Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2701/06.0TBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
UNIÃO DE FACTO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 05/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.496º LEI Nº7/2001 DE 11/5
Sumário: I - O art.496 nº2 do CC não confere, extensiva ou analogicamente, o direito de indemnização ao membro sobrevivo da união de facto.

II - A norma do n.º 2 do art. 496 do CC não é inconstitucional quando interpretada no sentido de não atribuir ao membro sobrevivo da união de facto o direito à indemnização ali previsto.

III - Porque o membro sobrevivo da união de facto não está incluído no conjunto das pessoas indicadas no nº2 do art.496 CC, não lhe assiste o direito de indemnização pelos “danos reflexos”.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

           

            I. M (…) propôs a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra Z (…) Companhia de Seguros, S.A., pedindo, na qualidade de companheira de J (…) - falecido a 08.4.2004 e que consigo viveu em união de facto durante cerca de 20 anos -, que a Ré seja condenada a pagar-lhe o montante global de € 143 794,66 acrescido de juros à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu em consequência do acidente de viação ocorrido em 25.3.2004 e que vitimou o seu referido companheiro, sendo a Ré responsável pelo seu pagamento, já que para ela fora transferida a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula PS-79-34, conduzido pelo seu proprietário e que deu causa àquele sinistro.

            A Ré contestou, invocando a excepção de caso julgado, por a presente acção consistir numa repetição da causa do processo-crime (n.º 83/04.4TAPMS), tendo o pedido indemnizatório da A. sido julgado por sentença transitada em julgado; quanto aos alegados danos não patrimoniais, afirmou que a A. não é titular de qualquer direito de indemnização, atento o disposto no n.° 2 do art.º 496° do CC.

            Concluiu pela sua absolvição do pedido.

            Replicando, a A. pronunciou-se no sentido da improcedência da aludida excepção.

            Foi proferido despacho saneador, que julgou parcialmente procedente a excepção de caso julgado, absolvendo a Ré da instância quanto ao pedido relativo à pensão atribuída a J (…), no valor de € 68 037,54.

            Procedeu-se à selecção dos factos assentes e da materialidade controvertida.

            A Ré recorreu do despacho saneador na parte em que julgou apenas parcialmente procedente a excepção de caso julgado, recurso que, por falta de alegação, veio a ser julgado deserto.

            Realizada a audiência de discussão e julgamento, decidiu-se a matéria de facto por despacho de fls. 209.

            Na sentença, o tribunal recorrido julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 207,12 (duzentos e sete euros e doze cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal prevista no art. 559° do Código Civil, vencidos e vincendos sobre tal quantia desde a citação da Ré nestes autos até integral pagamento, e absolveu a Ré do mais que é pedido nestes autos pela Autora e cuja instância prosseguiu após a decisão de fls. 159-163.

            Inconformada com esta decisão e pugnando pela procedência da acção quanto à compensação por danos não patrimoniais, a A. apelou, concluindo que o Tribunal “ad quem” deve manter a decisão quanto à indemnização por danos patrimoniais, declarar a inconstitucionalidade do n.° 2 do art.° 496° do Código Civil na interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal “a quo” e anular a sentença recorrida, nesta parte, condenando a Ré a pagar a indemnização por danos não patrimoniais, no valor de 75.000,00€ (setenta e cinco mil euros).

            A Ré contra-alegou sustentando a improcedência do recurso.

Colhidos os vistos e atento o referido acervo conclusivo - não podendo este Tribunal conhecer de matérias aí não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, na redacção anterior à conferida pelo DL n.º 303/07, de 24.8) - importa apreciar a invocada inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do art.º 496º C. Civil, quando interpretada no sentido de excluir o "cônjuge de facto" do direito a ser indemnizado pela morte do companheiro, bem como a questão do ressarcimento de danos de carácter não patrimonial sofridos pelo “cônjuge de facto” em consequência do mesmo facto lesivo, extraindo daí as devidas consequências quanto à reclamada compensação por danos não patrimoniais.

*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            a) No dia 25.3.2004, pelas 7.50 horas, J (…) tripulava o ciclomotor com a matrícula 1-ACB-71-63, ao mesmo pertencente, na Estrada Nacional n.° 242, ao km 8,250, em Montes, concelho de Alcobaça, no sentido de marcha Montes-Alpedriz, na sua mão de trânsito. (A)

            b) Nas circunstâncias de tempo e lugar indicadas em II. 1. a), S (…) tripulava o veículo automóvel, ligeiro de mercadorias, de serviço particular, com a matrícula PS-79-34, proveniente da sua residência, sita na referida estrada, ao km 8,250, n.° 60, com a intenção de entrar na mesma estrada, virar à sua esquerda e nela circular no sentido Alpedriz-Montes. (B)

            c) J (…) embateu com a parte da frente do ciclomotor identificado em II. 1. a) na parte lateral esquerda do veículo PS, tendo ficado entalado entre este veículo e o referido ciclomotor. (C)

            d) Em consequência do aludido embate, resultaram para J (…) o lesões traumáticas meningo-encefálicas e tóraco-abdominais, complicadas de broncopneumonia, as quais, assim, como a cifoescoliose e a doença pulmonar obstrutiva crónica de que o mesmo padecia, foram causa adequada, directa e necessária da sua morte. (E)[1]

            e) A morte de J (…) ocorreu em 08.4.2004, pelas 12.40 horas. (F)

            f) S (…) transferiu a responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergente da circulação do veículo PS para a Ré, através do contrato de seguro titulado pela apólice n.° 002993053. (G)

            g) No processo n.° 83/04.4TAPMS, por sentença transitada em julgado em 14.6.2006, decidiu-se: a) Julgar parcialmente improcedente, por não provada, a acusação pública e, em consequência, absolver o arguido S (…) pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos art.ºs 69°, n.° 1, al. a) e 291°, n.° 1, al. b) do Código Penal, em concurso aparente com a contra-ordenação grave, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 31º, n.° 1, al. a) e n.° 3, 139°, n.°s 1 a 3 e 146°, al. e), do Código da Estrada; b) Julgar parcialmente procedente, por provada, a acusação pública e, em consequência, condenar o arguido S (…) pela prática de um homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137°, n.° 1, do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão; c) Suspender a execução da pena de prisão referida na al. b) pelo período de 18 meses; d) Julgar improcedente o pedido de indemnização civil e, em consequência, absolver o demandado S (…) do pedido contra si formulado; e e) Julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil e, em consequência, condenar a demandada Z (…) Companhia de Seguros, S.A., a pagar à demandante M (…) a quantia de € 800,00 referente a danos patrimoniais, absolvendo-se no que demais havia sido peticionado - cf. certidão de fls. 117-150, cujo teor se dá por reproduzido. (H)

            h) Desde 1983 até 08.4.2004, a A. viveu na mesma casa que J (…) (1º)

            i) Durante o período de tempo referido em II. 1. h), a A. e J (…) partilharam o mesmo leito. (2°)

            j) Durante o mesmo período de tempo, a A. e J (…) assumiam-se como um casal. (3°)

            k) Nas circunstâncias de tempo e lugar indicadas em II. 1. a), S (…) não parou o veículo PS e entrou na estrada identificada em II. 1. a), sem se ter assegurado que, do seu lado esquerdo, na semi-faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito indicado em II. 1. a), já circulava o ciclomotor com a matrícula 1-ACB-71-63. (4°)

            l) Em consequência do referido em II. 1. k), S (…) colocou o veículo PS na perpendicular à estrada identificada em II. 1. a), dentro da hemi-faixa de rodagem que o aludido ciclomotor ocupava. (5°)

            m) Em consequência do embate descrito em II. 1. c), a A. pagou à Guarda Nacional Republicana, Brigada n.° 2, o montante de € 7,12. (6°)

            n) Desde a data indicada em II. 1. a), a A. foi visitar J (…)o todos os dias em que este esteve internado no Hospital de Leiria. (7°)

            o) Para esse efeito, a A. efectuava um trajecto diário de cerca de 50 a 60 quilómetros, algumas vezes de táxi, gastando quantia concretamente não apurada em tais deslocações de táxi. (resposta ao art.º 8°)

            p) A A. sofreu, com angústia, a agonia de J (…), desde a data indicada em II. 1. a) até à data indicada em II. 1. e). (9°)

            q) A A. sofreu com a morte do J (…), com intensa dor e desgosto. (10°)

            r) Em consequência da morte de J (…), a A. vestiu-se de preto. (11º)

            s) A A. ainda hoje chora e lamenta a morte de J (…), do qual se recorda permanentemente, com saudade. (12°)

