Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3239/20.9T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
QUID DISPUTATUM
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE COIMBRA – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 59º E 62º, AL. B) DO NCPC.
Sumário: I- A competência internacional dos Tribunais Portugueses afere-se pelo quid disputatum, isto é, pelos termos em que o autor configura a relação jurídica controvertida, pressupondo que o litígio apresenta um ou mais elementos de conexão com uma ou várias ordens jurídicas distintas do ordenamento do foro.

II- A competência em função do critério da causalidade pressupõe que, de acordo com a alegação do A., se tenha verificado em território nacional o facto ou algum dos factos integradores da causa de pedir (complexa) por este invocada (cfr. artº 62º, b) do C.P.C.).

III- Invocando o A., jogador profissional, a utilização pela R., sociedade com sede nos EUA, sem o seu consentimento, do seu nome e imagem em jogos FIFA por esta criados e desenvolvidos nos EUA, a competência internacional dos Tribunais nacionais dependeria da alegação da prática em território português do facto ou de algum dos factos que integram a causa de pedir: o facto ilícito, o nexo de causalidade e o dano.

IV- Sendo os referidos jogos FIFA produzidos e divulgados pela R. nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão e consistindo o dano nessa utilização e divulgação abusiva, os Tribunais Portugueses são internacionalmente incompetentes para o conhecimento da causa, por, quer o facto ilícito quer o dano decorrente da própria utilização da imagem e sua divulgação se terem praticado naquele território, sendo irrelevante, para o efeito, os locais da posterior divulgação, visualização ou aquisição pelo consumidor final do referido jogo.

Decisão Texto Integral:






SUMÁRIO ELABORADO E DA RESPONSABILIDADE DO RELATOR (ARTº 667º, Nº 3 DO C.P.C.)

I-A competência internacional dos Tribunais Portugueses afere-se pelo quid disputatum, isto é, pelos termos em que o autor configura a relação jurídica controvertida, pressupondo que o litígio apresenta um ou mais elementos de conexão com uma ou várias ordens jurídicas distintas do ordenamento do foro.

II-A competência em função do critério da causalidade, pressupõe que, de acordo com a alegação do A., se tenha verificado em território nacional o facto ou algum dos factos integradores da causa de pedir (complexa) por este invocada (cfr. artº 62º, b) do C.P.C.).

III-Invocando o A., jogador profissional, a utilização pela R., sociedade com sede nos EUA, sem o seu consentimento, do seu nome e imagem em jogos FIFA por esta criados e desenvolvidos nos EUA, a competência internacional dos Tribunais nacionais dependeria da alegação da prática em território português do facto ou de algum dos factos que integram a causa de pedir: o facto ilícito, o nexo de causalidade e o dano.

IV-Sendo os referidos jogos FIFA produzidos e divulgados pela R. nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão e consistindo o dano nessa utilização e divulgação abusiva, os Tribunais Portugueses são internacionalmente incompetentes para o conhecimento da causa, por, quer o facto ilícito quer o dano decorrente da própria utilização da imagem e sua divulgação se terem praticado naquele território, sendo irrelevante, para o efeito, os locais da posterior divulgação, visualização ou aquisição pelo consumidor final do referido jogo.

Proc. Nº 3239/20.9T8CBR-A.C1 Apelação

Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra-Juízo Central Cível de Coimbra-J2

Recorrente:  E...

Recorrido: D...

Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: Jaime Ferreira

                                                                    Teresa Albuquerque

Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação De COIMBRA:


RELATÓRIO

D..., jogador de futebol profissional, de nacionalidade portuguesa e com residência indicada em Portugal, interpôs acção declarativa na forma comum contra E..., sociedade com sede os EUA, peticionando a condenação da R. a pagar-lhe uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais em montante que computa em €115.302,14 (nela incluído juros de mora), pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome nos jogos FIFA, produzidos e comercializados pela R. nos EUA, Canadá e Japão, jogos igualmente comercializados em Portugal por uma sua subsidiária, dessa atuação resultando os danos que computa nos acima quantificados.

