Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
67/09.6TBSPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO COSTA
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
MUDANÇA
Data do Acordão: 10/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: S.PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.1545, 1568 CC
Sumário: 1. O proprietário do prédio serviente pode, a todo o tempo, exigir a mudança de servidão para outro sítio no mesmo prédio, noutro prédio seu, ou em prédio de terceiro, com consentimento deste, devendo suportar o respectivo custo.

2. A mudança fica sempre subordinada a um duplo requisito: é necessário que ela se mostre conveniente ao dono do prédio serviente; e é, ainda, essencial que não se prejudiquem os interesses do proprietário do prédio dominante.

3. A ponderação deve fazer-se segundo o critério da proporcionalidade, sem que implique partir ou pressupor uma situação de paridade entre os proprietários dos prédios serviente e dominante, não relevando, para o efeito, os meros caprichos ou a pura comodidade do titular da servidão.

4. A circunstância de a dona do prédio dominante ter de percorrer mais 47 metros do que fazia anteriormente, para aceder ao seu prédio, não impede a mudança de servidão de passagem.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

M F (…) intentou, no Tribunal Judicial da Comarca de São Pedro do Sul, a presente acção com processo sumário contra:

- A R (…) e mulher, G A (…); e

- F L (…) e mulher, M A (…), pedindo a condenação destes a:

a) Reconhecer que sobre o prédio identificado no artº 5º da petição e em favor do prédio da Autora identificado no artº 1º do mesmo articulado se encontra constituída por usucapião uma servidão de passagem de pé, carro de vacas, tractor, veículos automóveis e animais soltos e presos, integral e permanente, a exercer durante todo o ano;

b) Retirar a rede e pedras que colocaram à entrada e no leito da servidão e a remover esse e qualquer outro obstáculo ao livre trânsito da Autora ou seus trabalhadores para o seu prédio, bem como a absterem-se de, por qualquer outra forma, impedirem a Autora de transitar pelo referido caminho;

c) Em sanção pecuniária compulsória de € 10,00 por cada dia em que impeçam a Autora de transitar, após o trânsito em julgado da sentença; e

d) Mais pede a condenação dos 1ºs Réus a indemnizar a Autora pelos prejuízos derivados do não cultivo do prédio da Autora, em montante a liquidar em execução de sentença.

Alegou, para tanto, em resumo, que é dona de um prédio rústico que não tem qualquer acesso directo à via pública; desde tempos imemoriais, o trânsito entre o prédio da Autora e a via pública processa-se por um caminho que atravessa um prédio rústico pertencente aos Réus, sobre o qual adquiriu, por usucapião, uma servidão de passagem; sucede que, no início de Janeiro de 2009, o 1º Réu vedou o identificado prédio dos Réus, colocando para o efeito uma rede fixa em peirões, posta também no lugar de entrada do caminho de servidão referido, com o que a Autora se viu impedida de entrar no prédio daqueles; e que a meio do percurso do caminho de servidão colocou pedras de grandes dimensões.

Contestaram e reconvieram os Réus, os quais referiram que, com o acordo dos proprietários dos prédios dominantes, aí se incluindo a Autora, procederam, no final do ano de 2008 ou princípio de 2009, à mudança do lugar por onde, no seu prédio (deles Réus), se processava a servidão de passagem; referem que o novo caminho é mais largo que o anterior, permitindo a circulação de todo o tipo de veículos, sendo somente mais extenso no que tange à distância que a Autora nele tem de percorrer para atingir o seu prédio; tal mudança possibilita uma melhor exploração do prédio serviente, pois que desse modo poderá ser vedado e assim também destinado a actividade pastorícia, e cultivado de forma contínua, possibilidades que o anterior caminho de servidão, pela sua localização, inviabiliza;     reconhecendo assistir à Autora o invocado direito de passagem, peticionam a declaração da mudança do leito da servidão para distinto lugar e a condenação da Autora a reconhecer tal mudança.

