Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5934/15.5T8VIS-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTO
ALEGAÇÕES
RECURSO
PER
CASO JULGADO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 05/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU – JUÍZO COMÉRCIO – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 17ºD, 17ºG, 129º, 130º, Nº 3, E 136º DO CIRE; 425º E 651º NCPC.
Sumário: I - A junção de documentos em sede de recurso depende da caracterização (com a alegação e a prova) pelo interessado de uma de duas situações taxativamente previstas: a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; o ter o julgamento da primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí – até ao julgamento em primeira instância – se mostrava desfasada do objecto da acção ou inútil relativamente a este.

II - A impossibilidade de apresentação anterior legitima a junção no recurso de documentos cuja apresentação não tenha sido possível até esse momento (até ao julgamento em primeira instância).

III - É superveniente o que se constate, pelo documento, ser posterior decisão recorrida ou pela justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante a sua existência ser anterior ao momento considerado, só teve lugar posteriormente, por razões que se prefigurem como atendíveis.

IV -A junção de documentos com as alegações de recurso nos casos em que o julgamento proferido em primeira instância torne necessária a consideração desse documento, pressupõe que exista na decisão em recurso uma novidade que justifique a junção que se reclame como apta a modificar o julgamento, questão essa só revelada pela decisão, o que só acontece, pois, quando essa decisão não se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.

V - Não fazendo caso julgado o reconhecimento de crédito fora do PER, a dispensa do ónus de reclamação não afasta o direito de impugnação por parte dos demais credores.

VI - Declarada a insolvência, aos credores constantes da lista referida no artigo 129.º do CIRE, impõe-se como único caminho a reclamação dos seus créditos no âmbito do processo de insolvência e, no âmbito deste processo, nos termos do art. 136º, nº4 do CIRE, consideram-se sempre reconhecidos os créditos incluídos na respectiva lista e não impugnados.

VII - No âmbito da previsão do art. 130º, nº3 do CIRE o juiz pode verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos da lista que vai homologar para o que pode solicitar ao administrador os elementos que julgue necessários.

VIII - Estes esclarecimentos não se destinam a alterar o processo de reconhecimento dos créditos (que resulta directamente da ausência de impugnação e de constarem na lista do administrador) mas sim a alertar o administrador para erros abrindo a possibilidade de este alterar a lista apresentada, confirmado o erro.

IX - O despacho saneador não constitui caso julgado formal quando se limita à declaração genérica sobre a inexistência de excepções ou nulidades, sem efectuar uma apreciação concreta destas e constitui caso julgado formal quando declara um juízo decisório sobre alguma matéria, pronunciando-se sobre esse determinado ponto concreto, com adução de fundamentação relativa.

X - No despacho saneador o tribunal recorrido, ao não apontar um crédito constante da lista do administrador como impugnado e ao não pedir sobre ele qualquer esclarecimento, decide afirmativamente pelo reconhecimento desse mesmo crédito, formando-se assim caso julgado quanto ao seu reconhecimento.

Decisão Texto Integral:






Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

No Tribunal da Comarca de Viseu - Inst. Central - Sec. Comércio - J2, J... e mulher M... foram declarados insolventes por sentença de 07-12-2015, transitada em julgado.

Foi fixado o prazo de 30 dias para reclamação de créditos.

Por apenso aos autos de insolvência o administrador da insolvência apresentou lista de credores reconhecidos.

Não foi apresentada lista de credores não reconhecidos.

O Banco T..., S.A. impugnou a lista de credores reconhecidos, na parte em que foram reconhecidos créditos a L... e P..., concluindo pelo não reconhecimento dos créditos impugnados.

A C... aderiu aos fundamentos do impugnante Banco T..., S.A., subscrevendo na íntegra a peça processual apresentada.

P... e L... Cardoso responderam à impugnação

Foi proferido despacho saneador e despacho a identificar o objeto do litígio, a enunciar os temas da prova e a admitir os meios de prova indicados.

Na sequência da notificação efetuada, os credores impugnados juntaram aos autos documentos e, realizada audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença que julgou parcialmente procedentes as impugnações da lista de credores reconhecidos e, em consequência, julgou verificados os créditos de:

i. L... apenas em relação ao montante de €11.550,00 (onze mil quinhentos e cinquenta euros), como crédito de natureza comum;

ii. P... apenas em relação ao montante de €314.850,00 (trezentos e catorze mil oitocentos e cinquenta euros), como crédito de natureza comum, acrescido de juros de mora, desde a data da declaração de insolvência até integral pagamento, à taxa de quatro por cento ao anos, assumindo os juros a natureza de crédito subordinado.

b. Não verificados os demais créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência aos credores L... e P...

2. Por força do disposto no artigo 136.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, consideram-se ainda reconhecidos e verificados os seguintes créditos:

2.1. Banco C..., S.A. - €3.156,58 (três mil cento e cinquenta e seis euros e cinquenta e oito cêntimos), crédito de natureza comum, sujeito a condição suspensiva;

2.2. Banco T..., S.A.:

2.2.1. €580.570,69 (quinhentos e oitenta mil quinhentos e setenta euros e sessenta e nove cêntimos) - crédito comum;

2.2.2. €3.599,01 (três mil quinhentos e noventa e nove euros e um cêntimo) - crédito subordinado;

2.3. C... – crédito garantido:

2.3.1. €334.743,78 (trezentos e trinta e quatro mil setecentos e quarenta e três euros e setenta e oito cêntimos) de capital;

2.3.2. €106.723,04 (cento e seis mil setecentos e vinte e três euros e quatro cêntimos) de juros.

2.4. C... - €12.915,00 (doze mil novecentos e quinze euros) - crédito comum;

2.5. Instituto da Segurança Social, I.P.

2.5.1. €1.159,83 (mil cento e cinquenta e nove euros e oitenta e três cêntimos) - crédito comum

2.5.2. €52,46 (cinquenta e dois euros e quarenta e seis cêntimos) - crédito privilegiado.

2.6. M..., S.A. - €123,53 (cento e vinte e três euros e cinquenta e três cêntimos) – crédito comum;

2.7. Fazenda Nacional:

2.7.1. €1.830,60 (mil oitocentos e trinta euros e sessenta cêntimos) de IMI relativo aos prédios em causa nos autos – crédito privilegiado;

2.7.2. €405,24 (quatrocentos e cinco euros e vinte e quatro cêntimos) – IMI de 2013 e custas – crédito comum.