2. No presente recurso, não se questiona a responsabilidade pela produção do sinistro, suscitando-se, sobretudo, a apreciação da invocada inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do art.º 496º Código Civil[2], quando interpretada no sentido de excluir o "cônjuge de facto" do direito a ser indemnizado pela morte do companheiro, e impetrando-se a compensação por danos não patrimoniais.

A A. pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a importância de € 75 000 a título de compensação pelos danos não patrimoniais invocados nos art.ºs 40º a 45º da petição inicial: danos sofridos pela A. durante o período que decorreu entre o dito acidente e o decesso do J (…) (€5 000), decorrentes da morte e consequente perda do seu companheiro (€ 10 000) e, ainda, pela perda da vida do seu companheiro (€ 60 000).

            A Mm.ª Juíza a quo julgou improcedente aquele pedido - com o fundamento de que não se encontra abrangido na previsão do n.º 2 do citado artigo 496º -, razão pela qual a A. agora se insurge, invocando, principalmente, dois arestos, o primeiro, proferido pelo Tribunal Constitucional (acórdão n.º 275/2002, publicado no DR, II Série, de 24.7.2002 e no “site” da dgsi) e, o segundo, pelo Tribunal da Relação de Lisboa (acórdão de 12.5.2004-processo 1163/2004.3, publicado no “site” da dgsi)[3].

Salvo o devido respeito por opinião em contrário e embora se reconheça que a matéria em questão não é isenta de dificuldades, pensamos que, face à lei estabelecida e à evolução da doutrina e da jurisprudência nacionais, não será (ainda) possível divergir da solução encontrada pelo tribunal recorrido, embora, de iure condendo, a orientação sufragada pela recorrente tenha inteira razão de ser (quiçá, a mais conforme à justiça e à equidade no contexto da realidade social hodierna).[4]

3. Relativamente aos danos não patrimoniais, estabelece-se no art.º 496º que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (n.º 1); por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem (n.º 2); o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494°; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior (n.º 3).

            Segundo a orientação doutrinal e jurisprudencial dominante, que se perfilha, dos n.ºs 2 e 3 do referido art.º e da sua história, decorre, por um lado, que, no caso de lesão de que resulte a morte, toda a indemnização relativa aos danos morais (quer sofridos pela vítima, quer pelos familiares mais próximos) cabe, não aos herdeiros por via sucessória, mas aos familiares, por direito próprio (iure proprio), nos termos e segundo a ordem estabelecida no citado n.º 2.[5]

            Será que a A., na qualidade de companheira da vítima durante mais de vinte anos e até à data da morte deste, tem direito aos valores compensatórios reclamados?

            Tendo-se já adiantado a resposta, apresentar-se-á de seguida, por forma sucinta, a respectiva fundamentação.

            4. Vejamos, em primeiro lugar, a problemática relativa à compensação pela perda de vida de J (…).

            A A. logrou provar que viveu em união de facto com o falecido desde 1983 até à data do óbito [II. 1. alíneas e) e h), supra], pelo que a questão que se coloca é a de saber se tal compensação é possível à luz do disposto no art.º 496º, ainda que com o enquadramento normativo propugnado pela recorrente.

            Para melhor responder a esta matéria e tratando-se, sobretudo, de um problema centrado na constitucionalidade daquele normativo da lei civil substantiva e na própria evolução jurisprudencial, afigura-se-nos que se justifica olhar (e ver) de perto a perspectiva que nos é dada pelo próprio Tribunal Constitucional (TC) no seu acórdão n.º 210/2007, de 21.3.2007.[6]

            A situação submetida à apreciação do Tribunal era em tudo idêntica à dos presentes autos e também aí se impunha verificar e confrontar a orientação do TC, principalmente no dito acórdão n.º 275/2002, considerando o impugnante que apenas poderia ser extraída a inconstitucionalidade do segmento normativo objecto de impugnação - o aí recorrente considerou que a sentença "não atendeu ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 275/2002", sustentando a inconstitucionalidade da "norma do n.º 2 do artigo 496º do CC, enquanto interpretada no sentido de que exclui a atribuição de um direito a indemnização por danos não patrimoniais ao unido de facto", o que deveria conduzir à inclusão naquele n.º 2 do "unido de facto".

            Ao TC competia determinar se a Constituição impõe, como sustenta a recorrente, a equiparação (do “unido de facto”) ao cônjuge para os aludidos efeitos compensatórios - o objecto do recurso restringiu-se à norma do n.º 2 do artigo 496º, na parte em que exclui o sobrevivente da união de facto, em caso de homicídio negligente decorrente de acidente de viação resultante de culpa exclusiva de outrem, do direito à indemnização por danos não patrimoniais.

            Assim discorreu o TC:

No seu acórdão n.º 275/2002 (…) o Tribunal Constitucional analisou a norma do n.º 2 do artigo 496º do Código Civil igualmente apenas enquanto referida aos "danos não patrimoniais sofridos, com a morte da vítima, directamente pela pessoa que com ela convivia em união de facto". Após uma análise exaustiva da jurisprudência constitucional e da evolução verificada no "enquadramento legal" das situações "do cônjuge (não separado judicialmente de pessoas e bens)" e da pessoas que vivem em união de facto, para a qual se remete, o Tribunal afastou a violação, então também alegada, do princípio da igualdade, por comparação com a situação do cônjuge sobrevivo, mas concluiu no sentido da inconstitucionalidade «por violação do artigo 36º, n.º 1, da Constituição, conjugado com o princípio da proporcionalidade, [d]a norma do n.º 2 do artigo 496º do Código Civil na parte em que, em caso de morte da vítima de um crime doloso, exclui a atribuição de um direito de "indemnização por danos não patrimoniais" pessoalmente sofridos pela pessoa que convivia com a vítima em situação de união de facto, estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges».