Na resposta, a Autora alega que o novo caminho de servidão a prejudica gravemente; desde logo, porque para aceder ao seu prédio tem de percorrer cerca de 277 metros por sobre o prédio dos Réus, ao passo que pelo anterior caminho teria de percorrer somente 90 metros; mas também porque, contrariamente ao anterior, o novo caminho não beneficia de qualquer iluminação, é sinuoso e irregular, além de passar a ser o último prédio na ordem de acesso aos prédios dominantes, e não o primeiro como sucedia com a antiga servidão; termina pedindo a improcedência do pedido reconvencional.

  Proferiu-se o despacho saneador, consignaram-se os factos tidos como assentes e organizou-se a base instrutória, de que reclamou a Autora, sem êxito.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com inspecção judicial ao local, tendo as partes ditado para a acta que se acordavam quanto a que se dessem como provados vários factos controvertidos, conforme resulta da acta de fls. 116 e seguintes.

Após a audiência, respondeu-se à matéria de facto controvertida, de forma que não mereceu reparo a qualquer das partes.

Finalmente, verteu-se nos autos sentença que decidiu do modo seguinte:

A) Julgo a acção parcialmente procedente, já que:

  a) Reconheço a A. titular de um direito de servidão de passagem a pé, com carro de vacas, tractor e com animais soltos ou presos, a exercer em qualquer altura do ano, o qual, a onerar o prédio dos Réus descrito em C) da factualidade assente, beneficia o prédio da A. descrito em A) daquela mesma factualidade.

  b) absolvo os Réus do demais peticionado.

  B) Julgo a reconvenção procedente, já que:

  Declaro lícita a mudança do caminho por onde o direito de servidão supra reconhecido à A. é exercido, o qual deverá passar a ser efectuado pelo caminho descrito em T) a X) da factualidade assente, em substituição daqueloutro descrito em E) a H) daquela factualidade”.

Inconformada com o assim decidido, interpôs a Autora recurso para este Tribunal, o qual foi admitido como de apelação e efeito meramente devolutivo.

Alegou, oportunamente, a apelante, a qual finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª - “São pressupostos da mudança de servidão a conveniência da mesma para o proprietário do prédio serviente e a ausência de prejuízos para o do prédio dominante. Trata-se de factos constitutivos do direito do autor, a alegar e provar por este.

Os custos da mudança incumbem ao seu requerente, podendo a servidão ser mudada para prédios de terceiros com o consentimento destes;

2ª - Tendo sido dada como totalmente não provada toda e a única matéria de facto alegada pelos RR. consubstanciadora das “vantagens” da mudança (impedimento da agricultura continua do prédio na acepção especial do termo, impedimento da sua exploração pecuária e da ampliação de construção aí existente e seu uso habitacional);

3ª - Não pode o julgador depois fundamentar o preenchimento deste pressuposto com a alegação, em abstracto e sem qualquer correspondência ou suporte em matéria de facto, nas vantagens que advêm da colocação do lugar de passagem à estrema;

4ª - Vantagens que, refere, permitem aos RR. “mais facilmente vedá-lo, agricultá-lo e usá-lo como lhe aprovar dentro dos limites da lei”;

5ª - Muito menos quando, precisamente, as vantagens alegadas e não provadas pelos RR. advinham e eram precisamente já consequência dessa colocação do lugar de passagem à estrema,

6ª - E sobretudo quando não se deu, sequer, como poderia, urna resposta restritiva à matéria desses artigos da B.I;

7ª - São relevantes os prejuízos consubstanciados na necessidade de percorrer a pé mais 110.1 metros numa distância de 115m e por um caminho que apresenta inclinações ligeiramente mais acentuadas do que o antigo, seja em grau seja em extensão;

8ª - Estando em causa uma alteração ou mudança do percurso de uma servidão deverá o Tribunal ponderar as várias alternativas apresentadas pelas partes e optar por aquela que, em concreto, melhor responda aos e harmonize os interesses das partes conflituantes;

9ª - Apresentada pela A. uma alternativa de mudança que igualmente coloca o lugar de passagem à estrema,

