Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1095/19.9T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: LIBERALIDADES INOFICIOSAS
REDUÇÃO
PRAZO DE CADUCIDADE
PROCESSO DE INVENTÁRIO
ERRO NA FORMA DE PROCESSO
Data do Acordão: 02/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 2178º DO C. CIVIL; 1118º E 1119º DO CPC.
Sumário: 1. O artº 2178º do Código Civil (CC) apenas se limita a estabelecer um prazo de caducidade para o exercício do direito de pedir a redução de liberalidade inoficiosa, nada nos dizendo sobre o tipo de processo através do qual tal direito deverá ser exercitado.

2. Havendo lugar a processo de inventário é aí que caberá proceder-se à averiguação sobre se a liberalidade é inoficiosa bem como à respetiva redução.

3. Haverá lugar a processo de inventário sempre que a atribuição dos bens do de cuius envolva operações de partilha, ou seja, sempre que haja mais do que um herdeiro, mesmo no caso de existência de um bem doado em vida do de cuius e alienado.

4. A decisão sobre a inoficiosidade, destinada a aferir da existência ou inexistência de inoficiosidade e a determinar a restituição dos bens à herança, pode ser exercitada pela via de incidente em processo de inventário, seguindo os tramites para tal especialmente previstos no artigo 1118º do CPC ou, em certos casos, pela via de uma ação autónoma (ex., no caso de um único herdeiro).

5. A concluir-se pela inoficiosidade, a concretização de tal redução encontrar-se-á sujeita aos trâmites e operações previstos no artigo 1119º do CPC, envolvendo, nomeadamente, a escolha pelo donatário dos bens que preencherão a sua quota abrindo mão dos demais, que serão sujeitos a licitação, operações estas só possíveis através do processo de inventário e do referido incidente, especialmente previsto para o efeito.

6. Se o autor não se limita a pedir ao tribunal o reconhecimento da inoficiosidade da doação, pretendendo ainda que que seja atribuído o seu quinhão, tal atribuição só poderia ser exercitada pela via do processo de inventário.

7. Não contendo o requerimento inicial da ação autónoma os elementos essenciais a que reportam os artigos 1097º e 1099º do CPC, não podendo, como tal, ser aproveitado como Requerimento inicial de um processo de inventário, o erro na forma de processo acarretará a nulidade de todo o processado e a absolvição do réu da instância.

Decisão Texto Integral:








Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

P... intenta a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra M...,  pedindo:

1. a condenação da Ré a reconhecer:

- que as pessoas que identifica na petição inicial (no artigo 3º) são os únicos e universais herdeiros legitimários do falecido F...;

- que o valor dos bens que lhe foram doados pelo falecido F... têm um valor nunca inferior a €200.000,00 (duzentos mil euros), os quais perfazem o acervo hereditário conhecido até à presente data;

- que o valor da legítima do autor (descendente) perfaz um valor nunca inferior a € 33.333,33 (trinta e três mil, trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos), que a escritura de doação ofende a legítima do autor nesse exato montante, sendo, inoficiosa, e, em consequência,

2. a condenação da Ré a pagar a quantia de, pelo menos, €33.333,33 (trinta e três mil, trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos), acrescidos de juros de mora, contados desde a data da abertura da sucessão até efetivo e integral pagamento.

Alegando para tal, e em síntese:

o autor é filho de D... e de F...;

o pai do autor faleceu em 22.02.1994, sucedendo-lhe, como únicos e universais herdeiros, A..., viúva, M... (aqui Ré), P... e P... (aqui A.);

em 05.01.2013 faleceu A..., sendo sua única e universal herdeira M...;

no dia 9 de março de 1984 foi realizada escritura de doação, pela qual F... e mulher A... declararam doar a sua filha M..., por conta da respetiva legítima, um prédio para habitação composto de R/C, inscrito na respetiva matriz urbana da indicada freguesia de ... sob o artigo número ..., e descrito na Conservatória de Registo Predial de ... sob o número ..., sendo que qualquer excesso que venha eventualmente a verificar-se na doação efetuada, será suportada pela sua quota disponível”;