*

Citada, veio a R. apresentar contestação suscitando, no que ao caso importa, a incompetência internacional do presente Tribunal para apreciação da presente ação, por não se verificar qualquer dos factores de atribuição de competência internacional previstos nos arts. 62.º e 63.º do CPC., tendo em conta que o A. alega na p.i. que: reside e trabalha na Roménia; a ré é uma sociedade norte-americana, com sede no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América, e dedica-se à exploração, distribuição e venda de jogos nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão; a R. não ré vendendora, em Portugal, os jogos FIFA e FIFA MANAGER; não são alegados danos decorrentes de acto praticado pela R. que se produzam em Portugal.

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Notificada para o efeito, veio a Autora pronunciar-se pela competência dos tribunais portugueses para decidir a presente ação, alegando a aplicabilidade do critério de competência territorial constante do artº 82º do C.P.C. para efeitos da alínea a) do artº 62º do C.P.C. e, mais alegando, que os danos se verificaram também em território nacional, por referidos os jogos serem aqui vendidos e divulgados, integrando-se a causa no disposto no artº 62º, b) do C.P.C.

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Após o que pelo tribunal recorrido foi proferida decisão que julgou este tribunal internacionalmente competente, afastando a aplicabilidade do disposto nas alíneas a) e c) do artº 62º do C.P.C., por considerar verificado o factor de conexão constante da alínea b) do C.P.C. decorrente de “Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação ou algum dos factos que a integram (à causa de pedir). Consabidamente a causa de pedir nas acções fundadas na responsabilidade civil extracontratual é complexa, integra todos os pressupostos, a saber, o facto ilícito, a culpa, o nexo de causalidade e os danos, o que implica, "segundo as circunstâncias, a alegação da matéria de facto relacionada com o evento, a ilicitude, a conduta culposa, ou uma situação coberta pela responsabilidade objectiva, os prejuízos e o nexo de causalidade adequado entre o evento e os danos". [Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. I, 3.ª Reimpressão, pág. 205].

A obrigação de reparação decorre de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir- ao menos na componente de dano não patrimonial - a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem. Se em regra o dano é uma consequência meramente eventual do ilícito, - o dano é requisito indispensável para a configuração da obrigação ressarcitória, mas não para a constituição do ilícito." (Luiz Guilherme MARINONI e Sérgio Cruz ARENHART, p. 454 do seu Manual do processo de conhecimento. São Paulo: RT, 2001), no caso, na sua dimensão pessoalíssima, reside nessa utilização abusiva de imagem.

O dano moral tem como causa a injusta violação de uma situação jurídica subjetiva existencial protegida pelo ordenamento jurídico por meio da cláusula geral de tutela da pessoa humana e para a configuração do dano moral não é necessário provar que a vítima sofreu algo negativo, como vexame ou humilhação, fobia ou sofrimento psicológico pela sua exposição…. Ora, o dano ocorre globalmente, assim também no lugar do domicilio do autor- sito em Portugal.

Nesta medida, concorda-se com o autor quando refere: o próprio dano/facto danoso resultante dessa exploração indevida mostra-se, também, consumado em Portugal. E tal está efectivamente alegado no 16.º da petição inicial onde é expressamente referido que os jogos da Ré se tornaram mundialmente conhecidos, pelo que “…a repercussão da imagem do Autor não se insere apenas ao âmbito nacional, mas é utilizada pela Ré a nível global.” (sublinhado e negrito nossos); …na verdade, “ os jogos propriedade da Ré são comercializados, distribuídos, jogados e a sua imagem, nome e demais caraterísticas são utilizadas, mundialmente, pelo que, logicamente, também em Portugal”


*

Não se conformando com esta decisão, dela apelou a R. ora recorrente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

...

Pelo A., ora recorrido, foram interpostas contra-alegações, contendo as seguintes conclusões:

...

