Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
267/16.2T9PMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
FALTA DE DESCRIÇÃO DO TIPO SUBJECTIVO DE CRIME
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 05/15/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (J LOCAL DE PORTO DO MÓS)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 283.º, N.º 3, AL. B), E 311.º, DO CPP
Sumário: I – A acusação deve descrever, pela narração dos respectivos factos, todos os elementos em que se decompõe o dolo.

II - O elemento intelectual implica a previsão ou representação pelo agente das circunstâncias do facto portanto, o conhecimento dos elementos constitutivos do tipo objectivo, sejam descritivos sejam normativos.

O elemento volitivo consiste na vontade do agente de realização do facto depois de ter previsto ou representado os elementos constitutivos do tipo objectivo – assim revelando a sua personalidade contrária ao direito, para uns, ou uma atitude contrária ou indiferente perante a proibição legal revelada no facto [elemento emocional do dolo], para outros.

III - A circunstância de o arguido saber que as expressões que proferiu ofendiam a honra e consideração do recorrente e não se absteve de as proferir, releva para o elemento intelectual do dolo.

A circunstância de o arguido saber que essa conduta era punida por lei, releva para consciência da ilicitude.

IV- Faltando todos ou algum dos elementos caracterizadores do dolo na narração da acusação, o conjunto dos factos nela descritos não constituirá crime e assim sendo, torna-a inviável e, consequentemente, manifestamente infundada.

Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

No processo comum singular nº 267/16.2T9PMS, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo Local Criminal de Porto de Mós onde os autos foram remetidos à distribuição na decorrência de acusação particular, não acompanhada pelo Ministério Público, deduzida pelo assistente … contra o arguido , pela Mma. Juíza foi proferido despacho afirmando a competência do tribunal e a legitimidade do assistente para promover a acção penal, após o que foi rejeitada a acusação particular, por manifestamente infundada, nos termos da alínea a) do nº 2 e da alínea b) do nº 3 do art. 311º do C. Processo Penal, com a consequente declaração de extinção do procedimento criminal pela prática de crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º do C. Penal e não admissão do pedido de indemnização nela fundado.


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Inconformado com a decisão, recorreu o assistente, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

1 – Consta da acusação particular:

a) Que as expressões dirigidas ao assistente pelo arguido (proferidas nas circunstâncias de tempo e lugar referidos no texto da acusação) são objectivamente ofensivas;

b) Que são igualmente subjectivamente ofensivas, pois ofenderam a honra e consideração do assistente;

c) Que o arguido sabia que a imputação dessas expressões ao assistente ofendia a honra e consideração do assistente;

d) Que o arguido sabia que esta imputação injuriosa era prevista e punida por lei.

e) Que, apesar de saber isto, ou seja, da sua injuricidade típica, as dirigiu ao assistente; proferiu-as quando podia abster-se de as proferir (proferiu-as, pois, voluntária e livremente, pois podia abster-se de o fazer).

f) Verifica-se, pois, ao contrário do que refere a douta decisão em recurso, que da acusação constam todos os elementos subjectivos do crime, pois o arguido podia agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico (de forma livre); quis a realização do facto ao dirigir, de viva voz e em público, as expressões injuriosas ao assistente, até objectivamente injuriosas (de forma voluntária e deliberadamente); tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto (conscientemente); sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo da ilicitude).

g) A douta decisão em recurso violou, pois, o disposto nos artºs. 14 e 181 do Código Penal e artºs. 311 e 284 do C. P. Penal.

Revogando a decisão de rejeição da acusação particular do assistente, ora recorrente, e da não admissão do pedido civil, substituindo-a por outra que receba a acusação e admita o pedido civil, de modo a prosseguirem os autos para julgamento, V. Exªs., Venerandos Desembargadores, farão a costumada JUSTIÇA.


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público alegando, em síntese, que o dolo é composto pelo elemento intelectual e pelo elemento volitivo, devendo ambos estar presentes na acusação, não podendo a sua integração ser feita na fase de julgamento, que não podendo nenhum destes elementos ser presumido, tem que ser alegada na acusação a vontade e a intenção de cometer o facto sob pena de violação do direito de defesa, que o assistente, na acusação deduzida, imputou ao arguido uma actuação consciente que sabia ser proibida e punida, mas não livre e voluntária, ficando por saber a vontade e intenção do arguido e se podia ter agido de outro modo, que ao não ser completamente descrito na acusação o dolo do agente a mesma deve ser rejeitada, e concluiu pela improcedência do recurso.

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            O arguido não respondeu ao recurso.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, subscrevendo integralmente a resposta do Ministério Público, sublinhando que a acusação particular não contém factualidade demonstrativa de que o arguido actuou com intenção de ofender o assistente na sua honra e consideração, e concluiu pela improcedência do recurso.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.