em 13 de setembro de 1987 a meia irmã do autor (aqui ré) que recebeu de doação o imóvel descrito constituiu a propriedade horizontal desse imóvel ficando o mesmo com a seguinte composição: 2 garagens, R/C 1º e 2º andares, descrito sob a matriz predial urbana com o nº..., sendo atribuídas as letras A B C, tendo vindo a vender a fração A em 1988; a fração B em 1997, e a Fração C em 1988;

o referido imóvel tem um valor patrimonial nunca inferior a 200.000,00€ (duzentos mil euros);

em 07 de janeiro de 1992 o falecido pai do autor fez testamento público relativamente à sua quota disponível a favor dos seus três mencionados filhos, não tendo o autor conhecimento que tenha existido qualquer processo de inventário; para além do património indicado na escritura descrita é desconhecido qualquer outro património, concluindo o autor que a doação que operou em 1987 é, em parte, inoficiosa, afetando a legítima do autor.

Citada a Requerida editalmente e citado o Ministério Público em representação da Ré ausente, este deduziu oposição, arguindo: i) a exceção dilatória de erro na forma de processo, considerando ser adequado para o efeito o processo de inventário; ii) a exceção dilatória da preterição de litisconsórcio necessário ativo, por não ser parte na ação P...; iii) e a exceção perentória de caducidade do exercício do direito à ação de redução de liberalidades inoficiosas, por não ter sido deduzida oposição pelo herdeiros habilitados à habilitação de herdeiros, tendo caducado o direito à redução de liberalidades, que deveria ter sido exercido no prazo de dois anos a contar do momento da aceitação da herança; iv) a exceção perentória de caducidade do direito de aceitar a herança.

Conclui pela absolvição da ré da instância ou, assim não se entendendo, do pedido, tendo ainda impugnado os factos alegados pelo autor na petição inicial, concluindo pela improcedência da ação.


*

Pelo juiz a quo foi proferida Decisão, de que agora se recorre, a julgar verificada a exceção dilatória de erro na forma do processo, determinando, assim, a absolvição da Ré da instância.

Inconformada com tal decisão, a Requerente dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

A. A presente ação encontra-se prevista no artigo 2178º do C.C.

B. A aceitação da herança que se encontra melhor descrita no processo nº ... apenso aos autos de ação sumária do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca do ..., reporta-se a um período em que o autor era menor de idade.

C. A referida habitação de herdeiros que consta nesse processo correu por apenso a uma ação de processo sumário referente a dívidas do seu falecido pai.

D. Não restam dúvidas que o autor à data do óbito era menor.

E. Não foi despoletado nenhum processo de jurisdição voluntária de forma a que o tribunal concedesse a competente autorização de forma a que o autor pudesse aceitar a herança de acordo com o artigo 1014º do C.P.C.

F. Não podendo aceitar-se, como sucedeu no caso sub judice que a mera representação da mãe do autor seja bastante para se poder considerar que o autor aceitou a herança.

G. Quando na verdade os pressupostos não foram cumpridos.

H. Posteriormente a esta data não houve em momento algum, um momento em que se pudesse comprovar que o autor tivesse aceite a herança.

I. Nem tão pouco podemos aqui aplicar o disposto no artigo 2059º do C.C.

J. A forma de processo é a adequada inexistindo qualquer erro na forma de processo.

K. Todo o acervo hereditário já se encontra em nome de terceiros.

L. No mesmo sentido o Acórdão do TRG de 14-01-2016 com o seguinte sumário “A Ação declarativa comum, e não o processo de inventário, é o meio processual adequado para o autor, único herdeiro legitimário do de cujus, pedir a redução/revogação de liberalidades por inoficiosidade.”

M. (…)

O. Ao decidir como decidiu o tribunal a quo violou o estatuído nos artigos 1014º do C.P.C., 2059º e 2178 ambos do C.C.,

P. E o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-03-2009 do qual consta o seguinte sumário "I – Sem embargo, qualquer herdeiro legitimário que se ache prejudicado na sua legítima por doação efetuada a herdeiro ou a um estranho pode lançar mão da ação declarativa comum, sobretudo quando, por exemplo, já tenha sido concluído o inventário e efetuada a partilha dos bens do doador sem que aí tenha sido considerada a redução, desde que, nesse caso, alegue o montante do prejuízo e os termos em que se deverá operar a redução da doação (que poderá ser através da separação e adjudicação de parte do imóvel doado, se este for divisível, ou pela entrega do correspondente valor em dinheiro – arts. 2174º, do CC, e 1364º e 1365º, ambos do CPC) – contanto que ainda esteja em tempo, por não haver decorrido o prazo de dois anos previsto no citado art.2178º, do CC;”