TERMOS EM QUE deve ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.


QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos do disposto nos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, a única questão a decidir consiste em determinar
Se os Tribunais Portugueses são competentes, por via do princípio da causalidade, para a ação em que se visa a efetivação da responsabilidade civil extra-contratual da R., com fundamento no lugar da produção dos danos.

Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes Desembargadores- adjuntos, cumpre decidir.


FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido fez consignar a seguinte matéria como relevante para a apreciação da competência internacional dos tribunais portugueses:

1 Com a presente ação, o autor- de nacionalidade portuguesa- nascido a 2 de Maio de 1987 no Luxemburgo, de nacionalidade portuguesa, portador do passaporte Português n.º..., emitido a 21 de Dezembro de 2018 e válido até 21 de Dezembro de 2023, contribuinte fiscal número ..., indicando como residência a Rua ..., e a trabalhar como jogador profissional num clube estrangeiro ... da Roménia, pretende obter uma compensação pecuniária no montante de € 115.302,14 (cento e quinze mil trezentos e dois euros e catorze cêntimos), por danos alegadamente decorrentes da utilização não autorizada da sua imagem na conhecida série de jogos eletrónicos EA SPORTS™ FIFA (abreviadamente, jogos FIFA), produzidos e comercializados pela mesma.

2 A ré é uma sociedade norte-americana, que se dedica à exploração, distribuição e venda de jogos eletrónicos, conteúdos e serviços online para consolas de jogos, telemóveis e computadores, exclusivamente nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão – cfr. documento 1, extraído do website https://www.ea.com/about., não procedendo à comercialização dos jogos na Europa.

3 A ré tem sede nos E.U.A., e através do desenvolvimento e fornecimento de jogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à internet, dispositivos móveis e computadores pessoais, é uma empresa líder global em entretenimento digital interativo;

4 A ré tem várias subsidiárias na Europa que assumem a responsabilidade pela venda de produtos a não residentes nos E.U.A, Canadá e Japão, destacando nesse desiderato a sociedade “EA Swiss SARL” com sede na Suíça;

5 A ré defende-se, além do mais, referindo - no que diz respeito à utilização da imagem de jogadores de futebol nos jogos FIFA-, que celebrou um contrato de licença com a FIFPRO ( Federação Internacional dos Jogadores Profissionais de Futebol), a única organização representativa a nível mundial para jogadores profissionais de futebol, da qual, desde 1985, faz parte o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol, que confere à ré o direito de utilização da imagem coletiva dos jogadores de futebol representados por essa entidade(Acordo de Afiliação outorgado em 2001 e renovado em 2008 e no qual se reforçam os direitos de representação da FIFPRO, que passam a ter caráter exclusivo)- cfr. art.º 38.º, n.º 4 do Contrato Coletivo de Trabalho.

6 Invoca o autor a prática pela ré de facto ilícito consistente na utilização abusiva da sua imagem, em jogos eletrónicos FIFA, FIFA MANAGER e o modo de jogo FUT, mediante a venda, a nível mundial, do jogo.

7. Os jogos propriedade da ré são comercializados e distribuídos mundialmente, pelo que, logicamente, também em Portugal; qualquer consumidor pode adquirir tais jogos; a utilização e divulgação ocorre, obviamente, em qualquer lugar onde os jogos podem ser e são jogados; essa utilização e divulgação ocorre, obviamente, em qualquer lugar onde os jogos podem ser e são jogados, pelo que sendo os jogos da ré, melhor identificados nestes autos, comercializados e distribuídos em Portugal, a utilização ilícita da imagem, nome e características do autor, acontece (também) no nosso país.


