141º pode constituir precisamente um obstáculo legal à entrega da coisa pelo seu detentor ao proprietário.

Encontra-se definido naquele primeiro normativo como sendo um “contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega a outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela com a obrigação de a restituir”.

Trata-se de um contrato constituído intuitu personae, de sua natureza, real, quod constitutionem, no sentido de que só se completa pela entrega da coisa, com eficácia puramente obrigacional [3], e que caduca com a morte do comodatário (art. 1141º).

De entre as obrigações do comodante ressalta aquela em que o mesmo se deve abster de actos que impeçam ou restrinjam o uso da coisa pelo comodatário, podendo mesmo, se tal acontecer, o comodatário lançar mão dos meios de defesa possessórios colocados ao dispor do possuidor, nos termos do art. 1276º e seguintes (art. 1133º, nºs 1 e 2).

Por seu lado, de entre as obrigações do comodatário, ressalta aquela de restituir a coisa ao comodante logo que findo o contrato (art. 1135º, al. h)).

De qualquer modo, este contrato pode extinguir-se por caducidade (art. 1141º), por denúncia (art. 1137º) ou resolução (art. 1140º).

No que concerne à denúncia, prescreve o art. 1137º que, “se os contraentes não convencionarem prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação” (nº 1) e que “se não for convencionado prazo certo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida” (nº 2).

Resulta, assim, do previsto neste normativo que o contrato de comodato cessa ou termina necessariamente:

a) quando finde o prazo certo por que foi convencionado;

b) não havendo prazo certo, quando finde o uso determinado para que foi concedido;

c) não havendo prazo certo e nem uso determinado, quando o comodante o exija.

No caso em apreço, não foi convencionado prazo certo.

Mas considerou a sentença recorrida ser a relação estabelecida entre o falecido F... (pai dos autores) e os réus de “comodato em sentido próprio”, dado que o referido F... entregou, de forma gratuita, o prédio urbano de que era dono aos RR., para que os mesmos aí habitassem enquanto não arranjavam uma casa.

E partindo destes pressupostos, para prematuramente os abandonar procurando arrimo no palco do ónus da prova, mais se entendeu que “a vontade transmitida pelo comodante não era a de que os RR. aí habitassem enquanto fossem vivos, mas sim  enquanto não arranjassem outra habitação. Logo, deveriam procurar tal habitação, configurando tal diligência um facto impeditivo do direito à restituição da coisa invocado pelos AA.”, pelo que não tendo os réus provado que diligenciaram, sem sucesso, pela obtenção de uma  habitação, sendo que o acordo com o comodante já datava, relativamente  à propositura da acção,  de  há 13 anos atrás, era dever deles restituir a coisa, tal como acontece quando não foi estipulado prazo certo para a restituição.

Os réus controvertem este juízo sustentando que o uso a que o comodato se destinava ainda não findou, a cessação do comodato apenas poderia operar se se tivesse provado que se realizou o fim para o qual o mesmo foi constituído, isto é se, efectivamente, os réus tivessem novo lar (cfr. n.º 1 do artigo 1137º), e não com base no facto de o acordo com o comodante já durar, à data da propositura da acção, há 13 anos.

 Não lhes assiste razão, e a explicação, bem como a solução, passa por precisar o que se deve entender por “uso determinado”, expressão conceptualizada no nº 1 do art. 1137º, abordada mas não eficientemente utilizada na decisão recorrida, e mal representada pelos apelantes.

Como já se disse, no caso é indiscutível que não foi convencionado prazo para a restituição da coisa.

Só que, para aplicação à hipótese dos autos do disposto no n.º 1 do citado art.º 1137º como defendem os apelantes impõe-se ainda que o anexo tenha sido emprestado para “uso determinado”.

É entendimento dominante que o “uso determinado” só o é se se delimitar, em termos temporais, a necessidade que o comodato visa satisfazer, isto é, o “uso” da coisa para que seja “determinado” deve conter em si a definição do tempo de uso.

Como tal, é devida a restituição findo o uso concedido, ou o mesmo é dizer, esgotado o período temporal estabelecido para esse uso (v.g. no empréstimo de um livro para figurar numa exposição, logo que se esgote o tempo de duração da exposição e esta seja encerrada)[4].

Assim, não poderá considerar-se como “determinado” o uso de certa coisa, se não se souber por quanto tempo vai durar, se foi concedido por tempo indeterminado, o que se entende e concilia perfeitamente na medida em que assente em relações de cortesia e gentileza o comodato visa satisfazer necessidades temporárias[5].

Daí que não se possa sustentar que no caso sub judice o anexo foi emprestado para “uso determinado”, já que a tal não equivale o dizer-se que o anexo foi cedido para habitação dos réus/apelantes, pois que são realidades diferentes a “determinação” do uso da coisa e o fim para que foi emprestada[6].

No caso vertente, o pai dos autores entregou, de forma gratuita, o anexo do prédio urbano de que era dono aos réus, para que os mesmos aí habitassem até que conseguissem arranjar nova morada.