2.8. Sociedade T..., S.A. - €15.986,52 (quinze mil novecentos e oitenta e seis euros e cinquenta e dois cêntimos) – crédito comum.

3. Sobre o produto da venda dos imóveis mencionados no artigo sétimo dos factos provados, os créditos, depois de liquidadas as dívidas da massa insolvente, serão pagos da seguinte forma:

3.1. Em primeiro lugar o crédito de IMI no montante total de €1.830,60 (mil oitocentos e trinta euros e sessenta cêntimos), na parte relativa a cada um dos imóveis;

3.2. Em segundo lugar o crédito da C...;

3.3. Em terceiro lugar o crédito do Instituto da Segurança Social, I.P. em relação ao montante de €52,46 (cinquenta e dois euros e quarenta e seis cêntimos);

3.4. Em quarto lugar, se necessário rateadamente, os créditos comuns, sendo o crédito do Banco C..., S.A. liquidado nos termos previstos no artigo 181.º;

3.5. Em quinto lugar, os créditos subordinados.

4. Sobre o produto da venda dos móveis mencionados no artigo sexto dos factos provados, os créditos, depois de liquidadas as dívidas da massa insolvente, serão pagos da seguinte forma:

4.1. Em primeiro lugar o crédito do Instituto da Segurança Social, I.P. em relação ao montante de €52,46 (cinquenta e dois euros e quarenta e seis cêntimos);

4.2. Em segundo lugar, rateadamente, os restantes créditos com exceção dos créditos subordinados, sendo o crédito do Banco C..., S.A. liquidado nos termos previstos no artigo 181.º;

4.3. Em terceiro lugar, os créditos subordinados.

5. As dívidas da massa insolvente, nos termos dos artigos 46.º, n.º 1, 51.º, n.º 1 e 172.º, n.º 1 e 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, saem precípuas do produto da venda.”

… …

Inconformado com esta decisão dela interpôs recurso o credor P..., concluindo que:

… …

Também o credor reclamante banco Banco T..., S.A., inconformado com a sentença recorreu, concluindo que:

… …

O Banco T..., S.A. contra alegou defendendo a manutenção da sentença recorrida quanto ao recurso dos insolventes.

… …

Colhidos os vistos cumpre decidir.

Fundamentação

O tribunal de primeira instância deu como provada a seguinte matéria de facto:

… …

Além de delimitado pelo objecto da acção, pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (arts. 635 nº3 e 4 e 637 nº2 do CPC).

Na observação destas prescrições normativas concluímos que o objecto do recurso interposto pelo credor P... reporta exclusivamente á impugnação da matéria de facto, pretendendo que com base na alteração da qualificação dos factos não provados como provados, seja reconhecido o seu crédito;

Por seu turno, a apelação da credora Banco T..., S.A. remete para o saber se o despacho saneador faz caso julgado quanto aos créditos não impugnados pelos restantes credores e reconhecidos na lista definitiva apresentada pelo administrador, e parar saber se o crédito que reclamou está, de qualquer forma, garantido por hipoteca.

… …

Como questão prévia cumpre abordar a admissibilidade da junção de documentos suscitada, mais que requerida, nas alegações de recurso do credor P...

À questão da junção de documentos na fase de recurso refere-se expressamente o artigo 651º, nº 1 do CPC, que preceitua que “1 - As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425º ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.”.

Por sua vez, o art. 425º determina que depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, tendo também presente que o “princípio geral” da junção de documentos está contido no art. 423, estatuindo que “1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.

2 - Se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.

3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.”

    Da articulação lógica destas normas decorre que a junção de documentos em sede de recurso, que é considerada e admitida legalmente a título excepcional, depende da caracterização (com a alegação e a prova) pelo interessado de uma de duas situações taxativamente previstas: a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso, valendo aqui a remessa do artigo 651º, nº 1 para o artigo 425º; o ter o julgamento da primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí – até ao julgamento em primeira instância – se mostrava desfasada do objecto da acção ou inútil relativamente a este.

A impossibilidade de apresentação anterior legitima a junção no recurso de documentos cuja apresentação não tenha sido possível até esse momento (até ao julgamento em primeira instância), o que pressupõe aquilo que se refere como superveniência objectiva ou subjectiva do documento pretendido juntar[1].

Ora, sendo superveniente (objectivamente superveniente) o que só ocorreu historicamente depois de um determinado momento considerado, ou (superveniência subjectiva) o que justificadamente só foi conhecido por alguém depois desse momento, vale a asserção de superveniência aqui relevante – vale, portanto, como integração positiva da facti species do nº 1 do artigo 651º do CPC – pela constatação da ocorrência da situação revelada pelo documento só posteriormente à decisão recorrida (superveniência objectiva, pressupondo esta a criação posterior do documento) ou pela justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante a sua existência ser anterior ao momento considerado, só teve lugar posteriormente, por razões que se prefigurem como atendíveis, no sentido de serem razões aptas a demonstrar a impossibilidade daquela pessoa (quer o artigo 423º, nº 3 como o artigo 425º, ambos do CPC, falam em “não [ter] sido possível”), num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido conhecimento anterior da existência do documento[2]. Estas razões, todavia pressupõem à partida a respectiva invocação e a prova da não possibilidade (da impossibilidade) de um conhecimento anterior[3] e abrem caminho, quando alegadas, à respectiva indagação.

Note-se que o artigo 651º, nº 1 do CPC também admite, no seu trecho final, a junção de documentos com as alegações de recurso nos casos em que o julgamento proferido em primeira instância torne necessária a consideração desse documento. Pressupõe esta situação, todavia, que exista na decisão em recurso uma novidade que justifique a junção que se reclame como apta a modificar o julgamento, questão essa só revelada pela decisão, o que só acontece, pois, quando essa decisão não se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum. Com efeito, como refere expressivamente António Santos Abrantes Geraldes, “[p]odem […] ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo[4].

Muito brevemente, observando as razões que são invocadas pelos recorrentes para a junção dos documentos que pretendem realizar com as alegações de recurso, aquilo que concluímos é que eles se sustentam apenas na circunstância de julgarem que tinham entregado tais documentos ao Administrador de Insolvência, aquando da reclamação dos seus créditos e, afinal, não o tinham feito.

Sem necessidade de quaisquer considerações adicionais concluímos que, manifestamente, a situação de lapso invocada não se inscreve em nenhum caso de superveniência que permitiria essa junção e tão pouco se contém na previsão de novidade da decisão proferida que admitisse a junção de documento para obviar a essa mesma decisão.