Como, aliás, se esclareceu posteriormente no acórdão n.º 86/2007[7] – o qual, como ali se escreveu, versava sobre um objecto diverso, já que nele não era "questionada, como no caso do Acórdão n.º 275/2002, a consequência, no plano da compensação por danos não patrimoniais, da prática de um crime (de um homicídio), e de um crime doloso, mas antes a consequência de um acidente de viação que se deveu a culpa (negligência) exclusiva do lesante" –, a razão que então conduziu ao juízo de inconstitucionalidade foi, essencialmente, a verificação de uma "total desadequação da dimensão normativa então em apreciação às justificações ou finalidades para ela adiantadas", nestes termos:

«6. Afigura-se, porém, essencial recordar a forma como se concretizou o confronto com o princípio da proporcionalidade. Com efeito, depois de se observar que o legislador constitucional não quis reduzir a noção de família à união conjugal baseada no casamento, e que impõe a protecção da “família, como elemento fundamental da sociedade”, com “um dever de não desproteger, sem uma justificação razoável, a família que se não fundar no casamento”, a apreciação da conformidade com o princípio da proporcionalidade não se centrou em qualquer “desproporção” das consequências do regime jurídico (que, efectivamente, podem ser tão ou mais gravosas, por exemplo, no não reconhecimento da qualidade de sucessível na sucessão legitimária). O iter seguido para o confronto com o princípio da proporcionalidade, passou, antes, pela averiguação daquela “justificação razoável” especificamente para a solução normativa em questão, atentando, precisamente, na relação entre a justificação que para ela é adiantada e os dados do caso em que a dimensão normativa impugnada fora aplicada (e recorde-se que se tratou de decisão proferida em fiscalização concreta e incidental da constitucionalidade).

No contexto dessa averiguação da conformidade com o princípio da proporcionalidade, enquanto princípio geral atinente à relação entre meios e fins da actuação do poder público (conjugada com a protecção constitucional também da “família não fundada no casamento”), logo se pôde verificar a total desadequação da dimensão normativa então em apreciação às justificações ou finalidades para ela adiantadas. Salientou-se, assim, que, para a “compensação dos sofrimentos e da dor sofrida por quem convivia com a vítima de um homicídio doloso em condições análogas às dos cônjuges”, não podia proceder, nem a justificação da solução do artigo 496.º, n.º 2, “consistente na necessidade de limitar as pretensões indemnizatórias, nem a que valoriza a necessidade de uma solução certa, já que a expectativa do lesante de se não ver confrontado com um número não definido de pretensões indemnizatórias não merece protecção e que o titular do direito à compensação se encontra perfeitamente determinado” (itálicos aditados – e cf. também já antes, a propósito do princípio da igualdade, no n.º 10 da fundamentação do Acórdão n.º 275/2002). E ainda se verificou, “com relevo para a determinação dos limites da discricionariedade legislativa”, que a solução normativa em apreço se reporta a um problema que se afigura como “inadequado para a prossecução de eventuais objectivos políticos de protecção ou incentivo ao casamento”, não só por estar em causa compensar um dano, normalmente de grande gravidade, como por este resultar de “um evento que é evidentemente imprevisível (um homicídio doloso)”.

Só estes passos permitiram concluir pela existência de “violação do artigo 36.º, n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade” no caso decidido pelo Acórdão n.º 275/2002, como resulta logo da leitura da sua fundamentação – e sem que se afigure necessário recordar as virtudes, democráticas e para o próprio funcionamento de um órgão de fiscalização concreta da constitucionalidade, do emprego de fundamentações estreitas e limitadas à dimensão normativa aplicada (…).

E note-se, ainda, que as considerações expendidas na fundamentação do Acórdão n.º 275/2002, relevantes, nos termos expostos, à luz do princípio da proporcionalidade não dependeram de qualquer tomada de posição na discussão sobre a verdadeira natureza ou função da “indemnização”, “compensação” ou “satisfação” (“Genugtuung) por danos não patrimoniais (nos termos do artigo 496.º, n.º 1, apenas dos que “pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”), isto é, numa discussão em que, como é sabido, tem também sido defendida, entre outras posições, a da atribuição de uma função sancionatória ou punitiva, ou pelo menos de uma dupla função, compensatória e punitiva, a tal “satisfação” (…)».

Tendo em conta as diferenças entre os objectos de ambos os recursos, o acórdão n.º 86/2007 concluiu no sentido de "não julgar inconstitucional a norma do artigo 496º, n.º 2, do Código Civil, na parte em que exclui o direito a indemnização por danos não patrimoniais da pessoa que vivia em união de facto com a vítima mortal de acidente de viação resultante de culpa exclusiva de outrem".

6. Ora verifica-se que a dimensão em que a parte relevante do n.º 2 do artigo 496º do Código Civil foi aplicada no presente recurso coincide com a norma que foi apreciada neste acórdão n.º 86/2007. E é o julgamento de não inconstitucionalidade ali alcançado que aqui se reitera, razão pela qual se transcreve esse mesmo acórdão:

            «7. A decisão proferida no Acórdão n.º 275/2002 foi objecto de análise sobretudo no plano da comparação entre a posição do cônjuge e de quem vive em “união de facto” com outrem, à luz das normas e princípios constitucionais sobre a família e o casamento. É certo que, como se disse, se aceitou então a relevância, para a noção constitucional de família, também da “família não fundada no casamento”, rejeitando a redução da família à que assenta no matrimónio (…), e que se afirmou “um dever de não desproteger, sem uma justificação razoável”.

Nos presentes autos, pode reiterar-se este entendimento, que só por si está, porém, longe de implicar qualquer equiparação geral do regime da família fundada no casamento e da família não assente no matrimónio (…).

8. Mais do que uma comparação “transversal” entre a posição do cônjuge e de quem vive em “união de facto” com outrem, a “revisitação” efectuada à decisão do Tribunal Constitucional que o recorrente invoca, e que o acórdão recorrido se preocupou em “desqualificar” como precedente, impõe, porém, que se recorde e aprofunde a referência, contida já no Acórdão n.º 275/2002, especificamente à ratio da delimitação, pelo n.º 2 do artigo 496.º, dos titulares de um direito a uma “indemnização” (compensação ou “satisfação”) por danos não patrimoniais por morte da vítima, e em particular no que toca ao problema da exclusão daqueles que de facto, tendo em conta as circunstâncias do caso, eram mais próximos desta.

O problema é – contrariamente ao que se poderia pensar – bastante anterior ao reconhecimento legislativo de efeitos jurídicos da “união de facto”, entre nós e lá fora. Adriano Vaz Serra tratou-o assim já em 1959, nos trabalhos preparatórios do Código Civil (“Reparação do dano não patrimonial”, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 83, pp. 69-111, esp. 96-98), depois de perguntar a quem deve ser reconhecido o direito à compensação em causa (e baseando-se em doutrina alemã e suíça da primeira metade do século XX):

«Não parece que deva ser reconhecido aos herdeiros como tais, os quais podem ser estranhos à família, caso em que não terão, em regra, dor moral suficiente para justificar uma compensação.

Tal direito deve ser reservado para os familiares da vítima, que são as pessoas nas quais é de presumir a existência de sentimentos de afeição bastante fortes. Mas, por um lado, esses sentimentos podem ser ainda mais fortes da parte de pessoas estranhas à família juridicamente entendida; e, por outro lado, o facto de ser membro da família não implica necessariamente a existência de uma afeição suficiente.

Pareceria assim, que por família, para este efeito, deveriam entender-se aquelas pessoas que, segundo as circunstâncias materiais do caso concreto, desempenham de facto as funções de família [citando, neste sentido, A. von Tuhr]. Essas pessoas seriam as que, pelas especiais relações com a vítima, é de presumir sofrerem mais, na sua afeição, com a morte dela. O critério não seria, pois, jurídico, mas de facto.

No entanto, poderia também entender-se que só às pessoas ligadas juridicamente por laços de família (cônjuge, parentes e afins) deveria reconhecer-se o direito à satisfação de danos não patrimoniais. As outras não tinham o direito de contar com a continuação da situação de facto em que se encontravam com o falecido e não poderiam, portanto, alegar danos, patrimoniais ou não, resultantes da morte dele.

