Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
233/2000.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE
ÂMBITO
Data do Acordão: 05/07/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 498.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. A consequência prática do caso julgado traduz-se em dar por esgotado um «thema decidendum».

2. No plano dos fundamentos de facto, preclude-se ao autor a possibilidade de, em nova acção, e dentro da mesma causa de pedir, vir carrear outros fundamentos, de facto ou de direito, não produzidos no processo anterior.

3. Por insuficiência de matéria de facto, não pode vir a discutir-se na nova acção a factualidade que deveria ter sido alegada naquela primeira acção e que na realidade o não foi.

4. A preclusão opera, portanto, relativamente a todos os factos que a parte podia ter deduzido na acção anterior.

5. O caso julgado cobre, por conseguinte, a causa de pedir concretamente aduzida na acção anterior e também aquela que virtualmente o poderia ter sido e por qualquer motivo o não foi.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... e mulher B... intentaram no 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça uma acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra:

C...,

D..., LDA,

E... S.A. como sucessor de F....S.A.,

G... S.A. e

H...

pedindo a condenação de todos os Réus a reconhecer o seu direito de propriedade e posse sobre o imóvel identificado  no art.º 1º da p.i.; e a ver anulada a venda do mesmo prédio que teve lugar no dia 20/09/2000 nos autos de execução sumária que sob o nº 219/94 penderam pelo 1ª Juízo do Tribunal Judicial de Rio Maior.

Alegam, para tanto, e em resumo:

Que são donos e proprietários de determinado prédio urbano inscrito na matriz predial respectiva da freguesia da (...), do concelho de Alcobaça, cuja posse lhes foi transmitida por contrato promessa de compra e venda outorgado em 8 de Junho de 1974 com a então proprietária J..., a quem pagaram a totalidade do preço acordado para o negócio; que até àquela data de 8 de Junho de 1974, por si e antepossuidores, sempre a dita J... esteve na posse, pública, pacífica e ininterrupta, do imóvel, agindo como sua dona e com essa convicção, nele tendo inclusivamente implantado uma casa de habitação, hoje em ruínas; a partir da data em que celebraram o dito contrato promessa prosseguiram os AA. tal conduta possessória, ininterruptamente, à vista de todos, também na convicção de exercerem um direito próprio, pelo que, “se outro título não existisse”, adquiriram o direito de propriedade sobre o prédio por usucapião, nos termos do art.º 1287 do CC; sucede, porém, que em execução sumária movida no Tribunal Judicial de Rio Maior pelo 3º R. como exequente contra a 1ª Ré como executada, em que foram credores reclamantes os 4º e 5º Réus, a 2ª Ré adquiriu o dito imóvel por arrematação em hasta pública, obrigando os AA. a propor a competente acção de reivindicação para se verem restituídos ao seu legítimo direito de propriedade.

Citados, apenas os Réus H..., G...S.A. E E...S.A. contestaram.

O primeiro excepcionou o caso julgado decorrente do julgamento definitivo e transitado operado nos embargos de terceiro oportunamente deduzidos na execução sumária em que o imóvel reivindicado pelos AA. foi vendido; e impugnou a aquisição derivada e os actos de posse do imóvel que estes invocam, concluindo pela procedência da excepção e improcedência da acção.

O segundo aduziu que, além de desconhecer os actos de posse invocados pelos AA., não se verificou inversão do título respectivo, pelo que aquela posse sempre foi em nome alheio, não podendo, por isso, conduzir à usucapião; que não tendo sido objecto de registo, a suposta aquisição pelos AA. sempre estaria arredada pela prioridade do registo da penhora que entretanto veio a ser lavrado.

Termina igualmente com a improcedência da acção.