Nestes termos, indefere-se a junção aos autos dos documentos apresentados com as conclusões de recurso pelos recorrentes.

… …

Quanto ao recurso do credor Banco T..., S.A., a sentença recorrida, deu como provado que:

...

Com referência a estes factos provados, a sentença recorrida considerou que “ No caso dos autos em relação aos bens imóveis apreendidos há que ter em conta que foram constituídas as hipotecas (direito real de garantia) referidas no artigo 3.º dos factos provados, constituídas a favor do Banco T..., S.A. e C..., que são hipotecas voluntárias (artigo 712º do Código Civil).

(…) A hipoteca de que beneficia o credor Banco T..., S.A. foi constituída para “abertura de crédito: para garantia de todas as responsabilidades emergentes da emissão de garantia bancária a favor de «R.P., Lda.», com sede no ..., no montante de 45.126,00€, sendo a hipoteca pelo montante global de 695.126,00€, juro anual: 7%, acrescida, em caso de mora e a título de cláusula penal de 4%, despesas judiciais: €27.805,04”.

Resulta, assim, que o crédito garantido é a “abertura de crédito: para garantia de todas as responsabilidades emergentes da emissão de garantia bancária”.

O crédito reclamado pelo Banco T..., S.A. tem data posterior à constituição da hipoteca pelo que é um crédito futuro relativamente a ela.

(…) Como resulta da factualidade provada, o crédito reclamado pelo Banco T..., S.A. é relativo a um contrato de empréstimo outorgado em 21-09-2009, em relação ao qual não se mostra registada qualquer hipoteca, por outro lado, não tem a ver com a garantia de responsabilidades emergentes da emissão de garantia bancária e não é relativo à abertura de crédito (o contrato de abertura de crédito é aquele pelo qual o banco – creditante – se obriga a colocar à disposição do cliente – creditado – uma determinada quantia pecuniária – acreditamento ou linha de crédito – por tempo determinado ou não, ficando o último obrigado ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respetivos juros e comissões – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19-12-2012, Processo n.º 132/12.2TBCVL-A.C1), o que tudo leva a considerar como correta a qualificação apresentada no original da reclamação de créditos apresentada pelo credor reclamante, na parte em que qualificou o crédito reclamado como crédito comum e subordinado (juros vencidos após a declaração de insolvência), já que, em relação ao crédito reclamado, não beneficia de qualquer garantia real, nomeadamente hipoteca.”

A esta argumentação opõe a recorrente duas linhas distintas de raciocínio recursivo, a primeira, segundo a qual se teria firmado caso julgado no despacho saneador quanto à existência e garantia do crédito por si reclamado; a segunda, em que defendeu que o crédito reclamado não é novo relativamente ao que havia reclamado no PER e não constitui qualquer novação do único crédito que tem sobre os insolventes, constituído em 2006 e 2007 tendo apenas sido renegociado no seu montante posteriormente, sem que tenha desistido da hipoteca que o garantia.

Quanto à existência de caso julgado formado pelo despacho saneador, convém ter presente que os créditos reclamados e que, de acordo com o disposto no art. 17º- D nº 2, 3 e 4 do CIRE, constituam no PER a lista definitiva de credores, podendo ser aproveitados nos termos do art. 17º-G nº7 do mesmo diploma, no sentido de evitarem a esses credores reclamantes uma nova reclamação, para lá dessa faculdade não incorporam em si, e por esse facto, qualquer outro valor probatório de reconhecimento, podendo no processo de insolvência subsequente ser objecto de reclamação, de impugnação e, como assim, de decisão que os não reconheça.

Como já entendemos em acórdão de que fomos adjunto[5], “O art. 17-G nº 7 CIRE reporta-se à reclamação, significando apenas que os credores cujos créditos tenham sido reconhecidos no âmbito do PER ficam dispensados do ónus de reclamar no processo de insolvência.

Ora, apesar de a lei se exprimir em “conversão” do processo especial de revitalização em processo de insolvência, a verdade é que se trata de processos distintos e autónomos. O processo de insolvência é um novo processo, com uma nova instância, tanto assim que a ele é apensado o PER (art.17 G nº4).

O PER, dada a sua natureza, não se destina a resolver litígios sobre a existência e amplitude dos créditos, pois a decisão sobre a reclamação de créditos é meramente incidental, logo não constitui caso julgado fora do processo (art. 91 CPC), visando, no essencial a formação e apreciação do quórum deliberativo (cf., Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2.ª edição, 2013, pág. 159 e segs., Nuno Casanova/David Dinis, PER – O Processo Especial de Revitalização, 2014, pág. 78 e segs.).

Daqui resulta que não fazendo caso julgado o reconhecimento de crédito fora do PER, a dispensa do ónus de reclamação não afasta o direito de impugnação por parte dos demais credores.

Neste sentido, em comentário ao art. 17-G do CIRE, escrevem Nuno Casanova/David Dinis – “Por último, esclarece-se que o facto de determinados credores terem sido incluídos na lista definitiva de créditos reclamados no âmbito do PER apenas implica que os mesmos ficam desonerados de reclamar os seus créditos no processo de insolvência. Não impede que os créditos desses credores sejam impugnados no âmbito do processo de insolvência. A lista definitiva de créditos no PER não tem força de caso julgado “ (loc. cit., pág. 172).”

Num segundo momento, ainda neste domínio de invocação do caso julgado, verbera a recorrente que, reclamado de novo o seu crédito, e agora no processo de insolvência, sem que lhe tivesse sido oposta impugnação, tendo sido acolhido pelo administrador de insolvência, no montante reclamado e com natureza de garantido, na lista por este elaborada e apresentada nos termos do artigo 129.º do CIRE, tal circunstância importaria que o tribunal não poderia pronunciar-se sobre ele.

Apreciando esta questão, tornamos presente que o art. 90 do diploma legal referido estabelece que “Os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência”.

Em anotação a este preceito, escrevem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[6] que ele “regula o exercício dos direitos dos credores contra o devedor no período de pendência do processo de insolvência.

A solução nele consagrada é a que manifestamente se impõe, pelo que, apesar da sua novidade formal, não significa, no plano substancial, um regime diferente do que não podia deixar de ser sustentado na vigência da lei anterior.

Na verdade, o artigo 90.º limita-se a determinar que, durante a pendência do processo de insolvência, os credores só podem exercer os seus direitos “em conformidade com os preceitos do presente Código”. Daqui resulta que têm de os exercer no processo de insolvência e segundo os meios processuais regulados no CIRE.