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Sendo esta a matéria fáctica considerada pelo Tribunal a quo para apreciação da exceção de competência internacional dos tribunais portugueses, há que consignar que a competência internacional deste tribunal afere-se pelo quid disputatum, isto é, pelos termos em que o autor configura a relação jurídica controvertida. Deve ser assim considerada “toda a factualidade alegada como causa de pedir, sem necessidade de sobre a mesma ser produzida prova”[3], o que não significa que o tribunal erija em causa de pedir conclusões e alegações das partes (cfr. pontos 5, 6 e 7 da matéria de facto considerada pelo tribunal a quo) misture factos com alegações conforme resulta dos pontos 1 e 3 e daí parta para a apreciação da exceção em apreço.

O tribunal deve apreciar os factos, alegados pela A., integradores da causa de pedir, mas não as conclusões e muito menos as que determinam que determinam em maior ou menor medida o resultado da decisão a tomar pelo juiz da causa (cfr. resulta do ponto7).

Ora, se do novo C.P.C. não resulta norma idêntica à que constava do artº 646º, nº 4 do C.P.C. (D.L. 329-A/95), mantém-se o entendimento de que “em sede de fundamentação de facto (traduzida na exposição descritivo-narrativa tanto da factualidade assente, quer por efeito legal da admissão por acordo, quer da eficácia probatória plena de confissão ou de documentos, como dos factos provados durante a instrução), a enunciação da matéria de facto deve ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas ou de excessos de adjetivação.”[4]

E assim sendo, a matéria de facto relevante para apreciação da referida excepção é a seguinte:

1-O autor, de nacionalidade portuguesa, é jogador profissional de Futebol, tendo estado integrado nos seguintes clubes e épocas:

...

2-Atualmente o A. representa o ... da Roménia.

3-O Autor é sobejamente conhecido no meio do futebol, dedicando-se inteiramente à prática desportiva do futebol, com a qual sempre se sustentou a si e à sua família.

4-Na qualidade de jogador profissional de futebol, o Autor conta com a exposição pública da sua imagem, tanto nos espectáculos desportivos, como fora deles, em participações televisivas, de radiodifusão, meios virtuais etc.

5-O A. tem domicílio em Portugal na Rua ...

6- A ré é uma sociedade norte-americana, que se dedica à exploração, distribuição e venda de jogos eletrónicos, conteúdos e serviços online para consolas de jogos, telemóveis e computadores, exclusivamente nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, nomeadamente os jogos EA SPORTS™ FIFA.

7-A ré tem sede nos E.U.A., e através do desenvolvimento e fornecimento de jogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à internet, dispositivos móveis e computadores pessoais, é uma empresa líder global em entretenimento digital interativo;

8-A R. procede à comercialização dos jogos FIFA por si produzidos nos EUA, Canadá e Japão.

9-Na Europa (incluindo Portugal), estes jogos são comercializados por uma empresa sua subsidiária a “EA Swiss SARL” com sede na Suíça.

10-A imagem, o nome do A. e características pessoais e profissionais foram utilizados nos jogos denominados FIFA (também com as designações FIFA Football ou FIFA Soccer), nas edições 2009, 2010, 2015 e 2020; FIFA MANAGER, nas edições 2009, 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT nas edições 2010, 2015 e 2020 e FIFA MOBILE na edição de 2020. 

11-Os jogos electrónicos FIFA, FIFA MANAGER e FIFA ULTIMATE TEAM – FUT são lançados anualmente, permitindo atualizações semanais, via internet.

12-Estes jogos são ainda utilizados para a realização de torneios a nível nacional e internacional, incluindo o “FIFA Global Series, organizado e patrocinado pela R.


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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Insurge-se o recorrente da decisão que considerou o tribunal nacional competente com fundamento na alínea b) do artº 62º C.P.C., alegando que:

-o tribunal a quo não poderia ter considerado que o dano integra os factos da causa de pedir, quando na ação o autor não substância em factos a ocorrência de um dano;

-o A. não alega residir neste país, nem alega terem-se verificado em território nacional os danos alegadamente causados, nem a comercialização dos jogos, nem a repercussão da imagem do autor são tidos como factos constitutivos, essenciais, da causa de pedir.