Por último, contestou ainda o R. E...S.A., excepcionando o caso julgado formado pela decisão transitada proferida nos embargos de terceiro opostos pelos AA. na execução supra aludida; e, defendendo-se agora por impugnação quanto aos actos de posse que os AA. dizem haver praticado, afirma que estes nunca adquiriram por qualquer forma o imóvel em causa. Em consonância remata com procedência da excepção de caso julgado ou, assim não se entendendo, com a improcedência da acção.

Os AA. replicaram sem todavia modificar o pedido e causa de pedir iniciais.

No despacho saneador foi dirimida e julgada improcedente a excepção do caso julgado.

Irresignado, desta decisão interpôs recurso o Réu E... SA, recurso admitido como agravo, a subir com o primeiro que houvesse de subir imediatamente, com efeito meramente devolutivo.

A final foi a acção julgada totalmente improcedente e, e, função disso, todos os Réus absolvidos dos pedidos.

Inconformados, desta sentença interpuseram novamente recurso os Autores, recurso este admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.    

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

                                                                             *

  

São os seguintes os factos dados como provados em instância:

1. No âmbito da execução sumária que, sob o n.º 219/94, correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Rio Maior, em que é executada a 1.º Ré C..., foi nomeado à penhora o seguinte prédio: - Prédio urbano sito em (...), freguesia de (...), concelho de Alcobaça, composto de rés-do-chão para habitação, com quatro divisões, com a superfície coberta de 57 m2, dependência com 42 m2 e quintal e logradouro com 800 m2, a confrontar do Norte com (...), do Sul com (...), do Nascente com caminho Público, e do Poente com (...), inscrito na matriz predial urbana da freguesia da (...) sob o artigo n.º (...), e omisso na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça [A)].

2. A 2.ª Ré D..., Lda, adquiriu por arrematação em praça o referido prédio, nos autos de Carta Precatória n.º 225/2000, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, extraída da execução sumária referida em A) [B)].

3. O prédio descrito em A) foi nomeado à penhora no âmbito da identificada execução sumária pelo 3.º Réu F..., SA [C)].

4. Tendo os 4.º e 5.º Réus, G..., SA e H..., reclamado créditos na referida execução sumária [D)].

5. A habitação referida em A) encontra-se em ruínas desde data não apurada [3.º].

*

O agravo.

Tendo o Réu E...SA, nos termos do art.º 748, nº 1 do CPC, na redacção anterior ao DL nº 303/2007 de 24 de Agosto, que é a aplicável, manifestado oportunamente a sua vontade de ver apreciado o agravo interposto a fls. 346 da decisão de fls. 321-324 (que julgou improcedente a excepção de caso julgado) cuja alegação apresentou a fls. 392-395, importa conhecer do mesmo pela ordem da sua interposição (art.º 710, nº 1 do CPC, naquela redacção), ou seja, antes da apreciação da apelação dos AA., até porque o seu eventual provimento prejudicará ou inutilizará o conhecimento da apelação subsequentemente admitida.

Formula para tanto o agravante um enunciado conclusivo (cfr. fls. 394-395) em que sustenta que a verificação da excepção decorre da presença de identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir entre a vertente acção e os embargos de terceiro que correram termos por apenso à execução sumária 219-B/1994 do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Rio Maior.  

Não houve contra-alegação.

Vejamos.

A questão do agravo prende-se com o problema de saber se com a decisão que julgou improcedentes os embargos de terceiro deduzidos na execução sumária para pagamento de quantia certa que no Tribunal Judicial de Rio Maior o então exequente F... S.A., hoje R. E...S.A., moveu à aqui Ré C..., se formou caso julgado material que, como excepção dilatória, obstará à prolação de decisão de mérito na presente acção, determinando a correspondente absolvição dos Réus da instância.