Assim, a concubina ou a noiva não poderiam reclamar a referida satisfação, nem o poderiam fazer outras pessoas colocadas de facto na situação de familiares.

Dadas as razões que podem ser invocadas num sentido e no outro, talvez seja preferível usar uma fórmula que permita à jurisprudência decidir como lhe parecer melhor, ou, reconhecendo, em princípio, o direito de satisfação aos parentes, permitir que se atribua tal direito a pessoas estranhas à família mas ligadas à vítima de modo a constituírem de facto família dela.

(…)

Se não se limitasse assim o direito à satisfação do dano não patrimonial, poderia ele ser invocado por vezes por um número considerável de pessoas, com o resultado de o responsável ter que pagar quantia avultadíssima ou com o de a cada um dos prejudicados se dar uma importância tão diminuta que seria praticamente nula.»

Vaz Serra referia ainda, em nota, que, “quanto à concubina”, poderia intervir, para excluir o direito à compensação, a consideração da “atitude tomada a respeito da união livre” (p. 98, n. 58, e pp. 91-92). Mas concluía propondo (também como alternativa) que no caso de morte de uma pessoa, quando as circunstâncias de facto o impusessem, poderia “reconhecer-se direito de satisfação a outros parentes, a afins ou estranhos à família, desde que tais pessoas estivessem ligadas à vítima de maneira a constituírem de facto família dela” – ob. cit., p. 107, e Adriano Vaz Serra, Direito das obrigações (com excepção dos contratos em especial) – Anteprojecto, Lisboa, 1960, artigo 759º, n.º 3, p. 624 (itálico aditado).

O projecto de Código Civil (artigo 498.º, n.º 2) veio, porém, a fixar-se na alternativa de reconhecimento da “indemnização por danos não patrimoniais” por morte “em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes, na falta destes, aos pais ou outros ascendentes, e, por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem”, numa solução em que (segundo Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Ed., 1987, art. 496.º, anot. 5, p. 501), as “excelências da equidade tiveram de ser sacrificadas às incontestáveis vantagens do direito estrito”.[8]

Considerando que a morte de uma pessoa é um evento lesivo susceptível de causar danos não patrimoniais a um círculo alargado de pessoas, a delimitação dos possíveis titulares da compensação por danos não patrimoniais (próprios) em caso de morte da vítima obedeceu, fundamentalmente, já a uma razão de certeza, evitando-se a multiplicação indeterminada de pretensões indemnizatórias em consequência da morte, já à conveniência em evitar que o lesante por mera culpa se visse assoberbado por pretensões indemnizatórias deduzidas por um número alargado, ou mesmo ilimitado, de pessoas, com as quais não poderia contar. Por estas razões, no n.º 2 do artigo 496º o legislador limitou o leque de pessoas cujos danos não patrimoniais, causados directamente pela morte da vítima, são atendíveis, e dividiu mesmo tais pessoas em dois grupos, segundo uma presunção assente na proximidade familiar (primeiro, o cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e os filhos ou outros descendentes; “na falta destes”, os pais ou outros ascendentes; e, “por último”, os irmãos ou sobrinhos que os representem).

Disse-se no Acórdão n.º 275/2002 que tais justificações se revelavam desajustadas à dimensão normativa em questão nesse caso, por o beneficiário da indemnização se encontrar então perfeitamente delimitado e ser apenas um, e por não merecer “certamente tutela o eventual interesse do homicida doloso em se eximir à compensação de todos os danos que provocou com o homicídio”.

Há que apurar se é igualmente assim no presente caso.

9. Revertendo então ao caso dos autos – em que (recorde-se) o que está em causa é a constitucionalidade da exclusão da “indemnização por danos não patrimoniais” sofridos pela pessoa que vivia em união de facto com a vítima mortal de acidente de viação resultante de culpa exclusiva de outrem –, pode igualmente proceder-se a um confronto com os parâmetros constitucionais relevantes em dois momentos, e desdobrando a análise segundo o invocado pelo recorrente – que é, recorde-se também, a “violação do princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º da CRP; do direito a constituir família independentemente de qualquer vínculo formal estabelecido no art.º 36.º, n.º 1 da nossa Lei Fundamental e da concepção constitucional de família vertida no art.º 67.º, n.º 1 da Constituição”.

Assim, quem não acompanhasse a decisão proferida no Acórdão n.º 275/2002 (tirado com dois votos de vencido) dificilmente chegará a uma solução de inconstitucionalidade no presente caso, considerando que se não está perante um crime doloso, mas perante um acidente de viação (com violação de regras de circulação e de deveres de cuidado) provocado por negligência, isto é, não só perante diferentes graus de culpa, mas perante ilícitos também de diverso tipo e gravidade, como se notou na decisão recorrida; e considerando, ainda, que, sob a perspectiva (se não da normal previsibilidade, pelo menos) da frequência dos ilícitos e dos eventos lesivos em questão, se estava, no caso então decidido, perante um evento (homicídio doloso) muito pouco frequente, o que, infelizmente, já se não pode seguramente dizer do que deu origem ao acidente de viação ocorrido no caso dos autos.

Não existem, com efeito, na dimensão normativa em apreciação no presente recurso, outras particularidades que, para quem não acompanhasse o juízo de inconstitucionalidade a que se chegou no Acórdão n.º 275/2002, possam conduzir a uma conclusão de desconformidade com a Constituição da República, por violação dos princípios da igualdade ou de outros princípios ou normas constitucionais.

10. Mas mesmo quem tenha subscrito o julgamento de inconstitucionalidade do Acórdão n.º 275/2002 não é necessariamente conduzido, pelos seus fundamentos, a uma solução de incompatibilidade com a Constituição da solução normativa em apreciação no presente recurso de constitucionalidade.

Quanto ao princípio da igualdade, já se notou que ele não constituiu o fundamento decisivo para a decisão tomada maioritariamente no Acórdão n.º 275/2002. E recorde‑se, a propósito, o que se disse no citado Acórdão n.º 195/2003:

«Ora, como este Tribunal tem reconhecido, existem diferenças importantes, que o legislador pode considerar relevantes, entre a situação de duas pessoas casadas, e que, portanto, voluntariamente optaram por alterar o estatuto jurídico da relação entre elas – mediante um “contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código”, como se lê no artigo 1577º do Código Civil –, e a situação de duas pessoas que (embora convivendo há mais de dois anos “em condições análogas às dos cônjuges”) optaram, diversamente, por manter no plano de facto a relação entre ambas, sem juridicamente assumirem e adquirirem as obrigações e os direitos correlativos ao casamento.»

E, posteriormente, no também citado Acórdão n.º 159/2005:

«Assim, na óptica do princípio da igualdade, a situação de duas pessoas que declaram a intenção de conceder relevância jurídica à sua união e a submeter a um determinado regime (um específico vínculo jurídico, com direitos e deveres e um processo especial de dissolução) não tem de ser equiparada à de quem, intencionalmente, opta por o não fazer. O legislador constitucional não pode ter pretendido retirar todo o espaço à prossecução, pelo legislador infra-constitucional, cujo programa é sufragado democraticamente, de objectivos políticos de incentivo ao matrimónio enquanto instituição social, mediante a formulação de um regime jurídico próprio – por exemplo, distinguindo entre a posição sucessória do convivente em união de facto (reduzida ao referido direito a exigir alimentos da herança) e a do cônjuge.»