Q. Na situação sub judice não existem mais bens para além dos elencados.

R. Foi alegado pelo recorrente o montante do prejuízo e os termos em que se deverá operar a redução da doação.

S. Pelo que, não se afigura o motivo pelo qual não foi admitida a aplicação desta forma de processo.

Se assim não se entender e sem conceder, por mero dever de patrocínio:

T. Caso os Venerandos Desembargadores considerem que existe erro na forma de processo em nome do princípio do aproveitamento dos atos e da celeridade processual, bem com da economia de atos, devemos aproveitar todos os atos legalmente admissíveis, de acordo com o artigo 6º e 547º do C.P.C.

U. Devendo a presente ação ser transmutada em processo de inventário prosseguindo a mesma como processo de inventário

Nestes termos e nos melhores de direito do douto suprimento requer a V.ª Ex.ª digne admitir o requerido julgando o presente recurso procedente prosseguido a presente ação, ou se assim não se entender e sem conceder por mero dever de patrocínio deverá a presente ação transmutada em processo de inventário seguindo-se os ulteriores termos legais.


*

O Ministério Público apresentou contra-alegações no sentido da improcedência do recurso.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se há erro na forma de processo
2. Em caso afirmativo, se é de determinar a convolação do processo em processo de inventário
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Se há erro na forma do processo – ação declarativa comum/processo de inventário

Pretendendo que se lhe reconheça que a doação que o seu pai fez à sua irmã ofende a legítima do autor, sendo, como tal, inoficiosa, peticiona o autor, na presente ação, a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 33.333,33 €.

O tribunal a quo, considerando que o autor e a Ré donatária são ambos herdeiros legitimários, concluiu que o meio adequado para efetuar o cálculo da legítima e decidir da ocorrência de eventual inoficiosidade é o processo de inventário, “cabendo ao beneficiário que recebeu bens em excesso em relação ao quinhão que lhe caberia, repor aos demais herdeiros, o valor correspondente para compor a legítima de cada um, assim preenchendo o seu quinhão hereditário, seja em bens seja em valores.”

Analisando as várias fases em que se decompõe o processo de partilha e as operações envolvidas na averiguação da eventual inoficiosidade e na efetivação da redução das liberalidades inoficiosas, a decisão recorrida, citando inúmera jurisprudência e doutrina, conclui que, havendo lugar a processo de inventário, só aí se poderá fazer a verificação de que não há disposições inoficiosas:

“A utilização da acção comum com vista à redução de liberalidades inoficiosas está, pois, reservada:

- aos sujeitos que não têm legitimidade para instaurar o processo de inventário e que podem ter interesse em ver reconhecida a redução por inoficiosidade, como acontecerá relativamente aos credores de algum herdeiro legitimário, quando se coloca a questão da legítima deste ser afectada pela liberalidade;

- aos herdeiros legitimários quando as liberalidades foram feitas a favor de quem não assume aquela qualidade.”

O Apelante insurge-se contra o decidido, alegando a desnecessidade do recurso ao processo de inventário, uma vez que, no caso em apreço, os bens estão já em nome de terceiros, inexistindo outros bens para além dos elencados, citando ainda a seu favor os Acórdãos do TRC de 14-01-2016 e de 20-04-2017.

Desde já adiantamos não podermos dar razão ao Apelante.

É comum distinguir o inventário arrolamento – que envolve a relação e descrição dos bens que ficaram por falecimento de alguma pessoa –, nele se esgotando o processo de inventário no caso de herdeiro único, do inventário divisório ou partilha, pelo qual se atribuem esses bens aos beneficiados em testamento e aos herdeiros legítimos[1].

A partilha consiste fundamentalmente no preenchimento, com bens determinados, da porção ou quota de cada herdeiro[2].