A decisão recorrida entendeu que entre as duas causas não há coincidência nominal de partes ou sujeitos – diante da evidência de que existem Réus na vertente acção que não assumiram a qualidade de partes nos embargos – nem de pedidos – segundo o Sr. Juiz o pedido nos embargos seria o de que fosse “dado sem efeito a penhora e arrematação” enquanto aqui seria já o do reconhecimento do direito de propriedade dos AA. e de anulação da venda executiva; e nem sequer de causas de pedir, porquanto nos embargos alegaram os agora AA. que o imóvel em causa “lhes pertence por o terem adquirido a J... em 1974, sustentando que sobre o mesmo praticaram actos materiais de posse quer quanto à sua parte urbana, quer quanto à rústica”, ao passo que na vertente acção, que tem a natureza de reivindicação, se fundam já na demonstração do direito de propriedade (num modo de aquisição deste direito).

Concluiu destarte a decisão recorrida que “Enquanto que, por via dos Embargos de terceiro, os autores pretenderam obstar à penhora e arrematação do prédio em causa, alegando para o efeito serem os legítimos possuidores do mesmo e a violação do invocado direito de posse sobre o imóvel, através da presente acção, as autores pretendem ver reconhecido o direito de propriedade sobre o prédio em causa, alegando serem os legítimos donos e proprietários”.

Ora é contra estas asserções que agora se rebela o agravante E... S.A., argumentando, em síntese, que as partes em ambas as causas ocupam activa e passivamente as mesmas posições processuais; que o efeito jurídico visado é essencialmente o mesmo (reconhecimento da propriedade); e que a causa de pedir não é diversa, pois assenta no mesmo facto jurídico invocado como fundamento do direito de propriedade. E que o objectivo último da excepção é o de evitar decisões contraditórias, desiderato que correria sério risco com a instauração da presente acção e possibilidade de a mesma vir a proceder.

Pelo que de seguida se passa a explicitar, afigura-se-nos que a razão só pode estar do lado do agravante.

Antes de prosseguir umas breves nota se impõem sobre o âmbito substantivo e o figurino adjectivo que caracterizou os embargos de terceiro antes e após a reforma processual operada pelo DL nº 329-A/95 de 12/12.

Na vigência do regime processual anterior à reforma introduzida por este diploma, o fim do processo especial de embargos terceiro, conforme se prescrevia no art.º 1037 do CPC, era apenas o de conferir ao possuidor um meio de defesa da posse respectiva, quando esta se mostrasse atingida por qualquer diligência judicial ordenada, nomeadamente, por penhora, arresto, arrolamento, posse judicial avulsa e despejo.

Todavia, consumada aquela reforma, os embargos de terceiro cambiaram de veste processual, deixando de constituir um processo especial, para se inserirem agora no modelo de um incidente da instância em que se permite ao terceiro intervir em processo pendente, opondo-se por embargos, para a tutela, não só da sua posse, como de qualquer direito incompatível com uma diligência judicialmente ordenada. Desta forma, passou a ser admissível, agora pela via incidental do art.º 351 e seguintes, a dedução de embargos de terceiro também pelo proprietário, mesmo que este não demonstrasse ter a posse efectiva do bem ou da coisa alvo de agressão indevida.

Como salienta Lopes do Rego[1], viabilizou-se no novo incidente a “averiguação da titularidade de um direito que, ponderada a sua natureza e regime jurídico-material, não possa ser legitimamente atingido pelo acto de apreensão judicial de bens em causa, por ser oponível aos interessados que promoveram ou a quem aproveita a diligência judicialmente ordenada. Na base da admissibilidade do incidente passa, pois, a estar uma questão de hierarquia ou prevalência de direitos em colisão (o actuado através do processo em que se inserem os embargos e o oposto pelo embargante) a resolver naturalmente em função das normas jurídico-materiais aplicáveis”.       

Ora não obstante o processo executivo em que os agora Autores enxertaram os seus embargos de terceiro ter tido o seu início antes da reforma de 95, certo é que, tal como aqueles expressamente reconhecem no respectivo requerimento inicial, tais embargos surgiram apenas em Março de 1997 (não só depois da penhora ali decretada como do anúncio da venda judicial do prédio em questão).