O regime da indemnização por danos não patrimoniais em caso de morte da vítima é, justamente, um desses pontos submetidos a um regime jurídico distinto, tal como distintas são, também, as relações entre a vítima e quem pede a indemnização.

Não existe, pois, violação do princípio da igualdade na norma em apreciação.

11. Como resulta do que se disse, e também se afirmou no citado Acórdão n.º 159/2005,

«Superada a objecção que se pudesse pretender extrair do princípio da igualdade, e admitida a presente diferenciação à luz da política legislativa que o legislador democrático entenda dever prosseguir, não ficam, porém, dissipados todos os argumentos conducentes a uma conclusão de inconstitucionalidade. Aliás, o acórdão recorrido [dir-se-á, agora, o Acórdão n.º 275/2002] baseou o seu julgamento de inconstitucionalidade, decisivamente, na invocação do princípio da proporcionalidade (conjugado com o reconhecimento constitucional da “família não fundada no casamento”) […].

Sobre o confronto com o princípio da proporcionalidade conjugado com o reconhecimento constitucional da “família não fundada no casamento” importa novamente recordar que, como também já se notou (e se disse igualmente no Acórdão n.º 159/2005),

«[…]o que está em causa no confronto de uma solução normativa com o princípio da proporcionalidade não é simplesmente a gravidade ou a dimensão das desvantagens ou inconvenientes que pode acarretar para os visados (com, por exemplo, a necessidade da prova da carência de alimentos, ou, mesmo, a exclusão total de certos direitos). O recorte de um regime jurídico – como o da destruição do vínculo matrimonial ou o dos seus efeitos sucessórios – pela hipótese do casamento, deixando de fora situações que as partes não pretenderam intencionalmente submeter a ele, tem necessariamente como consequência a exclusão dos respectivos efeitos jurídicos. O que importa apurar é se tal recorte é aceitável – se segue um critério constitucionalmente aceitável – tendo em conta o fim prosseguido e as alternativas disponíveis – sem deixar de considerar a ampla margem de avaliação de custos e benefícios e como de escolha dessas alternativas, que, à luz dos objectivos de política legislativa que ele próprio define dentro do quadro constitucional, tem de ser reconhecida ao legislador (e que este Tribunal reconheceu, por exemplo, no Acórdão n.º 187/2001, publicado no Diário da República, II série, de 26 de Junho de 2001).»

Mas lembre-se, também, o que este Tribunal tem afirmado sobre o alcance do princípio da proporcionalidade como parâmetro de controlo jurisdicional da actividade legislativa. Afirmou-se, assim, seguindo anterior jurisprudência, no citado Acórdão n.º 187/2001:

«Não pode contestar-se que o princípio da proporcionalidade, mesmo que originariamente relevante sobretudo no domínio do controlo da actividade administrativa, se aplica igualmente ao legislador. Dir-se-á mesmo – como o comprova a própria jurisprudência deste Tribunal – que o princípio da proporcionalidade cobra no controlo da actividade do legislador um dos seus significados mais importantes. Isto não tolhe, porém, que as exigências decorrentes do princípio se configurem de forma diversa para a actividade administrativa e legislativa – que, portanto, o princípio, e a sua prática aplicação jurisdicional, tenham um alcance diverso para o Estado‑Administrador e para o Estado-Legislador.

(…)

Ora, não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente da administração –, legitimado para tomar as medidas em questão e determinar as suas finalidades, uma “prerrogativa de avaliação”, como que um “crédito de confiança”, na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução dos objectivos visados com a medida (que, como se disse, dentro dos quadros constitucionais, ele próprio também pode definir). Tal prerrogativa da competência do legislador na definição dos objectivos e nessa avaliação (…) afigura-se importante sobretudo em casos duvidosos, ou em que a relação medida-objectivo é social ou economicamente complexa, e a objectividade dos juízos que se podem fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de estabelecer.

Significa isto, pois, que, em casos destes, em princípio o Tribunal não deve substituir uma sua avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as controvérsias geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser resolvidas contra a posição do legislador.

Contra isto não vale, evidentemente, o argumento de que, perante o caso concreto, e à luz do princípio da proporcionalidade, ou existe violação – e a decisão deve ser de inconstitucionalidade – ou não existe – e a norma é constitucionalmente conforme. Tal objecção, segundo a qual apenas poderia existir “uma resposta certa” do legislador, conduz a eliminar a liberdade de conformação legislativa, por lhe escapar o essencial: a própria averiguação jurisdicional da existência de uma inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade por uma determinada norma, depende justamente de se poder detectar um erro manifesto de apreciação da relação entre a medida e seus efeitos, pois aquém desse erro deve deixar-se na competência do legislador a avaliação de tal relação, social e economicamente complexa.»

As considerações que precedem afiguram-se relevantes no caso dos autos: o legislador goza de uma considerável margem de discricionariedade na delimitação, no artigo 496.º, n.º 2, do círculo das pessoas que podem pedir indemnização por morte da vítima.

E a apreciação da conformidade com o princípio da proporcionalidade, nos termos referidos, não deve, também, deixar de tomar em conta – sobretudo em fiscalização concreta e incidental da constitucionalidade – as particularidades da dimensão normativa ora em apreciação, e o diverso recorte do caso a que foi aplicada (…).

E há, ainda, que recordar que, como este Tribunal tem repetidamente afirmado, não está em causa, no controlo da constitucionalidade a que procede, a qualificação do “melhor direito” (e a “desqualificação” do “pior direito”) em si mesmo, isto é, o juízo sobre qual seria a solução mais conveniente ou que melhor concilia todos os interesses em presença. Tal é missão do legislador.[9] Ao Tribunal Constitucional compete apenas um controlo de constitucionalidade, ou seja, ajuizar sobre a questão de saber se uma solução ou dimensão normativa viola normas ou princípios constitucionais: não, neste sentido, avaliar o “melhor direito”, mas apenas dizer o “não direito”, porque incompatível com a Constituição da República (cf. os seus artigos 3.º, n.º 3, 204.º, 223.º, n.º 1, e 277.º, n.º 1).

12. Ora, entende-se que o confronto, que levou no citado aresto de 2002 a afirmar a “violação do artigo 36.º, n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade” , entre a justificação da delimitação operada no artigo 496.º, n.º 2, e a dimensão normativa em análise no presente recurso conduz a resultados diversos dos alcançados naquele aresto. Falta, pois, identidade substancial, neste aspecto constitucionalmente relevante, entre as normas ou dimensões normativas em apreciação nos dois casos (…).

Não é, com efeito, possível detectar no presente caso qualquer falta grosseira ou evidente de adequação entre a dimensão normativa ora em apreço e as finalidades dessa delimitação, resultante do artigo 496.º, n.º 2 (note-se, aliás, e como se referiu, que o legislador goza, neste âmbito, de uma considerável margem de discricionariedade para ponderar os vários interesses envolvidos, e sem que se possa retirar da Constituição um certo e único regime constitucionalmente admissível, e que, na dúvida, sobre tal inadequação sempre seria de decidir no sentido da inexistência de inconstitucionalidade).

É o que facilmente se conclui, desde logo, para a justificação consistente na necessidade de limitar as pretensões indemnizatórias, por razões de certeza, que se pode revelar procedente para lesões que se verificam com uma frequência diária, e sem qualquer relação prévia entre lesante e lesado (diversamente do que acontecia com a lesão provocada pelo homicídio no caso do Acórdão n.º 275/2002). Sem tal limitação, os prejuízos não patrimoniais resultantes da morte poderiam ser invocados frequentemente, e “por vezes por um número considerável de pessoas, com o resultado de o responsável ter que pagar quantia avultadíssima ou com o de a cada um dos prejudicados se dar uma importância tão diminuta que seria praticamente nula” (nas palavras citadas de Vaz Serra).

