Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
162/16.5T8IDN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
PROVA
CONVICÇÃO DO JUIZ
UNIÃO DE FACTO
PRESTAÇÃO POR MORTE
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 09/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE IDANHA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.607 CPC, 343 CC, LEI Nº 7/2001 DE 11/5, LEI Nº 23/2010 DE 30/8, LEI Nº 2/2016 DE 29/2
Sumário: I – Na formação da convicção a que alude o disposto no n.º 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, o juiz terá em consideração que os factos que na realidade existiram ou são resultados de leis causais que governam a natureza ou da intencionalidade que modela as ações humanas, pelo que os factos históricos obedecem a regras e revelam, por isso mesmo, essas regras, que designamos por regras de experiência, através das quais se explicam ou tornam compreensível a sua existência.

II - Todo o facto que existiu é explicável, pelo que, logicamente, o facto que não existiu não permite tecer uma explicação coerente e, por isso, não obterá efetiva corroboração em outros factos probatórios, quer sejam anteriores, contemporâneos ou posteriores.

III - A versão que corresponde à realidade histórica apresenta sintomas da sua existência como facto real, ou seja: é apoiada por meios de prova diversificados; tem capacidade para implicar novos elementos factuais (provas) não contemplados inicialmente na hipótese; resiste à refutação; é simples e coerente e mostra ser provável face ao conjunto dos factos consensualmente admitido entre as partes e às regras de experiência pedidas pela natureza dos factos sob prova.

IV - A acção prevista no art.6 nº2 da Lei nº 7/2001 de 11/5( “A entidade responsável pelo pagamento das prestações previstas nas alíneas e), f) e g) do artigo 3.º, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente ação judicial com vista à sua comprovação “) é uma acção de simples apreciação negativa, pelo que cabe ao demandado, requerente da prestação social, o ónus da prova da união de facto.

Decisão Texto Integral:





I Relatório

a) A C (…) instaurou a presente ação declarativa de simples apreciação negativa, para obter sentença que declarasse que a Ré não viveu em união de facto com o beneficiário F (…).

No final foi proferida a seguinte decisão:

«Com os fundamentos de factos e direito expostos, julgo a presente acção totalmente procedente e, em consequência, decide-se declarar a inexistência da união de facto entre a ré A (…) e F (…) desde o ano de 2010 até 01.04.2016.

Custas a cargo da Ré (nos termos do artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, Código do Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário concedido».

b) É desta decisão que recorre a Ré, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

c) A recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão sob recurso.

(…)

II. Objeto do recurso

De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, se as houver, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e eventual repercussão destas na análise de exceções processuais e, por fim, com as atinentes ao mérito da causa.

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes:

1 - Em primeiro lugar cumpre apreciar a impugnação da matéria de facto declarada não provado que é esta:

«a) Por volta do ano de 2011/2012 até Abril de 2016, a Ré passou a partilhar com F (…) a mesma habitação, despesas e companhia um do outro».

«b) Durante o período aludido em a), de forma ininterrupta, a Ré e F (…) partilharam a mesma cama, relacionando-se efectiva e sexualmente».

«c) A ré e F (…) recebiam amigos comuns em casa deste último».

«d) Frequentemente tomavam café com amigos e conhecidos num café ou restaurante em termas de M (...) ».

«e) As despesas comuns da Ré e de F (…) designadamente com a alimentação, vestuário, transportes eram suportadas por ambos, ficando a cargo do falecido o pagamento das despesas da água, gás e energia elétrica onde viviam».

«f) Familiares e amigos conheciam a relação existente entre a Ré e F (…).

«g) F (…) optou por esconder do filho a relação amorosa que partilhava com a Ré em virtude daquele não ter aceitado bem, numa fase inicial, a presença daquela na vida do pai».

A recorrente pretende que estes factos sejam declarados provados.

E pretende que seja declarado que «O referido em 5), 6) e 8) dos factos provados ocorria desde o ano de 2011/2012».

2 - Em segundo lugar, se a impugnação for procedente, cumpre verificar qual a repercussão dos factos agora declarados provados sobre o mérito da causa, ou seja, de resulta dos mesmos a existência de uma situação de união de facto entre a Ré e o beneficiário (…)

.

III. Fundamentação

a) Impugnação da matéria de facto.

A questão central ao nível da impugnação da matéria de factos declarada provada e não provada reside na questão de saber se a Ré e F (…) viveram em união de facto e se este estado ocorreu a partir dos anos de 2011/2012.

O tribunal considerou que a prova produzida não permitiu formar a convicção de que existiu tal união de facto.

A Ré sustenta no presente recurso que a prova produzida só pode levar a essa convicção.

Ouvidas as declarações e depoimentos prestados, verifica-se que as declarações que a Ré atribui às testemunhas que indicou para fundar a sua pretensão não contêm erros, ou seja, correspondem ao que foi dito na audiência.

Desde já se adianta, que a prova produzida não tem capacidade para formar a convicção do tribunal no sentido de ter existido tal relação, pelas razões que vão ser indicadas de seguida.

(1) Em primeiro lugar, uma vez que a ação humana assume uma importância fundamental na compreensão dos factos em análise, antes de prosseguir com a apreciação individualizada das questões colocadas no recurso da matéria de facto, cumpre deixar aqui uma exposição acerca da compreensão e explicação da ação humana, que nos permitirá entender, em geral, o significado e razão de ser da ação individual, na expectativa de assim contribuir para a compreensão da decisão que será tomada.

I - Vejamos uma ação que certamente já todos executaram ou viram executar alguma vez e perguntamos: por que razão alguém coloca uma carta no marco do correio?

Diremos que o agente, ao proceder assim, quis alcançar uma certa finalidade, ou seja, quis levar o conteúdo da carta ao conhecimento de um terceiro e sabia – tinha a crença – que, ao depositá-la no marco, o serviço de correios recolheria a carta e entregá-la-ia ao destinatário indicado no rosto do envelope.

Dizemos que o agente, ao proceder como procedeu, agiu a coberto de uma intenção adequada a satisfazer o seu propósito de levar ao conhecimento do destinatário o conteúdo da carta.

E sabia, isto é, tinha suficiente conhecimento da realidade social (crença), que aquela ação era apropriada a conseguir tal finalidade.

Sendo assim, podem ser sintetizadas algumas regras que são, sem dúvida, regras de experiência, utilizáveis pelo juiz no âmbito da decisão sobre a matéria de facto, quando os factos controvertidos consistem em ações humanas, ou seja:

(a) As pessoas possuem crenças acerca do funcionamento causal da realidade que as cerca, bem como da intencionalidade que governa as ações humanas.

