Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
38/06.4GDCBR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
OBRIGAÇÕES FUNGÍVEIS
Data do Acordão: 11/08/2016
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – INST. CENTRAL - SEC. EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 829º-A, Nº 4 DO C. CIVIL; ARTº 716º NCPC.
Sumário: I – A sanção pecuniária compulsória visa reforçar a soberania dos tribunais o respeito pelas decisões e o prestígio da justiça e, também, favorecer a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção fungíveis.

II - Quando se trate de obrigações de pagamento a efectuar em dinheiro corrente, a sanção pecuniária compulsória, no pressuposto de que possa versar sobre quantia certa e determinada e, também, a partir de uma data exacta (a do trânsito em julgado), poderá funcionar automaticamente uma vez que o seu fim não é o de indemnizar o credor pelos danos sofridos com a mora, mas o de forçar o devedor a cumprir, reforçando-se, assim, o prestígio da justiça.

III - A sanção pecuniária compulsória prevista no nº 4 do art. 829º-A do C. Civil está disciplinada fixando o legislador de forma directa e imediata o seu montante, ponto de partida (trânsito em julgado da sentença de condenação) e funcionamento automático, prescindindo de requerimento a solicitá-la, o que decorre da interpretação do art. 716º do CPCivil.

Decisão Texto Integral:







Face à simplicidade da questão e atento o que dispõe o art. 656 do Código de Processo Civil, passa-se a conhecer do recurso através de decisão singular.

Decide-se no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

No Tribunal da Comarca de Coimbra e na execução que aí corre, sendo exequentes A... e J... e executado  V..., o tribunal de primeira instãncia proferiu o seguinte despacho:

“O Ministério Público veio em 26-11-2015 declarar não prescindir da sanção pecuniária compulsória.

Notificados os exequentes vieram alegar que a sentença dada à execução não condenou o executado a pagar qualquer quantia a título de sanção pecuniária compulsória aos exequentes pelo que não há lugar à retenção de tal quantia.

Cumpre apreciar e decidir.

Nesta matéria dispõe o art. 829º-A do C.Civ.: “1 - Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.

2 - A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.

3 - O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes iguais, ao credor e ao Estado.

4 - Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar.”

Conforme refere Almeida Costa in Direito das Obrigações, Almedina 2001 p. 995) o nº4 do art. 829-A consagra a “astreinte” legal, no sentido de que decorre directamente da lei.

Por seu lado salienta Menezes Leitão que que a sanção pecuniária compulsória aqui presente se reconduz a um adicional de juros à taxa de 5% resulta automaticamente da lei, não sendo necessária qualquer decisão judicial a estabelecê-la”.

Com efeito a sanção pecuniária compulsória visa uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais o respeito pelas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção fungíveis.

Quando se trate de obrigações ou de simples pagamentos a efectuar em dinheiro corrente, a sanção pecuniária compulsória- no pressuposto de que possa versar sobre quantia certa e determinada e, também, a partir de uma data exacta (a do trânsito em julgado) - poderá funcionar automaticamente uma vez que o seu fim não é o de indemnizar o credor pelos danos sofridos com a mora, mas o de forçar o devedor a cumprir, vencendo a resistência da sua oposição ou do seu desleixo, indiferença ou negligência, constituindo um meio intimidativo, de pressão sobre o devedor, em ordem a provocar o cumprimento da obrigação, assegurando-se, ao mesmo tempo, o respeito e o acatamento das decisões judiciais e reforçando-se, assim, o prestígio da justiça.

Nestes termos a sanção pecuniária compulsória prevista no nº4 do art. 829-A CC opera de forma automática, quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, sendo devida desde o trânsito em julgado da sentença de condenação.

No caso em apreço não tendo o Ministério Público prescindido da quantia devida ao Estado terá o agente de execução de reter quantia a título de sanção pecuniária compulsória.

Pelo exposto, sufragando a posição assumida pelo agente de execução deverá o mesmo reter a quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória”.

Inconformado com esta decisão dela interpuseram recurso os exequentes concluindo que:

...

Não houve contra alegações.

Cumpre decidir.

Fundamentação

Os factos que interessam à decisão são os constantes do relatório, nomeadamente o teor da decisão recorrida e, ainda, que exequentes na presente execução são os ora recorrentes A... e J... e executado V...;

- no requerimento de execução, nem posteriormente na execução, não foi requerido pelos exequentes o pagamento de qualquer quantia a título de sanção pecuniária compulsória.