O que é reforçado pela consideração da expectativa do lesante de se não ver assoberbado com um número não definido de pretensões indemnizatórias. Na verdade, afirmou-se, no caso decidido pelo Acórdão n.º 275/2002, que “não merece certamente tutela o eventual interesse do homicida doloso em se eximir à compensação de todos os danos que provocou com o homicídio”. Tal posição do lesante, se não merecia protecção, dada a “gravidade extrema do ilícito” e o dolo do lesante, no caso do Acórdão n.º 275/2002, não tem de ser considerada irrelevante – sob pena de erro grosseiro de avaliação do legislador – num caso como o dos autos, em que está em causa a infracção de regras legais de circulação rodoviária e de deveres de cuidado, com negligência do lesante, da qual veio a resultar o acidente que provocou a morte. Não pode, com efeito, excluir-se que o legislador atenda à conveniência em que os lesantes civis por mera culpa se não vejam assoberbados por pretensões indemnizatórias deduzidas por um número ilimitado de pessoas, dada a frequência estatística de situações como a dos autos. (…)

13. Conclui-se, pois, que a norma do artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil, na parte em que exclui o direito a indemnização por danos não patrimoniais da pessoa que vivia em união de facto com a vítima mortal de acidente de viação resultante de culpa exclusiva de outrem, não viola nem o princípio da igualdade nem o artigo 36.º, n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade, parâmetros constitucionais invocados pelo recorrente (já que nada mais se pode retirar, no sentido da inconstitucionalidade, da invocação da “concepção constitucional de família vertida no art.º 67.º, n.º 1 da Constituição”, que não tenha já sido considerado na fundamentação que antecede).

Não se descortinando outros fundamentos para um juízo de inconstitucionalidade, há que negar provimento ao presente recurso.»”[fim de citação]

           Foi este o julgamento de não inconstitucionalidade vertido no acórdão do TC n.º 210/2007, reiterando a posição (maioritária) do mesmo Tribunal expressa nos acórdãos n.ºs 86/2007 e 87/2007, de 06.02.2007[10].

            Pesem embora as doutas declarações de voto (de vencido) lavrados em todos os referidos acórdãos, em particular nos acórdãos n.ºs 86/2007 e 87/2007 (subscritos pelos mesmos Conselheiros), que apontam porventura para o caminho a seguir em termos do direito a constituir[11], contudo, perante o enquadramento normativo vigente (de iure constituto), não se vê alternativa à solução maioritária sufragada - a norma do n.º 2 do art. 496º não é inconstitucional quando interpretada no sentido de não atribuir ao membro sobrevivo da união de facto o direito à indemnização ali previsto.

            Na verdade, a atribuição daquele direito ao membro sobrevivo da união de facto não pode ser feita com recurso à analogia, segundo o disposto no art.° 10°, n.° 1, porque a norma do n.° 2 do art.° 496° é excepcional e, como tal, não comporta a possibilidade de extensão analógica (art.° 11°).

            E também não admite interpretação extensiva (art.° 9°, n.° 2), porquanto a letra da lei é clara no sentido de que o legislador pretendeu atribuir o direito à indemnização por danos não patrimoniais apenas ao cônjuge sobrevivo e às demais pessoas referidas na lei, em momento algum se falando em membro da união de facto, sendo que foram principalmente imperativos de justiça que levaram o legislador a conceder alguma protecção às uniões de facto, hoje contida essencialmente na Lei n.º 7/2001, de 11.5, traduzidas essencialmente em concessões à margem do direito matrimonial, que não infirmam a concepção da união de facto como “relação parafamiliar” - o direito da família assenta, neste aspecto, a sua tónica na relação jurídico-matrimonial, surgindo a união de facto como um instituto que se reconhece apenas para certos efeitos.

            Por conseguinte, não se pode concluir que o princípio da unidade do sistema jurídico imponha o alargamento da indemnização a que se reporta o n.° 2 do art.° 496° à união de facto, já que estão em causa duas situações diferentes, que o legislador pretendeu tratar como tal.[12]

            Assim, não se deverá concluir pela inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do art.° 496° e dever-se-á considerar afastada, de jure constituto, a sua aplicação à união de facto, quer por via da analogia, quer por via da interpretação extensiva, entendimento este também acolhido na sentença recorrida e que traduz a posição dominante na doutrina e jurisprudência.[13]

            Entende-se, assim, que a interpretação feita pela decisão sob censura da norma do n.º 2 do art. 496º, no sentido de excluir a recorrente da titularidade do direito a indemnização por danos não patrimoniais por morte do seu companheiro não merece censura e não padece da inconstitucionalidade que lhe é assacada.

         Pelo que precede, não se reconhece à A. o direito a receber uma compensação pela perda da vida do seu companheiro J (…) , visto que o n.º 2 do art.º 496 -cuja norma não é inconstitucional - não atribui tal direito ao companheiro, em união de facto, do falecido.

            5. Não se reconhecendo à A./recorrente o direito de receber a dita compensação pela perda do direito à vida, igual fundamento conduz à improcedência do pedido na parte em que requer uma compensação não inferior a € 10 000 pelo sofrimento com a morte e consequente perda do seu companheiro, pois o art.º 496° também só reconhece tal direito às pessoas indicadas no n.° 2, de entre as quais não se conta a recorrente.

            6. Por último, importa analisar o pedido de condenação da Ré no pagamento de compensação não inferior a € 5 000 pelo sofrimento da A. decorrente da agonia do seu companheiro desde a data do acidente até à data da sua morte.

            Sabemos que a pessoa titular do direito imediatamente violado com a actuação do condutor do veículo PS foi J (…), e não a A., pois apenas o primeiro foi vítima de lesões corporais.

            Estamos, por conseguinte, no domínio dos chamados “danos reflexos”, questão que tem vindo a ser debatida pela doutrina e pela jurisprudência.

            O entendimento clássico a esse respeito é o de que só tem direito a indemnização por danos não patrimoniais o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com a violação da disposição legal - os danos de natureza não patrimonial a ressarcir são apenas os sofridos pelo próprio ofendido, por serem direitos de carácter estritamente pessoal.

            Considera-se, em síntese, que só o titular do direito violado tem direito à indemnização (art.º 496º, n.º 1), pelo que não estão incluídos na obrigação de indemnização os danos sofridos directa ou reflexamente por terceiros, salvo no caso de morte, dada a natureza excepcional da norma do n.º 2 do art.º 496º - a exclusão impõe-se em virtude da impossibilidade de interpretação analógica das normas excepcionais e da impossibilidade de interpretação extensiva, por o legislador apenas ter querido abranger as pessoas indicadas no referido preceito.[14]

            Contra tal posição clássica, Vaz Serra[15], Américo Marcelino[16] e Abrantes Geraldes[17], entre outros, sustentam a possibilidade de uma interpretação diversa, orientação já acolhida por alguma jurisprudência mais recente[18].

            Refere Vaz Serra, designadamente: “Ora, o dano não patrimonial pode ser causado a parentes do lesado imediato, não somente no caso de morte deste, mas também em casos diversos desse e, pode ser em tais casos tão justificado o direito de reparação do dano não patrimonial dos parentes como no de morte do lesado imediato. Se, por ex., (…) um filho menor é vítima de um acidente de viação, ficando aleijado gravemente, a dor assim causada a seus pais pode ser tão forte como o seria se o filho tivesse morrido em consequência do acidente ou mais forte ainda. Seria, pois, incongruente a lei que, reconhecendo aos pais o direito a satisfação pela dor sofrida por eles no caso de morte do filho, lhes recusasse esse direito pela dor por eles sofrida no caso de lesão corporal ou da saúde do filho.