(b) As pessoas têm necessidades, interesses e desejos (próprios ou de terceiros, morais ou imorais, legais ou ilegais, etc.), enfim, motivos ou razões para agir, que procuram satisfazer através das ações;

(c) As pessoas acreditam, ainda que possam laborar em erro, que tais ações serão as adequadas a satisfazer esses motivos ou razões para agir;

(d) Assim, aquilo que o agente faz está intrínseca e necessariamente ligado a uma intenção e a uma crença, no sentido de que aquilo que faz é adequado a alcançar a finalidade que tem em vista.

(e) A ação humana é, por isso, naturalmente intencional (ou, então, não é ação, mas simplesmente algo que aconteceu à pessoa) ([1]).

Concluir assim, é concluir, afinal, por uma regra da experiência básica, primordial, que não pode deixar de ter uma elevada importância no momento em que o juiz aprecia criticamente as provas, mas que, talvez por isso, poderá passar despercebida.

A regra é esta: a ação humana é intencional (ou, então, não é ação, o que não significa que o agente não possa ser responsabilizado pela sua não ação, por não ter agido de certa forma, por ter sido negligente).

III. Explicar uma ação consiste, então, em eleger um fim perseguido pelo agente em relação ao qual a ação é instrumental. Por outras palavras, explicar uma ação é racionalizá-la ([2]), inferindo as crenças e razões do agente a partir da evidência empírica disponível para um observador.

Explicar uma ação humana que ocorreu ou que é afirmada num processo como tendo existido, é apresentar um motivo – aquilo que move – que satisfaça uma necessidade, um desejo ou um qualquer interesse do agente, lícito ou ilícito, bom ou mau, altruísta ou egoísta, etc., e uma intenção correspondente que lhe dê execução através dos movimentos físicos, corporais, que o agente considera adequados para alcançar a satisfação desse desejo, interesse ou finalidade.

Por conseguinte, quando os factos a provar consistem em ações humanas, a sua explicação apela para uma relação teleológica que se estabeleceu no passado entre os interesses, desejos ou razões do agente, as suas crenças acerca do funcionamento da realidade e a decisão de levar a cabo certas ações que teve como idóneas para atingir as finalidades que pretendeu alcançar.

Concluindo: ao analisar os factos que são ações humanas, quer alegados, quer referidos pelas testemunhas nos depoimentos, devem ter-se presentes estes elementos estruturais da ação humana que nos permitirão verificar a probabilidade das ações terem ocorrido ou terem ocorrido da forma como são descritas, seja pelas partes ou pelas testemunhas.

III- Outro aspeto a levar em consideração é o fundo factual onde os factos são situados historicamente pelas partes.

Como é evidente, os factos que na realidade existiram não surgiram do nada; são antes resultados das leis causais que governam a natureza ou da atrás mencionada intencionalidade que governa as ações humanas.

Daí que os factos históricos obedeçam a regras de experiência e revelem, por isso mesmo, regras de experiência que explicam a existência desses mesmos factos.

Por isso, todo o facto controvertido que tenha efetivamente existido historicamente tem a característica de ser explicável.

E é explicável através das regras de experiência aplicáveis, incluindo a outros factos anteriores que o «causaram», factos estes que valem como provas da sua existência.

Por outro lado, um facto controvertido que efetivamente existiu produziu, em regra, outros factos que são seus resultados ou consequências e também, por isso mesmo, tais factos, que surgem como resultados ou consequências, são também provas da sua existência.

Além disso, todo o facto que existiu, existiu num universo factual mais vasto onde o mesmo foi gerado, pelo que um facto histórico também é mais ou menos provável consoante o fundo onde o mesmo se inseriu era ou não mais propício à sua génese. 

Como todo o facto que existiu é explicável, logicamente o facto que não existiu não permite tecer uma explicação coerente e, por isso, não obterá efetiva corroboração em outros factos probatórios, quer sejam anteriores, contemporâneos ou posteriores.

Se, porventura, forem apresentadas provas que aparentam corroborá-lo, então ou não são genuínas ou, se o são, a corroboração insere-se num processo de explicação necessariamente parcial e aparente que será refutado em globo por outras provas.

Um facto que tenha existido é sempre adequado a obter múltiplas corroborações e é fértil (no sentido de ser apto), a produzir, a partir da sua matéria factual, novas conjeturas sobre possíveis outras provas que o corroborarão, não sendo refutável, salvo por ignorância de todas as circunstâncias factuais em que esteve inserido.

A corroboração existe quando um facto probatório faz parte de um processo causal ou teleológico (neste caso quando se trata de ações humanas), no âmbito do qual seja possível estabelecer uma ligação entre o facto a provar e o facto probatório e vice-versa.

IV- Em termos de raciocínio prático, o juiz partirá da ideia de que cada núcleo das versões factuais em confronto existiu e, seguidamente, verificará que dados empíricos, isto é, que provas corroboram ou refutam cada uma das versões.

Assim, a versão que corresponder à realidade histórica apresentará sintomas da sua existência como facto real.

É sintoma de verdade o facto de um meio de prova ou o núcleo de uma versão factual serem apoiados por meios de prova diversificados, pois um facto quando existe, existe entre variados outros, como uma peça de um puzzle se insere na realidade mais vasta do puzzle e se harmoniza com todas as suas peças que, nesta media, atestam que aquele peça é daquele puzzle.

É também sintoma de verdade a circunstância de um facto ou o núcleo de uma versão factual implicar novos elementos factuais (provas) não contemplados inicialmente na hipótese, o que apenas é possível na generalidade dos casos, quando o facto ou a versão factual correspondem à realidade.

É sintoma de verdade a circunstância de um facto ou o núcleo de uma versão factual não serem refutados por provas cuja realidade não seja razoavelmente questionável ou resistam elas mesmas à refutação.

É sintoma de verdade a simplicidade dos factos aferida pelas regras da experiência, isto é, de acordo com aquilo que habitualmente ocorre na natureza ou é habitual verificar nas ações humanas.

É sintoma de verdade a circunstância das provas se inserirem num todo coerente, pois a realidade que existe é idêntica a si mesma e não pode deixar de ser coerente, sendo as ações humanas coerentes, no sentido de serem compreensíveis, uma vez conhecidas as intenções com que foram realizadas.

É sintoma de verdade a própria probabilidade do facto ou do núcleo da versão factual, terem ocorrido face ao conjunto dos factos consensualmente admitido entre as partes e com as regras da experiência convocáveis pela natureza dos factos.

É sintoma de verdade a circunstância das provas produzidas e do núcleo da versão factual conferirem a possibilidade de serem confirmadas ou refutadas.