“O inventário tem sempre uma função de relacionação de bens. Mesmo quando exista um interessado, constituiu o instrumento processual adequado à liquidação da herança, prosseguindo o objetivo de facilitar a limitação da responsabilidade pelas dívidas e encargos da herança (al.b), artigo 2013º do CC), podendo ainda servir para revelar a existência de inoficiosidades, com efeito na eventual redução de legados ou doações. Nestes casos estamos perante o chamado inventário-arrolamento[3]”.

A tal respeito se salienta que o artigo 1398º do CPC de 1939 mandava aplicar ao “inventário que tenha unicamente por fim a relacionação de bens ou a verificação de inoficiosidade nas disposições efetuadas” as disposições do capítulo referente ao inventário na parte em que o puderem e deverem ser (artigos 1326º e ss. até onde forem aplicáveis), considerando-se, então, que tais operações se continham no inventário arrolamento[4].

Na modalidade mais frequente de inventário divisório, à função de relacionação de bens acresce a de partilha do património comum entre os diversos interessados, face à função que lhe é atribuída de “fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha de bens” (artigo 1082º CPC). Existindo pluralidade de herdeiros e aparecendo havendo várias pessoas como titulares do património hereditário, cria-se uma situação de indivisão a que é necessário pôr fim por via da partilha, concretizando o direito de cada titular em elementos determinados.

O inventário apenas ficará afastado no caso de existência de um único herdeiro, não obstando ao seu recurso o caso de existência de um único bem a partilhar ou de a totalidade dos bens do de cuius terem sido objeto de doação e terem já sido alienados a terceiro: ou seja, no caso em apreço, o processo de inventário, enquanto processo especialmente previsto para o efeito, é o adequado a proceder à relacionação, descrição, avaliação, e partilha pelos diversos herdeiros (legitimários), ainda que o único bem do falecido tenha sido objeto de doação em vida a um deles.

A discussão ronda à volta do artigo 2178º do Código Civil (CC), com o seguinte teor: “A ação de redução de liberalidades inoficiosas caduca dentro de dois anos, a contar da aceitação da herança pelo herdeiro legitimário”, norma que tem suscitado a dúvida sobre qual o meio processual adequado para os herdeiros legitimários exercerem o seu direito, nomeadamente se o processo de inventário ou se é possível fazê-lo através do recurso a uma ação comum.

Antes de mais, cumpre salientar que tal norma se limita a estabelecer um prazo de caducidade para o exercício do direito de pedir a redução de liberalidade inoficiosa, nada nos dizendo sobre o tipo de processo através do qual tal direito deverá ser exercitado, cuja determinação será de encontrar nas regras gerais do processo civil.

A Lei nº 117/2019, de 13 de setembro, que regulamentou a tramitação dos processos de inventário instaurados nos tribunais e aqueles que para eles venham a ser remetidos, “parte de uma definição de fases processuais relativamente estanques, envolvendo apelo decisivo a um princípio de concentração, propiciador de que determinado tipo de questões deva ser necessariamente suscitado em certa fase procedimental (e não nas posteriores), sob pena de funcionar uma regra de preclusão para a parte[5]”.

E naquilo a que define agora como “incidente de inoficiosidade”, concentram-se uma série de normas que no anterior código se encontravam dispersas pelo capítulo dedicado ao processo de inventário.

A tal respeito aí se dispõe:

Artigo 1118º

Requerimento de redução de legados ou doações inoficiosas

1. Qualquer herdeiro legitimário pode requerer, no confronto do donatário ou legatário visado, até à abertura das licitações, a redução das doações ou legados que considere viciadas por inoficiosidade,

2. No requerimento apresentado, o interessado fundamenta a sua pretensão e especifica os valores, quer dos bens da herança, quer dos doados ou legados, que justificam a redução pretendida e de seguida, são ouvidos, quer os restantes herdeiros legitimários, quer o donatário ou legatário requerido.

3. Para apreciação do incidente, pode proceder-se oficiosamente ou a requerimento de qualquer das partes, à avaliação dos bens da herança e dos bens doados ou legados, se a mesma já não tiver sido realizada no processo.

4. A decisão incide sobre a existência ou inexistência de inoficiosidade e sobre a restituição dos bens, no todo ou em parte ao património hereditário.