Assim sendo, e tendo em atenção que os embargos opostos pelos aqui AA. – e não obstante a feição incidental que se lhe atribuíra, dado que, mais imediatamente, uma tal intervenção se vocaciona para a neutralização a diligência objecto de determinação judicial - conservavam uma certa autonomia porquanto não deixavam de se comportar como um processo declarativo com um alcance virtualmente extra-executivo, nada impediria que aos mesmos fosse aplicado o novo regime dos art.ºs 351 e seguintes do Código (como efectivamente foi) uma vez que, à luz do disposto no art.º 16 daquele DL 329-A/95 de 12/12, se tinham iniciado após 1 de Janeiro de 1997.

Neste enquadramento jurídico-processual – e de harmonia com o novo âmbito substantivo em que se podiam mover os embargos de terceiro – era lícito aos embargantes e aqui Autores invocar a ofensa do direito de propriedade sobre o prédio de que se arrogavam donos e possuidores, cumulando ou não tal invocação com a alegação e prova da posse efectiva do mesmo.

Detenhamo-nos agora sobre os requisitos do caso julgado e o modo como cada um deles deve ser configurado.

O caso julgado integra hoje uma excepção dilatória, isto é, uma circunstância que "obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa”, dando lugar à absolvição da instância – art.°s 494, al.ª i) e 493, n°s l e 2 do CPC[2].

Como se prescreve no n° 2 do art.° 497 do CPC, o fim da excepção do caso julgado é o de evitar a reprodução ou contradição de uma dada decisão transitada em julgado.

Constitui requisito formal básico da excepção a chamada tríplice identidade entre as causas, quanto aos sujeitos, ao efeito jurídico visado (pedido) e ao facto jurídico-fundamento (causa de pedir), nos moldes que se acham definidos nos quatro números do art.° 498 do CPC.

Ao lado da excepção do caso julgado, propriamente dita, costuma falar-se da figura da autoridade do caso julgado.

Já o Professor ALBERTO DOS REIS ensinava (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pp. 92/93) que não é possível autonomizar o caso julgado - excepção e a autoridade do caso julgado como duas figuras essencialmente distintas, pelo que estaria errado quem entendesse que «o caso julgado pode impor a sua força e autoridade, independentemente das três identidades mencionadas no art. 502°» (actual 498.°).

O que acontece, segundo a lição do eminente professor, é que «o caso julgado exerce duas funções: - a) uma função positiva; e b) uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal. A função positiva tem a sua expressão máxima no princípio da exequibilidade...a função negativa exerce-se através da excepção de caso julgado. Mas quer se trate da função positiva, quer da função negativa, são sempre necessárias as três identidades».

Por conseguinte, também na declaração da autoridade do caso julgado decorrente de um decisão precedente e transitada, não é lícito prescindir da identidade de partes, causa de pedir e pedido.

Ou seja, o caso julgado - excepção e a autoridade do caso julgado mais não representam do que duas faces da mesma moeda, apesar de ambas essas manifestações repousarem na tríplice enunciação do art.º 498 do CPC.

A excepção só existe para defesa da autoridade de um certo caso julgado, como um instrumento processual que evita um novo e potencialmente diverso pronunciamento sobre o mesmo litígio.

Ora nos presentes autos o que está directamente em causa é claramente a excepção do caso julgado.

A excepção tem por único fim preservar o caso julgado material que emergiu da primeira decisão.

Diz-se material o caso julgado – nos termos do art.º 671 do CPC – por virtude de a decisão que o formou ter recaído sobre uma certa relação material ou substantiva litigada e se impor dentro e fora do processo em que se produziu.