É sintoma de falsidade, no sentido de não corresponder à realidade histórica, o inverso do acabado de referir.

Por fim dir-se-á, que o juiz verificará, sempre em termos globais, olhando ao mesmo tempo para a totalidade dos factos sob prova e para as provas, procurando verificar se existem nexos causais ou teleológicos que interliguem as diversas provas.

Alinhados os dados probatórios que corroboram cada uma das hipóteses, o juiz verificará se algum conjunto de dados probatórios permite montar um sistema explicativo, teleológico ou causal, que implique a existência dos factos a provar.

Se isso ocorrer, adquirirá a convicção de que aquela hipótese factual corresponde à realidade, ficando excluída, por incompatibilidade a outra versão factual ([3]).

(2) Em primeiro lugar, vejamos, em síntese, o que disseram as testemunhas.

Testemunha M (…) (empregada doméstica contratada pela Ré)

Referiu que há uns 6 anos, tendo em conta a data do depoimento (9-10-2017), passou a trabalhar para a Ré, prestando-lhe serviços domésticos, isto é, fazia o almoço, arrumava a casa e vigiava a mãe da Ré que padecia de Alzheimer (minuto 01.58, 02.49).

Referindo-se ao caso dos autos, disse que «eles faziam vida de casados, não era assistência» (minuto 05:24); eram «um casal normal», «ela dormia com ele, iam às compras» (minuto 05.42); que o Sr. F (…) a tratava bem, como «querida vamos aqui, vamos acolá» (minuto 08:07); iam os dois às compras (minuto 08:34), ao café, até de braço-dado (minutos 10:12 e 10.30). A testemunha arrumava também a casa do Sr. F (…)[há consenso no sentido da casa da Ré e do Sr F (…) ficarem uma em frente à outra na mesma rua] e via o pijama da Ré na cama do Sr. F (…) quando lá ia arrumar a casa (minuto 06:10).

Que recebia 250,00 euros por mês pelo trabalho doméstico que fazia para o Sr. F (…) (minuto 25:20).

Que a Ré lhe pediu para ficar a dormir na casa da Ré e tomar conta da sua mãe, porque ia passar a viver com o Sr. F (…) (minuto 04:34 e 19:19).

Que durante o dia o Sr. F (…) estava junto de «nós», isto é, da testemunha, da Ré, mãe da Ré e vizinhos (minuto 21:57).

Referiu que almoçavam todos em casa da mãe da Ré na companhia da própria testemunha, a qual fazia o almoço para todos (minuto 07:00).

Disse que «ela acompanhava-o porque fazia de esposa dele» (11:27) e que não teve conhecimento de qualquer acordo entre a Ré e o filho do Sr. F (…), no sentido deste último ter solicitado à Ré que cuidasse do pai e que lhe pagaria as despesas que tivesse (minuto 24.37).

Testemunha M (…) (cunhada da Ré)

 Referiu que a Ré viveu uns 5 ou 6 anos com o Sr F (…) como se fossem marido e mulher; que eram um casal normal, ela tratava de tudo o que era dele (minuto 07:59); tratava-o como marido, levava-o onde precisava (minuto 16:06); dormiam os dois juntos na casa do Sr. F (…)

Justificou este conhecimento afirmando que era ela que substituía a testemunha A (...) nos dias de folga desta e dormia na casa da sogra, tomando conta da mesma.

Soube que havia «algo» entre eles porque foi a Ré que lhe contou (minuto 20:56); que a Ré lhe dizia que dormia na mesma cama com o Sr. F (…)(minuto 24:45).

Como diz a recorrente nas alegações, confirma-se que «No que se refere ao convívio com amigos e familiares, a testemunha declarou que “entrei lá várias vezes [referindo-se à casa do Sr. F (…)]. Assim como eles também, quando era na altura da matança do porco, eles vinham sempre a jantar à nossa casa, porque é hábito convidarem-se as famílias. Ele acompanhava-a sim senhor.” (10:34, 12:15)».

Que havia entre eles troca de afetos, dizendo que «o Sr. F (…) fazia-lhe festas e ela retribuía, com festas, beijos, um ao outro, abraçavam-se» (minuto 11:08).

 Não teve conhecimento de qualquer acordo entre a Ré e o filho do  Sr. F (…) tendo como objeto a prestação de assistência da Ré ao Sr. F (…)(minuto 27:06). 

Referiu não saber se a família do Sr. F (…) sabia deste relacionamento (minuto 19:15); que quando o filho do Sr. F (…) vinha visitar o pai a Ré dormia em casa dela (minuto 20:20).

Testemunha E (…) (o pai da testemunha era irmão da mãe da Ré; amiga da Ré, afilhada da mãe desta e visita regular da casa da Ré há muitos anos)

Referiu que o relacionamento da Ré e do Sr. F(…) era íntimo, como marido e mulher; tratava dele em todos os sentidos, dormia em casa dele, com ele, comiam juntos, faziam compras juntos iam ao café junto e até de mão-dada (minutos 01:53, 06:07, 08:50-09:55).

Que às vezes quando precisava de lavar a cabeça ou arranjar o cabelo, fora das horas normais da abertura do estabelecimento da Ré, ia procurar a Ré a casa do Sr. F (…), porque sabia que era lá que a encontrava, porque ela dormia lá (minuto 03:17, 04:19, 08:06) e vi-a de pijama (minuto 11:05).

Que via na casa de banho da casa do Sr. F (…), quando estando de visita, precisava de utilizá-la, dois copos de lavar os dentes, duas escovas de dentes (28:38).

Que o relacionamento inicialmente era às escondias (minuto 06:07), porque o Sr. F (…) tinha medo do filho (minuto 6:47 e 39:37).

Que foi a própria testemunha que um dia questionou a Ré «mas tu afinal estás a viver com o Sr. F 8…)» e ela respondeu-lhe que sim (minuto 23:54).

Que saíam ambos juntos e a Ré tratava de tudo o que ele necessitava (minutos 29:34, 32:35), refeições (minuto 31:44), hospital, médico (minutos 21:30, 13:07); que os chegou a ver levantar dinheiro da CGD e ele a entregar de seguida dinheiro à Ré (minuto 33.17); tomavam café juntos (minuto 06:07).

Testemunha P (…) (amiga de infância da Ré e visita habitual de casa e cliente do seu salão de cabeleireiro).

