Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
201/20.5T8MGL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA
EXECUÇÃO INCORRECTA DA ORDEM DE PAGAMENTO

RESPONSABILIDADE
Data do Acordão: 07/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA D MANGUALDE DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: REGIME JURÍDICO DOS SERVIÇOS DE PAGAMENTO E DA MOEDA ELECTRÓNICA, APROVADO EM ANEXO AO DECRETO-LEI N.º 91/2018, DE 12 DE NOVEMBRO DE 2018.
Sumário: I - A transferência bancária, também denominada ordem de transferência consiste na convenção pela qual o titular de uma conta bancária – ordenador – ordena ao seu banco que transfira um determinado montante pecuniário para uma outra conta, de um terceiro ou do próprio – beneficiário – aberta nesse ou noutro banco.

II - A uma transferência interbancária internacional realizada por um prestador de serviços localizado fora da União e um outro localizado em Portugal é aplicável Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Electrónica, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de Novembro de 2018 e, consequentemente, a norma que considera o prestador de serviço de pagamento irresponsável pela não execução ou pela execução incorrecta da ordem de pagamento, no caso de incorreção do identificador único fornecido pelo utilizador do serviço de pagamento.

III - Se para a execução do serviço de pagamento são utilizados meios electrónicos automatizados assentes estruturalmente num identificador único que é  fornecido pelo utilizador de serviços de pagamento para identificar inequivocamente outro utilizador desse serviço ou a respetiva conta de pagamento, não são exigíveis às instituições bancárias intervenientes na transferência de fundos, outros deveres de diligência de cuidado que não os referidos à verificação da coerência intrínseca do identificador único indicado pelo ordenador, não lhes sendo exigível designadamente que procedam à verificação manual da regularidade da ordem de pagamento, único modo de detectar a discrepância entre a identidade do detentor da conta de destino e a do beneficiário da transferência, resultante do identificador único;

IV - Se o erro na indicação da conta de pagamento foi dolosamente causado por terceiros desconhecidos que acederam, ilicitamente aos sistemas informáticos, da ordenante da transferência ou de beneficiária, deve considerar-se que foram esses terceiros que criaram o perigo que se concretizou no resultado danoso e, portanto, que este resultado é objectivamente imputável à conduta daqueles, e não à das instituições bancárias intervenientes na operação de pagamento, que, de harmonia com o princípio da confiança, não tinham que contar com aquele erro, antes podiam confiar na correcção do identificador único e que este tinha sido o efectivamente indicado pelo ordenador.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

A pedido das autoras V... e S... Ltd., o Senhor Juiz de Direito do Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., condenou a ré, Banco 1..., CRL,  - com fundamento em responsabilidade extracontratual resultante da violação negligente do dever de verificação de todos os requisitos da transferência bancária, da quantia de € 42 730, 80, ordenada pela segunda autora a favor da primeira, dado que não verificou se a beneficiária correspondia à indicada na ordem de transferência – a pagar à primeira autora a quantia de € 42 663,58, acrescida de juros, vencidos, desde 18 de Março de 2020, e vincendos, contados à taxa supletiva fixada para os juros civis.

É esta sentença que a ré impugna no recurso de apelação, no qual pede a sua revogação e a sua substituição por outra decisão que julgue a acção improcedente e a absolva do pedido.

Ordenada para inculcar o mal fundado da decisão impugnada, a recorrente extraiu da sua alegação estas conclusões:

1ª - A A. “S... Ltd”, ordenou junto do Banco 2..., uma transferência no montante de 42.663,58 € para o IBAN PT ...46, que é o identificador único de uma conta bancária domiciliada numa agência da recorrente, tendo indicado como beneficiário a co-autora V....

2.ª - A importância da transferência foi efetivamente creditada na conta bancária domiciliada numa agência da recorrente com o IBAN PT ...46, tendo o respetivo titular movimentado a débito os fundos transferidos.

3.ª - A autora S... CO.LTD, foi induzida em erro por um terceiro, pirata informático, no sentido de indicar o IBAN PT ...46.

4.ª – A transferência foi efetuada através da rede SWIFT, com a intervenção do Banco 2..., como banco do ordenador, o Banco 3... como banco intermediário, e a recorrente como banco do beneficiário.

5.ª - O Decreto-Lei n.º 91/2018 de 12/11 que veio transpor para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2015/2366 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa aos serviços de pagamento no mercado interno, determina no artigo 3.º n.º 3 que o título iii, que ressalvadas as exceções previstas nos artigos 76.º e 100.º, é aplicável às parcelas da operação de pagamento efetuadas em Portugal em qualquer moeda, caso um dos prestadores de serviços de pagamento esteja situado em Portugal e o outro prestador esteja situado fora da União.

6.ª – O artigo 129.º n.º e 2 do Decreto-Lei n.º 91/2018 de 12/11, determina a exclusão da responsabilidade do prestador de serviços de pagamento no caso de uma ordem de pagamento ser executada em conformidade com o identificador único, mesmo no caso em que o identificador único fornecido pelo utilizador de serviços de pagamento seja incorreto.

7.ª – O identificador único é o IBAN.

8.ª – A exclusão da responsabilidade deve ser interpretada no sentido de que, quando uma ordem de pagamento for executada em conformidade com o identificador único fornecido pelo utilizador de serviços de pagamento, que não corresponde ao nome do beneficiário indicado por esse mesmo utilizador, a limitação da responsabilidade do prestador de serviços de pagamento, prevista nessa disposição, aplica-se quer ao prestador de serviços de pagamento do ordenante quer ao prestador de serviços de pagamento do beneficiário.

9.ª – A sentença recorrida violou as disposições legais contidas no artigo 3.º n.º 3, e artigo 129.º n.º e 2 do Decreto-Lei n.º 91/2018 de 12/11, bem como, a interpretação do Tribunal de Justiça da União Europeia.

10.ª – O requisito da ilicitude, para efeito da responsabilidade civil extracontratual, pode apresentar-se de duas formas, previstas no artigo 483.º n.º 1 do C. Civil: a violação de um direito de outrem, ou a violação da lei que protege que protege interesses alheios.

11.ª - A segunda forma de ilicitude, pode resultar tanto da infração das leis que embora protejam interesses particulares, não conferem aos respetivos titulares um direito subjetivo a essa tutela, tanto de leis que, tendo também ou até principalmente em vista a proteção de interesses coletivos, não

deixam de atender aos interesses particulares subjacentes.

12.ª - Para que o lesado, nos casos do segundo tipo de ilicitude, tenha direito a indemnização, é necessário que se verifiquem três requisitos: o primeiro que à lesão dos interesses do particular corresponda a violação de uma norma legal, o segundo que a tutela dos interesses particulares, figure de facto, entre os fins da norma violada, sendo necessário que a tutela dos interesses privados não seja, um mero reflexo da proteção dos interesses coletivos, que, como tais, a lei visa salvaguardar, e finalmente que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar.

13.ª - A tutela do interesse privado dos utilizadores do sistema internacional de pagamentos, não figura entre os fins das normas do REGULAMENTO (UE) 2015/847 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, da Lei n.º83/2017, e do Aviso BP n.º 2/2018, que visam a proteção do sistema financeiro através da prevenção, deteção e investigação do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, faltando neste caso o requisito especial isto é, que a tutela dos interesses particulares, figure de facto, entre os fins da norma violada, sendo que, a sentença recorrida interpreta mal, e aplica incorretamente as disposições contidas na segunda parte do n.º 1 do artigo 483.º do C. Civil, os artigos 4.º, 7.º do REGULAMENTO (UE) 2015/847 DO  PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 20 de maio de 2015, os artigos 11.º, n.º1, al. b), 23.º n.º 1, 24.º n.º 1 b), 26.º n.º 1 da Lei n.º83/2017, e o artigo 4.º do Aviso BP n.º 2/2018.

14.ª - Na transferência – transação número de referência ... no VALOR DE EUR 42.663,58 - as informações sobre o ordenante e o beneficiário não se mostram omissas, nem incompletas, e foram preenchidas por meio dos carateres ou dados admissíveis em conformidade com as convenções do sistema de mensagens ou de pagamento e liquidação utilizado – SWIFT, tendo a recorrente cumprido os procedimentos previstos no art.º 8.º do REGULAMENTO (UE) 2015/847 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 20 de maio de 2015.