-a repercussão plurilocalizada da imagem do autor não pode ser tida como um fator distintivo no contexto da causa de pedir, que atribua relevância suficiente para a afirmação da competência dos nossos tribunais.

Decidindo

da atribuição de competência internacional aos Tribunais Portugueses para a ação de indemnização fundada em facto ilícito, com base no critério da causalidade.

Do disposto no artº 37º, nº 2 da Lei 62/2013, de 26/08, decorre que “A lei de processo fixa os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais.”, decorrendo do disposto no artº 38º da supra referida Lei que esta se fixa no momento em que a ação é proposta (princípio da perpetuatio fori ou jurisdictionis), sendo irrelevantes as modificações de facto, salvo nos casos especialmente previstos na lei, ou de direito ocorridas na pendência da acção, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa.

Nestes termos, o artº 59º do C.P.C. dispõe que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique alguma das circunstâncias mencionadas nos artºs 62º e 63º, ou quando as partes lhe tenham atribuído competência nos termos do artº 94º, sem prejuízo do que se achar estabelecido em regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais.

Não oferece dúvida que ao caso em apreço se não aplicam regulamentos europeus ou outros instrumentos internacionais, nem se mostra alegado que entre as partes foi celebrado qualquer pacto atributivo de jurisdição, sendo assim a causa dirimida, conforme decidido pelo Tribunal a quo, exclusivamente pelo disposto no artº 62º do C.P.C., ou seja quando:

-a ação deva ser proposta em Portugal, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa (critério da coincidência);

-tenha sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram (critério da causalidade);

-não poder o direito invocado tornar-se efectivo senão por meio de ação proposta em território português, ou constituir para o autor dificuldade apreciável a sua propositura no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica nacional haja algum elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real (critério da necessidade).

Decorre do disposto no artº 62º do C.P.C. que basta a verificação de alguma das descritas circunstâncias ou factores (princípio da autonomia ou da independência) para que ao tribunal português seja atribuída a competência, sendo certo que esta se fixa no momento em que a acção se propõe[5].

Afastado (e bem) pelo tribunal a quo a aplicabilidade dos disposto nas alíneas a) e c) do artº 62º do C.P.C., decisão com a qual a R. se conformou, razão pela qual não se integram estes no objeto deste recurso, em causa está tão só a verificação do critério da causalidade previsto na alínea b) deste preceito legal, tendo em conta que pelo tribunal recorrido foi considerado que a causa de pedir alegada pelo A. era uma causa complexa, que o dano integra a causa de pedir, que este dano consiste na utilização abusiva da imagem do A. e que essa utilização abusiva ocorreu a nível mundial e portanto também em território nacional.

Com efeito, o critério da causalidade determina a competência internacional dos tribunais portugueses, sempre que tenha sido praticado em Portugal o facto ou algum dos factos integradores da causa de pedir, pressupondo para o efeito que a causa de pedir da ação seja complexa, ou seja, constituída por uma pluralidade de actos ou factos jurídicos e desde que algum destes actos ou factos jurídicos integradores da causa de pedir tenha sido praticado em Portugal. Conforme refere Rui Pinto em comentário ao art. 62º, b) do CPC[6], “efectivamente, no plano literal do preceito, atenta a sua indistinção, e no plano histório (...) é nossa opinião que a alínea em apreço parece querer abranger qualquer facto causal da procedência do pedido (...) sendo suficiente qualquer conexão objetiva com o nosso País, integrante da causa petendi”.