Afirmou que em conversa a testemunha a questionou a respeito do relacionamento com o Sr. F (…)e a Ré confidenciou-lhe, há uns 5 ou 6 anos [tendo em conta a data do depoimento - minuto 25.32), que tinha um relacionamento com o Sr. F (…), que vivia com ele (minuto 04:30 e 27:05); que os via sair um com o outro (minuto 05:14); era muito carinhosa com ele (minuto 06:35, 13.06); a Ré dizia-lhe que dormia com ele (minuto 08.32 e 22:54); que chegou a ir à casa do Sr. F (…) quando a Ré estava lá (minuto 07:36); que saíam juntos (minuto 05:14), vinham dia sim, dia não a Idanha (minuto 12:34), mas como companheiros e não como se a Ré fosse com o Sr. F (…)por ser sua cuidadora (minuto 06:35).

Que tinha a certeza que a Ré nunca recebeu qualquer pagamento do filho do Sr. F(…)para cuidar deste último (minuto 23.45).

Desconhecia qualquer acordo entre a Ré e o filho do Sr. F (…) no sentido da Ré cuidar do Sr. F (…) (minuto 27:51).

Não se lembrava da Ré ter estado a trabalhar algum tempo fora da sua terra (minuto 29:02).

Depoimento da Ré A (…)

Referiu que o Sr. F (…) foi casado e enviuvou relativamente a uma sua tia, irmã do seu pai (minuto 02.39) e que nos finais de 2010 existiu uma aproximação afetiva entre ambos e começaram a viver juntos (minuto 04:29), talvez originada por um contato mais frequente entre ambos e pelo facto do Sr. F (…)se sentir muito só (minuto 08.01).

Passaram a dormir juntos, na mesma cama e entre 2010 e 2014 afirmou que tinham relações sexuais, que terminaram com o agravamento da doença (30:00); que apesar da idade sentiam um «carinho especial, numa relação homem/mulher, era amor (minuto 53:27), que ele lhe dizia que ela era uma pessoa muito especial para ele (54:54).

Relativamente ao relacionamento público, visível para terceiros disse o mesmo já dito pelas testemunhas que ficaram indicadas, designadamente que assegurava a confeção da alimentação ao Sr. F (…) acompanhava-o a todos os locais onde era necessário ir, desde fazer compras, levantar dinheiro, ir ao médico ou ao hospital ou simplesmente ir tomar café.

Que passou a considerar sua residência a casa de F (…)e se mudou para casa dele (minuto 12.45), mas não necessitou de levar todos os seus pertences porque vivia em frente da casa dele, levou só a roupa do dia-a-dia e produtos de higiene (minuto 12.45), dividiam as despesas (minuto 14.33).

Em relação ao acordo com o filho do Sr. F (…) referiu que ela e o Sr. F (…)falaram um com o outro sobre o acréscimo de despesas dele e o Sr. F (…) ficou de comunicar ao filho que estava a precisar de mais dinheiro e foi então que o filho do Sr. F (…) telefonou à Declarante a pedir-lhe o NIB, mas não ficou combinado qualquer montante, era consoante as despesas que o Sr F (…) comunicava ao filho e a Declarante recebia o dinheiro na sua conta por ser mais fácil, porque o Sr. F (…) não tinha cartão de débito (multibanco) - (minuto 19:50 a 27:28).

(3) Em terceiro lugar, vejamos o essencial da argumentação da Ré.

A recorrente argumenta que destes depoimentos se retira que existiu entre a Ré e o referido Sr. F (…) um relacionamento qualificável como união de facto e que as respostas à matéria de facto devem espelhar tal entendimento.

Cumpre, por isso, verificar se assiste razão à Ré.

A resposta é negativa pelas razões que vão ser indicadas de seguida.

Em primeiro lugar, verifica-se que dos fundamentos da convicção indicada na sentença constam outros elementos probatórios de sinal oposto aos depoimentos que ficaram indicados.

Vejamos quais:

Testemunha J (…) (filho, único, do Sr. F (…))

Negou perentoriamente o relacionamento alegado pela Ré, dizendo-se «muito surpreendido» com essa mesma afirmação que consta do atestado emitido pela Junta de Freguesia (minuto 03:43); que sempre teve um relacionamento próximo como seu pai, a quem telefonava diariamente (minuto 05.25) e sabia bem o que se passava com ele (minuto 06:05); que foi sempre o pai quem atendeu o telefone (minuto 06.42); que vinha muitas vezes a casa do pai, em especial no Natal, na Páscoa e verão e que nunca se apercebeu que a Ré vivesse com o seu pai (minuto 07:25), nunca tendo visto objetos da Ré em casa do pai (minuto 07:59) e que esta sempre viveu na casa situada em frente em relação à do seu pai.

Que ela e o seu pai nunca viveram juntos (minuto 19:54); que era ele quem pagava as despesas da casa do pai, como impostos, água e eletricidade (minuto 22:05).

Que a sua prima e Ré esteve a trabalhar fora, na zona da Ericeira de Abril a outubro (minuto 26:01) e que regressou à terra não por causa do seu pai, mas por problemas laborais não resolvidos (minuto 32:14).

Que nunca se colocou a questão de saber se o seu pai vivia com outra pessoa (minuto 33.14), nunca ninguém lhe tendo dito, ou ouvido, o que quer que fosse sobre tal hipótese, muito embora falasse com as pessoas da terra quando vinha a casa do pai (minuto 34.20), no café (minuto 36:06), sendo certo que o seu pai lhe daria tal notícia se tivesse sido o caso porque tinha à-vontade para o fazer (minuto 33:55).

Referiu que a Ré ia a casa do pai levar-lhe o jantar, mas tinha de ficar na casa dela porque a mãe dela sofria de Alzheimer e a Ré não a podia deixar só (minuto 18:38).

Referiu que pediu à Ré, por viver perto e ser sua prima, se cuidava do seu pai, designadamente lhe fazer o comer (minuto 14:00), tendo a ré concordado; não ficou acordada uma verba certa, mas ao princípio eram 150 euros por mês (minuto 16:03), tendo transferido para a sua conta, por inteiro, cerca de 4700 euros (minuto15.53).

Que ia uma senhora de nome P (…) fazer a limpeza a casa do seu pai (minuto 42:12), supondo que tenha sido indicada pela Ré.

Que sempre se deu bem com a Ré sua prima (minuto 48:30), mas está constrangido com a presente situação que é desagradável (minuto 49:50).

Testemunha M (…) (prima da Ré – minuto 01:30, residente em C (...) , N (...) )

Referiu que vinha a P (...) muitas vezes e visitava a casa da Ré e do Sr. F (…) (minuto 05:00) e nunca viu em casa do Sr. F (…) coisas de mulher após ter enviuvado, nem indícios de ali viver mais alguém (minuto 05:23).