Por conseguinte, a estatuição deste artigo 90.º enquadra um verdadeiro ónus posto a cargo dos credores.”

Decorre do exposto que terão que ser necessariamente reclamados no processo de insolvência, todos os créditos, sem excepção, sem embargo da previsão do art. 17-G nº7 do CIRE que regula o PER, conforme antes assinalado.

Esta conclusão resulta não só do normativo transcrito, mas também da conjugação dos artigos 47.º e 128.º do CIRE que estabelecem (o art. 47) que “Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos da natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio” e prescrevendo o n.º 1 do artigo 128 que “Dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham…”.

Dispõe, finalmente, o nº 3 do mesmo dispositivo legal: que “A verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento e, mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva, não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento”.

Assim, conforme assinalado por Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, da articulação do n.º 1 com o n.º 3, primeira parte, do artigo 128.º “resulta que todos os credores da insolvência, qualquer que seja a natureza e fundamento do seu crédito, devem reclamá-lo no processo de insolvência, para aí poderem obter satisfação”, sendo que “a formulação ampla da primeira parte do n.º 3 é corroborada pela segunda parte que, à semelhança do que estatuía o n.º 3 do artigo 188.º do CPEREF [Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93], não dispensa a reclamação dos créditos que tenham sido reconhecidos por decisão definitiva, se os seus titulares pretenderem ser pagos no processo, à custa da massa insolvente” [7].

Mas, se da conjugação dos normativos citados e transcritos, se conclui que, declarada a insolvência, aos credores constantes da lista referida no artigo 129.º do CIRE se impõe como único caminho a reclamação dos seus créditos no âmbito do processo de insolvência, a verdade é também que no âmbito deste processo, nos termos do art. 136 nº4 do CIRE, se consideram “sempre reconhecidos os créditos incluídos na respectiva lista e não impugnados (…)”, o que determina que apenas se abra no processo um incidente processual de natureza declarativa, que culminará na audiência de discussão e julgamento e na sentença, quando se se torne necessária a produção de prova sobre os factos articulados pela reclamante, de acordo com o disposto nos artigos 131.º a 140.º do CIRE.

No caso em decisão observamos que o crédito reclamado pela ora recorrente fazia parte da lista do administrador judicial como crédito garantido por hipoteca e não foi impugnado por nenhum credor, razão pela qual deveria considerar-se, e foi, reconhecido no despacho saneador, nomeadamente em obediência ao previsto no art. 136 nº4 citado, e confirmado pela circunstância de na sentença recorrida se ter balizado no despacho saneador como objecto do litígio a “Verificação e graduação dos créditos reclamados por L... e P...” os únicos aliás que haviam sido impugnados e relativamente aos quais se abria assim a discussão.

Não obstante essa declaração relativa ao objecto do processo, o tribunal veio a pronunciar-se sobre o crédito do credor Banco T..., S.A., sem que tivesse sido impugnado, nem sequer anunciado como objecto de conhecimento no despacho saneador.

Se bem que o art. 136 nº7 do CIRE advirta para que “se a verificação de algum dos créditos necessitar de produção de prova a graduação de todos os créditos tem lugar na sentença final”, tal não significa que até à sentença final e, quanto aos créditos que se encontrem já reconhecidos pelo mecanismo do nº4 do mesmo normativo, se mantenha em aberto o seu conhecimento, querendo apenas afirmar essa redacção que, embora existam créditos já reconhecidos no despacho saneador a graduação dos mesmos não é feita nesse momento mas, posteriormente, na sentença, onde se levarão em consideração, quer os créditos já reconhecidos no saneador quer os que tenham sido objecto de produção de prova.

Aceitando que esta exposição resulta esclarecedora quanto aos interesses em jogo no âmbito do reconhecimento, para graduação, dos créditos em processo de insolvência, deixando igualmente claro a forma como tal reconhecimento se constitui, quer através da não impugnação e reconhecimento pelo administrador, quer através de uma actividade jurisdicional de natureza declarativa, compreende-se que aqueles credores que tenham visto os seus créditos inscritos na lista do administrador e que não tenham sido objecto de impugnação por parte de ninguém, se sintam salvaguardados de qualquer necessidade de actividade probatória posterior para indagar e definir a existência, extensão, regime e garantias dos seus créditos.

Ora, no caso concreto, estando nessas condições, o credor Banco T..., S.A. veio a ser surpreendido por uma decisão do tribunal, fora do objecto que havia sido determinado no despacho saneador e, bem assim, mais significativamente, fora do que lhe era permitido e facultado pela letra do art. 136 nº4 do CIRE, que era, afinal, ter o seu crédito por reconhecido tal como fora reclamado, por não ter sido objecto de impugnação, por o administrador o ter integrado na lista e, até, por o tribunal no despacho saneador ter expressamente determinado que a continuação do processo para julgamento se reportava, exclusivamente, a outro crédito, esse sim impugnado.

Como já foi objecto de reflexão[8], “o regime exposto pode suscitar dúvidas por limitar significativamente a função do juiz a quase a uma mera formalidade, com escasso sentido substantivo” e por, as garantias que estejam dependentes na sua constituição do preenchimento de condições ad substantiam e que assim se podem ver ignoradas ou desconsideradas (essas condições) por mero efeito da falta de impugnação.

E por essa razão, defendem esses autores que o erro manifesto a que alude o art. 130 nº3 do CIRE imponha e permita ao juiz verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos da lista que vai homologar para o que pode solicitar ao administrador os elementos que julgue necessários [9].

Assentimos que o tribunal recorrido, se tivesse dúvidas sobre algum dos créditos constantes da lista do administrador de insolvência, poderia solicitar a este os esclarecimentos necessários, sobre a existência de documentos que pudessem titular garantias declaradas existentes. Porém, estes esclarecimentos, mesmo que a admitirem-se não podem significar alteração ao processo de reconhecimento dos créditos que resulta directamente da ausência de impugnação e de constarem na lista do administrador, podendo dessa forma, este último, alertado pela circunstância de erro, alterar o reconhecimento por si feito na lista, o que pode abrir uma actividade probatória, se necessária, no processo de impugnação dos créditos. É que, sendo assim, o crédito antes reconhecido pelo administrador na lista, configurado o erro, perderia esse valor e essa natureza de crédito reconhecido, motivando o credor destituído desse reconhecimento a pugnar, em termos probatórios, pela certificação dos seus créditos.