15.ª – A recorrente não violou as normas que estabelecem deveres gerais de competência técnica, e eficiência, diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados dos artigos 73.º, n. º 1, e no art.º 74.º do Regime Geral das Instituições de Crédito Sociedades, aprovado pelo D.L. n.º 298/92, de 31 de Janeiro.

16.ª – Finalmente, o Aviso do Banco de Portugal n.º 3/2020, invocado na sentença recorrida, não é aplicável a este caso, tendo em consideração que regulamenta o modo de assunção pelas instituições de crédito de riscos de diversa natureza, que se não forem devidamente geridos podem comprometer a viabilidade e a sustentabilidade de uma instituição, com consequências negativas para a preservação da estabilidade financeira, instituindo regras de governance e de controle interno de cariz

prudencial, designadamente destinados a promover a adoção de comportamentos consonantes com a preservação da estabilidade financeira e com a proteção dos interesses dos depositantes e outros clientes.

Só a autora V..., respondeu ao recurso, resposta na qual, revendo-se na fundamentação da decisão impugnada, concluiu pela improcedência dele.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

O Tribunal de que provém o recurso decidiu a matéria de facto nestes termos:

2.1. Factos provados.

a) A autora V... é uma sociedade comercial de direito italiano, com sede em Via ..., ... ..., em Itália, que se dedica, de forma lucrativa, à produção, engarrafamento e comercialização de vinhos e de produtos vinícolas;

b) A autora S... CO.LTD é uma sociedade comercial de direito chinês, com sede em ...., S..., na ..., que se dedica, de forma lucrativa, à comercialização de vinhos e bebidas espirituosas;

c) A ré é uma instituição de crédito que, além do mais, realiza operações bancárias e financeiras em Portugal;

d) No exercício das actividades comerciais referidas em a) e b) as autoras estabelecem relações comerciais entre si há vários anos, celebrando anualmente entre si diversos contratos de compra e venda de vinhos;

e) Através dos quais a autora V... fornece garrafas de vinho à autora S... CO.LTD, obrigando-se esta a pagar previamente a mercadoria fornecida;

f) No mês de Janeiro de 2020 a autora S... CO.LTD pediu à autora V... que lhe fornecesse garrafas de vinho, dando tal pedido origem ao contrato de compra e venda n.º01/2020, datado de 7 de Janeiro de 2020;

g) Na sequência do contrato de compra e venda mencionado em f) a autora V... forneceu garrafas de vinho à autora S... CO.LTD;

h) Emitindo em consequência de tal fornecimento a factura n.º...70, com o valor de €42.730,80, que enviou à autora S... CO.LTD;

i) Na qual apôs como referência para pagamento a conta com o IBAN  ..., AA, do banco ... - ... – BB;

j) No mês de Fevereiro de 2020 a autora S... CO.LTD informou a autora V... que havia procedido ao pagamento da quantia referida em h);

k) Decorridas cerca de duas semanas, e na sequência de uma nova encomenda de vinho, a autora V... comunicou à autora S... CO.LTD que não havia recebido tal quantia;

l) Na sequência da comunicação mencionada em k) a autora S... CO.LTD enviou à autora V... a informação bancária respeitante à transferência do montante referido em h);

m) Decorridos alguns dias, após confrontada pela autora V... com falta de recebimento do aludido montante, a autora S... CO.LTD informou-a que havia transferido a quantia de €42.730,80 para uma conta bancária sediada em Portugal, indicando a “V...” como beneficiária da transferência, juntando comprovativo emitido pelo banco chinês com quem trabalha;

n) Após ter sido informada pela autora V... de que não tinha qualquer conta bancária sediada em Portugal, a autora S... CO.LTD enviou-lhe cópia do e-mail que alegadamente havia recebido daquela, proveniente do e-mail ...;

o) Sendo que nas suas comunicações com a autora S... CO.LTD, a autora V... utilizava o endereço de e-mail ...;

p) No e-mail mencionado em n) foi solicitado à autora S... CO.LTD que procedesse à transferência para a conta bancária com o IBAN  ...84 6, sediada na agência do ... da ré, sendo beneficiária “....A”;

q) Na sequência do e-mail mencionado em n) e p) a autora S... CO.LTD, no dia 19 de Fevereiro de 2020, ordenou a transferência do montante de € 42.730,80 para a conta mencionada em p);

r) Dando para o efeito a respectiva ordem de transferência ao Banco 2..., onde tem domiciliada a sua conta bancária com o n.º ...76;

s) Indicando como beneficiária de tal transferência a autora V... e convicta, em face do e-mail mencionado em n) e p), que a conta bancária identificada em p) era por ela titulada;

t) O e-mail mencionado em n) e p) foi remetido à autora S... CO.LTD por desconhecidos depois de terem entrado no sistema informático de uma das autoras;

u) Tendo acedido aos e-mails da autora V...;

v) E apondo no e-mail mencionado em n) e p), no qual foi utilizado um endereço semelhante ao mencionado em o), a conta bancária nele identificada;

w) Tendo sido o endereço “...” registado na cidade ..., sita na ...;

x) A conta bancária mencionada em p), para a qual a autora S... CO.LTD transferiu a quantia referida em q) era titulada por CC;

y) As autoras não celebraram qualquer contrato com CC, que não conhecem;

z) Nem lhe deviam, ou devem, qualquer quantia;

aa) Não tendo a autora V... quaisquer negócios em Portugal ou com   portugueses, nem sendo titular de contas bancárias sediadas em Portugal;

bb) A autora S... CO.LTD nunca teve intenção de transferir a  quantia referida em q) para CC;

cc) Mas antes para a autora V...;

dd) Apenas tendo transferido a quantia de € 42.730,80 para a conta mencionada em p) em virtude do referido em t) a v);

ee) Na sequência da transferência bancária mencionada em q) a ré, no dia 20 de Fevereiro de 2020, creditou na conta mencionada em p) o montante de € 42.663,58;

ff) Correspondente à quantia mencionada em q) deduzida das comissões bancárias de transferência;

gg) Tendo sido a transferência mencionada em q) realizada através do sistema de Transferência Electrónica Interbancária;

hh) E intermediada pelo Banco 3...;

i) A conta bancária referida em p) é uma conta de depósitos à ordem e foi aberta no dia 21 de Janeiro de 2020 com um depósito inicial de € 100,00 (cem euros), a pedido de CC;

jj) Que para o efeito se deslocou à agência da ré sediada no ...;

kk) Tendo CC, de naturalidade brasileira, apresentado e disponibilizado à ré, no dia da abertura da conta, cópia do seu cartão de cidadão, com o n.º ... O ZY O, emitido pela República Portuguesa no dia 13/01/2016;

ll) Mais tendo declarado residir na Rua ..., ..., ..., freguesia ..., concelho ..., e trabalhar para a sociedade D... Unipessoal, Lda como empregado de balcão, preenchendo e assinando a ficha de informação de cliente;

mm) Disponibilizando posteriormente à ré um contrato de trabalho celebrado entre si e a sociedade D... Unipessoal, Lda., no dia 23 de Janeiro de 2020;

nn) No qual consta, além do mais, que a sociedade D... Unipessoal, Lda., admite CC ao seu serviço no dia 23 de Janeiro de 2020 com a categoria de empregado de balcão, pagando-lhe a retribuição ilíquida mensal de € 635,00 (seiscentos e trinta e cinco euros) sujeita a descontos legais, acrescida de subsídio de refeição de €4,77 por cada dia útil de trabalho prestado;

oo) No dia 31 de Março de 2020 a conta bancária identificada em p) registou o primeiro movimento depois do depósito inicial de €100,00;

pp) Tratando-se de um crédito, vulgo entrada de dinheiro, no montante de € 14.229,00 (catorze mil duzentos e vinte e nove euros), com a descrição transferência SEPA - Number One Electr;

qq) Após o crédito da quantia mencionada em pp) a conta bancária identificada em p) registou um movimento a débito, vulgo saída de dinheiro, no dia 3 de Fevereiro de 2020, no montante de € 5.000,00 (cinco mil euros) com a descrição TRANSF SEPA - DD;

rr) Registando no dia 4 de Fevereiro de 2020 outro movimento a débito no montante de € 5.000,00 (cinco mil euros) com a descrição TRANSF SEPA - EE;

ss) E no dia 6 de Fevereiro de 2020 outro movimento a débito no montante de € 4.200,00(quatro mil e duzentos euros) com a descrição TRANSF SEPA - FF;

tt) No dia 20 de Fevereiro de 2020 foi creditado o montante referido em ee) com a descrição ...;

uu) Após o crédito mencionado em tt) foram registados na conta bancária identificada em p) os seguintes débitos:

- € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 20 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA - EE;

- € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 21 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA - EE;

- € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 22 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA - DD;

- € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 24 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA - DD;

- € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 25 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA - EE;

- € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 26 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA - EE;

- € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 27 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA - DD;

- € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 28 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA - EE;

- € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 29 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA - GG; e

- € 2.860,00 (dois mil oitocentos e sessenta euros) no dia 2 de Março de 2020 com a descrição TRANSF SEPA - EE;

vv) Tendo no dia 28 de Fevereiro de 2020 sido registado um crédito no montante de € 5.000,00 (cinco mil euros), com a descrição Trf. SEPA devolvida;

ww) Ficando a conta bancária referida em p), em consequência dos débitos mencionados em uu), no dia 2 de Março de 2020 com um saldo de € 3,20 (três euros e vinte cêntimos);

xx) Tendo nesse mesmo dia sido registado um crédito no montante de € 50,00 (cinquenta euros) com a descrição Dep. Numerário, ficando a conta com o saldo de € 53,20 (cinquenta e três euros e vinte cêntimos);

yy) No dia 18 de Março de 2020 a autora V... contactou, através de telefax, a ré e solicitou-lhe que procedesse ao bloqueio da quantia referida em q) a fim de que fosse transferida para o banco chinês da autora S... CO.LTD;

zz) Tendo a ré respondido no dia 19 de Março de 2020 que não era possível proceder ao bloqueio solicitado pelo facto de a conta bancária identificada em p) não possuir saldo para tal;

aaa) O mesmo respondendo a ré ao Banco 3... em consequência do pedido de devolução da transferência que este lhe dirigiu no dia 23 de Março de 2020;

bbb) No dia 24 de Março de 2020 a autora V... apresentou participação criminal tendo por objecto os factos mencionados em n) a ff);

ccc) Pela circunstância de as informações sobre o ordenante e o beneficiário não se mostrarem omissas, nem incompletas, e terem sido preenchidas por meio dos caracteres ou dados admissíveis em conformidade com as convenções do sistema de mensagens ou de pagamento e liquidação utilizado, a ré, tal como sucedeu com o banco intermediário, não detectou quaisquer informações sem significado, nem indicadores de risco elevado, que determinassem a rejeição ou a suspensão da transferência referida em q) a s);

ddd) Tendo procedido ao crédito mencionado ee) e ff) de forma informática automática;

eee) Sem verificar a discrepância entre a identidade da beneficiária da transferência bancária mencionada em q) a s) e a identidade do titular da conta bancária referida em p);

fff) Não tendo detectado até à data referida em yy), através dos meios que tem disponíveis, nomeadamente na unidade de informação financeira, quaisquer informações que determinassem a rejeição ou a suspensão da transferência mencionada em q) a s);

ggg) A conta bancária identificada em p) foi encerrada no dia 31 de Julho de 2020, tendo nessa data CC procedido ao levantamento da quantia de € 53,20 que nela se encontrava depositada;

hhh) Na sequência do levantamento mencionado em ggg) a conta bancária identificada em p) ficou com saldo igual a zero;

iii) Os primeiros quatro dígitos da conta bancária mencionada em p) identificam que a mesma se encontra domiciliada em Portugal;

jjj) A ré foi citada para contestar os presentes autos no dia 28 de Julho de 2020.

2.2. Facto não provado.

Na execução da ordem de transferência mencionada em q) a s) a ré cumpriu todos os deveres de verificação que lhe eram exigíveis em face dos elementos de que dispunha.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso.

O âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados na instância de que provém, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação (art.º 635 nºs 2, 1ª parte, e 3.º a 5.º, do CPC).

Assim, considerando estas coordenadas da competência decisória desta Relação a questão concreta controversa que é chamada a resolver é a de saber se a sentença impugnada deve ser revogada e substituída por outra que absolva a recorrente do pedido. Resolução que importa a análise dos pressupostos da constituição de um dever de indemnizar fundado numa responsabilidade extracontratual ou aquiliana.

O facto lesivo invocado como causa petendi ocorreu no contexto de uma transferência bancária, também denominada ordem de transferência que, em geral, designa a convenção pela qual o titular de uma conta bancária – ordenador – ordena ao seu banco que transfira um determinado montante pecuniário para uma outra conta, de um terceiro ou do próprio – beneficiário – aberta nesse ou noutro banco[1]. Ou noutra formulação: a transferência bancária consiste no processo através do qual o titular da conta num banco – ordenador – dirige uma ordem de pagamento a esse banco – banco do ordenador – com a finalidade de colocar fundos à disposição do titular de outra conta – beneficiário – nesse ou noutro banco – banco do beneficiário.

E num esforço de maior concretização pode acrescentar-se que, no caso, se trata de uma transferência interbancária, dado que o ordenador e terceiro têm conta em bancos diferentes, internacional, visto que os bancos envolvidos não se encontram sedeados no mesmo país, e a débito, uma vez que a movimentação de fundos se fez por débito do ordenador. Trata-se, além disso, de uma transferência electrónica de fundos, dado que a movimentação entre contas bancárias foi realizada em cumprimento de ordem transmitida por meios electrónicos e a concretização da ordem de pagamento foi também executada, de modo automático, através da utilização de meios também eletrónicos, portanto, sem intervenção manual.

A transferência bancária constitui, comprovadamente, um instrumento extraordinariamente importante de movimentação de fundos pecuniários, permitindo a circulação desses fundos por simples anotações de débito e de crédito realizadas em contas bancárias, portanto, por um processo puramente escritural, desmaterializado, com a consequente aquisição de ganhos de segurança, rapidez e eficácia.

Não é inteiramente isento de dúvida saber se a transferência bancária se resolve numa série ou conjunto de operações independentes ou se tem antes um carácter unitário. Ainda que deva ser encarada como uma operação global, a verdade é que a transferência se decompõe em vários segmentos ou dimensões, ainda que económica e funcionalmente aglutinadas para a prossecução de um fim comum, o que permite a sujeição dos vários actos integrantes do respectivo processo a leis diversas e, portanto, uma regulação jurídica específica da posição dos diversos intervenientes, designadamente no tocante ao ponto capital da responsabilidade no caso de, na sua execução, ocorrerem danos.

 Dada a complexidade da transferência bancária internacional, porque para a sua concretização é necessária a intervenção de vários sujeitos e o recurso a técnicas e instrumentos tecnológicos sofisticados, é natural que nessa execução ocorram incidentes, causadores de danos o que coloca o problema delicado de saber qual o grau de diligência que deve ser observado pelos vários intervenientes no respectivo processo e qual deles deve ser chamado a reparar esses mesmos danos.

Na espécie do recurso esse incidente consistiu no seguinte: a autora S... Ltd., realizou,  através do Banco 2..., na qual o Banco 3... agiu como  intermediário, uma transferência bancária, utilizando a rede SWIFT[2], no montante de € 42.730,80 que tinha como beneficiária a autora V..., mas por errada identificação do número da conta bancária, dolosamente causada por terceiro que ilicitamente se intrometeu no sistema informático de uma das autoras e nas comunicações electrónicas da autora V..., aquela quantia foi transferida para a conta bancária com o IBAN PT ...20 0384 6, sedeada na ré, titulada por CC. Todavia, a ordem de transferência indicava como beneficiária V..., mas a apelante executou, automática e electronicamente, a ordem de pagamento sem verificar a discrepância entre a identidade da beneficiária da transferência bancária e a do titular da conta bancária na qual foi depositado o respectivo valor, que foi irremediavelmente descaminhado e não foi possível recuperar.

A sentença impugnada divisou naquela conduta da impugnante uma culpa negligentejá que agiu de forma negligente no que concerne ao cumprimento do dever de verificação de todos os requisitos para a transferência, que lhe era exigido, podia realizar e não logrou fazer – e, em estrita coerência vinculou-a, com fundamento numa responsabilidade delitual negligente, ao dever de indemnizar uma das autoras.