Nunca se apercebeu que entre a Ré o Sr. F (…) existisse alguma outra relação que não fosse a de tio-sobrinha (minuto 02:51), nunca ouvir dizer a alguém que existisse entre ambos uma relação amorosa (minuto 03.30).

Testemunha V (...) (neta do Sr. F (…))

Referiu que vinha às Termas de M (...) várias vezes no ano, mais no Natal, Carnaval, Páscoa, verão e 1 de Novembro (minuto 02.27) e nunca se apercebeu que entre o seu avô e a sua prima existisse uma relação diferente da de tio-sobrinha (minuto 03:07) e nunca ouviu dizer nada nesse sentido (minuto 04.11).

Quando vinha às termas ficava em casa do seu avô e nunca aí viu nada de outra mulher (minuto 04:47).

Que o seu avô adoeceu no natal de 2014 e depois foi para L (...) com o seu pai para fazer exames e só regressou em meados de fevereiro, nunca tendo a Ré ido a L (...) neste período e se ligou, ligou para o pai da testemunha (minuto 07:38).

Que a sua prima tratava do seu avô porque o seu pai lhe pediu para ela lhe fazer de comer e controlar a medicação (minuto 11:04), pagando-lhe as despesas que tivesse de fazer; que era uma senhora de nome P (…)que ia fazer limpeza a casa do seu avô (minuto 12:51), existindo outra senhora de nome A (...) , a qual toma conta da mãe da sua prima, porque esta está em parte acamada e não pode ficar sozinha (minuto 13:13).

Testemunha J (…) (reside no S (...) e conhece a Ré por ser prima dos eu cunhado J (…)).

Referiu que a sua esposa é de P (...) e vinha a esta localidade no Natal, Páscoa e férias e visitava o Sr. F (…) nas Termas de M (...) , mas nunca ouviu falar que tivesse alguma relação amorosa, nem viu indícios disso (minuto 05.18), tendo-o encontrado sempre sozinho (minuto 06:02), mas a sua cunhada dizia-lhe que a Ré o auxiliava, levava-o ao médico e confecionava-lhe refeições (minuto 10.38).

Ele ia passar a noite de Natal a P (...) , mas nunca viu lá a Ré com ele (minuto 08.15).

Temos ainda o depoimento da testemunha P (…), que emitiu a declaração da União das Junta de Freguesia de M (...) e O (...) a dizer que a Ré residia há mais de dois anos com o falecido, à data do óbito deste (fls.17).

Referiu que conhecia a Ré Há muitos anos (minuto 11:19) porque a sua esposa era cliente dela no estabelecimento de cabeleireiro explorado pela Ré; que emitiu tal declaração por ver a Ré e o Sr. F (…) juntos (09:06), chegou a vê-la lá em casa do Sr. F (…) quando andou a indagar à noite sobre problemas com o sistema de iluminação pública onde residia o Sr. F (…) (minuto 21:05), e como era ela que lhe abria a porta concluiu que residia lá (minuto 22:31), que outras pessoas lhe afiançaram que viviam juntos (minuto 23:13); que não falou com o filho do Sr. F (…) sobre o assunto, tendo dito que não o conhecia (minuto 25:22), mas «se fosse hoje», se tivesse previsto que a declaração pudesse vir a ser questionada teria indagado mais sobre o caso (minuto 26:07).

(4) Em quarto lugar, vejamos que convicção é possível formar em relação a estes depoimentos e aos realçados pela Ré no recurso, acima mencionados, tendo em conta o fundo factual onde os factos se inserem.

Ou seja, há um fundo histórico onde os factos terão acontecido e não pode ser ignorado porque as ações das pessoas, como o viverem em união de facto, tem em consideração finalidades a atingir, finalidades que, por sua vez satisfazem interesses ou desejos prévios.

Por isso, não se pode atender apenas aquilo que as testemunhas afirmam, mas sim ao que afirmam considerando o fundo factual histórico onde os factos que narram terão ocorrido.

Assim, é pacífico que o Sr. F (…) que viveu e trabalhou em L (...) e depois de se reformar foi viver, com a esposa, para as Termas de M (...) .

A sua casa ficava situada na mesma rua e em frente da casa da mãe da Ré, sendo a Ré sobrinha da sua esposa, a qual faleceu pelo ano de 2002.

O Sr. F (…), então viúvo, com 74 anos (nasceu em 21-11-1928), passou a residir sozinho porque o seu filho, único, residia e reside em d (...) ( L (...) ).

Em traços gerais é este o fundo factual a considerar.

Cumpre ainda mencionar um outro facto, de natureza legal, o qual determinou a existência da presente ação, que é este:

Em 2001 foi aprovada a Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio ( Proteção das uniões de facto) cuja finalidade, como refere o n.º 1, do seu artigo 1.º, consistiu e consiste em adotar «medidas de proteção das uniões de facto».

Esta lei declara que a união de facto «… é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos» - n.º 2 do seu artigo 1.º.

Tais medidas constam do seu artigo 3.º e na respetiva alínea e) consta que as pessoas que vivam em união de facto gozam de «e) Proteção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social e da presente lei».

Ora, tendo em conta este fundo factual, o tribunal deve colocar a questão de saber em que medida ele é propício ou favorável ao nascimento, à existência histórica, de uma união de facto entre a Ré e o Sr. F (…) a partir de 2010/2011, tendo nesta altura o Sr. F (…) 82/83 anos e a Ré 53/54 anos.

Ou seja, que necessidade, interesse ou desejo poderia ter ou sentir o Sr. F (…) que carecesse de ser satisfeito através da criação de uma relação do tipo marido/mulher com a Ré?

E o mesmo se diga da Ré.

Da parte do Sr. F (…), não se vislumbra interesse em criar uma união de natureza amorosa aos 82 anos, perto da média de esperança de vida para os homens no nosso país, do género marido/esposa, quando já era viúvo desde os 74 anos, há uns 8 anos, e não tinha optado por um novo relacionamento.

A confiança nas suas capacidades físicas e emocionais para manter uma tal relação não seriam muitas, já que a qualquer momento nestas idades se pode padecer de doença incapacitante.

Por outro lado, tal relacionamento seria objeto de comentários, de «falatório», de «murmuração», pois a Ré era sobrinha da sua mulher e a diferença de idades, cerca de 29 anos, era significativa.

Acresce que era de colocar a hipótese da família poder não aceitar bem um tal relacionamento.

E a disponibilidade mental para um tal compromisso já não é idêntica à da meia-idade, pois a realidade impõe outras prioridades.