10ª - À mesma estrema onde já está parcialmente implantado,

11ª - Que permite igualmente vedar o prédio dos AA., para aí eles criarem animais (resposta aos artigos 12°, 13° e 23° da B.I.), nele construir e/ou ampliar as construções, para habitação ou outros fins (resposta negativa aos artigos 14° e 15° da B.I. e sua fundamentação),

12ª - E só não permite agricultá-lo continuamente porque o mesmo é inculto e pedregoso, logo inapto para esse fim,

13ª - Que tem inclusive a vantagem para os RR. de ocupar menos o seu prédio em extensão e área e não tem qualquer inconveniente alegado ou provado relativamente ao “novo” caminho,

14ª - E que nada prejudica o prédio da autora, e é preferido pela A.,

15ª - Deverá o Tribunal optar por esta alternativa em obediência ao princípio referido em h) (8ª) e ao de que a mudança deverá ser no sentido de, respondendo e ponderando esses interesses, alterar o menos possível o conteúdo e âmbito da servidão existente;

16ª - Constatado e provado que o “novo” caminho atravessa e contorna prédios de terceiros só com expressa autorização e intervenção nos autos desses terceiros pode ser legitimada a mudança,

17ª - Sendo ilegal a mudança sem preenchimento destes pressupostos o que acontece nos autos;

18ª - Finalmente, provado que a autora se viu privada do exercício de um direito de servidão que lhe foi reconhecido pelos RR., sem que tenha sido obtido o seu consentimento prévio, sem que tenha sido obtida declaração judicial nesse sentido, sem que, verbalmente ou por simples escrito, tenha sido prévia ou posteriormente comunicado à A. que deveria e estava autorizada a utilizar um novo caminho e sem que lhe tivesse sido explicado o porquê dessa actuação e eventual autorização de quem de direito relativamente quer aos contornos da mudança quer à utilização do novo caminho, tudo à margem da mais elementar lei processual e substantiva e regras de conveniência humana, deve a mesma ser indemnizada pelos prejuízos sofridos”.

Contra-alegaram os apelados, pugnando pela manutenção do julgado e pedindo a condenação da Autora como litigante de má fé, em multa e indemnização.


...............

ÂMBITO DO RECURSO



O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, nos termos do disposto nos artºs 684º, n.º 3, e 685º-A, n.º 1, do C. de Proc. Civil, na versão introduzida pelo Dec. Lei nº 303/2007, de 24/8, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.

De acordo com as apresentadas conclusões, as questões a decidir por este Tribunal são as de saber:

- Se existe fundamento para a mudança da servidão;

- Se deve ser arbitrada à apelante indemnização pela mudança da servidão; e

- Se a apelante litiga de má fé.

Foram colhidos os vistos legais, pelo que cumpre decidir.

OS FACTOS

Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:

1º - A Autora é dona de um prédio rústico denominado ‘ ...’, composto de terreno de cultura com videiras e pinhal, sito no Lugar de ..., em ..., a confrontar do norte com (…), nascente com (…), do sul com os Réus, e do poente com (…), matricialmente com a área de 1.200 mts2, inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na CRP de S. Pedro do Sul sob a ficha ...;

2º - A Autora, por si e antecessores, há mais de 30 anos que, continuada e ininterruptamente, lavra o prédio descrito em 1º, cultiva-o, nele planta árvores e colhe os respectivos frutos, dá-o à renda e de ‘empréstimo’;

3º - Os Réus são donos, na proporção de metade indivisa para cada casal, de um prédio rústico denominado ‘Cimo das Eiras’, composto de terreno de cultura com videiras, pinhal e pastagem, sito no Lugar de ..., em ..., a confrontar do norte com a Autora e outros, nascente com (…) e outros, do sul com o caminho público, e do poente com o ribeiro, com a área de 7.900 mts2, inscrito na matriz sob o artigo ...;

4º - O prédio da Autora descrito em 1º não possui qualquer acesso directo à via pública;

5º - O acesso ao prédio da Autora, a partir da via pública, faz-se através de um caminho que tem o seu início junto à Rua das Eiras e ‘entra’ no prédio dos Réus referido em 3º na ‘esquina’ sul/nascente deste, desenvolvendo-se ao longo de tal prédio no sentido sul – norte;