Para assentar nesta conclusão, a sentença recorrida convocou, por um lado, o Regulamento (UE) 2015/847 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 Maio de 2015, relativo às informações que acompanham as transferências de fundos e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1781/2006, para a efectiva aplicação do qual a Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto, estabeleceu as medidas nacionais (art.º 1.º, n.º 2) e o Aviso n.º 2/2018, de 26 de Setembro de 2018, do Banco de Portugal – regulador das condições de exercício, dos instrumentos e mecanismos, as formalidades de aplicação, as obrigações de prestação de informação e os demais aspectos necessários a assegurar o cumprimento dos deveres preventivos do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo no âmbito das actividades financeira sujeitas à sua supervisão - e, por outro, afastou a aplicação a aplicação do Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de Novembro, que aprovou, em anexo, o Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Electrónica (RJSPME) e que transpôs, designadamente a Diretiva (UE) 2015/2366, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Novembro de 2015, relativa aos serviços de pagamento no mercado interno, que altera as Diretivas 2002/65/CE, 2009/110/CE e o Regulamento (EU) n.º 1093/2010 e que revoga a Diretiva 2007/64/CE (art.º 1º, n.º 1), por ser aplicável apenas a pagamentos no mercado interno (da União).

A recorrente acha, porém, que a sentença contestada incorreu num nítido equívoco quanto àss norma que devem ser aplicadas no caso, dado que errou quer quanto à qualificação – dado que escolheu várias normas erradas para enquadrar a situação jurídica concreta – quer quanto à subsunção, uma vez que integrou na previsão de uma norma, factos ou situações que ele não comporta.

Desde logo, por afastar a aplicação do Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de Novembro que, no ver da apelante, é aplicável ao caso, aplicação da qual resulta a sua irresponsabilidade, dado que sempre que a execução da ordem de pagamento for executada em conformidade com o identificador único[3], considera-se que o foi correctamente, no que diz respeito ao beneficiário nele especificado, ainda que o identificador único definido pelo utilizador do serviço seja incorrecto, caso em que o prestador de serviços de pagamento não é responsável, designadamente pela execução incorrecta da operação de pagamento (art.º 129.º. n.ºs 1 e 2, RJSPME, aprovado em anexo do Decreto-Lei n.º 91/2018).

Depois, por, erradamente, ter convocado, para enquadrar o caso concreto, o Regulamento (UE) 2015/847 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 Maio de 2015, a Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto, que, entre outros objetos, adoptou medidas necessárias a efectiva aplicação daquele acto normativo de fonte comunitária, e o Aviso n.º 2/2018 do Banco de Portugal, já que este conjunto de actos normativos visa a proteção do sistema financeiro através da prevenção, deteção e investigação do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, faltando neste caso o requisito especial isto é, que a tutela dos interesses particulares, figure de facto, entre os fins da norma violada.

Por último, por, em erro, ter concluído pela violação do especial dever de diligência e de competência técnica que, em geral, vincula o banqueiro.

É, portanto, instante, verificar se no caso se verificam ou não os pressupostos de que depende a constituição da apelante de um dever de indemnizar, fundado numa responsabilidade delitual a que foi adstrita pela sentença impugnada.

3.2. Pressupostos do dever de indemnizar fundado na responsabilidade extracontratual ou aquiliana.

Consabidamente, a generalidade da doutrina – e, correntemente, também a jurisprudência – individualiza como pressupostos da responsabilidade civil subjectiva, o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e a causalidade[4]

A ilicitude decorre, de harmonia com as duas cláusulas gerais dispostas na lei, da violação de direitos subjectivos, maxime de direitos subjectivos absolutos, ou de normas de protecção (artº 483.º, n.º 1, do Código Civil).

A primeira modalidade de ilicitude compreende a ofensa a qualquer direito subjectivo, proprio sensu, mesmo os relativos – e não meros interesses - apenas se excluindo os chamados danos puramente patrimoniais, i.e., os danos que não decorram da violação de um direito subjetivo.

A segunda cláusula de ilicitude – violação de normas de protecção – exige, uma norma de conduta aplicável, destinada a proteger determinados interesses alheios e a adopção, pelo autor do facto, de um comportamento contrário a essa norma de conduta, que atinja, precisamente, os interesses protegidos pela norma violada. Nesta cláusula, compreendem-se todas as normas que tenham em vista proteger determinadas pessoas ou categorias de pessoas de lesões nos seus bens. Neste sentido, a generalidade, por exemplo, das normas incriminadoras não constitui, ao menos em sentido estrito, disposições de protecção, desde logo porque os bens jurídicos protegidos pela lei penal são, em geral, coincidentes com os que, de acordo com o direito civil, têm carácter absoluto. Assim, se o dano causado atingir direitos subjectivos, dá-se a consunção da cláusula normas de protecção. A infracção destas normas não deixa, contudo, de ser relevante, mas como elemento indiciador da violação do cuidado objetivamente devido, o que sucederá – e sucede com frequência – quando as disposições legais de protecção representem tipificações legais de deveres de cuidado.

A violação de direitos subjectivos ou de normas de protecção requer uma conduta ilícita e culposa do infractor. Há acordo quanto aos elementos em que se analisa aquela violação, mas não uma concordância quanto ao conteúdo específico de cada um desses elementos, como mostra a controvérsia suscitada pela relação entre a ilicitude e o dolo e a negligência e, portanto, pela caracterização da culpa, dado que a eventual inclusão dos elementos subjectivos na ilicitude implica a deslocação do dolo e da negligência da culpa – onde tradicionalmente são incluídos – para a ilicitude.

Para a doutrina tradicional, que pode dizer-se dominante – e que corresponde, aliás, a orientação acolhida pela sentença impugnada - para que um comportamento seja qualificado como ilícito, basta que ele constitui uma causa adequada de um resultado antijurídico: a ilicitude é qualificada em função do resultado, pelo que a conduta é ilícita quando o seu resultado for contrário ao direito.

Todavia, para uma orientação mais moderna, baseada na teoria da acção final – que, por isso, parte da verificação de que toda a acção humana se orienta para atingir conscientemente uma finalidade pré-determinada – a ilicitude da conduta não é extraída exclusivamente do resultado que provoca – mas também de certas características intrínsecas dessa mesma conduta. Para que um comportamento seja ilícito exige-se, assim, não só a violação do dever jurídico – mas também a actuação dolosa ou negligente do agente: a ilicitude da conduta pressupõe um desvalor do resultado e um desvalor da própria conduta. Em consequência, a culpa não pode ser apreciada pela relação psicológica do agente com a sua conduta, porque essa relação é estabelecida pelo dolo e pela negligência – que são elementos da ilicitude – pelo que a apreciação da culpa depende de critérios estritamente normativos ou valorativos, referidos ao juízo de censurabilidade do comportamento do agente.

A culpa decorre, portanto, de um juízo de censurabilidade ou de reprovação do comportamento do agente, de um juízo de desvalor assente na constatação de que esse agente, nas circunstâncias específicas em que actuou poderia ter conformado a sua conduta – dolosa ou negligente e, portanto, ilícita - de modo a assegurar o dever cujo cumprimento, nessas mesmas condições, lhe era exigível. Como é claro, a censurabilidade do comportamento do agente é um juízo feito pelo tribunal sobre a sua atitude ou motivação, tal como pode deduzir-se dos factos provados; na formulação desse juízo de reprovação, o tribunal socorre-se, naturalmente, de regras de experiência e critérios sociais.

Como quer que seja, seguro é que a imputação delitual, quer dizer, o esquema pela qual é possível assacar a uma pessoa um dano para efeitos de indemnização, reclama uma conduta ilícita e culposa do infractor (artº 483.º, n.ºs 1 e 2. do Código Civil).

Na imputação delitual, seja dolosa ou simplesmente negligente, o ónus da prova dos factos que fundamentam o juízo de censura ético-social do agente – e não do juízo de censurabilidade em si mesmo - onera o lesado; o não cumprimento desse ónus de prova comporta uma vantagem relevante para o lesante, uma vez que impõe ao tribunal que decida contra quem aquele ónus onera (art.ºs 342.º. n.º 1, 346.º, in fine, e 487.º, n.º 1, do Código Civil e 414.º do CPC). A prova dos factos que fundamentam o juízo de reprovação da conduta do lesado, cabe ao lesante, mas este está dispensado de os invocar visto que incumbe ao tribunal conhecer deles oficiosamente (art.º 572.º do Código Civil).

Ao contrário do direito penal, o direito civil conhece um ilícito geral de negligência (art.º 483.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

O que confere especificidade e autonomia ao ilícito negligente é a violação, pelo agente, de um dever objectivo de cuidado a que, no caso, estava juridicamente vinculado. Sempre que se infrinjam regras de cuidado, de prudência, de atenção ou diligência - ocorre um delito negligente.