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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo assistente a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se existe ou não fundamento para a rejeição da acusação particular, por ser manifestamente infundada.


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            Para a resolução desta questão, importa ter presente o teor do despacho recorrido que é o seguinte:

            “(…).

               O Tribunal é competente e o Assistente tem legitimidade para acusar.


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Da rejeição da Acusação Particular

«Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) [d]e rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada. (…) Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: b) [q]uando não contenha a narração dos factos» (cfr. o artigo 311.º, n.º2, a) e n.º3, b) do Código de Processo Penal).

Uma vez observado o disposto no artigo 14.º do Código Penal, constata-se que tipo subjetivo de ilícito conceitualiza-se na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade da realização do tipo objectivo de ilícito, o mesmo será dizer, o dolo do tipo decompõe-se no conhecimento (momento intelectual) e vontade (momento punitivo) de realização do fato. (…) do que no elemento intelectual do dolo verdadeiramente e antes de tudo se trata é da necessidade para que o dolo do tipo se afirme, que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias de fato que preenche um tipo de ilícito objectivo (cfr. os ensinamentos de Jorge de Figueiredo Dias em Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Janeiro de 2011, Coimbra Editora, páginas 348-351; bem assim a jurisprudência que, em concretização desses ensinamentos, definiu a estrutura do dolo como comportando um elemento intelectual e elemento volitivo, consistindo aquele na representação pelo agente de todos os elementos que integram o fato ilícito e na consciência de que esse fato é ilícito e a sua prática é censurável, de molde que «a afirmação da existência do elemento intelectual do dolo exige que o agente tenha conhecimento da ilicitude ou ilegitimidade da prática do fato» – vide o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra 21.01.2014, processo n.º2572/10.2TALRA.C1, Vasques Osório).

Portanto, «[n]um crime doloso, da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo)» (cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01.06.2011 no processo 150/10.5T3OVR.C1, Maria Pilar Oliveira, sendo o sublinhado deste Tribunal).

Igualmente de revelo para a presente decisão, haverá de ter presente a jurisprudência fixada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º1/2015 de 27 de Janeiro (in DR, 1ª Série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015): «[a] falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal».

Neste quadro doutrinal e jurisprudencial assim exposto, este Tribunal perfilha o entendimento segundo o qual «[a]jurisprudência fixada [pelo dito] Acórdão Uniformizador nº1/2015 não tem exclusivamente por objeto a falta absoluta, na acusação, da descrição do tipo subjetivo do crime imputado. (…) O Acórdão Uniformizador nº 1/2015 veio fixar o sentido oposto a tal entendimento [recurso ao mecanismo do art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal], impedindo o recurso ao dito mecanismo para integrar a deficiente descrição, por omissão narrativa, do tipo subjetivo do crime imputado, (…) e determinando, consequentemente, que a deficiente ou incompleta definição do tipo subjetivo de ilícito conduza, necessariamente, à absolvição» (aqui, o acórdão do Tribunal da Relação de

Coimbra de 02.03.2016, no processo 2572/10.2TALRA.C2, Vasques Osório).


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No caso dos presentes autos, falta, na Acusação Particular, a narração de factualidade reconduzível ao tipo subjetivo do ilícito, designadamente ao dolo naquele que é o seu elemento volitivo, mais concretamente, não consta um qualquer segmento do qual decorra que o Arguido – além de saber que as expressões que alegadamente proferiu ofendiam a honra e consideração do Assistente, conforme consta daquela peça processual – quis, através do uso de tais expressões, ofender o Assistente na sua honra e consideração.

Por conseguinte, impõe-se a este Tribunal rejeitar, porque manifestamente infundada nos termos da alínea a) do n.º2 e alínea b) do n.º3 do citado artigo 311.º do Código de Processo Penal, a Acusação Particular deduzida pelo Assistente contra o Arguido, na parte em que lhe imputando a prática de crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º do Código Penal, extinguindo-se, por conseguinte, o presente procedimento criminal.

Relativamente ao pedido de indemnização civil deduzido, e visto que teve por base a factualidade constante da Acusação Particular e, portanto, se fundou na alegada prática de um crime de injúria, não o admito.


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Custas pelo Assistente, que fixo no mínimo legal (cfr. o artigo 515.º, n.º1, alínea f), 518.º e 519.º, todos do Código de Processo Penal).

            (…)”.


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            Para a resolução da questão proposta importa ter ainda presente o teor da acusação particular que é, na parte em que agora releva, o seguinte:

            “ (…).

               1° Indiciam suficientemente os autos que, no dia 5/9/2016, pelas 11 H., o assistente encontrava-se, na companhia da sua esposa, no bar do I (...) de x (...) , sentados a tomar café.