Neste artigo preveem-se os tramites da discussão e a apreciação da inoficiosidade em termos semelhantes aos de uma ação declarativa, implicando a alegação dos factos que sustentam a pretensão e a dedução do pedido de restituição dos bens, no todo ou em parte, ao acervo patrimonial da herança, com sujeição ao contraditório por parte dos interessados[6].

O incidente termina com uma decisão que versa sobre a existência de inoficiosidade em resultado da apreciação dos factos que sejam apurados. Na afirmativa, é determinada a restituição dos bens à herança (nº4), com os efeitos previstos no artigo 1119º.

E, é esta decisão que poderá ser sustada e apreciada, a título de incidente no âmbito do processo de inventário ou, em determinados casos, através de uma ação autónoma.

A questão decisiva passará pela aferição da necessidade da partilha – se houver que proceder a operações de partilha, ou, não havendo partilha, houver dívidas a liquidar[7] –, o meio adequado é o inventário, caso contrário, o meio adequado é a ação autónoma.

Daí que, quando o autor é único herdeiro legitimário e não há dívidas a liquidar – caso em que não há lugar à partilha, mas, tão só e unicamente, à avaliação do património para efeito de determinar da eventual inoficiosidade da doação –, poderá, eventualmente, ser adequado o recurso a uma ação autónoma.

A redução, tal como a revogação, pressupõem a estimação rigorosa dos bens do autor da herança, a determinação exata da sua quota disponível, o apuramento da ofensa das legítimas e todos estes dados só serão suscetíveis de ser captados através dos termos que são próprios do inventário em si mesmo[8].

Daí que a jurisprudência e a doutrina venha entendendo que, quando exista uma pluralidade de herdeiros, a verificação de que o processo próprio para o cálculo da quota disponível e da legítima de cada um dos herdeiros legitimários, com vista à redução por inoficiosidade de liberalidade feita pelo falecido[9].

Quanto ao Ac. TRG de 14-01-2016, citado pelo Apelante[10], o que nele se afirma é que “A ação declarativa comum, e não o processo de inventário, é o meio processual adequado para o autor, único herdeiro legitimário do de cujus, pedir a redução/revogação de liberalidades por inoficiosidade”. Ou seja, não tem aplicação ao caso em apreço em que, quer a autora, quer a Ré donatária, são herdeiros legitimários, havendo ainda mais um terceiro herdeiro legitimário, que sempre teria de ser envolvido na decisão da inoficiosidade da doação em questão.

Por outro lado, a questão da inoficiosidade não se fica por esta primeira fase – destinada a aferir da existência ou inexistência de inoficiosidade e a determinar a restituição dos bens à herança – a que se reporta o artigo 1118º CPC.

Existindo vários herdeiros legitimários, caso se conclua que há doações inoficiosas, haverá que atentar-se no artigo 1119º CPC, onde se prevê uma segunda fase, de cariz executivo:

Artigo 1119.º

Consequências da inoficiosidade

1 - Quando se reconheça que a doação ou o legado são inoficiosos, o requerido é condenado a repor, em substância, a parte que afetar a legítima, embora possa escolher, de entre os bens doados ou legados, os necessários para preencher o valor que tenha direito a receber.

2 - Sobre os bens restituídos à herança pode haver licitação, a que não é admitido o donatário ou legatário requerido.

3 - Quando se tratar de bem indivisível, o beneficiário da doação ou legado inoficioso deve restituir a totalidade do bem, quando a redução exceder metade do seu valor, abrindo-se licitação sobre ele entre os herdeiros legitimários e atribuindo-se ao requerido o valor pecuniário que tenha o direito de receber.

4 - Se, porém, a redução for inferior a metade do valor do bem, o legatário ou donatário requerido pode optar pela reposição em dinheiro do excesso.

A intervenção do donatário só tem lugar quando concorram à herança herdeiros legitimários: o inventariado não obrigado à prestação da legítima tem plena disponibilidade dos seus bens e, alienando-os por doação, radicou-os na pessoa a quem os doou por forma a excluí-los definitivamente do conteúdo da sua herança (artigos 2168º a 2718º, 959º, CC)[11].

Existindo herdeiros legitimários, têm de relacionar-se os bens doados, quer as doações tenham sido feitas a estranhos quer a herdeiros a quem a lei outorga o direito a legitima[12].