O que neste contexto nos parece excessivo, e até legalmente não admissível, é ter o tribunal recorrido feito constar nos factos provados, “que o Banco T..., S.A. reclamou a verificação de um crédito de capital de €474.849,14, acrescido de juros vencidos e vincendos, relativo a um contrato que celebrou com os insolventes em 25-09-2012 nos termos do qual os insolventes, na qualidade de mutuários, declararam que eram devedores ao Banco das responsabilidades emergentes da seguinte relação creditícia: contrato de empréstimo n.º ..., no montante de €495.000,00, outorgado em 21-09-2009 que se venceu em 22-10-2011, estando em dívida a quantia de €474.849,14, correspondente a capital, juros e encargos contratuais. Foi ainda acordado que a dívida a regularizar ao abrigo do contrato celebrado era consolidada, com efeitos a 25-09-2012, em €474.849,14 e que se mantinham integralmente as garantias constituídas a favor do Banco no “âmbito da(s) operação(ões) de crédito acima identificada(s), que subsistirão até integral cumprimento” do acordo de regularização e ainda que para caução do integral pagamento de todas as responsabilidades emergentes do contrato, designadamente reembolso de capital, pagamento de juros e outros encargos, os Mutuários “subscreve(m) uma livrança em branco contendo a expressão «não à ordem», a qual desde já autorizam o preenchimento pelo Banco pelo valor que estiver em dívida à data do seu preenchimento e a sua imediata apresentação a pagamento, se na data do vencimento de qualquer das prestações convencionadas, as mesmas não forem integralmente pagas”.

14. Na reclamação de créditos remetida, por correio electrónico, ao administrador da insolvência, o Banco T..., S.A. reclamou o montante de €584.169,70, “sendo €580.570,69 de natureza garantida e €3.599,01 de natureza subordinada, acrescido dos juros vincendos até efectivo e integral pagamento”.

15. No original da reclamação de créditos, remetida ao administrador da insolvência, o Banco T..., S.A. reclamou o montante de €584.169,70, “sendo €580.570,69 de natureza comum e €3.599,01 de natureza subordinada, acrescido dos juros vincendos até efectivo e integral pagamento”.

E ter feito o tribunal recorrido constar tudo isto, sem ter questionado o administrador quanto ao reconhecimento que este fez dos créditos que incluiu na sua lista para que prestasse esclarecimentos, sem sequer informar que iria proceder à revisão do reconhecimento do crédito da ora recorrente, o que sempre, como vimos, lhe estaria vedado.

Acresce que, motivando o tribunal recorrido estes factos provados com a indicação que eles resultavam, apenas, da reclamação de créditos apresentada pelo credor Banco T..., S.A., transformou a alegação em fundamento exclusivo da prova do facto alegado.

Aliás, compreende-se que nas contra alegações o Ministério Público remeta a bondade da decisão recorrida nesta parte para o que considera ter ficado provado, (e contra factos provados entendeu que não haveria argumentos) mas esquecendo que esse facto/crédito tornado controvertido pelo tribunal, contra o reconhecimento prévio que dele havia sido feito com base na não impugnação e no reconhecimento por parte do administrador, não foi objecto de qualquer prova testemunhal ou documental em julgamento.

Tudo isto nos conduz, assim, neste momento, a considerar que, efectivamente, a sentença recorrida, violou o caso julgado formado no saneador quanto ao reconhecimento (implícito e explicito) do crédito da ora recorrente, porquanto não solicitou qualquer esclarecimento sobre tal crédito e suas garantias, fixou o objecto probatório exclusivamente referente ao crédito impugnado e cumpriu nesse momento e dessa forma, o estatuído no art. 136 nº4 reconhecendo de forma explícita e implícita como dissemos, que apenas o crédito impugnado faltava ser reconhecido para ser graduado.

Ora, conjugando a disciplina típica e tópica do art. 136 do CIRE com aquilo que é o constante entendimento jurisprudencial e normativo do valor do caso julgado do despacho saneador, verificamos que de acordo com o art. 620 do CPC, as sentenças e despachos que recaíam unicamente sobre a relação processual tem força obrigatória dentro do processo e tão só dentro dele.

Na verdade tem força e autoridade de caso julgado material a decisão que versa sobre o fundo ou mérito da causa e só força e autoridade de caso julgado formal a decisão que versa apenas sobre questões de natureza processual[10].

Por seu turno, o art. 595 nº3  do CPCivil refere expressamente que quando o tribunal conheça total ou parcialmente do mérito da causa no saneador esse conhecimento fica a ter para todos os efeitos  o valor de sentença. E se o juiz fica vinculado pelas decisões proferidas dentro do processo, mesmo sobre aspectos de natureza processual, a não ser que se trate de despachos de mero expediente ou proferidos no uso de poder discricionário (art. 630 do CPC), “o despacho saneador não constituirá caso julgado formal quando se limita à declaração genérica sobre a inexistência de excepções ou nulidades, sem efectuar uma apreciação concreta destas”[11] mas, ao invés e a contrario, constituirá caso julgado formal, quando declarar um juízo decisório sobre alguma matéria, pronunciando-se sobre esse determinado ponto concreto, com adução de fundamentação relativa a tal [12].

Na articulação de todos estes elementos, gerais, os resultantes do CPCivil, e os específicos decorrentes do CIRE, cremos poder afirmar com segurança que no despacho saneador, o tribunal recorrido, ao não apontar o crédito da ora recorrente como impugnado e ao afirmar expressamente que os únicos créditos impugnados e objecto de litígio (e, por conseguinte, de actividade probatória) seriam os reclamados por L... e P... que haviam sido impugnados pelo Banco T..., S.A., decidiu afirmativamente pelo reconhecimento de todos os restantes créditos reclamados e constantes da lista do administrador, formando-se assim caso julgado quanto ao reconhecimento desses créditos, que não autorizava a que sobre eles se produzisse prova ou viesse a ser proferida decisão na sentença que não os considerasse reconhecidos nas suas características e garantias, como constavam daquela lista.

Não obstante tudo isto, cremos que também por uma segunda ordem de razões têm as conclusões de recurso da credora Banco T..., S.A. razão.