Contudo, a concepção da violação do cuidado objectivamente devido como elemento individualizador do delito negligente é apenas uma proposta de solução possível: o conceito de criação ou de incremente de um perigo não permitido, importado da dogmática penal[5], é também apto a densificar o conteúdo do ilícito negligente.

De harmonia com a teoria do risco permitido, a imputação do resultado à conduta do agente só ocorre quando o comportamento tenha criado, ou aumentado ou incrementado um risco proibido, desde que esse risco se tenha materializado no resultado danoso[6]. Sempre que o agente tenha criado um risco não permitido ou aumentado o risco já existente e esse risco conduza à produção do resultado concreto, este deve ser-lhe objectivamente imputado; inversamente, a imputação deve ter-se por excluída, por exemplo, quando a conduta que produziu o evento não tenha ultrapassado o limite do risco juridicamente permitido.

A diferença entre uma e outra proposta de solução é mais aparente do que real, dado que numa perspectiva prático-normativo, os dois conceitos acabam por se equivaler: a determinação do cuidado objectivamente devido corre paralelamente aos limites do risco permitido[7].

Seja como for, há sempre que proceder à concretização das normas de cuidado, à determinação do cuidado objectivamente devido no caso concreto, i.e., dos deveres que devem ser observados pelo agente para que se possa excluir a imputação por negligência.

A imputação negligente não se basta com a inobservância do cuidado geral com que toda a pessoa se deve comportar na interacção social; a sua comprovação exige, antes, a violação de normas de cuidado que servem concreta e especificamente o tipo de ilícito respectivo, ou, dito doutro modo: na aferição do preenchimento do ilícito negligente, assume importância nuclear a determinação do cuidado objectivamente devido no caso concreto.

Como é natural, o mais importante elemento concretizador do cuidado objectivamente devido no caso concreto é o que resulta normas jurídicas de comportamento, contidas em leis ou regulamentos. A violação dessas normas constituirá indício claro de uma contrariedade ao cuidado objectivamente devido.

Note-se, porém, que se o desacatamento de normas dessa natureza constitui um indício da infracção do cuidado objectivamente exigível, poderá não ser suficiente para fundamentar de forma definitiva essa violação: que o que é perigoso em abstracto pode deixar de o ser no caso concreto, é coisa que se compreende por si[8].

Assim, quando o perigo típico de comportamento pressuposto pela norma jurídica falte excepcionalmente, em virtude da especial configuração do caso concreto, não pode esse comportamento ser considerado como contrário ao cuidado objectivamente devido.

E o inverso também pode ser verdadeiro: apesar da observância da norma, legal ou regulamentar, poderá ainda assim, existir uma violação do cuidado objectivamente exigível, embora, em tal caso, se deva ser particularmente rigoroso na afirmação da existência de um delito negligente[9].

Negativamente, a imputação delitual negligente é delimitada pelo chamado princípio da confiança. A este princípio bem pode imprimir-se esta formulação: quem se comporta de harmonia com o cuidado objectivo deve poder confiar que o mesmo acontecerá com os outros, excepto se tiver motivo fundado para crer – ou dever crer – de outro modo.

A justificação substantiva deste princípio e, portanto, a determinação do seu âmbito de actuação, pode sintetizar-se nesta proposição: como regra geral não se responde pela falta de cuidado alheio, antes o direito autoriza que se confie que os outros cumprirão os seus deveres de cuidado. Encontrando o princípio da confiança o seu fundamento material no princípio da auto-responsabilidade, segue-se que não é juridicamente exigível, que se deva contar sempre com aquelas pessoas que violam as regras jurídicas de comportamento e, por essa via, as normas de cuidado.

Há uma tendência frequente para concluir sem mais que não pode socorrer-se do princípio da confiança aquele que se comporta em violação do dever objectivo de cuidado. Feita assim, a afirmação é inteiramente inexacta, dado que bem pode suceder que, v.g., o facto e o dano consequente não possam objectivamente ser imputados àquela violação do dever – logo de acordo, de resto, com o critério da imputação objectiva, de harmonia com o qual é necessário que seja o perigo típico criado ou potenciado pela conduta aquele que se concretiza, ele próprio e não outro, no resultado danoso.

Na lei civil fundamental portuguesa, o cuidado objectivamente devido e concretizado com apelo ao bom pai de família, portanto, ao cidadão normal, ao homem médio (art.º 487.º, n.º 2, do Código Civil). O critério definidor do esforço que é objectivamente exigível a cada pessoa é, assim, além de normativo, objectivo e generalizador, e, portanto, não entra em linha de conta com as capacidades pessoais do agente concreto, caso estas sejam inferiores às do homem médio.

A concretização do bom pai de família faz-se, porém, na específica área de interesses e de competência técnicas em que se insere o devedor, pelo que, no caso, dada a qualidade da apelante – um banco – há, em princípio, que levar em linha de conta, para além de um dever geral de diligência, o dever acessório de competência técnica[10] - que, é aliás transversal a toda a actividade bancária, não sendo específico da execução de transferência bancária – que se projecta nos cuidados e cautelas que o banqueiro deve observar na execução de qualquer acto ou operação bancária, portanto, também na transferência de fundos e no serviço de pagamento (art.ºs 73.º e 74.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro, na sua redacção atual). Por força destes deveres, o banco deve, em princípio, controlar, tão rigorosamente quanto possível, a ordem de pagamento do ordenador; caso não o faça, deve, em princípio, assumir a responsabilidade por esse facto. Este dever tem ainda a virtualidade de dar, em abstracto, a medida a diligência exigível ao banqueiro no cumprimento das obrigações que para ele emergem, v.g., da execução transferência bancária. Ao banqueiro será, por isso, exigível, prima facie – designadamente na área sensível da execução da transferência bancária - elevados níveis de competência técnica e de organização. A bitola do esforço exigível é, por isso, mais exigente que a comum: requer um esforço acrescido, por se dirigir a uma entidade altamente qualificada e especializada.

O banqueiro deve, pois, em geral, actuar com este grau de diligência e profissionalismo nos diversos aspectos atinentes, v.g., à transferência bancária, usando de uma cautela e de um cuidado subidos. Mas – note-se – isto só deve ser assim, se uma qualquer outra norma não impuser ao banqueiro um grau diferenciado de diligência, em função, por exemplo, do meio e do sistema utilizado para a transmissão da ordem de pagamento ou limitar a observância dos deveres objectivos de cuidado ou de cautela exigíveis a certos aspectos ou dimensões do ato ou da operação bancária, por exemplo, da transferência de fundos.

Como as considerações anteriores deixam antever, uma coisa é a constatação da violação objectiva de um dever de cuidado outra bem diferente a imputação objectiva do dano à violação desse dever[11].

Para que o lesante se constitua no dever de reparar o dano, não é suficiente comprovação do elemento caracterizador do ilícito negligente, que o especializa e que lhe confere autonomia - a violação do cuidado objectivamente devido no caso concreto: é ainda necessário que aquele resultado possa imputar-se objectivamente à conduta.

De harmonia com o princípio que a responsabilidade civil só intervém relativamente a comportamentos humanos e se exige, para a constituição do dever de indemnizar, um resultado, há sempre que verificar não apenas se esse resultado se produziu, como também se ele pode ser atribuído – imputado - à conduta.

É a exigência de um relacionamento ou de uma conexão dessa conduta com o evento a que se procura dar resposta com a causalidade.

Uma orientação que tem merecido um apoio generalizado é a da causalidade adequada ou da causalidade jurídica sob a forma de adequação, que, simplificadamente, pode formular-se assim: um facto é causa de um resultado, sempre que, em termos de normalidade social, seja adequado a produzir esse resultado (art.º 563.º do Código Civil)[12].

A finalidade evidente da teoria da causalidade adequada é a limitar a imputação do resultado às condutas das quais deriva um perigo idóneo de produção do resultado. Há, porém, domínios em que as soluções que resultam da aplicação da teoria da causa adequada não são inteiramente satisfatórias, o que sucede, sobretudo, em actividades que, comportando, em si mesmas, riscos consideráveis são, todavia, legalmente permitidas. Está nessas condições, por exemplo, a circulação rodoviária em que, na generalidade dos casos, a conduta se revela adequada à produção do resultado, sem que, sob pena de paralisação ou de retrocesso da vida económica e social, seja possível proibi-la.