Em certo sentido, o caso julgado forma-se sobre o pedido, que a lei define como o efeito jurídico pretendido pelo autor (ou pelo réu através da reconvenção). Mas a ordem pela qual, compreensivelmente, a lei enumera as três identidades caracterizadoras do caso julgado (a identidade do pedido antes da identidade da causa de pedir) é indiciadora de que não é tão só sobre a pretensão do autor, à luz do facto invocado como seu fundamento, que se forma o caso julgado. É a solução dada à pretensão do autor, ainda que condicionada ou motivada em função da causa de pedir em que tal pretensão se alicerça, que a lei pretende que seja respeitada através da força do caso julgado. O pedido só releva como consequência da causa de pedir que para ele foi concretamente explicitada.

Entre a causa de pedir e a pretensão processual existe, portanto, um nexo de individualização caracterizado por uma certa reciprocidade: a causa de pedir individualiza a pretensão delimitada e a pretensão delimitada só o é por virtude daquela específica causa de pedir. Esta reciprocidade permite conexionar a causa de pedir com a pretensão processual que foi individualizada e a pretensão processual individualizada só subsiste em razão da causa de pedir que foi explanada, estabelecendo-se entra ambas uma relação de implicação mútua[3].

Daí que se diga que “é a resposta dada na sentença à pretensão do A., delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado”[4]; ou, por outras palavras, que a “eficácia do caso julgado apenas cobre a decisão contida na parte final da sentença, ou seja, a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do A. ou do R., concretizada no pedido ou na reconvenção e limitada através da respectiva causa de pedir”[5].

Em síntese, o art. 498º do CPC coloca os dois requisitos da identidade objectiva - pedido e causa de pedir - precisamente no mesmo plano, sem qualquer diferença de projecção, alcance, valor e importância [6].

Uma vez formado o caso julgado material a partir dos mesmos sujeitos, da mesma causa de pedir e do pedido, a eventualidade de provocar um julgamento em contradição com esse julgado passa a ser absolutamente vedada às mesmas partes.

A lei não permite a reabertura de nova causa porque tem o caso julgado como definitivo, independentemente dos seus fundamentos.

Olhemos agora para os termos em que esse obstáculo processual deve ser analisado no caso concreto.

Em face do que ficou dito, a consequência prática do caso julgado traduz-se em dar por esgotado um «thema decidendum».

No plano dos fundamentos de facto, preclude-se ao autor a possibilidade de, em nova acção, e dentro da mesma causa de pedir, vir carrear outros fundamentos, de facto ou de direito, não produzidos no processo anterior[7].

Por insuficiência de matéria de facto, não pode vir a discutir-se na nova acção a factualidade que deveria ter sido alegada naquela primeira acção e que na realidade o não foi.

A preclusão opera, portanto, relativamente a todos os factos que a parte podia ter deduzido na acção anterior. A ser de outra forma a mesma pretensão poderia ser reapreciada várias vezes perante os mesmos sujeitos, ainda que mediante elementos de facto diversos, de que, segundo a sua conveniência, o autor se iria socorrendo sucessivamente até obter ganho de causa. Se isso fosse consentido, não ficaria salvaguardado o prestígio do órgão-tribunal, pois a todas luzes ficaria aberta a porta a julgados efectivamente contraditórios, ou, no mínimo, incongruentes.

O caso julgado cobre, por conseguinte, a causa de pedir concretamente aduzida na acção anterior e também aquela que virtualmente o poderia ter sido e por qualquer motivo o não foi.  

É que a sentença define a relação material controvertida tal como existia ao tempo em que foi proferida, mais exactamente ao tempo do encerramento da discussão da causa (sem impedir as vicissitudes ulteriores próprias da relação tal como foi definida).

Mas é também esta visão do caso julgado que coloca a identidade das partes no plano da respectiva qualidade jurídica, na expressão do mesmo interesse jurídico que elas representam na causa proposta após o julgamento de uma primeira.

Não releva aqui a identidade física ou nominal mas o interesse jurídico que a parte concretamente actuou e actua no processo. 

Por fim, o pedido deve ser encarado na essência da pretensão, ou seja, no direito que na mesma é objecto de tutela implícita ou explícita, e não nas simples consequências que encontrem a formulação no texto do articulado.