Com base nos factos que deu provados, por sua vez com base exclusivamente no que a recorrente tinha alegado a propósito do seu crédito e que não tinha tido impugnação, o tribunal recorrido considerou que aquele tinha data posterior à constituição da hipoteca pelo que seria um crédito futuro relativamente a ela e, por isso, sem nenhuma relação garantística com aquele crédito reclamado. Contudo, aquilo que foi designado como contrato de abertura de crédito celebrado com os insolventes em 25-09-2012 nos termos do qual os insolventes, na qualidade de mutuários, foi simplesmente um contrato através do qual se renegociou a dívida e onde esta foi consolidada, não tendo havido qualquer capital mutuado e tendo-se apenas os insolventes “declarado devedores ao Banco das responsabilidades emergentes da seguinte relação creditícia: contrato de empréstimo n.º ..., no montante de €495.000,00, outorgado em 21-09-2009 que se venceu em 22-10-2011, estando em dívida a quantia de €474.849,14, correspondente a capital, juros e encargos contratuais.”, acordando ainda que se mantivessem integralmente as garantias constituídas a favor do Banco no “âmbito da(s) operação(ões) de crédito acima identificada(s), que subsistirão até integral cumprimento”.

Ora, tomando todas as alegações do credor reclamante tão consistentes em termos de prova como as que o tribunal recorrido tomou para fixar os factos provados indicados, observamos que, afinal, a regularização da relação creditícia de 21.09.2009, que em 2012 se pretendeu consolidar, era já a simples regularização das relações creditícias originárias, datadas de 20/12/2006 e 2/05/2007 (cfr. cláusula primeira do contrato datado de 25 de Setembro de 2012), as únicas em que tinha havido capital mutuado.

Tendo presente nesta sede que apenas existe novação quando as partes contratantes quiserem eliminar a dívida antiga, constituindo uma nova obrigação vida antiga, constituindo uma nova obrigação (art. 857 e 859 do CCivil) a simples modificação da obrigação, mantém todos os elementos que não foram especificamente alterados, ou seja, não pressupõe a eliminação das garantias e dos acessórios da dívida alterada (art. 861 do CCivil).

A vontade de substituir a antiga obrigação (“animus novandi”), mediante a contracção de novo vínculo, há-de resultar de declaração expressa, pelo que, para que tal exclusão operasse, haveria que concluir, desde logo, que, relativamente ao contrato de 06.11.2002, se tratava de uma novação, isto é, de que as partes contratantes quiseram eliminar a dívida antiga, constituindo uma nova obrigação.

Mas, ao invés, perante o que o credor declarou, não foi impugnado; foi reconhecido pelo administrador e nunca antes da sentença foi questionado pelo tribunal recorrido, conclui-se que que se verificou não a substituição da obrigação originária, mas sim a sua modificação. E na simples modificação da obrigação mantêm-se todos os elementos que não foram especificamente alterados, ou seja, não pressupõe a eliminação das garantias e dos acessórios da dívida alterada[13].

Assim, por todas estas razões, entende-se que o Banco T..., S.A. deve ser reconhecido em conformidade com o reconhecimento que do seu crédito foi feito pelo administrador na lista que elaborou, isto é, como crédito garantido por hipoteca, e como tal deve ser graduado.

… …

Quanto à apelação do credor P..., este sustenta que devem ser alteradas as respostas a todos os pontos da alínea b) de 2.1.2 dos factos não provados, de modo a que tais pontos, com base nos elementos probatórios referidos neste recurso, sejam julgados totalmente provados, devendo pois ser julgado provado que P... entregou aos insolventes, as que aí constam. E isto porque, em seu protesto, o tribunal a quo não valorizou de forma atenta e conveniente a prova apresentada, tendo-o antes feito de modo errado.

Apreciando, pois, a impugnação da matéria de facto, e porque consideramos preenchidos os requisitos exigidos pelo nº1 do art. 640 do CPC, em concreto, o recorrente concluiu pretende que se dê como provado que:

“P... entregou aos insolventes, a título de empréstimo, as seguintes importâncias:

... “

No essencial, para não considerar esses montantes como entregues por empréstimo, o tribunal recorrido entendeu que “tendo sido impugnadas as “declarações” subscritas pelos insolventes, cujo teor não vincula os credores, não foram as mesmas consideradas, com excepção dos montantes cuja transferência ou depósito se mostra comprovado por outros meios de prova, sendo que, quanto a estes outros meios de prova, se depreende da motivação da matéria de facto que o tribunal considerou que deveria ficar evidenciado que os cheques apresentados e debitados nos extractos como montantes objecto dos mútuos nas declarações, foram entregues, pagos aos insolventes e à sua ordem, havendo pois como que uma exigência probatória de se apresentarem esses cheques.

Da mesma forma, quanto a esses outros elementos de prova, para lá das declarações em que os insolventes afirmaram ter recebido (e deverem) ao credor apelante, o tribunal de primeira instância considerou também que nalguns casos não se havia junto comprovativo de quem realizara o deposito ou do débito na conta;

De outro lado, e quanto às operações referidas na alínea b), vi), xii), xv), xvii), xix), xx), xxi) e xxii) dos factos provados, referentes a entrega de montantes em numerário, considerou o tribunal a quo, não se afigurarem credíveis essas entregas, cujo levantamento não resulta também comprovado da conta do reclamante.

...

 Na análise crítica desta prova, conjugada com o contexto mais geral dos documentos apresentados para formar a convicção (exceptuando aqueles que se queriam juntar com as alegações de recurso e cuja junção foi indeferida) observamos que o credor ouvido é uma parte interessada e o seu depoimento deve ser entendido nesse âmbito, resultando desde logo que ele não confessou ter emprestado menor quantitativo que o reclamado, o que afasta a utilidade principal deste depoimento que seria o de obter uma declaração confessória.

No mais, quanto às declarações sobre factos pessoais de que tinha conhecimento e que pudessem esclarecer alguma coisa os termos da impugnação, concluiu-se que repetiu tudo o que constituía a reclamação do seu crédito, abonando-o em empréstimos realizados em razão da confiança nos insolventes e na garantia de que o valor de uma unidade hoteleira de que o insolvente era dono, que pretendia vender e que estava avaliada em mais de 3 milhões de euros, suportaria os valores que ele ia adiantando.

Neste domínio objectivo, temos presente que o credor é economista, técnico oficial de contas, para além de ser amigo dos insolventes e de conhecer bem, ao que declarou, a situação económica, financeira e património daqueles.

Trata-se, pois, de uma pessoa, entendida nos domínios da economia e finanças e sabedora das formas como se realizam os empréstimos, como se documentam e atestam e como se garantem.