A teoria da adequação depara-se, pois, com várias dificuldades. Uma delas resulta do facto de o critério de adequação dever ser geral e abstracto, enquanto, depois de o resultado verificado, dificilmente se poder negar a sua previsibilidade e normalidade. O que conduz à conclusão de que o nexo de adequação se tem de aferir segundo um juízo ex ante e não ex post, portanto segundo um juízo de prognose póstuma: com este oximoro quer-se significar que o juiz deve deslocar-se mentalmente para o passado, para o momento em que a conduta foi praticada e ponderar, enquanto observador objectivo, se, dadas as regras gerais de experiência e o normal acontecer dos factos – o id quod plerumque accidit – a acção praticada teria como consequência a produção do evento[13]. Caso conclua que a produção do evento era imprevisível ou que, sendo previsível, era improvável ou de verificação rara, a imputação objectiva não deverá ter lugar.

A adequação deve, naturalmente, referir-se a todo o processo causal e não só ao resultado, sob pena de um alargamento excessivo da imputação. É neste contexto que se situam os problemas da intervenção de terceiros ou da interrupção do nexo de causalidade, que têm em vista aqueles casos em que o resultado se verifica em consequência de uma co-actuação do lesado ou de terceiro.

O critério da causalidade resolve o problema por recurso ao concurso real de causas adequadas, simultâneas ou subsequentes, considerando qualquer dos lesantes responsável pela reparação de todo o dano[14]. Esta conclusão impõe-se ao menos nos casos em que a causa operante interrompeu a série causal hipotética e em que a causa operante só provocou o dano porque os termos da causalidade hipotética já decorridos favorecem a sua eficácia causal, de tal modo que o dano, tal como concretamente se verificou, não se teria verificado se não fossem esses termos. Quando isso suceda, estamos perante um caso de concorrência efectiva de causas – e não de um caso de causalidade hipotética e, portanto, não se coloca o problema da relevância negativa da causa hipotética.

Todavia, estes casos não podem, em rigor, assumir relevo de um ponto de vista de pura causalidade, devendo valer para eles a solução disponibilizada pelo critério da criação ou, em caso de concurso de riscos, da potenciação do risco permitido.

Na verdade, em face das dificuldades do critério da adequação não são de estranhar as propostas da sua correcção, por recurso aos conceitos de risco permitido e do fim de protecção da norma.

De harmonia com a teoria do risco permitido, a imputação do resultado à conduta do agente só ocorre quando o comportamento tenha criado, ou aumentado ou incrementado um risco proibido, desde que esse risco se tenha materializado no resultado danoso. Sempre que o agente tenha criado um risco não permitido ou aumentado o risco já existente e esse risco – e não outro - conduza à produção do resultado concreto, este deve ser-lhe objectivamente imputado.

A obrigação de indemnização tem por escopo fundamental a remoção do dano imputado e, portanto, a medida da indemnização é, por regra, simplesmente a do dano efectivamente imputado ao lesante (art.º 562.º do Código Civil). Questões como o nexo de causalidade transcendem, por isso, a problemática da determinação da indemnização.

Todavia, o Código Civil actual rompeu com o princípio da não influência da culpa sobre o quantum respondeatur, permitindo ao juiz, nos casos em que a imputação delitual opere por ilícito negligente, fixar a indemnização, equitativamente, em montante inferior ao dano, desde que o justifiquem não só o grau de culpa do lesante, como também a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (art.º 494.º do Código Civil).

E o concurso de riscos - ou, se se preferir, a contribuição causal de terceiro para a verificação do dano - é certamente, uma das demais circunstâncias do caso a ponderar pelo tribunal.

Todavia, a fixação da indemnização em valor inferior ao do dano justifica-se sempre que os danos sejam provocados por terceiro – e na medida em que o sejam – ainda que não voluntariamente ou ainda que licitamente. Verdadeiramente, não há aqui uma limitação da indemnização – mas apenas uma delimitação dos danos que ao lesante devem ser imputados, pelo que a redução prescinde da comprovação, relativamente a esse terceiro, dos pressupostos da imputação delitual.

Este pecúlio de considerações habilita, com suficiência, à resolução do caso colocado à atenção desta Relação.

3.3. Concretização.

O Regulamento (UE) 2015/847 estabelece regras relativas à informação sobre o ordenante e o beneficiário que devem acompanhar as transferências de fundos, para efeitos de prevenção, detecção e investigação do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, quando pelo menos  um dos prestadores de serviços intervenientes nessa transferência estiver estabelecido na União e institui todo um conjunto de mecanismos e de obrigações para os prestadores de serviços de pagamento,  ordenadas para prevenir e combater o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo e para garantir a solidez, a integridade e a estabilidade dos sistema de transferências de fundos e a confiança no sistema financeiro no seu todo, que podem ser gravemente comprometidas pelos esforços dos delinquentes para camuflar a origem do produto do crime ou para transferir fundos para actividades criminosas ou com fins terroristas (art.º 1.º). Por sua vez, a Lei n.º 83/2017, estabelece também um conjunto de medidas de natureza preventiva e repressiva de combate aos fenómenos criminais de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo (art.º 1.º, n.º 1). Patentemente, estes normativos, e as diversas normas injuntivas de conduta que neles se contêm visam a tutela de interesses colectivos ou supra-individuais, não sendo ordenadas para a tutela, ainda que meramente reflexa, de interesses concretos de que sejam portadores os vários intervenientes numa transferência de fundos, designadamente os do ordenante dessa transferência. O mesmo sucede, aliás, com o Aviso 2/2018, do Banco de Portugal. Neste sentido, aquelas normas de conduta não têm a virtualidade de servir de normas de protecção e, portanto, para preencherem a apontada cláusula de ilicitude.

Sendo isto exacto, então, realmente, quanto a este ponto a apelante tem, realmente, razão. Simplesmente não há, no caso, qualquer utilidade em discutir, o preenchimento da cláusula de ilicitude em que se resolve a violação de normas de protecção, considerada a ocorrência da violação de um direito subjectivo da apelada, e, portanto, o preenchimento da cláusula correspondente de ilicitude – isto caso, evidentemente, se demostre a causa de pedir da qual faz derivar aquele direito.

De resto, deve concluir-se, na espécie sujeita, que a apelante observou estas normas de conduta. É o que linearmente decorre dos pontos de facto julgados provados – cuja veracidade ninguém discute -   descritos nas alíneas ccc) -  Pela circunstância de as informações sobre o ordenante e o beneficiário não se mostrarem omissas, nem incompletas, e terem sido preenchidas por meio dos caracteres ou dados admissíveis em conformidade com as convenções do sistema de mensagens ou de pagamento e liquidação utilizado, a ré, tal como sucedeu com o banco intermediário, não detectou quaisquer informações sem significado, nem indicadores de risco elevado, que determinassem a rejeição ou a suspensão da transferência referida em q) a s) -  e fff) - Não tendo detectado até à data referida em yy) – 18 de Março de 2020 - através dos meios que tem disponíveis, nomeadamente na unidade de informação financeira, quaisquer informações que determinassem a rejeição ou a suspensão da transferência.

E a apelante também tem razão no segmento em que sustenta que ao caso é aplicável RJSPME, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de Novembro de 2018.

Efectivamente o título III do RJSPME, relativo à prestação e utilização de serviços de pagamento é, aplicável, de harmonia com a norma definidora do seu âmbito de aplicação, ás operações de pagamento efectuadas em Portugal, caso um dos prestadores de serviços de pagamento esteja situado em Portugal e outro prestador de serviço esteja situado fora da união (art.º 3.º, n.º 3, b)). E entre as normas aplicáveis conta-se a reguladora da responsabilidade do prestador do serviço de pagamento por identificador único incorrecto, que considera aquele irresponsável pela não execução ou pela execução incorrecta da operação de pagamento, no caso de  incorrecção do identificador fornecido pelo utilizador do serviço de pagamento, sem prejuízo da sua vinculação ao dever de colaborar, com o prestador de serviços de pagamento do ordenante, nos esforços razoáveis orientados para a recuperação dos fundos envolvidos na operação de pagamento (art.º 129.º, nºs 1 a 3).