2° Eis senão quando, o arguido …, entrando no I (...) , se dirigiu à mesa onde o assistente e esposa se encontravam e, fixando os braços na mesa, gritando, proferiu as seguintes expressões, dirigindo-se ao assistente:

"porque é que meteste um advogado?"

"és um cobarde"

"és um ladrão"

"roubaste o banco"

"roubaste a mãe"

"roubaste o pai"

"e agora queres-me roubar a mim".

3° Tais expressões injuriosas foram proferidas em altos berros, tendo sido presenciadas e ouvidas por diversas pessoas, utentes do I (...) e empregados do bar, que se voltaram para a mesa onde se encontrava o assistente e esposa, verdadeiramente estupefactos com a situação.

4° Alguns utentes do I (...) e empregados do bar são pessoas que conhecem o assistente, desde há muitos anos, quer por serem naturais ou residentes na vila de x (...) , quer pelo tipo de profissões que o assistente e esposa desempenharam ao longo da vida na Vila de x (...) (ele … e … e ela funcionária das …de x (...) ),

5° A esposa do assistente, perante tais expressões injuriosas e de tão inesperada atitude do arguido, levantou-se, com o telemóvel na mão, dizendo que ia chamar a GNR.

6° Eis senão quando o arguido, ao mesmo tempo que proferia a expressão "chama lá", desferiu uma pancada na mão esquerda da esposa do assistente que segurava o telemóvel, de tal modo que este foi projectado a vários metros, ficando no chão, todo aberto, sem capa.

 7° Continuando a repetir "vocês são uns ladrões" e dirigindo-se ao assistente ainda disse "põe-te a pau comigo …".

8° Ao proferir tais expressões acima referidas, objectivamente ofensivas, de viva voz, de forma a serem audíveis, como foram, por diversas pessoas, o arguido bem sabia não só que as mesmas ofendiam a honra e consideração do assistente, como sabia igualmente que tal facto é previsto e punido por lei e, mesmo assim, não se absteve de as proferir.

9° Com o que cometeu o crime de injúrias p. e p. pelo art". 181 do Código Penal.

(…)”.


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Da indevida rejeição da acusação particular, por manifestamente infundada


            1. O art. 311º, nº 2, a) do C. Processo Penal admite a rejeição da acusação, pública ou particular, quando, não tendo havido instrução, ela seja manifestamente infundada.

            Este conceito mostra-se concretizado nas quatro alíneas do nº 3 do mesmo artigo, tendo assim existência quando, a) a acusação não contenha a identificação do arguido, b) quando a acusação não contenha a narração dos factos, c) quando a acusação não indicar as normas legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam e, d) quando os factos descritos na acusação não constituírem crime. 

            No despacho recorrido foi entendido que a acusação particular não continha a narração de parte do tipo subjectivo doo crime nela imputado ao arguido e portanto, face à invocação expressa da alínea b) do nº 3 do art. 311º do C. Processo Penal, que a peça acusatória não continha a narração dos factos

           

            Nos termos do disposto no art. 283º, nº 3, b) do C. Processo Penal, a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada. E os factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido são, como é evidente, os que preenchem o tipo, objectivo e subjectivo, do crime que na acusação lhe é imputado. O tipo objectivo define o objecto da acção ou da omissão e o tipo subjectivo define a relação particular do agente com essa acção ou omissão.

            Brevitatis causa e tendo por pano de fundo os princípios da legalidade e da tipicidade que, como é sabido, informam o nosso Direito Penal, diremos que só existe crime – entendido como a acção típica, ilícita, culposa e punível – quando os factos praticados pelo respectivo agente preenchem o ‘modelo’ fixado por lei anterior à sua prática. E pressupondo a aplicação da pena a culpa concreta do autor do facto, este só pode ser culpabilizado se a conduta praticada lhe puder ser imputada a título de dolo ou de negligência (art. 13º do C. Penal).

            O assistente imputou ao arguido a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º do C. Penal. Não estando previsto o seu cometimento com negligência (art. 13º do C. Penal), trata-se, pois, de um crime doloso.

            O dolo, legalmente definido no art. 14º do C. Penal, consiste no conhecimento – elemento intelectual – e vontade – elemento volitivo – do agente em realizar o facto, com consciência da sua censurabilidade – consciência da ilicitude.

            O elemento intelectual implica a previsão ou representação pelo agente das circunstâncias do facto portanto, o conhecimento dos elementos constitutivos do tipo objectivo, sejam descritivos sejam normativos.

            O elemento volitivo consiste na vontade do agente de realização do facto depois de ter previsto ou representado os elementos constitutivos do tipo objectivo – assim revelando a sua personalidade contrária ao direito, para uns, ou uma atitude contrária ou indiferente perante a proibição legal revelada no facto [elemento emocional do dolo], para outros.

            Assim, a acusação deve descrever, pela narração dos respectivos factos, todos os elementos em que se decompõe o dolo.