Averiguado que o inventariado dispôs além do que a lei lhe permitia, ofendendo as legítimas, há lugar a redução das liberalidades.

Mas a concretização de tal redução não se fará unicamente pela simples reposição à herança do valor que excede aquilo que legitimamente o inventariado poderia ter disposto, prevendo o legislador outros meios de o donatário e os demais herdeiros fazerem valer o preenchimento dos seus quinhões – podendo o exercício destes direitos (que podem passar pela avaliação de todos os bens, doados e não dados, a requerer pelos herdeiros legitimários ou mesmo pelo donatário, pela licitação nos bens doados), levar inclusivamente ao desapossamento da coisa que lhe foi doada pelo donatário[13].

Ou seja, em caso de inoficiosidade da doação, o legislador prevê, não apenas a reposição à herança do respetivo valor, mas a conferência em substância dos bens doados que excedem a parte inoficiosa da doação, excesso sobre o qual é admitida a licitação[14].

Ora, todas estas operações previstas no artigo 1119º – escolha pelo donatário dos bens que preencherão a sua quota abrindo mão dos demais, que serão sujeitos a licitação – só são possíveis através do processado previsto para o processo de inventário.

E quanto à questão levantada pelo apelante, resultante do facto de os bens doados – sendo que outros bens não existem na herança – se encontrarem em nome de terceiro por a donatária os ter há muito alienado?

Se tiverem sido doados bens que o donatário alienou, atende-se ao valor que estes bens teriam na data da abertura da sucessão se não fossem alienados nº 2 do artigo 2109º do Código Civil (CC).

Ou seja, o facto de o donatário ter alienado os bens não o dispensa da obrigação de reposição dos bens doados – embora tal obrigação recaia sob o respetivo valor e não sobre os bens em substância[15].

 Com a apresente ação, o autor não se limita a pedir ao tribunal o reconhecimento da inoficiosidade da doação, pretendendo ainda que que seja atribuído o seu quinhão. Ora, esta pretensão – pressupondo a partilha dos bens da herança –, só pela via do processo de inventário poderá ser exercitada.

Para o caso de este tribunal confirmar a verificação de erro na forma do processo, sustenta o apelante que “em nome do principio do aproveitamento dos autos e da celeridade processual, bem como da economia dos atos, deve a presente ação ser transmutada em processo de inventário.

O tribunal a quo, depois de reconhecer a existência de erro na forma de processo – por entender que o processo adequado era o processo especial de inventário –, considerou que tal exceção é, “nesta fase, insanável, por incompatibilidade absoluta entre o tipo de processos em causa, tal como resulta dos artigos 196º, 200º, nº 2, do CPC, e conduz à absolvição da instancia, nos termos dos arts. 278º, nº 1, al.b), 576º, ns. 1 e 2 e 577º, alínea b), do CPC, resultando a nulidade de todo o processado.”

Ora, embora demonstre a sua discordância com o decidido, o Apelante acaba por não contestar o fundamento em que o tribunal se baseou para recusar a transmutação da presente ação em processo de inventário – ser a exceção insanável por “incompatibilidade absoluta”, nesta fase, entre o tipo de processos em causa.

De qualquer modo, sempre seria de dar razão ao juiz a quo.

Se o erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, praticando-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida na lei, a diversidade de procedimentos em causa levaria a que nenhum ato do presente processo poderia ser aproveitado para o efeito de prosseguir como processo de inventário, nem sequer o Requerimento inicial.

Com efeito, quer quando o requerimento inicial seja apresentado pelo cabeça de casal, quer quando apresentado por outro interessado, sempre teria de conter os elementos a que se reportam, respetivamente os artigos 1097º e 1099º do CPC.

Pelo que, na ausência de indicação de tais elementos, nem o Requerimento inicial seria aproveitável, importando, como tal, a nulidade de todo o processado.

Concluindo, haverá que confirmar a decisão recorrida de absolver a Ré da instância por erro na forma do processo insanável.

IV. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pelo Apelante.

                                                       Coimbra, 18 de fevereiro de 2021

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº 7 do CPC.

1. O 2178º do Código Civil (CC) apenas se limita a estabelecer um prazo de caducidade para o exercício do direito de pedir a redução de liberalidade inoficiosa, nada nos dizendo sobre o tipo de processo através do qual tal direito deverá ser exercitado.