6º - Contorna depois uma construção de r/c existente no prédio dos Réus, após o que descai ligeiramente para poente até atingir o limite norte do prédio daqueles;

7º - Após flecte para nascente e ‘entra’ no prédio da Autora;

8º - Entre a via pública e o prédio da Autora o caminho descrito em 5º a 7º percorre cerca de 115 metros e, em toda a sua extensão, tem uma largura de, pelo menos, 2 metros;

9º - Colocados no leito do caminho existem portais à entrada do prédio dos Réus e do prédio da Autora;

10º - Ao longo do caminho, e entre os portais referidos em 9º, o leito daquele apresenta trilhos causados pelo trânsito pedonal, de carros de vacas, tractores e animais, e mostra-se desprovido de vegetação;

11º - Os portais referidos em 9º, bem como a situação de ausência de vegetação e os trilhos referidos em 10º, encontram-se e são permanentemente visíveis há mais de 40 anos;

12º - A Autora, por si e antecessores, utiliza o caminho descrito em 5º a 7º, para acesso ao seu prédio sempre que necessário, a pé, com carros de vacas, tractor e animais soltos ou presos;

13º - Têm-no feito continuada e ininterruptamente, à vista de todos, sem oposição de ninguém, na convicção de exercer um direito próprio de passagem;

14º - Em Janeiro de 2009 o Réu A R (…) vedou o portal existente à entrada do prédio dos Réus, ali colocando uma rede fixada em peirões;

15º - E colocou, a meio do percurso do caminho referido em 5º, pedras de grandes dimensões;

16º - A Autora cultiva, no seu prédio, milho, batata, couves, cebolas, feijões, cenouras e pepinos;

17º - A Autora e antecessores praticam os factos referidos em 12º e 13º há mais de 40 anos;

18º - No início do caminho referido em 5º, à entrada do prédio dos Réus, aquele apresenta uma largura não inferior a 3 metros;

19º - E apresenta, em toda a demais extensão, uma largura não inferior a 2,70 mts;

20º - O Réu A R (…) rasgou um caminho em terra batida ou compactada, o qual tem início na via pública na qual se inicia o caminho referido em 5º;

21º - Aquele caminho rasgado pelo dito Réu atravessa o prédio dos Réus e de terceiros em toda a sua extensão, sensivelmente no sentido sul – norte, junto à sua confrontação poente;

22º - Contorna o referido prédio dos Réus e de terceiros e ‘entra’ no prédio da Autora;

23º - A sua largura, ao longo de toda a extensão, não é inferior a 2,60 mts;

24º - Entre a via pública e o prédio da Autora o caminho descrito em 20º a 23º percorre 162 metros;

25º - O caminho referido em 20º a 23º não é iluminado durante a noite;

26º - O caminho referido em 5º a 7º apresenta, ao longo do seu percurso, ligeiras inclinações;

27º - Aquele referido em 20º a 23º apresenta inclinações ligeiramente mais acentuadas que aquelas apontadas em 26º, seja em grau, seja na sua extensão;

28º - Se o caminho referido em 6º fosse ‘colocado’ totalmente na confrontação nascente do prédio dos Réus, também nessa hipótese aquele poderia ser vedado para aí os Réus criarem animais.


...............


O DIREITO

1 – A mudança de servidão

Não se discute o direito de servidão existente a favor do prédio da Autora sobre o prédio dos Réus. Estes reconhecem tal direito.

Em causa está a operada mudança da servidão. Argumenta a Autora/apelante que não estão preenchidos os requisitos legais para a tal mudança, efectuada pelos Réus, donos do prédio serviente. Mas, salvo o devido respeito, não assiste razão à apelante. Vejamos.

Decorre do disposto no artº 1568º, nº 1, do C. Civil que:

“O proprietário do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão, mas pode, a todo o tempo, exigir a mudança dela para sítio diferente do primitivamente assinado, ou para outro prédio, se a mudança lhe for conveniente e não prejudicar os interesses do proprietário do prédio dominante, contanto que o faça à sua custa; com o consentimento de terceiro pode a servidão ser mudada para o prédio deste”.