Nestes termos, a competência internacional dos tribunais portugueses de acordo com este critério da causalidade, afere-se em função da causa de pedir invocada pelo autor, em função do modo como o autor estruturou o seu pedido e a respetiva causa de pedir,[7] sendo irrelevante para este conspecto a impugnação que destes factos é feita pelo R.[8]

Nesta medida, os tribunais portugueses serão internacionalmente competentes se, de acordo com a alegação do A., se praticaram actos em território nacional integradores da concreta causa de pedir que subjaz ao pedido formulado, tendo em conta que como se afirma no Ac. do STJ de 19/09/2013[9] “a redacção do art. 65º, nº 1, al. c), do CPC, que foi introduzida com a reforma de 1995/96, visou precisamente clarificar que para a atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses não se mostra necessário que todos os factos integrantes da causa de pedir tenham ocorrido em território nacional, bastando que tal se verifique relativamente a algum ou alguns deles.”

Como refere Manuel de Andrade[10]São vários esses elementos também chamados índices de competência (CALAMANDREI). Constam das várias normas que provêem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um, deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção — seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina REDENTI (1), afere-se pelo “quid disputatum” (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor.”

Há assim que apreciar a causa de pedir alegada pelo A., ou seja o facto jurídico em que este se baseia para formular o seu pedido (art.581º, nº 4 do C.P.C.), não se tratando estes de factos jurídicos abstratos, tal como a lei o configura, mas sim factos jurídicos concretos, que então se enquadrarão na respetiva norma jurídica.[11]
Ora, a causa de pedir invocada pelo A. consiste na utilização abusiva do seu nome e imagem por parte da R. em jogos FIFA que desenvolve e posteriormente põe em circulação, enquadrando esta ação no campo dos direitos de personalidade, previstos nos artºs 72º e 79º do C.C., respetivamente e com consagração constitucional, conforme decorre do disposto no artº 26º da nossa Constituição. Constituem estes, conforme refere o A. “direitos subjetivos, privados, absolutos, gerais, extra-patrimoniais, inatos, perpétuos, intransmissíveis, relativamente indisponíveis, tendo por objecto os bens e as manifestações interiores da pessoa humana, visando tutelar a integridade e o desenvolvimento físico e moral dos indivíduos e obrigando todos os sujeitos de direito a absterem-se de praticar ou de deixar de praticar actos que ilicitamente ofendam ou ameacem ofender a personalidade alheia sem o que incorrerão em responsabilidade civil e/ou na sujeição às providências cíveis adequadas a evitar a ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa cometida.”[12]  
Sendo o direito à imagem, em si, um direito indisponível, a lei permite, no entanto, quer a captação, quer a reprodução e publicitação da imagem, desde que o titular do direito nela consinta e que a imagem ou sua divulgação, em si, não seja ofensiva de outros direitos absolutos,[13] exigindo apenas que este consentimento haja de ser expresso, excepto nos casos em que a notoriedade do visado, o cargo que desempenhe, exigências de justiça ou polícia, finalidades científicas, didácticas ou culturais, o justifique, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.
Por outro lado, sendo inalienável o direito à imagem, não o é o direito de a explorar comercialmente, como ocorre geralmente com artistas, desportistas e outras figuras de interesse para o público em geral. Nesse caso, como se refere no acórdão do S.T.J. proferido em 25.10.2005[14], versando sobre a cedência da imagem de desportista profissional, “o direito à imagem, em si, enquanto direito de personalidade, é inalienável, mas a exploração comercial da imagem de alguém não o é, podendo ser feita pelo próprio titular desse direito directamente ou por intermédio de outrem, ou por outrem com o seu consentimento. Pelo que um contrato de cedência do próprio direito à imagem seria efectivamente nulo por contrário à ordem pública, nos termos dos art.ºs 81º, n.º 1, e 280º, n.º 2, do Cód. Civil, mas o mesmo não se passa em relação à cedência daquela exploração comercial, que a lei expressamente permite.”
Temos assim como assente que a imagem de um jogador profissional pode ser explorada comercialmente ainda que por terceiro, desde que com o seu consentimento. Ora, a causa de pedir que aqui é invocada pelo A. consiste na utilização e exploração comercial da sua imagem e do seu nome e demais características pessoais (peso, altura) e profissionais (posição de jogo e clube) pela R., sem o seu consentimento e, portanto,  de forma ilícita. Enquadra-se assim esta pretensa atuação da R. no campo da responsabilidade civil extra-contratual, conforme considerou o tribunal a quo, uma vez que, tendo em conta a configuração da causa pelo A., não se prefigura a interpretação de qualquer contrato de cedência da exploração destes direitos (sendo que os alegadamente celebrados pela R. contêm clausulas de atribuição de jurisdição). 