            Para se admitir tal direito, bastará dar à al. 3 do n.º 1 do artigo 56.º do Código da Estrada[19] uma interpretação extensiva, considerando-a aplicável também a outros casos em que aos parentes nela indicados sejam causados danos em consequência da lesão do lesado imediato, ao menos quando esses danos forem tão graves como os que podem resultar da morte deste.

            (…)

            A lei refere-se expressamente só ao caso de morte por ser aquele em que, em regra, maiores danos existem, não excluindo, portanto, que os parentes da vítima imediata tenham também direito de reparação dos seus danos em outros casos. A razão de ser é a mesma.”

            E conclui que, embora sejam excepcionais as normas dos artigos 56º, n.º 1, al. 3 do CE/56, 495º e 496º, n.º 2, do Código Civil, elas são susceptíveis de interpretação extensiva e, por conseguinte, de extensão a outros casos compreendidos no espírito da lei, propugnando que o reconhecimento do direito de indemnização por danos não patrimoniais de terceiros pode assentar directamente na norma do art.º 496º, n.º 1.

            Na mesma ordem de ideias, Américo Marcelino (ob. cit., pág. 380), afirma que o grande princípio do n.º 1 do artigo 496º não põe outras reservas, outras condições que não seja o tratar-se de danos tais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. O que depois se diz nos n.ºs 2 e 3 do art.º 496º não afecta em nada este princípio. Trata-se de disposições para determinados circunstancialismos ou sobre o modo de encontrar indemnizatório.
           
Abrantes Geraldes analisou com profundidade esta temática, designadamente com contributos do direito comparado, concluindo (ob. cit.): São ressarcíveis os danos não patrimoniais suportados por pessoas diversas daquela que é directamente atingida (por lesões de natureza física ou psíquica graves), nos termos gerais do art.º 496º, n.º 1, designadamente quando fique gravemente prejudicada a sua relação com o lesado ou quando as lesões causem neste grave dependência ou perda de autonomia que interfira fortemente na esfera jurídica de terceiros; tal direito de indemnização deve ser circunscrito, por ora, às pessoas indicadas no n.º 2 do art.º 496º do CC.

            Por conseguinte, afigura-se-nos adequada a ponderação efectuada na sentença sob censura, ao perfilhar-se a admissibilidade do ressarcimento dos danos não patrimoniais suportados por pessoas diversas daquela que é directamente atingida, com a reserva de que, tal como defende Abrantes Geraldes (ob. cit.), tal direito de indemnização deve ser circunscrito, por ora (ou seja, dado o actual quadro legal), às pessoas indicadas no n.° 2 do art.º 496°, sendo que, como defende o mesmo autor, por razões de segurança jurídica, face a uma questão que não encontra na lei positiva uma resposta directa e objectiva,  e enquanto o legislador não enfrentar directamente a questão, é conveniente detectar no ordenamento jurídico parâmetros delimitadores do leque de interessados a quem possa ser reconhecido o referido direito - a proximidade que se verifica relativamente à norma do art.º 496°, n.° 2, aliada à transposição das mesmas razões que levaram o legislador a prever expressamente a indemnização por danos morais em casos de morte e, simultaneamente, a identificar objectivamente os interessados, sugere que tal direito apenas deve ser reconhecido às pessoas que com o lesado directo se encontrem numa das situações configuradas no preceito.

            Perante o descrito enquadramento normativo e a apontada visão doutrinal, e porque a A. não está incluída no conjunto de pessoas indicado no n.° 2 do art.º 496°, conclui-se que a lei actual obsta igualmente a que se lhe reconheça o direito à indemnização agora em apreço.

            7. Soçobram desta forma as “conclusões” do recurso, com a consequente improcedência do peticionado a título de compensação por danos não patrimoniais.

*

  III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se, assim, a sentença recorrida.

Custas do recurso pela apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido (fls. 67).

[1] Por lapso manifesto, não existe a alínea D) na selecção da matéria de facto considerada como assente.
[2] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.

[3] Decorre do referido aresto da RL que se teve em atenção o acórdão do TC n.º 275/2002 mas não, obviamente, aquela que viria a ser a explicitação e o desenvolvimento, revelados em posteriores decisões, desse entendimento maioritário dos Conselheiros do Tribunal Constitucional - o que a recorrente omitiu na sua alegação.

[4] Cf., em idêntico sentido, o estudo "Indemnização dos Danos Reflexos e Indemnização do Dano da Privação do Uso" apresentado pelo Senhor Desembargador Pinto de Almeida, em 02.3.2010, no âmbito do Curso de Especialização “Temas de Direito Civil” (organizado pelo CEJ) e publicado no “site” do Tribunal da Relação do Porto.
[5] Cf., neste sentido, de entre vários, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 473 e seguinte; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 7ª edição, Almedina, págs. 602 e seguintes; Pereira Coelho, Direito das Sucessões, Coimbra, 1974, ed. policopiada, págs. 65 e segs. e acórdãos do STJ de 09.5.1996 e 24.4.1997, in CJ-STJ, IV, 2, 58 e V, 2, 186, respectivamente.
   Em sentido diferente, vide Vaz Serra, in RLJ, anos 107º, págs. 140 e segs. e 109º, págs. 44 e seguinte.
[6] Publicado no “site” da dgsi.
[7] Que teve (por vencimento) o mesmo Relator do citado acórdão n.º 275/2002 e recaiu sobre o caso versado no acórdão do STJ de 04.12.2003, publicado na CJ-STJ, XI, 3, 133 (e no “site” da dgsi/processo 03B3825).
    Por seu lado, o acórdão do TC n.º 87/2007, com idêntico conteúdo, teve por objecto a situação a que respeita o acórdão do STJ de 24.5.2005-processo 05A585 (publicado no “site” da dgsi).
[8] Na referida anotação, escreveu-se:
    “Pode naturalmente suceder que a morte da vítima cause ainda danos não patrimoniais a outras pessoas, não contempladas na graduação que faz o n.º 2, tal como pode acontecer que esses danos afectem as pessoas abrangidas na disposição legal por uma forma diferente da ordem de precedências que o legislador estabeleceu.
    Mas este é um dos aspectos em que as excelências da equidade tiveram de ser sacrificadas às incontestáveis vantagens do direito estrito.”
[9] Sublinhado nosso.
[10] Também publicados no “site” da dgsi.

[11] Na douta declaração subscrita pelo Conselheiro Mário José de Araújo Torres, refere-se, designadamente:

                - A “(…) não previsão de uma “válvula de segurança” que permita aos tribunais o reconhecimento desse direito a pessoas que compro­vadamente tenham sofrido um dano dessa intensidade mas que não figurem nos três grupos de familiares contemplados nessa norma (1.º – cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e filhos ou outros descendentes; 2.º – na falta destes, pais ou outros ascendentes; 3.º – na falta de membros dos dois anteriores grupos, os irmãos ou os sobrinhos que os representem)”;

                - “Essas pessoas seriam as que, pelas especiais relações com a vítima, é de presumir sofrerem mais, na sua afeição, com a morte dela. O critério não seria, pois, jurídico, mas de facto”;

                - A inexistência de “previsão da possibilidade de o tribunal, em casos especiais, uma vez efectivamente comprovada a existência desses danos, com gravidade merecedora da tutela do direito, reconhecer o direito a reparação a terceiros (…)”.