Por virtude desta necessária referência substancial, há sempre que avaliar se o direito que esteve subjacente ou implícito na declaração resultante do julgamento anteriormente prolatado na primeira causa volta a ser alvo de apreciação na segunda.

Isto posto, olhemos agora para a factualidade realmente aduzida naqueles embargos, factualidade de que nos dá conta a certidão de fls. 173 e seguintes.

Com efeito, como deflui da petição inicial, os então embargantes de terceiro A... e B..., não se confinaram à mera alegação de actos consubstanciadores do corpus e animus de uma posse de ano e dia; foram bem além disso, pois invocaram em seu benefício a usucapião alicerçada em tal posse, como causa de aquisição originária do direito de propriedade.

É o que se pode constatar dos art.ºs a daquele articulado, cujo teor se transcreve:

                                                                       5

Os embargantes desde essa data (8 de Junho de 1974) . estão na detenção. Gozo e fruição do mencionado imóvel.

                                                                       6

Nele praticando desde que o adquiriram até ao dia de hoje, portanto há mais de um ano e um dia, os mais variados actos possessórios:

1) na parte urbana:

(…);

2) na parte rústica:

(…);

                                                                       7

E tudo isto, de forma:

a) Pública, por ser à vista de toda a gente;

b) Pacífica, por não ter oposição de quem quer que seja ou contra a vontade de terceiro;

c) De boa fé, por os Embargantes estarem convencidos de que não prejudicam os interesses de ninguém;

d) De forma contínua e ininterrupta, ou seja, sem qualquer paragem ou interrupção;

e) No convencimento de que exercem um direito legítimo, próprio de quem é dono;

f) E exercem esse direito desde 8 de Junho de 1974 (há mais de 22 anos).

                                                                       8º

Pelo que, se outro título não existisse – e existe – até por usucapião, que expressamente invocam, por si e antepossuidores, há mais de 20, 50 ou mais anos, os Embargantes são donos e legítimos possuidores do identificado imóvel, uma vez o disposto no art.º 1287 e seguintes do Código Civil.

Face a este arrazoado é insofismável a conclusão de que os então embargantes e agora Autores jogaram a sorte dos embargos em dois tabuleiros: posse e propriedade.

Como é compreensível, só avançaram com a posse como causa de pedir a se para a hipótese – que, natural e obviamente, não quiseram excluir – de não lograrem arrumar o êxito dos embargos mediante a demonstração de uma posse usucapível e, por esse caminho, da aquisição originária do direito mais pujante, isto é, da propriedade[8].

Desta considerações decorre, de um modo que podemos considerar de inequívoco, que, ao contrário do que se acha plasmado na decisão de 1ª instância ora impugnada, os então embargantes da penhora efectuada na execução acima mencionada, também quiseram fazer aí valer o seu direito de propriedade fundado em usucapião sobre o mesmo imóvel que agora reivindicam.

Como se pode constatar da aludida certidão, esta causa de aquisição originária – a usucapião – foi por isso expressamente apreciada na decisão de mérito ali proferida.

Usucapião e aquisição originária que os AA. retomam como causa de pedir na vertente acção, pois que não se coíbem de reproduzir integralmente e até ipsis verbis nos art.ºs 12 a 15 da respectiva petição inicial toda a factualidade que haviam vertido no dito requerimento inicial de embargos de terceiro.

Sendo a causa de pedir nas acções reais o facto jurídico de que emerge o direito real a tutelar, nenhuma dúvida pode subsistir sobre a repetição desse mesmo facto jurídico.

E sobre o pedido também não se nos é dado vislumbrar a diversidade que é apontada no aresto ora sob censura.

É que o núcleo ou a essência da pretensão dos embargos de terceiro é a declaração e demonstração de um direito incompatível com a diligência, sendo os pedidos de levantamento da penhora e anulação da venda que se tenha realizado no processo executivo simples decorrências desse reconhecimento e declaração.