Como escreveram Pires de Lima e Antunes Varela[1], há dois aspectos novos neste nº 1 que merecem ser destacados.

Por um lado, admite-se não só a mudança da servidão para sítio diferente do primitivamente assinado, dentro do mesmo prédio, mas também a deslocação dela para outro prédio (subentende-se do mesmo proprietário).

A mudança da servidão pode ter lugar mesmo para um prédio não contíguo ao serviente (vide Tavarela Lobo, Mudança e alteração de servidão, citado por aqueles autores).

Por outro lado, à semelhança do que se faz no artº 1068º, IV, do Código italiano, o nº 1 do artº 1568º do Código português vigente admite mesmo a mudança da servidão para prédio de terceiro, desde que haja o consentimento deste. É uma derrogação manifesta do princípio segundo o qual as servidões são inseparáveis dos prédios, consagrado no artº 1545º.

No caso, a mudança da servidão levada a cabo pelos Réus passou a atravessar o prédio serviente e os de terceiros, que os factos provados não dizem quem são (vide item 21º).

A mudança foi operada pelos Réus e a eles competia obter o consentimento desses terceiros, donos dos prédios para onde a servidão foi mudada. Não se concebe que os Réus tivessem operado a mudança sem obter previamente o consentimento desses terceiros.

A lei não prevê forma especial para o consentimento, podendo ele ser dado por qualquer meio. Certo é que a Autora, se tivesse dúvidas quanto a esse consentimento, poderia ter chamado esses terceiros à acção. Mas não o fez. Por isso, a circunstância de o novo caminho da servidão atravessar prédios de terceiros não impede a operada mudança.

O nº 1 do citado artº 1568º autoriza o dono do prédio serviente, que, em princípio, não pode alterar o uso da servidão, a transferir à sua custa, para outro sítio (no mesmo prédio, noutro prédio seu, ou em prédio de terceiro, com consentimento deste) o lugar do exercício da servidão, desde que tenha conveniência nisso e a mudança não prejudique os interesses do proprietário do prédio dominante. É aplicação do princípio que aflora toda a matéria das servidões: quod tibi non nocet et mihi prodest. Esta faculdade não depende de prazo para ser exercida; é por isso imprescritível[2].

A mudança da servidão, feita à custa do dono do prédio serviente, fica sempre subordinada a um duplo requisito. É necessário que ela se mostre conveniente ao dono do prédio serviente (fórmula muito mais simples e mais ampla do que o condicionalismo descrito do art. 1068º, II, do Cód. italiano).

E é ainda essencial que não se prejudiquem os interesses do proprietário do prédio dominante. O que conta, porém, para este efeito são os interesses dignos de ponderação, não os meros caprichos ou a pura comodidade do titular da servidão.

Assim, se A, onerado com uma servidão de passagem pelo seu prédio aberto, exigir a mudança dela para uma faixa fechada com portão, não poderá B, titular da servidão, alegar como fundamento de recusa o incómodo que lhe causa a abertura desse portão, cada vez que passa pelo prédio[3].

Como se escreveu no Ac. da Relação do Porto de 19/11/02 (processo 0020168), in www.dgsi.pt, “A justa ponderação dos interesses dos donos dos dois prédios passa obrigatoriamente por um critério de proporcionalidade entre a necessidade ou conveniência da diminuição do encargo sobre o prédio serviente e o prejuízo que a mudança de servidão possa acarretar para o prédio encravado”[4].

  Todavia, como se escreveu na sentença recorrida, “convocar o critério de proporcionalidade não significa partir ou pressupor uma situação de paridade entre os proprietários dos prédios serviente e dominante.