    Na mesma declaração de voto são ainda referidas as soluções encontradas em outros ordenamentos jurídicos (Espanha e Itália), no sentido propugnado:

              “Em Espanha, face ao artigo 113.º do Código Penal, inserido no título relativo à responsabilidade civil derivada da criminal (que estatui: “La indemniza­ción de perjuicios materiales y morales comprenderá no sólo los que se hubieren causado al agraviado, sino también los que se hubieren irrogado a sus familiares o a terceros” – subli­nhado acrescentado), tem sido sustentada a legitimidade, para efeitos de reparação de danos não patrimoniais derivados da morte, de pessoas que, não estando ligadas à vítima por víncu­los familiares ou parafamiliares, a ela estejam ligados por laços de especial afeição (cf. Laura Gázquez Serrano, La indemnización por causa de morte, Dykinson, Madrid, 2000, pp. 86‑87). O mesmo se passando em Itália, como assinala Giuseppe Cricenti (Il danno non patrimoniale, Cedam, Milão, 1999, pp. 276‑277), com diversas referências jurisprudenciais.”
[12] Cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 04.11.2003 (cit. supra), da RP de 10.5.2006-processo 0545740 e 09.02.2009- processo 0835934 e da RL de 23.5.2006-processo 1644/2006-5, publicados no “site” da dgsi.
[13] Veja-se, a propósito, o seguinte excerto do referido acórdão da RP de 09.02.2009 (também citado na sentença sob censura), baseado, principalmente, nas posições de Gomes Canotilho e Vital Moreira [in Constituição da República Portuguesa - Anotada, Volume I, 4ª edição, págs. 336 e seguintes, 561 e 856 e seguinte], Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira [in Curso de Direito da Família, I, 3ª edição, v.g., a págs. 105 e 134], no cit. acórdão do STJ de 04.12.2003 e, ainda, nos acórdãos do STJ de 23.4.1998 (in CJ-STJ, VI, 2, 49) e 24.5.2005-processo 05A585 (publicado no “site” da dgsi):
    “Com excepção do citado Ac. do TC n.º 275/02 e do caso particular ali apreciado, a doutrina e a jurisprudência têm-se pronunciado no sentido de que a norma do n.º 2 do art.º 496º não é inconstitucional quando interpretada no sentido de não atribuir ao membro sobrevivo da união de facto o direito à indemnização ali previsto.
    Desde logo, não há violação do princípio da igualdade consagrado no art.º 13º da CRP, como, aliás, também se afirmou no citado Ac. do TC n.º 275/02.
    No entendimento da doutrina e da jurisprudência constitucionais, aquele princípio apenas admite discriminações arbitrárias ou desprovidas de fundamento ou justificação racional (…).
    Como escrevem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (…), casamento e união de facto são situações materialmente diferentes: os casados assumem o compromisso da vida em comum; os membros da união de facto não assumem, não querem ou não podem assumir esse compromisso. O desfavor ou protecção da união de facto relativamente ao casamento é assim objectivamente fundado, justificando-se até onde seja um meio proporcionado de favorecer o estabelecimento de uniões estáveis ou potencialmente estáveis, no interesse geral. Um tratamento diferente da duas situações, em que as pessoas que vivam em união de facto, não tendo os mesmos deveres, não tenham em contrapartida os mesmos direitos das pessoas casadas, mostra-se assim conforme ao princípio da igualdade, que só quer tratar como igual o que é igual e não o que é diferente, não havendo base legal para estender à união de facto as disposições que ao casamento se referem.
    Quanto ao art.º 36º, n.º 1 da CRP, que consagra o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade, a letra e a história do preceito induzem a conclusão de que a intenção foi a de dar abertura constitucional à chamada família de facto (a união não fundada no matrimónio), tendo em vista, principalmente, a não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, mas, também, a possibilidade de a legislação ordinária se ir adaptando à forma como evolui o pensamento social a respeito das diferentes manifestações de conjugalidade (…).
    E a legislação ordinária apenas atribui relevância às relações decorrentes da união de facto em casos pontuais, todos com incidência na área das normas de protecção (alimentos, transmissão da casa de morada de família e benefícios sociais) – art.ºs 3º a 7º da Lei 7/01.
    Ora, o direito indemnizatório atribuído ao cônjuge no art.º 496º, n.º 2 não tem subjacente o imperativo constitucional de protecção à família, mas, como já vimos, visa evitar a proliferação de pretensões indemnizatórias, limitando-as às pessoas ali taxativamente indicadas e pela ordem de preferência, que pode não coincidir com a gravidade do dano realmente sofrido (…).
    Naquela perspectiva, tem de se concluir que a norma do n.º 2 do art.º 496º também não ofende o art.º 36º, n.º 1 da CRP em conjugação com o princípio da proporcionalidade.
    Por todas as razões expostas, entendemos que, para efeitos de atribuição da indemnização por danos de natureza patrimonial, em caso de morte, nos termos previstos no n.º 2 do art.º 496º, não é legítimo equiparar ao cônjuge a pessoa que vivia com o falecido em união de facto (…).


[14] Neste sentido, entre outros, Antunes Varela, RLJ, ano 103º, pág. 250, nota 1, e os acórdãos do STJ de 02.11.1995-processo 046783 (publicado no “site” da dgsi) e de 21.3.2000 (in CJ-STJ, VIII, 1, 138); da RP de 04.4.1991; da RC de 26.10.1993 e 20.9.1994 e da RL de 06.5.1999, publicados na CJ, XVI, 2, 254; XVIII, 4, 69; XIX, 4, 35 e XXIV, 3, 88, respectivamente.       
    Cf., por último, o acórdão do STJ de 17.9.2009-processo 292/1999-S1, publicado no “site” da dgsi (com duas declarações de voto - de vencido - em sentido contrário).
[15] Cf. RLJ, 104º, págs. 14 e seguintes.
[16] In Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 6.ª edição, pág. 380.
[17] Cf. Temas da Responsabilidade Civil (Vol. II) - Indemnização dos Danos Reflexos, Almedina, 2005, págs. 86 e seguintes e o estudo “Ressarcibilidade dos danos não patrimoniais de terceiros“, publicado nos Estudos de Homenagem ao Prof. Inocêncio Galvão Telles, vol. IV, págs. 263 e seguintes.

[18] Vide, relativamente a situações em que se admite o ressarcimento de danos de carácter não patrimonial de parentes próximos do lesado que não haja falecido em consequência da lesão, de entre vários, os acórdãos do STJ de 25.11.1998, in BMJ 481º, 470 e da RP de 23.3.2006-processo 0631053 (publicado no “site” da dgsi), referentes a lesões em menores que se traduzem em aleijões significativos, bem como os acórdãos do STJ de 26.5.2009-processo 3413/03.2TBVCT.S1, da RP 26.6.2003-processo 0333036 e da RC de 25.5.2004-processo 3480/03, a respeito de casos de lesão corporal de que resultou impotência sexual, publicados no “site” da dgsi, arestos nos quais se defende, designadamente, a interpretação extensiva do disposto no n.º 2 do art.º 496.º, ou o recurso apenas ao n.º 1 do art.º 496º, por se entender que a lesão em causa ofendia directamente direitos absolutos/direitos de personalidade.
[19] Tratava-se do Código aprovado pelo DL n.º 39 672, de 20.5.1954.