É igualmente certo que baseando-se o pedido do A. na responsabilidade por factos ilícitos, são pressupostos cumulativos desta responsabilidade, enquanto fonte geradora da obrigação de indemnizar: o facto; a ilicitude desse mesmo facto (ilicitude que pode revestir duas modalidades, traduzindo-se na violação do direito de outrem ou na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios); o nexo de imputação do facto ao lesante; o dano e finalmente, o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Nesta medida, o dano integra igualmente a causa de pedir, quando invocada está a responsabilidade civil decorrente de facto ilícito, pelo que, verificando-se em território nacional os danos (ou pelo menos parte significativa e relevante destes danos, ter-se-ia por atribuída a competência internacional aos tribunais portugueses, com fundamento nesta alínea b).[15] 

Assim sendo, o facto ilícito imputado à R. no que se reporta à utilização e exploração alegadamente abusiva do seu nome e imagem, verifica-se aquando da criação deste jogo, contendo o nome, outras características pessoais e profissionais e a imagem do jogador, alegadamente sem a sua autorização e com a sua posterior divulgação.

O dano, conforme considera o tribunal a quo, consiste “na própria utilização não autorizada e indevida da imagem” e verificam-se pela própria criação dos jogos contendo o nome e imagem do A., alegadamente sem o seu consentimento. Nessa medida a maior ou menor divulgação ou comercialização destes jogos, por quaisquer meios e envolvendo ou não ganhos económicos para a R. (e para as diversas empresas que comercializam estes jogos) apenas potenciam ou agravam danos que para o A. resultavam já da utilização da sua imagem nestes jogos, mas não constituem em si um dano autónomo.

A criação e divulgação destes jogos é feita pela R. nos EUA, sendo a partir deste território que serão comercializados por outras empresas, subsidiárias ou não da R., para o resto do mundo, incluindo para Portugal. Mas se a divulgação destes jogos em todo o mundo, será relevante para efeitos de quantificação dos danos e, se esta comercialização e divulgação é feita a nível mundial, não se pode afirmar que se produz em território nacional o dano ou parte relevante dos danos.

Há que não esquecer que o facto constitutivo essencial desta causa se reporta à produção e divulgação destes jogos utilizando a imagem e o nome do A., sem sua autorização e que esta produção e divulgação localizam-se em solo norte-americano, independentemente de o poderem ser posteriormente para todo o mundo, mediante acordos feitos com a proprietária dos jogos, suas subsidiárias, ou por qualquer outro meio (seja por compras online, pela sua utilização posterior em jogos e torneios).

Dito de outra forma: não é o local, ou um dos locais onde essa divulgação ocorre que confere a competência internacional aos tribunais portugueses, por não se poder afirmar que o dano ocorreu em Portugal. Não é o local, ou um dos locais onde o jogo é vendido ao consumidor final que constitui o elemento relevante para atribuição da competência internacional, mas antes o local onde o referido jogo foi criado e posto em circulação, por ser nesse local que ocorreram os factos constitutivos do direito invocado pelo A..

Não se vê assim que os tribunais nacionais sejam os internacionalmente competentes para conhecimento desta ação, por se não poder afirmar que se verificaram em território nacional os danos, ou sequer a maioria dos danos, causados pela invocada atuação ilícita.

Conclui-se, pois, pela incompetência internacional dos tribunais nacionais para o conhecimento desta ação, pelo que a apelação procede no seu todo.


DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta relação em julgar procedente a apelação, pelo que revogam a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julga os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para o conhecimento desta ação e, em consequência, absolvem a R. da instância (artºs 576º, nºs 1 e 2, e 577º, a) do C.P.C.).
Custas pelo apelado, por ter decaído na ação e no recurso (artº 527º, nº 1 do C.P.C.).
                                             Coimbra, em 26/10/2021
                                                                                                                                                                                                         ***


[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Ac. do STJ de 02/06/21, relatado pela Srª Conselheira Maria do Rosário Morgado, proferido no proc. nº 449/18.2T8FAR.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Acs. do STJ de 12-07-2018, Revista n.º 88/14.7TJPRT.P3.S2 e de 12-01-2021, Revista n.º 2999/08.0TBLLE.E2.S1, disponíveis em www.dgsi.pt
[5] Acórdão do STJ de 25-11-2004, relatado pelo Consº Araújo de Barros, que mantém a sua plena aplicação no âmbito do novo regime processual civil.
[6] Notas ao Código de Processo Civil, pág. 110.
[7] Acórdão do STJ de 30-01-2013, relatado pelo Consº Salazar Casanova; Acórdão da Relação do Porto, de 20-09-2012, relatora Maria Amália Santos, na CJ, ano XXXVII, Tomo IV/2012, página 148; ac. do T.R.Porto de 28/02/2013, proferido no Proc. nº 182/11.6TVPRT-A.P1, e desta relação de 28/09/2010, relator Isaías Pádua, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[8] Neste sentido vide TEIXEIRA DE SOUSA, in A competência declarativa dos tribunais comuns, Lex, 1994, pág. 36 e LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 130 e CASTRO MENDES, in Direito Processual Civil, vol. II, 1987, AAFDL, pág. 212.
[9] Proferido no proc. nº 738/08.4TVLSB.L1.S1, relatado pelo Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes, disponível para consulta in www.dgsi.pt.
[10] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, página 90.
[11] Sobre a temática da causa de pedir vide ABRANTES GERALDES, António Santos, Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, 2.ª ed., págs. 188.
[12] Capelo de Sousa, “A Constituição e os Direitos de Personalidade”, Estudos sobre a Constituição, Vol. 2, Pág. 93.
[13] Neste sentido vide Ac. do S.T.J. de 07/06/11, proferido no proc. n 1581/07.3TVLSB.L1.S1, de que foi relator o Sr. Conselheiro Gabriel Catarino, disponível para consulta in www.dgsi.pt
[14] Proferido no processo 05A2577, relatado pelo Senhor Conselheiro Silva Salazar, disponível para consulta in www.dgsi.pt

[15] Não perfilhando na íntegra a solução constante do Ac. do TRL de 06/02/20, proferido no proc. 20.526/18.9T8LSB.L1-6, em que foi relator o Sr. Juiz Desembargador Manuel Rodrigues - pese embora o mérito e valor que lhe reconhecemos, tendo sido adjunto da ora relatora - citado pela recorrente, pois que o critério de atribuição de competência, fundado na causalidade, integra igualmente o dano, não sendo irrelevante o local onde ocorreram os danos, ou parte relevante destes danos. Recorde-se que já na vigência do artº 65 do anterior C.P.C, introduzido pelo D.L. 329-A/95, era possível a demanda nos tribunais portugueses com base em responsabilidade civil extra-contratual, quando o dano ou algum dos danos se verificasse em território nacional. Assim aconteceu até à alteração introduzida pela Lei 58/2002 de 28/08, que eliminou o critério da causalidade. Após consistentes críticas desta opção legislativa, de que se destaca o Ilustre Professor José Lebre de Freitas, em artigo publicado na ROA, 2009, Ano 69, “Competência ou incompetência internacional dos tribunais portugueses” disponível in https://portal.oa.pt., o C.P.C. introduzido pela Lei 41/2013 regressou á solução anteriormente acolhida, pelo que o critério a seguir há-de ser o do local onde correram algum dos factos que ingeram a causa de pedir, seja o facto ilícito seja o dano.