Ora, reclamando ele a existência de 76 operações individuais de empréstimo que juntas totalizam o crédito reclamado (com os respectivos juros) a verdade é que, como disso se deu nota na motivação da matéria de facto, tais operações tinham por base documentária de certificação as declarações de dívida, sendo que o tribunal só considerou estas na medida em que os montantes transferidos tinham a comprová-los outros meios de prova.

Uma primeira advertência de lógica e de segurança alicerçada nas regras de experiência comum, será a de avaliar não só individualmente cada operação e o modo como ela foi sendo documentada mas, num segundo momento, perceber se há um modelo comum nessas operações de forma a concluir se, a eventual não junção de um ou outro comprovativo comum às restantes (como elemento de prova de suporte), é ou não decisiva para decidir se nesses casos particulares houve uma inversão de padrão ou se a falta do documento não pode ser obviada com a percepção de se tratar de operações idênticas às provadas e onde a eventual indiligência de não junção de um elemento de suporte (v.g. da cópia de cheque ou declaração convencional) ou não inclusão do nome do mutuante ou mutuado pode ser valorada com recurso à confirmação de ser ainda possível, segundo as regras de experiência comum, a existência de tais operações de empréstimo por nelas estar presente, no essencial o mesmo percurso de comportamento ainda verificável pela prova.

Se as regras de experiência comum são aquelas que perante as circunstâncias naturalísticas da realidade em avaliação permitem extrair a conclusão de que, de forma constante e congruente, a certas causas, eventos ou modos de proceder se sucedam outros de forma consequente, só assim não ocorrendo quando intercedam elementos ocasionais de improvável cometimento e que na situação concreta avaliada não se verificam, podemos concluir, perante a prova impugnada, que para lá das declarações titulando as operações de empréstimo (e são a regra) também foram juntos os cheques revelando as transferências (o que é também a regra) juntando-se também os extractos bancários, talões de depósito e contas correntes onde aparecem, afinal, referidos os valores que o credor diz terem sido mutuados. 

Sendo este o padrão dos empréstimos, confirmado até na motivação da matéria de facto, julgamos que a distinção entre as operações que se deram como provadas e algumas que se consideraram não provadas, residiu apenas, e exclusivamente, na avaliação formal dos documentos juntos, desconsiderando e evidência probatória de mesmo nessas operações, julgadas como indemonstradas, existirem, em todas elas, documentos que estão presentes também nas restantes, faltando apenas, nalgumas, as declarações e noutras as cópias dos cheques ou elementos declarativos destes.

Neste contexto de entendimento, julgamos não existir razão para que o raciocínio convictório e as regras de convicção que tomam por sólidos determinados documentos (ou melhor a conjugação de determinados documentos) se não estenda aos casos em que apenas uma dessas formas de titulação está presente, obedecendo no entanto a um mesmo padrão de empréstimo feito declaração, emissão de cheque e ou transferência bancária verificável em extracto e ou contra corrente.

Nestas circunstâncias estão as operações referidas na alíneas b), i), vii), viii), ix), x), xi) dos factos não provados onde, de acordo com os documentos que foram juntos, é possível formar em termos seguros e com a lógica enunciada anteriormente a convicção positiva da realização desses empréstimos.

Também quanto às operações referidas na alínea b), ii), xiii), xiv), xviii) operando com o mesmo modelo de análise e atenção os documentos juntos e contexto enunciado temos por, mais que razoável, seguro, entender que correspondem a operações de empréstimo realizados pelo credor aos insolventes e que os documentos juntos comprovam.

Quanto às operações referidas na alínea b) iii) e v), do documento 8 da reclamação de créditos e dos demais documentos juntos aos autos, ainda que não resulte expressa e documentalmente demonstrado o pagamento do cheque, ou que tenha sido emitido à ordem do insolvente, a relação enumerada, também em documento, como síntese declaratória da dívida, conjugada com os elementos/declaração quanto a esses segmentos, fornecem, nos termos sobreditos, razões seguras de convicção, o que se repete nas operações referidas na alínea b), iv e xvi.

De modo diferente, julgamos que, fora deste padrão documentário dos empréstimos, terão de ficar todas as operações que se alegam ter sido realizadas através da entrega em numerário [alínea b), vi), xii), xv), xvii), xix), xx), xxi) e xxii)] e isto pela razão evidente de, quanto a esses montantes, a credibilidade de se terem feito essas operações é confrontada com a circunstância regra de a quase totalidade ter obedecido a um modelo em que as transferências foram realizadas por cheque ou por transferência bancária, valendo para estas e só para estas, em nosso entender, o valor de convicção que se extrai da circunstância de a esmagadora maioria cumprir um itinerário (declaração, emissão de cheque/ transferência, apresentação de extracto e enumeração em conta corrente) que se repete ao longo do tempo, mesmo quando a demonstração documental de um desses iteres não está presente, estando ainda algum ou alguns dos outros, o que sugere e conduz com segurança a entender que existiu repetição do processo, tanto mais que ele aprece ainda certificado numa das modalidades documentais.

No entanto, no caso do numerário, julgamos que a declaração de divida e de recebimento não é bastante, porque essa forma directa e imediata de entrega impõe, segundo as regras de experiência comum, uma prova mais forte e sólida.

Ainda neste âmbito da experiência comum sabe-se que, por regra, as entregas em dinheiro na forma de empréstimo ocorrem nos caso de pequenas importâncias não só porque a disponibilidade, detenção ou manuseio de grandes montantes não é comum numa época (e com pessoas) habituadas a utilizarem os meios indirectos de pagamento, mais seguros e mais fáceis de comprovação, como também porque essa outra forma indirecta de transacção fornece mais evidência probatória porque deixa algum “rasto”.

Ora, sendo precisamente a comprovação, presumivelmente eficaz, que gera a confiança e segurança para tomar como provadas as operações das restantes alíneas, quanto a estas últimas, é precisamente a mesma razão que conduz a que se considere que devem continuar como não provadas as operações referidas nas alíneas b), vi), xii), xv), xvii), xix), xx), xxi) e xxii que totalizam 26.000,00 € (vinte e seis mil euros), por não vencerem aquele obstáculo inicial de prova da entrega dos montantes, não obstante a existência de eventuais declarações de recebimento idênticas às restantes transacções por cheque ou transferência bancária.