Solução que está em inteira harmonia – ou mais do que isso – é a reprodução exacta do disposto na Diretiva (UE) 2015/2366, dado que o respectivo título III, regulador da transparência das condições e dos requisitos de informação aplicáveis aos serviços de pagamento, também é aplicável às operações de pagamento efectuadas em todas as moedas, caso um só dos prestadores de serviços de pagamento esteja situado na União, no que diz respeito às partes da operação de pagamento efectuadas na União, com a consequente aplicação da norma reguladora da (i)responsabilidade pela execução de uma ordem de pagamento de acordo com o identificador único, em que se considera que o prestador de serviços não é responsável, pela não execução da ordem de pagamento, ou por falhas nessa execução se esse identificador, tendo sido fornecido pelo utilizador do serviço, estiver incorrecto, ficando apenas vinculado ao dever de colaborar, com o prestador de serviços de pagamento do ordenante, nos esforços razoáveis para recuperar os fundos envolvidos na operação (art.º 88.º, nºs 1 e 3).  Regulação que retoma, em substância,  a contida no art.º 74.º, n.ºs 1 e 2, da Diretiva 2007/64/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Novembro de 2007, relativa aos serviços de pagamento no mercado interno, que altera as Diretivas 97/7/CE, 202/65/CE, 2005/60/CE e 2006/48/CE e revoga a Diretiva 97/5/CE, revogada, por sua vez, pela Diretiva (EU) 2015/2366, disposição que – como aponta o recorrente – foi interpretada no acórdão do Tribunal de Justiça (Décima Secção), de 21 de Março de 2019, em resposta a pedido de decisão prejudicial, no sentido de que, quando uma ordem de pagamento foi executada com o identificador único fornecido pelo utilizador de serviços, que não corresponde ao nome do beneficiário indicado por esse mesmo utilizador, a limitação da responsabilidade do prestador de serviços de pagamento, prevista naquela disposição, se aplica ao prestador de serviços de pagamento do ordenante quer ao prestador de serviços pagamento do beneficiário[15].

No caso, o prestador de serviço de pagamento do ordenador é o Banco 2... – portanto, localizado fora do espaço da União. Mas a apelante, notoriamente situa-se neste espaço e a operação de pagamento foi executada em território nacional. Ao acto de pagamento realizado pela apelante é, portanto, aplicável, o RJSPME e, consequentemente a norma limitadora da responsabilidade apontada (art.º 129.º).

A regra da irresponsabilidade do prestar de serviço de pagamento que executada a ordem de pagamento de harmonia com o identificador único que lhe foi fornecido é, de resto, a que melhor responde à exigência de equilíbrio dos interesses divergentes em presença e ás necessidades de eficiência e fluidez do trato ou giro bancário, designadamente internacional.

Regra que, aliás, decorre dos princípios gerais, como resulta da circunstância de, na ausência de norma específica reguladora da responsabilidade do banqueiro por errada execução de ordens de pagamento, doutrina de incontestável valia científica já sustentar a solução da irresponsabilidade daquele, no caso de erro de transmissão que lhe fosse alheio. Assim, se o erro fosse do mandante, porque, por exemplo, identificou erradamente o beneficiário, levando o banco a fazer uma transferência errada, as consequências recairiam sobre aquele; só no caso de haver erro do banqueiro, porque, por exemplo, recebeu a ordem correcta e executou algo diverso, é que a responsabilidade seria dele[16].

Maneira que, considerado o modo como é regulada a responsabilidade do banco que concretiza a ordem de pagamento, aquele apenas tem que se preocupar em a executar a favor do beneficiário especificado no identificador único e só relativamente a este ponto deve agir conformidade com a grau de diligência e de prudência a que está vinculado, não ficando incurso em responsabilidade se a incorrecção do identificador único lhe não for imputável, como é, nitidamente, o caso do recurso, em que aquela incorrecção é assacável a um acto criminoso de terceiro a que a apelante é inteiramente alheia.

 A responsabilidade do prestador de serviços de pagamento circunscreve-se à execução correcta da operação de pagamento, de harmonia com o identificador único fornecido pelo utilizador,  elemento exclusivo de identificação do outro utilizador do serviço de pagamento que a lei considera inequívoco e, caso os fundos envolvidos na operação cheguem a destinatário errado devido a um identificador único incorrecto fornecido pelo ordenante, e que não seja possível recuperar, o dano correspondente não deverá ser imputado ao executor da ordem de pagamento. Este apenas deve usar da diligência devida para verificar - se isso for tecnicamente possível, e não exigir uma intervenção manual - a coerência intrínseca do identificador único e só no caso de este se revelar intrinsecamente incoerente é que deve recusar a execução da ordem de pagamento. De resto, este dever de diligência melhor quadra ao prestador de serviço de pagamento do ordenante, que no caso figurado, deve recusar a ordem de pagamento e de tudo isso informar o ordenante.

De outro aspecto, considerado o meio utilizado para a execução do serviço de pagamento – meios electrónicos automatizados assentes estruturalmente num identificador único que deve ser fornecido pelo utilizador de serviços de pagamento para identificar inequivocamente outro utilizador desse serviço ou a respetiva conta de pagamento - não era exigível à apelante que procedesse à verificação manual da ordem de pagamento, único meio adequado à detecção da discrepância da identidade do beneficiário da transferência e da identidade do titular da conta de destino, sob pena de completa paralisação, ou na hipótese mais benigna, de entorpecimento ou de disrupção do giro bancário e de inobservância sistemática do prazo de execução das ordens de pagamento. E não é exigível à apelante, como, pelas mesmas razões, também não o é ao banco do ordenador nem ao banco intermediário, dado que o sistema de pagamento utilizado assenta, sempre e só, de modo desmaterializado e automatizado, no princípio do identificador único: nenhuma das instituições bancárias intervenientes estava vinculada a outros deveres de diligência que não o da verificação da indicação do identificador único – no caso, do IBAN - o que explica que tanto o banco do ordenador como o banco intermediário também se não tenham apercebido da apontada discrepância.

Nenhuma das instituições bancárias intervenientes estavam, pois, adstritas a outros deveres de diligência que não o da verificação da indicação do identificador único, podendo todas confiar – como confiaram – na correcção do identificador que foi indicado pelo utilizador do serviço de pagamento, no caso o ordenador da transferência, dado que nenhuma tinha razões para crer – ou dever crer – que o identificador único tinha sido criminosamente adulterado. A não se entender assim, cabe perguntar porque razão seria de exigir apenas à apelante e não também à instituição bancária utilizada pelo ordenador um igual grau subido de diligência, sendo certo que a instituição bancária chinesa – escolhida pelo ordenador -  usando dos especiais deveres de diligência que a apelada exige da apelante, também se poderia ter apercebido, pela estrutura do IBAN utilizado como identificador, que a conta de pagamento era detida por instituição bancária localizada em Portugal, país diverso daquele em que se situa o beneficiário, real ou efectivo, da transferência. O mesmo se podendo dizer da ordenante, já que é razoável presumir que conhecia o IBAN da beneficiária real da transferência, visto que com esta mantinha relações comerciais há vários anos e, portanto, bem podia ter-se apercebido que o identificador único que indicou – IBAN - não correspondia ao daquela.

Como decorre, sem controversão, da matéria de facto adquirida para o processo, a indicação como conta de pagamento a detida pela apelante resultou da intrusão ilícita de desconhecidos nos sistemas informáticos de uma das autoras e na adulteração das respectivas comunicações electrónicas, designadamente do IBAN da conta da beneficiária da transferência. Este facto, é de todo, alheio à apelante – e a todas as instituições bancárias que intervieram no serviço de pagamento - o mesmo se não podendo dizer, com este grau de segurança, relativamente ás autoras dado que a causa próxima ou primária que está na base dos eventos que conduziram ao resultado danoso se produziu na sua esfera:  a permeabilidade dos respetivos sistemas informáticos a intromissões ilícitas de terceiros, com a qual a recorrente – e os demais bancos intervenientes na operação de pagamento - não tinham que contar. Imputar, nessas condições, a responsabilidade pelo dano à apelante, representaria, de certo modo, o alijar da responsabilidade do ordenador – e também da instituição financeira que escolheu para a execução do serviço de pagamento – pelo desencadear do processo que desaguou no dano reparável.

Quem criou o risco da ocorrência de danos foram esses terceiros desconhecidos – e mesmo as próprias autoras -  e foi esse risco que terminou por se materializar no resultado danoso e foi esse risco – e não outro – que conduziu à produção do resultado concreto, do que decorre que este resultado é objetivamente imputável a terceiros e não à apelante. Esta – como já se sublinhou - bem pode socorrer-se do princípio da confiança, dado que não lhe era exigível que contasse com a adulteração do identificador único que lhe foi indicado e que a indicação deste não provinha, efectivamente, do ordenador, do que decorre que o dano consequente não pode ser objetivamente imputado a violação, pela apelante, de um qualquer dever de cuidado, conclusão que é harmónica com o critério da imputação objetiva, segundo o qual é indispensável que seja o perigo típico ou potenciado pela conduta o perigo que se concretiza. E esse perigo, que veio a concretizar-se no dano, não foi criado pela recorrente – mas por terceiros.