Poderia existir interesse por parte do Sr. F (…) no sentido de poder contar com alguém que o auxiliasse na sua vida diária, fazendo-lhe companhia e zelando pela sua saúde e necessidades domésticas.

Mas, no caso concreto, o Sr. F(…) poderia conseguir o mesmo através da disponibilidade de alguém próximo, familiar ou vizinho, como era o caso da Ré, que vivia em frente e podia desempenhar estas tarefas, com ou sem retribuição.

 Verifica-se, pois, que o quadro factual não era favorável à decisão do Sr. F (…) investir num relacionamento com a Ré análogo aos dos cônjuges.

E que necessidade, interesse ou desejo poderia ter ou sentir a Ré que carecesse de ser satisfeito através da criação de uma relação do tipo marido/mulher com o Sr. F (…)?

Da parte da Ré não se vislumbra interesse em estar a criar uma união de natureza sentimental relativamente a um homem já com 82 anos, tendo ela apenas 53/54, pelas seguintes razões:

A diferença de idades e a idade de ambos em concreto não é propícia a promover o nascimento de relações amorosas dado que a esperança de vida do «outro» e com alguma qualidade, era de poucos anos.

Era um investimento afetivo que estava amputado de futuro.

Mas deve assinalar-se um interesse relevante de alguém que estivesse no lugar da Ré, na sua posição real, que era o de poder beneficiar da «Proteção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social e da presente lei».

Ou seja, uma pessoa que estivesse na posição da Ré podia conseguir, após a morte do Sr. F (…), beneficiar de uma pensão mensal caso vivesse em união de facto com ele.

Verifica-se, pois, que face a este fundo factual não existia da parte do Sr. F (…) nem da Ré, interesse em dar início a uma relação amorosa análoga à dos cônjuges, salvo da parte dele no sentido de conseguir alguém que cuidasse de si e da parte da Ré no sentido de vir a beneficia de uma pensão.

Mas em qualquer um destes casos seria um relacionamento aparente, quer-se dizer, no sentido dos atos exteriores não serem expressão real do sentir interior.

Ora, este quadro factual desfavorável e a falta de interesse no investimento de uma relação análoga à dos cônjuges tem a corroboração dos depoimentos das testemunhas acima referidas, isto é, J (…)

Estes depoimentos são um entrave decisivo à formação da convicção do tribunal, porque se tivesse existido uma união de facto entre a Ré e o Sr. Fernando não podia ter passado despercebida ao filho e à neta deste último.

Além disso, se tivesse existido uma união de facto, a Ré não teria chegado a acordo com o filho no sentido dela tratar do pai deste e tal acordo existiu. Muito embora a Ré lhe atribua outro sentido, isto é, que se tratou apenas de transferir dinheiro porque as despesas aumentaram e o Sr. F (…) não tinha cartão de débito, continuamos a estar face a um acordo.

Mas se a Ré vivesse com o Sr. F (…) em união de facto, como se estivessem unidos pelo matrimónio, não se compreenderia este acordo, que se assemelha a uma tutela do filho em relação ao pai, pois existiria total autonomia e o Sr. Fernando e a Ré geririam a reforma e os bens do primeiro como bem entendessem.

Se efetivamente existisse união de facto tal acordo era desnecessário e sendo desnecessário não tinha chegado a existir.

Mesmo que o filho o tivesse proposto, por desconhecer a alegada união de facto, a Ré teria recusado e até teria informado o filho que recusava o acordo porque vivia com o pai dele e considerava-se a si mesma como se fosse esposa do Sr. Francisco.

Por isso, os depoimentos das testemunhas (…) apesar de afirmarem claramente factos que preenchem a união de facto, não permitem formar a convicção de que existiu essa união de facto.

E com isto, não se afirma que alguns dos factos que as testemunhas narraram não são históricos, como os gestos de carinho mútuos, acompanhamento ao café, a consultas, ao hospital, ao supermercado, andar de mão-dada, de braço-dado, etc.

Tudo isto se pode admitir, mas como manifestações de carinho e de bondade que as pessoas têm, em especial as mulheres que habitam nas pequenas localidades, muitas delas sempre dispostas a ajudar quem precisa, principalmente os velhos e isto é um facto que pode ser verificado empiricamente, por exemplo, através do elevado número de mulheres que trabalha na prestação de cuidados a idosos em lares e estabelecimentos similares (tais como banhos, tratamentos higiénicos, alimentação) ([4]) quando comparado com o número de homens em tal tipo de trabalhos.

Por isso, tais comportamentos apontados à Ré são insuficientes para, a partir deles, se formar a convicção de que existia uma união de facto.

Tais comportamentos entre uma mulher de cinquenta e poucos anos e um homem de oitenta e poucos anos podem existir, sendo até naturais, sem que exista união de facto.

E dir-se-á até mais.

Mesmo o facto de uma mulher de cinquenta e poucos anos se deitar na mesma cama com um homem de oitenta e poucos anos, não tem de implicar necessariamente a existência de uma união de facto ou sexual.

Poderá não ser comum, mas é uma situação perfeitamente adequada se as pessoas em questão forem familiares ou amigas, com estima mútua há muitos anos, porque a ação em questão pode ter como finalidade proporcionar algum conforto à pessoa idosa, seja pela proximidade de outra pessoa, seja pelo calor corporal que uma pessoa bem mais nova irradia, principalmente nas noites mais frias de inverno, pois é sabido que os idosos devido ao enfraquecimento do seu metabolismo não conseguem manter-se aquecidos.

Dir-se-á mais: não é possível formar a convicção de que a Ré dormia com o Sr. F (…)

Isso foi afirmado pelas testemunhas (…)

Mas o tribunal não pode fundar a sua convicção apenas nas declarações que alguém presta, nos factos que ela afirma.

Com efeito, se é certo que os depoimentos das testemunhas têm por função dar a conhecer uma certa representação da realidade, todos sabem que o sentido das palavras proferidas pelas testemunhas pode corresponder ou não corresponder a algo que efetivamente tenha existido no mundo.

Isto é assim porque não existe uma relação de necessidade (mas sim de liberdade), ou de identidade entre o que é afirmado por uma testemunha e a realidade, ou seja, não é pelo facto duma testemunha declarar o facto «A», que «A» existiu no mundo.

Com efeito, os depoimentos das testemunhas são apenas palavras, não são obviamente os factos submetidos a prova.

As palavras não criam (não devem criar) os factos na História; as palavras apenas poderão estar ou não estar de acordo com esses factos.

Por isso, as palavras para gerarem a convicção do juiz carecem sempre de apoio vindo de algo que lhes é exterior, seja na credibilidade particular que merece a testemunha, seja noutros meios de prova.