2. Havendo lugar a processo de inventário é aí que caberá proceder-se à averiguação sobre se a liberalidade é inoficiosa bem como à respetiva redução.

3. Haverá lugar a processo de inventário sempre que a atribuição dos bens do de cuius envolva operações de partilha, ou seja, sempre que haja mais do que um herdeiro, mesmo no caso de existência de um bem, doado em vida do de cuius e alienado.

4. A decisão sobre a inoficiosidade, destinada a aferir da existência ou inexistência de inoficiosidade e a determinar a restituição dos bens à herança, pode ser exercitada pela via de incidente em processo de inventário, seguindo os tramites para tal especialmente previstos no artigo 1118º do CPC, ou, em certos casos, pela via de uma ação autónoma (ex., no caso de um único herdeiro).

5. A concluir-se pela inoficiosidade, a concretização de tal redução encontrar-se-á sujeita aos trâmites e operações previstos no artigo 1119º do CPC, envolvendo, nomeadamente, a escolha pelo donatário dos bens que preencherão a sua quota abrindo mão dos demais, que serão sujeitos a licitação, operações estas só possíveis através do processo de inventário e do referido incidente, especialmente previsto para o efeito.

6. Se o autor não se limita a pedir ao tribunal o reconhecimento da inoficiosidade da doação, pretendendo ainda que que seja atribuído o seu quinhão, tal atribuição só poderia ser exercitada pela via do processo de inventário.

7. Não contendo o requerimento inicial da ação autónoma os elementos essenciais a que reportam os artigos 1097º e 1099º do CPC, não podendo, como tal, ser aproveitado como Requerimento inicial de um processo de inventário, o erro na forma de processo acarretará a nulidade de todo o processado e a absolvição do réu da instância.

 


[1] Sobre o sentido de tal norma, cfr., António Lopes Cardoso, “Partilhas Judiciais”, Vol. I, Livraria Almedina Coimbra-1990, pp.34-35
[2] Luís A. Carvalho Fernandes, “Lições de Direito das Sucessões”, Quid Juris, p.333.
[3] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, Almedina, nota 12. ao artigo 1082º do atual CPP, p. 522.
[4] António Lopes Cardoso, obra citada, pp.37-38 e 65.
[5] Carlos Lopes do Rego, “A Recapitulação do Inventário”, Julgar Online, p.9.
[6] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, Almedina, p. 601.
[7] Cristina Pimenta Coelho, “Código Civil Anotado”, Coord. Ana Prata, Vol. II, 2017 Almedina, p.
[8] António Lopes Cardoso,
[9] Neste sentido, Acórdão do TRG de 14-12-2010, Relatado por Isabel Fonseca e disponível in www.dgsi.pt.  
[10] Relatado por Francisco Cunha Xavier e disponível in www.dgsi.pt.
[11] João António Lopes Cardoso, “Partilhas Judiciais”, Vol. I, Livraria Almedina Coimbra-1990, p. 222.
[12] João António Lopes Cardoso, “Partilhas Judiciais”, Vol. I, Livraria Almedina Coimbra-1990, p. 429, nota (1232) e p. 223.
[13] Lopes Cardoso, obra citada, p.266.
[14] Lopes Cardoso, pp. 267-269.. Nas palavras de Susana Seixas Fernandes a propósito de tal norma, “embora o donatário possa escolher os bens com que quer ficar, tem, contudo, a obrigação de repor os restantes, na medida em que preencham a legítima dos herdeiros legitimários. Também neste os bens repostos irão ser objeto de licitação entre os herdeiros, sendo adjudicados àquele cuja proposta de adjudicação seja mais elevada” – “Inoficiosidade das doações no âmbito do processo de inventário”, tese de mestrado, orientada por Prof. Dra. Paula Távora Vítor, disponível in https://eg.uc.pt/bitstream/10316/90430/1/tese.pdf.
[15] A tal respeito se afirma no Ac. TRE de 27-02-2014, relatado por José Lúcio, “Tendo os bens doados sido alienados pelo donatário antes da abertura da sucessão, deve o donatário restituir à massa da herança apenas o seu valor, de acordo com o valor que os mesmos teriam na data da abertura da sucessão, se não tivessem sido alienados”.