  Desde logo assim inculca a letra da lei quando, a propósito do ‘interesse’ do dono do prédio serviente, fala em ‘conveniência’, conceito este que se nos afigura qualitativa ou substancialmente mais lato que aquele invocado a propósito do proprietário do prédio dominante, já que para este a lei fala em “interesses”. O que se compreenderá atentando que a mudança da servidão emerge como aplicação do princípio geral segundo o qual o dono do prédio serviente, por o ser, isto é, como titular, pleno e exclusivo, das faculdades de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, não está inibido de fazer no seu prédio as alterações que julgue convenientes, desde que não prejudique os interesses do dono do prédio dominante – cfr. as actas da comissão revisora do anteprojecto (da autoria de Pires de Lima) sobre servidões prediais, in BMJ-136, págs. 138 e ss”.

Ora, como bem decidiu a sentença recorrida, não se almeja na factualidade provada que a Autora, dona do prédio dominante, veja prejudicados de tal modo os seus interesses que impeça a mudança da servidão, sendo certo que os Réus têm conveniência na mudança.

Assim, ao passo que para aceder ao seu prédio, pelo caminho referido em 5º, a Autora tem de percorrer cerca de 115 metros, já pelo caminho rasgado pelo 1º Réu terá de percorrer mais 47 metros (extensão total de 162 m). Esta diferença de mais 47 metros de extensão do novo leito da servidão não é susceptível de prejudicar os interesses da Autora. Pelo menos, não decorre dos factos que tal extensão lhe acarrete prejuízo algum. Gastará escassos segundos ou minutos a mais para percorrer o novo caminho, consoante o meio de transporte utilizado, mas isso não é significativo. Até porque se desconhece qual a frequência com que usa o referido caminho para aceder ao seu prédio. Como se sabe, há prédios onde os proprietários se deslocam quase diariamente e outros a que raramente se deslocam, tudo dependendo, para além do mais, das culturas que neles existam.

Como bem se escreveu na sentença recorrida, que acompanhamos, “o ‘incómodo’ de percorrer mais 47 metros não se inscreve no conjunto dos interesses que subjazem à norma em apreço (artº 1568º, nº 1). Como se observa das referidas actas, nem se julgou necessária a adjectivação do conceito de ‘interesses’ (interesses sérios) para se dever retirar, da interpretação do preceito, que somente prejuízos sérios e graves para o proprietário do prédio dominante justificariam a ilicitude da mudança da servidão (“O Prof. Pires de Lima esclareceu que, em seu entender, a palavra «interesses», só por si, inculca já que se trata de interesses sérios de natureza económica, e não de coisas mínimas, pelo que lhe parece dispensável fazê-la seguir do qualificativo apontado” (‘sérios’). No mesmo sentido, e para além do Ac. da RP de 19.11.02 já supra referenciado, também o Ac. da RC de 30.4.02 (processo 914/02), na mesma base de dados, segundo o qual “… no elenco dos prejuízos atendíveis… só cabem os relevantes à luz de um critério de normalidade”. Normalidade esta que deve ter por horizonte, pelo que já vem de se apontar, a não retirada, ou o prejuízo, para o benefício económico anteriormente adquirido para o prédio dominante através do uso da servidão. Esta mesma ideia inscreve-se na arguta fundamentação do Ac. do STJ de 17.11.72, in BMJ-221, págs. 225 e ss., segundo o qual, sendo as servidões estabelecidas e mantidas por absoluta necessidade (ante, acrescentamos, o princípio geral contido no artº 1305º), com o que o dono do prédio serviente vê cerceado o seu direito de propriedade, “O lógico e justo será…que a ingerência só contenda com o titular do direito de propriedade, na medida indispensável, ou seja, no que for absolutamente preciso para a satisfação das necessidades do prédio dominante” (cfr. pág. 229, sendo nosso o sublinhado)”.

A circunstância de a Autora ter de percorrer mais 47 metros para aceder ao seu prédio é pouco mais que irrelevante, continuando ela a poder retirar todos os benefícios e cómodos que o mesmo pode proporcionar.

De igual modo, as inclinações que o novo traçado do caminho apresenta também não constituem obstáculo à mudança, sendo certo que essas inclinações são ligeiras (vide item 26º) e, todavia, não se mostra provado que elas impeçam ou dificultem de algum modo o trânsito de pessoas, animais e veículos pelo mesmo caminho.  