Deste modo e com base nas razões deixadas expostas, altera-se a matéria de facto considerada não provada pelo tribunal a quo e, em consequência, decide-se incluir nos factos provados que:

“P... entregou aos insolventes, a título de empréstimo, as seguintes importâncias:

...”

… …

Assim, quanto ao recurso do Banco T..., SA entende-se que o seu crédito reclamado, no valor de €580.570,69 € (quinhentos e oitenta mil quinhentos e setenta euros e sessenta e nove cêntimos), deverá ser graduado  crédito garantido e €3.599,01 (três mil quinhentos e noventa e nove euros e um cêntimo) como crédito subordinado;

Quanto ao recurso de P..., em consequência da matéria de facto alterada, o crédito deste recorrente deve fixar-se no montante de 383.915,00 € (trezentos e oitenta e três mil novecentos e quinze euros), correspondente à quantia de €314.850,00 (trezentos e catorze mil oitocentos e cinquenta euros) fixada na sentença recorrida, acrescida de 69.065,00 € resultantes do montante que se obtém da alteração da matéria de facto, crédito esse de natureza comum, acrescido de juros de mora, desde a data da declaração de insolvência até integral pagamento, à taxa de quatro por cento ao anos, assumindo os juros a natureza de crédito subordinado.

… …

Síntese conclusiva:

- A junção de documentos em sede de recurso depende da caracterização (com a alegação e a prova) pelo interessado de uma de duas situações taxativamente previstas: a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; o ter o julgamento da primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí – até ao julgamento em primeira instância – se mostrava desfasada do objecto da acção ou inútil relativamente a este.

- A impossibilidade de apresentação anterior legitima a junção no recurso de documentos cuja apresentação não tenha sido possível até esse momento (até ao julgamento em primeira instância).

- É superveniente o que se constate, pelo documento, ser  posterior  decisão recorrida ou pela justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante a sua existência ser anterior ao momento considerado, só teve lugar posteriormente, por razões que se prefigurem como atendíveis.

-A junção de documentos com as alegações de recurso nos casos em que o julgamento proferido em primeira instância torne necessária a consideração desse documento, pressupõe que exista na decisão em recurso uma novidade que justifique a junção que se reclame como apta a modificar o julgamento, questão essa só revelada pela decisão, o que só acontece, pois, quando essa decisão não se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.

- Não fazendo caso julgado o reconhecimento de crédito fora do PER, a dispensa do ónus de reclamação não afasta o direito de impugnação por parte dos demais credores.

- Declarada a insolvência, aos credores constantes da lista referida no artigo 129.º do CIRE, impõe-se como único caminho a reclamação dos seus créditos no âmbito do processo de insolvência, a verdade e, no âmbito deste processo, nos termos do art. 136 nº4 do CIRE, consideram-se sempre reconhecidos os créditos incluídos na respectiva lista e não impugnados.

- No âmbito da previsão do art. 130 nº3 do CIRE o juiz pode verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos da lista que vai homologar para o que pode solicitar ao administrador os elementos que julgue necessários.

- Estes esclarecimentos não se destinam a alterar o processo de reconhecimento dos créditos (que resulta directamente da ausência de impugnação e de constarem na lista do administrador) mas sim a alertar, o administrador para erros abrindo a possibilidade de este alterar a lista apresentada, confirmado o erro.

- O despacho saneador não constitui caso julgado formal quando se limita à declaração genérica sobre a inexistência de excepções ou nulidades, sem efectuar uma apreciação concreta destas e constitui caso julgado formal, quando declara um juízo decisório sobre alguma matéria, pronunciando-se sobre esse determinado ponto concreto, com adução de fundamentação relativa.

- no despacho saneador, o tribunal recorrido, ao não apontar um crédito constante da lista do administrador como impugnado e ao não pedir sobre ele qualquer esclarecimento decide afirmativamente pelo reconhecimento desse mesmo crédito, formando-se assim caso julgado quanto ao seu reconhecimento.

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a Apelação do Banco T..., SA e, em consequência em graduar o seu crédito reclamado, no valor de €580.570,69 € (quinhentos e oitenta mil quinhentos e setenta euros e sessenta e nove cêntimos), como crédito garantido, e o montante de €3.599,01 (três mil quinhentos e noventa e nove euros e um cêntimo) como crédito subordinado.

Por sua vez, quanto à apelação de P..., acorda-se em julgar a mesma parcialmente procedente e, em consequência, fixa-se o valor do crédito graduado em 383.915,00 € (trezentos e oitenta e três mil novecentos e quinze euros), mantendo no mais os mesmos termos da graduação fixada na sentença recorrida.

Custas da Apelação do recorrente Banco T..., S.A. pela massa insolvente.

Custas da Apelação de P... pelo Apelante e pela massa insolvente, na proporção do respectivo decaimento.

Coimbra,  23 de Maio de 2017

Relator: Des. Manuel Capelo

J.A.: Sr. Des. Falcão de Magalhães

J.A.: Sr. Des. Pires Robalo


[1] Ver neste domínio, António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, 2013, p. 184.
[2] Vd. AcRC de 18.11.2014 no proc. 628/13.9TBGRD.C1, em que o ora relator foi juiz adjunto, in dgsi.pt
[3] Vd. António Santos Abrantes Geraldes em anotação ao artigo 651º, nº 1 do CPC, referindo que que “[a] jurisprudência anterior [ao Novo CPC] sobre esta matéria [da superveniência] não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado” (Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., p. 185).
[4] Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., p. 184.

[5] Ac.R.C de 24-6-2014 no proc. 288/13.7T2AVR-F.C1, in dgsi.pt
[6] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Reimpressão, QUID JURIS, Sociedade Editora, Lisboa, 2009, p. 364
[7] Obra citada, pág. 448
[8] Vd. Carvalho Fernandes e João Labareda, op.cit. p.446
[9] João Labareda , in o Novo código da Insolvência, p. 46 e 47; Fátima Reis Silva , Algumas questões processuais no novo Código de Insolvência e recuperação de empresas p. 76 e 77
[10] Rodrigues Bastos,  In Notas ao Cód. Proc. Civil, 1972, III, pag. 60 e 61
[11] Cfr. Ac. do STJ de 11/05/99 in CJ, Acs do STJ, Ano VII, tomo II, 1999, pag. 85
[12] Vide  Ac. do STJ de 06/07/2000 in CJ Acs do STJ, Ano VIII, tomo II, 2000, pag. 143.


[13] Neste sentido, vide Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol II, 3ª Ed., pág. 197. - artº 861º do Código Civil (CC).