Por ser assim, um juiz pode declarar como «provado» ou como «não provado» um facto, ainda que várias testemunhas afirmem o oposto.

Na verdade, aquilo que gera a convicção do juiz provém da racionalidade imanente à justificação encontrada para a resposta à questão de facto colocada e não da mera contabilização de afirmações testemunhais, num ou noutro sentido.

Por conseguinte, um ou mais depoimentos não têm, em regra, quando considerados apenas em si mesmos, sem apoios exteriores, designadamente no contexto factual, capacidade para gerarem a convicção do juiz no sentido de que correspondem à realidade. É ainda necessário que tais depoimentos sejam apoiados pelas regras da experiência ou até pela própria probabilidade prática de tais factos terem ocorrido, face ao contexto factual conhecido e consensual.

E isto não significa, como já se disse, que se considere que a testemunha produziu um depoimento falso, significa apenas que não logrou convencer que o mesmo corresponde à realidade passada, ficando, por isso, em aberto quer a possibilidade do facto afirmado pela testemunha ser falso, quer a de ser verdadeiro.

Ora, no caso concreto, tal factualidade (dormirem um com o outro) não obtém corroboração em parte da prova testemunhal que nega a existência da união de facto, nem é apoiada pela dinâmica factual que compõem o quadro de fundo onde tais factos são inseridos pela Ré.

Além disso, tais depoimentos revelam também outra fraqueza que consiste em os mesmos não poderem ser refutados, o que baixa o seu nível de persuasão.

Com efeito, se alguém diz que foi a casa do Sr. (…) e viu o pijama da Ré na cama deste, vivendo este só e tendo este já falecido, ou que a Ré confidenciou que vivia em união de facto com o Sr F (…), não há modo de averiguar se este facto foi real ou fictício, isto é, se a testemunha está a narrar algo que existiu ou está a inventar um facto.

Daí que este tipo de depoimentos tenha baixo poder de persuasão, salvo se corroborado por outras provas ou pelas regras de experiência.

Por isso, a dúvida sobre a realidade acerca da existência de tais factos não pode deixar de se instalar na mente do julgador e ao instalar-se impede que se dê como provada essa factualidade.

Concluindo.

Verifica-se que temos dois blocos de depoimentos totalmente contraditórios na parte relativa à relação afetiva entre Ré e o Sr. F (…), no sentido destes terem construído uma relação afetiva e vivido factualmente em condições análogas às dos cônjuges.

Não há contradição entre as versões na parte relativa aos cuidados que a Ré dispensava ou assegurava ao Sr. F (…) e eram praticamente todos, desde a confeção de refeições, à limpeza da casa, companhia, vigilância, acompanhamento a médicos, hospitais, estabelecimentos comerciais, bancos, etc.

Nesta parte todos os depoimentos de harmonizam ou, pelo menos, não são incompatíveis.

A divergência coloca-se apenas na questão da existência de um relacionamento recíproco como marido e esposa e quanto a este verificou-se que o quadro factual de fundo não era propício à existência de uma tal relação e os depoimentos que a afirmaram não mostraram ter capacidade para gerar no tribunal essa convicção, quer porque em aspetos relevantes eram impossíveis de contradizer por outros meios de prova, não gozavam de apoio das regras de experiência e foram contrariados por outros depoimentos.

Por conseguinte, cumpre manter a decisão da matéria de facto sem alterações, salvo quanto à data referida nos factos provados n.º 5, 6 e 8 que a Ré pretende seja 2011/2012.

Esta alteração justifica-se por ser altamente provável face às circunstâncias factuais.

Vivendo o Sr. F (…) e a Ré um em frente do outro, sendo ele tio por afinidade da Ré, sendo ele pessoa idosa e carecedora de cuidados, que eram como não pode deixar de ser visíveis para qualquer vizinho, é amplamente verosímil que a Ré o ajudasse desde os anos 2011/2102.

É assim que as pessoas das nossas aldeias costumam agir, em especial as mulheres.

Por isso, feita esta constatação e tendo isso mesmo sido testemunhado pelas testemunhas indicadas pela Ré e não havendo incompatibilidade nesta parte entre os vários depoimentos será alterada a indicada data e suprimida a alínea h) dos factos não provados.

b) Matéria de facto - Factos provados

1. F (…)  faleceu a 01 de Abril de 2016, no estado de viúvo de A (…), com 87 anos de idade, e com última residência na Rua (…)– I (...) .

2. O falecido era beneficiário da C (…) n.º (…)

3. Em 13 de Abril de 2016 J (…), filho do falecido, requereu junto da C (…) o reembolso das despesas de funeral que suportou com a morte do pai.

4. Em Maio de 2016, a Ré requereu junto da C (…) as prestações por morte, alegando ter vivido em união de factos com o beneficiário F (…), em condições análogas às dos cônjuges, há mais de dois anos, tendo procedido à junção dos documentos exigidos pelo artigo 2.º-A, n.º 4, da Lei 7/2001, de 11 de Maio.

5. Por volta do ano de 2011/2012, a Ré passou a orientar as lides domésticas da casa de F (…), dando instruções a terceira pessoa que provia pela limpeza da habitação e tratamento da roupa daquele.

6. Pelo menos desde a altura referida em 5), e de forma habitual, F (…) almoçava em casa da mãe da Ré e jantava na casa deste.

7. A Ré não guardava a sua roupa e pertences em casa de F (…)

8. Pelo menos desde a data referida em 5), a Ré acompanhava habitualmente, F (…) à localidade de I (...) a fim de aquele resolver assuntos relacionados com Bancos, serviços e entidades públicas e realizar compras domésticas.

9. Cerca de dois meses antes de falecer, F (…) esteve internado na Unidade de Cuidados Continuados em I (...) .

10. Durante o período referido em 9), a Ré visitava com frequência F (…) dando-lhe apoio, carinho, inteirando-se junto do pessoal médico e de enfermagem sobre o estado de saúde do mesmo.