Tanto nos embargos de terceiro como na presente acção os agora Autores querem ver declarado o seu direito de propriedade contra quem representou o interesse executivo.

Nos embargos de terceiro sobre uma penhora o interesse executivo está circunscrito ao que a lei designa por partes primitivas da execução (art.º 357, nº 1, do CPC), que são notificadas para a contestação, havendo recebimento[9].

Tendo os AA. então embargantes naufragado nessa prova naquele procedimento incidental, de resto, por decisão há muito transitada em julgado, seria inaceitável e contraditório que o pudessem lograr agora por meio da vertente acção contra as mesmas partes, mesmo que acompanhadas por outras.

Com efeito, o despacho recorrido também parece impressionado com a falta de identidade entre as partes em relação às quais se dirimiram os embargos de terceiro e as que aparecem demandadas nos vertentes autos.

É verdade que os agora Autores, anteriores embargantes, demandam agora novos Réus: a compradora na venda judicial D..., Lda, e os credores reclamantes G..., SA e H....

Trata-se, porém, e salvo respeito devido, de um puro artifício processual: por um lado, resulta das certidões do processo executivo juntas a fls. 6 e seguintes e 173 e seguintes que, quando em 20 de Setembro de 2000, a ora Ré D... arremata o prédio em causa já a sentença que julgara os embargos deduzidos pelos AA. se encontrava transitada em julgado desde 18 de Abril desse mesmo ano ; por outro lado, os credores reclamantes não representaram então, como não representam agora, um interesse relevante autónomo relativamente ao da parte exequente, aliás, única que interveio e foi chamada a contestar aqueles embargos.

De um ponto de vista substancial estas novas partes inserem-se no mesmo interesse da execução que já obteve vencimento nos embargos formulados pelos AA.

Este interesse da salvaguarda da segurança de quem adquire direitos por via da execução é que justifica a norma do art.º 358 do CPC, onde se preceitua que “A sentença de mérito proferida nos embargos constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência e titularidade do direito invocado pelo embargante (…)”.

Donde que, na procedência da excepção do caso julgado, o agravo mereça provimento e, por força desse provimento, fique prejudicado o conhecimento da apelação.

Pelo exposto, acordam:

AConceder provimento ao agravo e, em função disso, julgar procedente a excepção de caso julgado e absolver todos os Réus da instância, nos termos conjugados os art.°s 494, al.ª i) e 493, n°s l e 2 do CPC;

B – Julgar prejudicado o conhecimento da apelação.

 Custas pelos Autores.

Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barateiro Martins


[1] Citado por A., Neto, CPC Anotado, 19ª Ed., p. 474, no estudo Comentários ao CPC, 1999, p.262.
[2][2] Desde a reforma introduzida pelo DL n° 329-A/95 de 12/12, em cujo preâmbulo se apresenta como elemento clarificador, "de acordo com a doutrina desde sempre sustentada pelo Prof. Castro Mendes", a qualificação do caso julgado como verdadeira excepção dilatória.
[3] Miguel Teixeira de Sousa, BMJ 325, pág. 106
[4] Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pág. 693
[5] Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pág. 695
[6] Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado, pág. 161.
[7] Alberto dos Reis, CPC anot., V, pág. 176; Manuel Andrade, ob. cit., pág. 324
[8] Pois que nos artigos seguintes do requerimento inicial se lamentam de não dispor de registo de aquisição derivada – por compra – do mesmo imóvel.

[9] Repare-se que os embargos nunca podem ser deduzidos após a venda judicial ou adjudicação dos bens – art.º 353, nº 2, 2ª parte, do CPC. Com efeito, a venda executiva de coisa não pertencente ao executado fica sem efeito com a procedência da reivindicação pelo dono, nos termos do art.º 909, nº 1, al.ª d), do CPC, o que postula que o processo executivo tenha prosseguido sem a discussão da propriedade em embargos de terceiro por aquele deduzidos.