 Como quer que seja, dado que a recorrente concretizou o acto de pagamento em conformidade com o identificador único que lhe foi indicado e que o erro que feria esse indentificador não lhe é imputável, não responde pela execução incorrecta da operação de pagamento, valendo para o nosso caso – dada a sua fundamental homotropia – a solução ou a doutrina da irresponsabilidade do prestador do serviço estabelecida pelo acórdão do Tribunal de Justiça supracitado, que se retira tanto da apontada norma de fonte comunitária como da que provém de fonte interna. Doutrina para a qual pode ser adiantada esta razão material: garantir a eficiência, a fluidez e agilidade dos sistemas de pagamento, que abstraem, por inteiro, da causa ou relação subjacente, e reclamam a utilização de procedimentos desmaterializados automatizados, que notoriamente, não se compadecem ou nem sequer são compatíveis com a adstrição das instituições bancárias a deveres de diligência diversos da verificação do indentificador único e, muito, menos com a conferência manual da correspondência desse identificador com qualquer outro elemento e, correspondentemente, da regularidade da ordem de pagamento.

 Tendo isto – como se deve – por certo, então outra coisa não resta que concluir que a apelante se não mostra adstrita ao dever de indemnizar a que, com fundamento numa culpa negligente, foi vinculada pela sentença impugnada.

Importa, pois, revogar a sentença contestada e absolver a apelante do pedido.

Expostos todos os argumentos, afirma-se em síntese apertada que:

-  A transferência bancária, também denominada ordem de transferência consiste na convenção pela qual o titular de uma conta bancária – ordenador – ordena ao seu banco que transfira um determinado montante pecuniário para uma outra conta, de um terceiro ou do próprio – beneficiário – aberta nesse ou noutro banco.

 - Se o dano atingir direito subjectivo, com o consequente preenchimento da causa de ilicitude correspondente, é desinteressante averiguar se se encontra preenchida a segunda cláusula de ilicitude representada pela violação de normas de protecção, caso em que a violação desta categoria de normas apenas é relevante como elemento indiciador da violação do cuidado objetivamente devido, se impuserem deveres legais de cuidado.

- A uma transferência interbancária internacional realizada por um prestador de serviços localizado fora da União e um outro localizado em Portugal é aplicável Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Electrónica, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de Novembro de 2018 e, consequentemente, a norma que considera o prestador de serviço de pagamento irresponsável pela não execução ou pela execução incorrecta da ordem de pagamento, no caso de incorreção do identificador único fornecido pelo utilizador do serviço de pagamento;

- Se para a execução do serviço de pagamento são utilizados meios electrónicos automatizados assentes estruturalmente num identificador único que é  fornecido pelo utilizador de serviços de pagamento para identificar inequivocamente outro utilizador desse serviço ou a respetiva conta de pagamento, não são exigíveis às instituições bancárias intervenientes na transferência de fundos, outros deveres de diligência de cuidado que não os referidos à verificação da coerência intrínseca do identificador único indicado pelo ordenador, não lhes sendo exigível designadamente que procedam à verificação manual da regularidade da ordem de pagamento, único modo de detectar a discrepância entre a identidade do detentor da conta de destino e a do beneficiário da transferência, resultante do identificador único;

  -  Se o erro na indicação da conta de pagamento foi dolosamente causado por terceiros desconhecidos que acederam, ilicitamente aos sistemas informáticos, da ordenante da transferência ou de beneficiária, deve considerar-se que foram esses terceiros que criaram o perigo que se concretizou no resultado danoso e, portanto, que este resultado é objectivamente imputável à conduta daqueles, e não à das instituições bancárias intervenientes na operação de pagamento, que, de harmonia com o princípio da confiança, não tinham que contar com aquele erro, antes podiam confiar na correcção do identificador único e que este tinha sido o efectivamente indicado pelo ordenador.

A apelada sucumbe no recurso. Deverá, por essa razão, suportar as respectivas custas (art.º 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a sentença impugnada e, consequentemente, absolve-se a apelante, Banco 1..., CRL, do pedido.

Custas do recurso pela apelada.

                                                                                                                       2022.07.12



[1]  José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 550. A transferência bancária é uma operação abstracta, relativamente à relação subjacente entre o ordenador e o beneficiário, sendo, portanto, neutra no tocante à sua causa, e é uma transferência de crédito, dado que a iniciativa da transferência cabe ao devedor e não ao credor, com base em instruções previamente dadas pelo seu banco.
[2] Acrónimo de Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication, sedeada em Bruxelas, que disponibiliza uma rede ou canal de troca de mensagens eletrónicas, em que cada banco participante dispõe de um endereço próprio – código SWIFT ou BIC (bank identifier code), constituído por 8 a 11 caracteres dos quais apenas os 8 primeiros são obrigatórios.
[3] Identificador único que consiste numa combinação de letras e números ou símbolos, especificada ao utilizador de serviços de pagamento pelo prestador dos serviços de pagamento, que o utilizador de serviços de pagamento para identificar inequivocamente outro utilizador de serviços de pagamento ou a respectiva conta de pagamento, tendo em vista uma operação de pagamento (art.º 3.º, z), do RJSPME, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 91/2018). O identificador único consiste, no caso, no IBAN – International Bank Acount Number – estrutura normalizada de número de conta de pagamento e que permite validar uma conta de pagamento na Área Única de Pagamentos em euros (SEPA), que no caso português tem 25 caractéres e se inicia com PT50, seguido de 21 dígitos que correspondem ao Número de Identificação Bancária (NIB).
[4] Por último – reponderando, aliás, o seu pensamento, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, Almedina, Coimbra, 2010, pág. 432.
[5] Cfr. Claus Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal, Veja, Lisboa, págs. 256 e 267.
[6] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais. A doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2004, págs. 313 a 321.
[7] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, cit., págs. 355 e 356.
[8] Ac. do STJ de 07.11.00, CJ, III, pág. 104.
[9] Jorge de Figueiredo Dias, Velhos e Novos Problemas da Negligência em Direito Penal, Estudos Dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, UCP, 2002, pág. 674.
[10] Ac. do STJ de 25.10.07, www.dgsi.pt.
[11] A fixação da conexão entre a conduta ou condutas e o evento danoso é uma questão de facto subtraída, portanto, á competência decisória do Supremo Tribunal de Justiça, embora este, muitas vezes, não resista a considerar a aplicação do art.º 563.º do Código Civil como questão jurídica com o argumento, pouco consistente, de que é necessário indagar a causa jurídica de certo evento. Cfr. Antunes Varela, RLJ, Ano 122, pág. 120
[12] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 1986, pág. 743 e ss., Pereira Coelho, O Nexo de Causalidade na Responsabilidade Civil, BGD, Suplemento, n.º IX, Coimbra, 1976, pág. 201 e Miguel Teixeira de Sousa, Da Responsabilidade Civil por Factos Lícitos, Lisboa, 1977, pág. 124 e ss. Menezes Cordeiro – Direito das Obrigações, 2.º Vol., AAFDL, 1980, págs. 338 e 339 – sugeria a integração da causalidade na própria conduta e, consequentemente, a sua sujeição ao juízo de ilicitude; nesta perspectiva, a averiguação da causalidade adequada limitar-se-ia à indagação da ilicitude de cero comportamento face a um concreto dano e à identificação da adequação com o fim visado pelo agente.
[13] Ac. do STJ de 13.01.09, www.dgsi.pt
[14] Pereira Coelho, O Problema da Relevância da Causa Virtual na Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, págs. 31 a 34 e Ac. STJ de 13.01.09, www.dgsi.pt. Na jurisprudência nota-se, nos casos de conculpabilidade, o recurso tendencial á doutrina da causa adequada, numa metódica que parte frequentemente do tratamento coincidente das questões da culpa e do nexo causal. Verifica-se, na verdade, uma preocupação maior pelos problemas da ilicitude e da culpa, secundarizando o aspecto central e decisivo da adequação entre as condutas e o dano, o que tem, decerto, a ver com a constatação de que uma resposta positiva à questão da culpa facilita a formulação do juízo causal. Cfr. José Carlos Brandão Proença, A Conduta do Lesado e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Almedina, Coimbra, 1997, págs. 457 e 458.
[15] Disponível em eur-lex.europa.ue, document 62028CJO245.
[16] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 499.