11. A Ré ocupou-se dos preparativos do funeral de F (…) e comunicou o seu falecimento a familiares e amigos.

12. Em vida do pai, F (…) visitava-o pelas épocas festivas, como sendo Natal, Páscoa e Verão.

Factos não provados

a) Por volta do ano de 2011/2012 até Abril de 2016, a Ré passou a partilhar com F (…) a mesma habitação, despesas e companhia um do outro.

b) Durante o período aludido em a), de forma ininterrupta, a Ré e F (…) partilharam a mesma cama, relacionando-se efetiva e sexualmente.

c) A ré e F (…) recebiam amigos comuns em casa deste último.

d) Frequentemente tomavam café com amigos e conhecidos num café ou restaurante em termas de M (...) .

e) As despesas comuns da Ré e de F (…) designadamente com a alimentação, vestuário, transportes eram suportadas por ambos, ficando a cargo do falecido o pagamento das despesas da água, gás e energia elétrica onde viviam.

f) Familiares e amigos conheciam a relação existente entre a Ré e F (…).

g) F (…) optou por esconder do filho a relação amorosa que partilhava com a Ré em virtude daquele não ter aceitado bem, numa fase inicial, a presença daquela na vida do pai.

b) Apreciação da restante questão objeto do recurso

A reanálise do aspeto jurídico da sentença estava dependente da procedência do recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto.

Como a matéria de facto não sofreu alteração de relevo, o recurso também improcederá quanto ao seu aspeto jurídico, uma vez que não vem colocada em causa a solução jurídica exarada na sentença tendo em consideração a matéria de facto ai declarada provada.

Sempre se dirá que sendo a presente ação uma ação de simples apreciação negativa ([5]), competia à Ré fazer a prova dos factos relativos ao preenchimento do conceito de união de facto, pois, nos termos do n.º1, do artigo 343.º do Código Civil, «Nas ações de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao Réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga».

No caso a Ré arrogou-se membro de uma união de facto e requereu a atribuição da respetiva pensão, tudo nos termos previstos no n.º 2, do artigo 1.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio ([6]) ([7]), onde se declara que «A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos» e no facto deste status conferir aos seus membros o «…direito a (…) e) Proteção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social e da presente lei;

f) Prestações por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional, por aplicação dos regimes jurídicos respetivos e da presente lei;

g) Pensão de preço de sangue e por serviços excecionais e relevantes prestados ao País, por aplicação dos regimes jurídicos respetivos e da presente lei» - n.º 1 do artigo 3.º.

Por sua vez, o n.º 2 do artigo 6.º desta lei determina que, «A entidade responsável pelo pagamento das prestações previstas nas alíneas e), f) e g) do artigo 3.º, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente ação judicial com vista à sua comprovação».

Foi isto o que a Autora fez ao impugnar a existência da união de facto.

Competia à Ré o ónus de provar a união de facto, mas não o conseguiu.

A alteração da matéria de facto mostra-se irrelevante na apreciação do mérito do recurso.

Cumpre, por isso, manter a sentença recorrida, que declarou não verificada a união de facto.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a sentença recorrida.

Custas pela requerente.


*

Coimbra, 25 de Setembro de 2018

Alberto Ruço ( Relator)

Vítor Amaral

Luís Cravo



[1] Sobre a estrutura da ação humana ver, por exemplo, Searle, John R. Mente Cérebro e Ciência. Lisboa: Edições 70, 2000, págs. 78-86.
[2] «Racionalizar uma acção é dar a razão do agente para ter levado a cabo aquela acção, tornando assim inteligível enquanto acção aquilo que acontece. Para tal, é sempre necessário atribuir a um agente uma intenção, e para falarmos de intenção precisamos de (pelo menos) um desejo e (pelo menos) uma crença relevante. Acções são então acontecimentos intencionais – o que distingue uma acção de um mero acontecimento é o facto de a acção poder ser descrita de um ponto de vista mentalista. Diremos, portanto, que existe uma acção se acontecimentos do mundo forem racionalizáveis a partir de crenças e desejos de um agente: certas coisas que ocorrem no mundo tornam-se inteligíveis como um fazer desse agente. A intencionalidade é assim a marca da acção…» – Susana Cadilha e Sofia Miguens. Filosofia da Acção, em Filosofia, Uma Introdução por Disciplinas, organizada por Pedro Galvão. Lisboa, 2012, Edições 70, pág. 359.

[3] Sobre esta problemática, ver do ora relator, Prova e Formação da Convicção do Juiz, 2.ª Edição. Almedina, 2016, pág. 333 e seguintes.

[4] O espaço público tem vindo a impor cuidados na linguagem utilizada quando se faz referência a qualquer questão que envolva algum tipo de comparação entre homens e mulheres, mesmo que se trate de factos históricos estabelecidos, por, inadvertidamente, se poder estar a contribuir para «perpetuar estereótipos de género» ou infringir alguma norma que protege a «igualdade de género», mas afigura-se que o que fica dito é factual e consensual e não deve ser omitido por ser necessário à exposição da motivação, não devendo ficar ocultos fatores que contribuem na realidade para formar a convicção do juiz.
[5] Neste sentido Rita Xavier: «Tratando-se do acesso a prestações sociais por morte, excecionalmente, o procedimento será meramente documental. Contudo, na medida em que tais documentos não demonstram a realidade de todos os factos pressupostos pelo benefício, a entidade responsável, tendo “fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto”, deve propor “a competente ação judicial”. A meu ver, tratar-se-á de uma ação de simples apreciação negativa, pelo que, embora o ónus da propositura da ação incumba à entidade responsável, competirá ao membro sobrevivo da união de facto comprovar os factos constitutivos do seu direito, nos termos do art. 343.º, n.º 1, do Código Civil» - O “Estatuto Privado” dos Membros da União de Facto, in Revista Jurídica Luso Brasileira, Ano 2 (2016), n.º 1, pág. 1521.
Acórdão do Tribunal da relação de Coimbra de 15-03-2012, no processo n.º 772/10.4TVPRT (Abrantes Geraldes): «…pois como se deixou consignado a acção a existir será intentada pela instituição contra o interessado se houver dúvidas acerca da existência da união de facto à data do óbito do beneficiário (suscitam-nos também dúvidas sobre qual o tipo de acção a propor nestes casos, afigurando-se-nos que deverá ser uma acção de simples apreciação negativa, com vista á declaração de que o/a interessado(a) não vivia em união de facto com o falecido, mas o tempo se encarregará de dilucidar estas questões que ora se nos colocam meramente en passant)».
Acórdão do Tribunal da relação de Coimbra de 12-12-2017, no processo n.º 292/16.4T8CTB (Isaías Pádua), «Dada a forma como o autor configurou/estruturou a presente ação - e ao pedir através dela que o tribunal declare que a ré não vivia em situação de união de facto com H..., no momento da morte deste –, é patente estarmos na presença de uma ação declarativa de simpres apreciação negativa (cfr. artº. 10º, nºs. 2 e 3 al. a), do CPC), como bem se considerou na sentença recorrida».
[6] Alterada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto e pela Lei n.º 2/2016, de 29 de fevereiro.
[7] Os artigos que forem citados no texto sem indicação de origem pertencem a esta lei.