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – a questão que se suscita na presente Apelação consiste em saber se não tendo sido peticionada no requerimento de execução pode ou não ser fixada pelo juiz sanção pecuniária compulsória nos termos do art. 829-A nº4 do CCivil, quando o Ministério Público notificado expressamente para esse efeito venha declarar que dela não prescinde.

 Estando em causa, neste recurso, essencialmente, a aplicação da sanção pecuniária compulsória em processo executivo, pelo facto de tal ter sido decidido no acórdão em crise, a verdade é que a solução a proferir deverá contemplar os vários aspectos de que se rodeia, designadamente quanto à natureza da sanção aplicada ao executado, quanto aos princípios de direito substantivo e adjectivo que regulam a aplicação de tal sanção, bem como relativamente à compatibilidade ou incompatibilidade da sua aplicação com as normas que disciplinam o processo executivo e a respectiva tramitação processual.

De imediato há que tomar em consideração que na sentença dada à execução, não houve condenação dos ora executados no pagamento de qualquer sanção pecuniária compulsória, em derradeira análise porque tal não foi peticionado.

No entanto, da sentença ali proferida resulta que estes foram condenados no pagamento de uma prestação pecuniária (claramente fungível) e não no cumprimento de qualquer prestação de facto ou de coisa (em que se poderia vislumbrar infungibilidade da prestação).

A sanção pecuniária compulsória foi contemplada pela primeira vez no nosso ordenamento pelo artigo 829.º-A do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de Junho, confessadamente importada do direito francês e da figura da “astreinte”, que se traduz numa forma de coacção ou de constrangimento indirecto criado pelos tribunais franceses a partir da publicação do Código Civil de 1804 (Código de Napoleão), ainda que sem bases legais e como uma “aplicação jurisprudencial” mas a partir da ideia segundo a qual se impunha minimizar a vulnerabilidade da pretensão formulada, em juízo, pelo titular do crédito criando multas de valor extraordinário que teriam o seu montante aumentado indefinidamente caso o réu mantivesse a recusa em cumprir a obrigação tutelada por decisão judicial [1].

Com este meio, o julgador associa à condenação principal do devedor ao adimplemento do respectivo vínculo – maxime de prestação de facto positivo ou negativo – uma penalidade ou sanção pecuniária correspondente à duração do atraso no cumprimento ou por cada violação praticada pelo obrigado.

Aparecendo, no princípio, no contexto das perdas e danos, aos poucos a figura autonomizou-se até que em 1972, por força da Lei nº 626 de 5 de Julho (em França) deixou de ser restrita ao instituto da indemnização, tendo passado o tribunal a poder ordená-la ex officio, adoptando um inquestionável cunho cominatório e coercitivo e, por conseguinte, a compleição de um meio de constrangimento destinado a impelir, constranger e forçar o cumprimento de uma obrigação judicial e a realizar o cumprimento do dever ao qual o devedor foi condenado[2]. E a partir desta autonomização como meio de assegurar a justiça, a astreinte sofreu um rápido desenvolvimento e extravasou as fronteiras do país onde ela foi concebida e constituiu-se como significativo modo de garantir o prestígio dos tribunais e compreende-se desta forma que tenha sido longamente solicitado pela doutrina portuguesa um meio de pressão sobre a voluntas do devedor dela adjacente[3].

A “sanção pecuniária compulsória é, por definição, um meio indirecto de pressão decretado pelo juiz, destinado a induzir o devedor a cumprir a obrigação a que está adstrito e a obedecer à injunção judicial”[4],a qual se analisa, “quanto à sua natureza jurídica, numa medida coercitiva, de carácter patrimonial, seguida de sanção pecuniária na hipótese de não ser eficaz na consecução das finalidades que prossegue”[5].

No nº 1 do art. 829º-A “o legislador confinou a sanção pecuniária compulsória às obrigações de carácter pessoal - obrigações de carácter intuitus personae, cuja realização requer a intervenção do próprio devedor, insubstituível por outrem - fazendo dela um processo subsidiário, aplicável onde a execução específica não tenha lugar”[6]. Em contrapartida, em incoerência com a intenção e disciplina visadas com o nº 1 do art. 829º-A, no seu nº 4 consagrou uma diferente sanção pecuniária (ainda aqui compulsória) para forçar o devedor ao cumprimento de obrigações pecuniárias, com a criação do adicional de juros à taxa de 5% ao ano, devidos desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado[7].