Por último, existe conveniência para os Réus na mudança da servidão.

Na verdade, o novo caminho de servidão segue à estrema do prédio. Trata-se, como se escreveu na sentença recorrida, de “vantagem que, desacompanhada de outra factualidade, não se apresenta como de natureza ou cariz fundamental: não ficou apurado, contrariamente ao alegado pelos Réus, que a manutenção do ‘anterior’ caminho de servidão inviabilizasse a exploração pastorícia do prédio, o seu cultivo, ou mesmo o desenvolvimento da construção nele existente (cfr. a resposta negativa dada aos pontos 12º a 15º da base instrutória).

  Todavia, e tal como supra referido, não exige a lei que a vantagem se apresente relevante. Basta que se veja conveniência na pretendida alteração, isto é, e de outra perspectiva, que a mesma possua senso ou lógica, ou seja, que não seja fruto de um mero capricho, para o que o aplicador deve encontrar conforto em razões de equidade.

  Ora, é bom de ver a vantagem que para o dono do prédio serviente existe com a ‘colocação’ do lugar da passagem à estrema do prédio onerado, deixando o demais terreno livre de tal ónus e ‘apto’ a poder ser utilizado em termos de um direito de propriedade pleno. Mais facilmente poderá vedá-lo, agricultá-lo ou usá-lo como lhe aprouver dentro dos limites impostos por lei. E mesmo que a ‘medida’ do ónus seja idêntica passando o caminho de servidão a meio ou à estrema do prédio serviente (e no caso concreto até é maior com o ‘novo’ caminho de servidão, já que ocupa uma maior extensão, e consequente área, do prédio dos Réus), já o ‘grau’ ou gravidade de tal oneração se apresenta particularmente menor ou minorado. Tais vantagens são, aliás, reconhecidas pela própria A. (cfr. os artigos 13º a 15º da sua resposta), ainda que na sua versão o ‘novo’ caminho devesse ser encostado à estrema nascente e não à poente, a fim de ser mantida a ordem de acesso dos utilizadores do caminho de servidão”.

2 – A indemnização pela mudança da servidão

Na sua petição inicial, a Autora deduziu um pedido de indemnização (al. d) do petitório) relativo aos prejuízos “derivados do não cultivo do prédio da A., em montante a liquidar em execução de sentença”.

Este pedido veio a improceder, já que não se provou que a Autora, contrariamente ao alegado, tivesse deixado de cultivar o prédio dominante por força da conduta dos Réus. Alegou ela que os Réus destruíram a servidão, mercê do que deixou de cultivar o prédio dominante, advindo-lhe os prejuízos que pretende ver ressarcidos. Mas o certo é que aquilo que se provou foi que os Réus se limitaram a mudar o leito da servidão existente. Aliás, a Autora não logrou provar que não pode cultivar o seu prédio (vide resposta negativa ao quesito 16º).

A apelante não questiona sequer, nas conclusões da sua alegação recursiva, a improcedência daquele pedido indemnizatório. Nem se vê como poderia fazê-lo em face da prova adquirida.

Faz coisa diferente, peticionando, agora, na sua alegação recursiva (vide conclusão 18ª), uma indemnização por se ter visto privada do direito de servidão, sem que tenha sido obtido o seu consentimento prévio…

O que a apelante pretende, ao fim e ao resto, peticionando uma indemnização que não peticionou no momento próprio, é transformar a via de recurso num novo petitório.

Esta questão não foi levantada nos articulados e, como tal, o Tribunal “a quo” não teve oportunidade de se pronunciar sobre ela. É, por isso, uma questão nova.
E se assim é, não pode esta Relação ter como decidida ou decidir ela própria essa questão, já que, como é sabido, os recursos são meios de obter a reforma das decisões dos tribunais inferiores e não vias jurisdicionais para alcançar decisões novas, como resulta, entre outros, do disposto nos artºs 676º, n.º 1, 680º, n.º 1, e 685º-A, todos do C. de Proc. Civil, na versão aqui aplicável (v., por todos, neste sentido, o Ac. do S.T.J. de 4/10/95, B.M.J. n.º 450º, 492)
Não pode, deste modo, conhecer-se da indemnização em causa.