            Não existindo fórmulas sacramentais para a descrição destes elementos subjectivos, destes factos interiores da vida do agente do crime, eles são normalmente traduzidos, como se pode ler no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, de 20 de Novembro de 2014 (DR-IA, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015), como «fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).».

            Naturalmente que podendo o dolo assumir, em cada caso, uma das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal, deve constar da acusação a narração dos factos integradores da concreta situação isto é, a intenção de realizar o facto, tratando-se de dolo directo, ou a previsão do resultado como consequência necessária da conduta, no caso de dolo necessário, ou ainda a previsão do resultado e a conformação com a sua verificação, no caso de dolo eventual.   

Faltando todos ou algum dos elementos caracterizadores do dolo na narração da acusação, o conjunto dos factos nela descritos não constituirá crime e assim sendo, torna-a inviável e, consequentemente, manifestamente infundada. 

            Aqui chegados.

2. Na acusação particular deduzida pelo recorrente, no que ao dolo do imputado crime de injúria respeita consta que «Ao proferir tais expressões acima referidas, objectivamente ofensivas, de viva voz, de forma a serem audíveis, como foram, por diversas pessoas, o arguido bem sabia não só que as mesmas ofendiam a honra e consideração do assistente, como sabia igualmente que tal facto é previsto e punido por lei e, mesmo assim, não se absteve de as proferir.».

A circunstância de o arguido saber que as expressões que proferiu ofendiam a honra e consideração do recorrente e não se absteve de as proferir, releva para o elemento intelectual do dolo. A circunstância de o arguido saber que essa conduta era punida por lei, releva para consciência da ilicitude.

Nada se diz, no entanto, quanto ao elemento volitivo do dolo, quanto a querer o arguido a realização do facto, como também nada se diz quanto a poder o arguido ter agido de modo diverso. Com efeito, sempre com ressalva do respeito devido por diversa opinião, a circunstância de o arguido não se ter abstido de proferir as expressões que proferiu, sabendo que as mesmas ofendiam a honra e consideração do recorrente, desligada da razão da não abstenção isto é, da razão que o determinou a assim actuar, da intenção de atingir, por este meio, aquele bem jurídico, nada mais acrescenta ao já presente elemento intelectual, sendo insusceptível de densificar o elemento volitivo.

Dir-se-á, com o recorrente, que quem proferiu palavras injuriosas contra o ofendido e, conhecendo a qualidade de tais palavras, não se absteve de as proferir, agiu voluntariamente e quis atingir a honra e consideração do visado. Mas isto traduz apenas a evidenciação probatória do dolo do crime de injúria [por inferência, através das regras da experiência, conjugadas com os factos objectivos, os factos integradores do tipo objectivo, provados]. Sucede que a prova de um facto necessário ao preenchimento do tipo legal imputado pressupõe que o mesmo tenha sido previamente alegado isto é, que conste da acusação. E a factualidade tendente à demonstração do elemento volitivo do dolo, como se disse, não consta da acusação deduzida nos autos.   

Em suma, não constam do texto da acusação todos os elementos em que se decompõe o dolo do agente.

3. O Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015 fixou a seguinte jurisprudência:

- A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, na representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do Código de Processo Penal.  

  

Não conhecemos argumento novo que possa fundamentar sustentadamente o afastamento da jurisprudência fixada e, por outro lado, até pela sua relativa proximidade temporal, não vemos que tenha ocorrido uma alteração nas concepções do nosso mais Alto Tribunal nem na sua composição, susceptíveis de justificar aquele afastamento.

Ora, como se pode ler no voto de vencido do Exmo. Conselheiro Santos Cabral, ao acórdão em referência, «(…) a presente fixação de jurisprudência conduz a que a deficiente, ou incompleta caracterização, do tipo subjectivo importa, necessariamente, em sede de julgamento, uma absolvição da prática do crime.»

Na verdade, não sendo admissível, através do recurso processual previsto no nº 1 do art. 358º do C. Processo Penal, sanar a deficiência de narração da acusação, nos termos supra definidos, está esta votada ao insucesso, pois que os factos que integram o seu objecto não constituem crime por não preencherem, integralmente, o tipo de ilícito imputado.

Não constituindo, pelas razões sobreditas, crime, os factos imputados na acusação particular, pelo assistente, ao arguido, é a mesma manifestamente infundada, nos termos do disposto na alínea d) do nº 3 do art. 311º do C. Processo Penal.

Por isso, não merece censura o despacho recorrido ao ter rejeitado a acusação particular, por a considerar manifestamente infundada, nos termos da alínea a) do nº 2 do mesmo artigo.  


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.

Custas do recurso pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCS. (arts. 515º, nº 1, b) do C. Processo Penal e 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).


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Coimbra, 15 de Maio de 2019


Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator – e Helena Bolieiro – adjunta.