Isto é, “o legislador, em vez de confiar à soberania do tribunal a ordenação (a requerimento do credor) da sanção pecuniária compulsória, disciplina-a, ele próprio, fixando o seu montante, ponto de partida (trânsito em julgado da sentença de condenação) e funcionamento automático. Por isso, porque prevista e disciplinada por lei, poderá qualificar-se como sanção pecuniária compulsória legal, enquanto aquela que é ordenada e fixada pelo juiz poderá chamar-se de sanção pecuniária compulsória judicial. O espírito de ambas, porém, é o mesmo: levar o devedor a encarar as coisas a sério e a não desprezar o interesse do credor e do tribunal”[8] .

Posto isto, trataremos agora da aplicabilidade ou não da sanção pecuniária compulsória no âmbito do processo executivo[9].

Ora, porque a “introdução da sanção pecuniária compulsória veio colmatar uma lacuna existente no processo executivo, a lacuna da incapacidade de actuar in natura a obrigação infungível constante de qualquer título executivo ... não faria sentido que o juiz em processo declaratório pudesse fazer seguir a sentença de condenação de sanção pecuniária compulsória e já não pudesse decretar esta em processo executivo”[10], razões pelas quais sufragando a orientação do citado Ac. STJ de 19/04/2001, “a sanção pecuniária compulsória pode ser requerida na fase executiva da execução para prestação de facto infungível acordada em transacção homologada por sentença”.

E se assim é, em caso de prestação de facto infungível, em que a sanção pecuniária compulsória só opera a requerimento do credor, a fortiori o mesmo há-de entender-se relativamente à actuação da sanção pecuniária compulsória do nº 4 do art. 829-A, que opera de forma automática, sendo devida desde o trânsito em julgado da sentença de condenação, e que, nessa medida, se pode ter como consequência imediata - resultado necessário - da sentença que constitui o título executivo em que se fundamenta a execução [11].

No reconhecimento e aceitação da idêntica natureza das sanções pecuniárias previstas no nº 1 e no nº 4 do citado art. 829-A, e do funcionamento de modo automático da sanção pecuniária legal, a questão que se suscita e que foi debatida na jurisprudência é a de saber se pode recusar-se a possibilidade de ser aquela considerada em sede executiva, se o exequente assim não o tivesse requerido oportunamente.

Neste domínio julgou o STJ, no já citado acórdão de 23-01-2003, que na consideração de o processo executivo estar subordinado ao princípio do dispositivo (art.º 3º, n.º 1 do Código de Processo Civil) e da estabilização da instância (art.º 268º), a serem preteridos, tal implicaria actuação processual violadora, quer do princípio do contraditório (exercitável em condições normais) quer do princípio da igualdade das partes na execução (art.ºs 3º, n.º 3 e 3º-A) – que apenas se peticionado no requerimento executivo, poderia aquela sanção pecuniária compulsória prevista no referido nº 4 ser declarada e decretada[12].

Não obstante a consistência de fundamentação desse aresto, entendemos que, a partir da redacção dos nºs 2 e 3 do art. 805º do Código de Processo Civil, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 226/2008 – aplicável às acções intentadas a partir de 31 de Março de 2009, redacção que se manteve igual na reforma de 2013 (vd. art. 716 nº2 e 3) um tal entendimento, que exija requerimento do executado, não será já sustentável.

Numa excursão pelos preceitos referidos observamos que o 716 do CPCivil (antigo art. 805) dispõe que:

 “1 - Sempre que for ilíquida a quantia em dívida, o exequente deve especificar os valores que considera compreendidos na prestação devida e concluir o requerimento executivo com um pedido líquido.

2 - Quando a execução compreenda juros que continuem a vencer-se, a sua liquidação é feita a final, pelo agente de execução, em face do título executivo e dos documentos que o exequente ofereça em conformidade com ele ou, sendo caso disso, em função das taxas legais de juros de mora aplicáveis.
3
- Além do disposto no número anterior, o agente de execução liquida, ainda, mensalmente e no momento da cessação da aplicação da sanção pecuniária compulsória, as importâncias devidas em consequência da imposição de sanção pecuniária compulsória, notificando o executado da liquidação.
(…)”
.

Por seu turno, na execução de prestação de facto, e por indicação expressa da lei, o exequente tem de requerer a fixação de sanção pecuniária compulsória, que não haja sido fixada na acção declarativa, dispondo o art.868 nº 1 que: “Se alguém estiver obrigado a prestar um facto em prazo certo e não cumprir, o credor pode requerer a prestação por outrem, se o facto for fungível, bem como a indemnização moratória a que tenha direito, ou a indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação; pode também o credor requerer o pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que o devedor tenha sido já condenado ou cuja fixação o credor pretenda obter no processo executivo.”.