3 – Se a apelante litiga de má fé

Os apelados pediram, a finalizar a sua contra-alegação, a condenação da Autora/apelante como litigante de má fé. Vejamos. 

De acordo com o disposto no artº 456º, n.º 2, als. a), b) e d) do C. de Proc. Civil, únicas hipóteses que aqui têm relevância, diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; e tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

O que prescreve este artigo constitui o reverso do dever de cooperação aflorado nos artºs 266º e 266º-A, do referido código. As partes devem agir de boa fé e cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.

Da própria formulação do n.º 2 do aludido artº 456º, resulta que o que verdadeiramente se quis condenar foi a lide dolosa ou maliciosa (v. Prof. Alberto dos Reis, C. de Proc. Civil Anotado, vol. 2º, 3ª ed., 262).

Ora, os autos não mostram que a lide da apelante revista aquelas características. A litigância de má fé colocou-se somente em sede de recurso. E não é o simples facto de a apelante não se ter conformado com a sentença recorrida, usando uma faculdade que a lei lhe concede, que pode concluir-se ter ela agido de má fé.

Pode essa lide configurar-se como temerária, por a Autora ter vindo trazer ao Tribunal todo um quadro fáctico que, a final se verificou não ser verdadeiro, podendo discutir-se se a Autora não devia saber se a existência do novo caminho não era de si conhecida, aquando da instauração da acção. Os factos não o dizem, porém.

Mas, como é sabido, não basta a lide temerária para conduzir à condenação como litigante de má fé, já que só a lide dolosa ou maliciosa justificam tal condenação.

Não obstante o dever geral de probidade, imposto às partes pelo citado artº 266.º, a litigância de má fé pressupõe, para além do mais, a violação da obrigação de não fazer do processo um fim manifestamente reprovável. «Não basta, pois, o erro grosseiro ou culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição conscientemente infundada», de tal modo que a «simples proposição da acção ou contestação, embora sem fundamento, não constitui dolo, porque a incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem levar as consciências mais honestas a afirmarem um direito que não possuem ou a impugnar uma obrigação que devessem cumprir; é preciso que o autor faça um pedido a que conscientemente sabe não ter direito; e que o réu contradiga uma obrigação que conscientemente sabe que deve cumprir» (Alberto dos Reis, C.P.C. Anotado, 2.º, 263).

Ora, não emerge dos autos que a apelante se propusesse alcançar um fim ilegal, impedir a descoberta da verdade ou entorpecer a acção da justiça.

Improcede, assim, o formulado pedido de condenação de má fé.


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Sumário:

1 - O proprietário do prédio serviente pode, a todo o tempo, exigir a mudança de servidão para sítio diferente do primitivamente assinado, ou para outro prédio, à sua custa;

2 - A mudança fica sempre subordinada a um duplo requisito: é necessário que ela se mostre conveniente ao dono do prédio serviente; e é, ainda, essencial que não se prejudiquem os interesses do proprietário do prédio dominante;

3 - O que conta, porém, para este efeito são os interesses dignos de ponderação, não os meros caprichos ou a pura comodidade do titular da servidão;

4 - A circunstância de a dona do prédio dominante ter de percorrer mais 47 metros de que fazia anteriormente, para aceder ao seu prédio, não impede a mudança de servidão de passagem;

5 - A mudança da servidão pode dar-se para prédio de terceiro, desde que haja o consentimento deste.


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DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se:

1 – Julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a douta sentença recorrida;

2 – Julgar improcedente o pedido de condenação de má fé.

Custas da apelação pela Autora, suportando os Réus as correspondentes ao pedido de condenação de má fé formulado.



EMÍDIO COSTA ( Relator )
GONÇALVES FERREIRA
VIRGÍLIO MATEUS


[1] C. Civil Anotado, vol. 2º, 2ª ed., 671.
[2] Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, vol. 5º, 318.
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., 671.
[4] Disponível em www.dgsi.pt (Processo 0020168, citado na sentença recorrida).