A nosso ver é claro que não convencionaram os contraentes o “uso determinado” do anexo pois que não se lhe associou alguma delimitação no tempo para o gozo do mesmo. A entrega do anexo mostra-se feita por uma forma que não permite determinar quando temporalmente findará o seu uso e se tornará exigível a sua restituição. Este uso não permite delimitar a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer.

Também é evidente, como se ponderou na sentença, que a vontade transmitida pelo comodante não foi a de que os réus aí habitassem enquanto fossem vivos[7], mas tão só enquanto não arranjassem outra habitação.

Considerando, então, os termos do contrato de comodato celebrado, a conclusão a extrair é a de que eles subordinaram o fim da produção dos respectivos efeitos jurídicos a um termo incerto coincidente com a data em que os réus arranjassem nova morada, e indeterminável porquanto não se sabe quando tal acontecerá ficando na inteira dependência da vontade dos réus.

Daí a alegação dos réus apelantes de que o uso ainda não findou, continuam a usar o anexo como sua habitação. Mas a perfilhar-se o seu entendimento, o comodante não conseguirá a restituição da casa enquanto o comodatário não se dispuser a desocupá-la, a menos que ocorra a caducidade do contrato por morte do comodatário (art.1141º), e como expressivamente advertia Cunha Gonçalves no seu Tratado VIII, pág. 250[8]convém ter em vista, sempre, que o comodato é um acto de favor; e não deve a justiça consentir em que ele se converta em acto nocivo ao comodante

Sendo assim, a ocupação do anexo até que os réus encontrassem casa para residir, não configura o conceito de “uso determinado” a que alude o nº 1 do art. 1137º do Código Civil[9].

 Desta forma, a consequência para a indeterminação do uso da coisa emprestada, tal como acontece quando não foi estipulado prazo certo para a restituição, é o dever do comodatário restituir a mesma coisa logo que o comodante o exija[10].

Deslocada se mostra, pois, a fundamentação perfilhada na decisão recorrida para a solução encontrada, que tanto perturbou os apelantes, no âmbito do ónus da prova a cargo dos réus e da longevidade do comodato.

Todavia, a decisão impugnada acaba por merecer a nossa concordância muito embora com fundamentação não totalmente coincidente.

Concluindo, a invocação do comodato é ineficaz contra o pedido reivindicatório do prédio. A consequência não pode ser outra que não seja a improcedência da pretensão dos réus. Devem os autores ser restituídos à posse do anexo.

Improcedem, pois, as conclusões do recurso.


ª

III – DECISÃO


Pelos motivos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.


Relator: Gregório Silva Jesus
Adjuntos: Desembargadores Martins de Sousa e Regina Rosa


[1] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, pág. 343, nota 5, 4ª ed.; cfr. igualmente Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7ª ed., págs. 128 a 132.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, pág. 116, 2ª ed..
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, ob.cit., vol. II, pág. 741, 4ª ed..
[4] Cfr. neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., vol. II, págs. 756, nota 3.
[5] Cfr. Acs. do STJ de 16/02/83, Proc. nº 070496,  31/05/90, Proc. nº 077043, 26/06/97, Proc. nº 97A334, 13/05/03, Proc. nº 03A1323, no ITIJ; Acs da RP de 26/01/84 e 11/01/94, na CJ 1984, tomo I, pág. 231 e 1994, tomo 2, pág. 173.
[6] A contestação, particularmente os seus arts. 51º, 52º e 61º, e as alegações de recurso revelam ser este precisamente a interpretação do conceito legal do “uso determinado” tida pelos réus, entendendo por tal o fim para que a coisa foi emprestada e não a delimitação temporal do uso da coisa.
[7] É que o uso da coisa por toda a vida do comodatário é válido, porque sendo embora o termo da vida incerto, todavia a morte é certa pelo que o uso está temporalmente por ela determinado (cfr. Ac. RC de 27/06/06, Proc. 964/06, no ITIJ).
[8] Conforme citação colhida do Ac. da RP de 26/01/84 acima mencionado.
[9] Os apelantes em seu abono citam o Ac. da RG de 28/06/07, Proc. nº 245/07-1, disponível no ITIJ, mas, com todo o respeito que é devido, afigura-se-nos que a questão foi ali ponderada de forma muito perfunctória, abstendo-se de incursão na sua essência.

[10] Cfr. neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., vol. II, págs. 756, nota 5, quando referem como caso de aplicação do nº 2 do art. 1137º aquele em que alguém deixa outrem “instalar-se gratuitamente num prédio urbano, sem se fixar prazo nem delimitar a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer”; Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código Civil”, vol. IV, pág. 250/251; Acs. do STJ de 8/05/84, Proc. nº 071531, 1/07/99, Proc. nº 99B344, 13/05/03 já citado, e de 18/12/03, Proc. nº 03B3612, no ITIJ; Ac. da RC de 14/11/00, Proc. nº 2726/2000, sumariado no ITIJ; Acs da RL de 5/12/93, Proc. nº 0064236, 14/10/08, Proc. nº  2875/2008-1, no ITIJ.
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