Ainda, o art. 874 nº 1 estabelece: “Quando o prazo para a prestação não esteja determinado no título executivo, o exequente indica o prazo que reputa suficiente e requer que, citado o devedor para, em 20 dias, dizer o que se lhe oferecer, o prazo seja fixado judicialmente; o exequente requer também a aplicação da sanção pecuniária compulsória, nos termos da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 868”.

Lendo-se no art.876 nº1: “Quando a obrigação do devedor consista em não praticar algum facto, o credor pode requerer, no caso de violação, que esta seja verificada por meio de perícia e que o juiz ordene: (…) c) O pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que o devedor tenha sido já condenado ou cuja fixação o credor pretenda obter na execução.” (os sublinhados são nossos).

Decorre pois, para nós, da conjugação e análise dos precitos referidos e como sintetiza José Lebre de Freitas, que “A liquidação pela secretaria tem também lugar no caso de sanção pecuniária compulsória (…): executando-se obrigação pecuniária a liquidação não depende de requerimento do executado, devendo ser feita oficiosamente pela secretaria, a final (art. 805-3); executando-se obrigação de prestação de facto infungível, o exequente tem de a requerer, quer já tenha sido fixada na sentença declarativa, quer o seja pelo juiz da execução.”[13].

Também a jurisprudência reflecte este entendimento tendo o STJ decidido, em Acórdão de 18-05-2006 que “Nos termos do artigo 805º, n.º 3, do Código de Processo Civil, a secretaria, no âmbito do processo de execução, pode liquidar a final a sanção pecuniária compulsória que for devida, o que significa que, mesmo que o exequente não tenha especificado esse valor no requerimento de execução, o tribunal pode oficiosamente levá-lo em consideração na decisão final com base na liquidação efectuada nos termos previstos naquele preceito.[14].

E também o diz o ac. da R.L de 20-6-2103, como importando acautelar o interesse autónomo do Estado relativo aos 50% da sanção pecuniária compulsória devida, e resultando desrazoável remetê-lo para uma nova execução, temos que merece acolhimento a solução do prosseguimento da execução – aliás determinado, quanto a outros créditos reclamados pelo M.º P.º, e com invocação do art.º 920º, n.º 2, do Código de Processo Civil, na 1ª parte do despacho recorrido – também quanto a esse crédito do Estado – aqui representado pelo M.º P.º – relativo à metade da sobredita sanção pecuniária”[15].

Em face do sobredito, entendemos que a decisão recorrida não merece censura porquanto mesmo sem ter sido requerida no requerimento de execução a sanção pecuniária compulsória prevista no nº 4 do art. 829-A do CCivil deve ser liquidada pelo agente de execução nos termos do art. 716 nº3 do CPCivil.

Aliás, a circunstância de o Estado não ser credor exequente não comporta qualquer inibição para que lhe seja liquidada essa sanção pecuniária compulsória porquanto o direito a ela decorre directamente do nº3 do art. 829-A do C.Civil o que determina que, em nosso entender, nem sequer possa o Ministério Público prescindir dela. De facto se a sanção pecuniária compulsória se propõe por um lado, apressar a satisfação do credor, pressionando o devedor a cumprir a obrigação que assumiu e, por outro lado, visa preservar a autoridade das decisões dos tribunais, não seria satisfatório nem coerente numa leitura de sistema que se deixasse nas mãos do lesado a finalidade publicista da figura, ou seja, que a salvaguarda da autoridade das decisões judiciais dependesse de requerimento do credor.

 Diferentemente, então, do que é sustentado nas conclusões de recurso, porque a sanção pecuniária compulsória prevista no nº4 do art. 829-A do CCivil não se confunde na sua natureza finalidade com a figura dos juros (mesmo que compensatórios) não se pode afirmar que ela só seja devida quando pedida expressamente pelo exequente ou que, neste contexto, o Ministério figure como subsidiário da vontade do exequente. É que, se o montante da sanção pecuniária compulsória se destina como declarado, ao credor e ao Estado em partes iguais, não pode ver-se na circunstância de na previsão legal a indicação do credor vir antes da do Estado como uma vontade do legislador em fixar qualquer subsidiariedade, até porque a repartição se fixa em igualdade e, mais que isso, porque na natureza dessa estipulação coexiste com autonomia de fundamento o interesse particular em ver apressado o cumprimento da prestação mas, também, a preservação da autoridade dos tribunais, interesse que não é obviamente sindicável pelo particular.

Acresce que este argumento funciona também para descartar o argumento dos recorrentes quando sustentam que na falta de bens suficientes para satisfação integral das duas prestações, terá de se dar primazia ao pagamento do credor visto ser este o principal, senão o único lesado, sob pena de este nada vir a receber.

Independentemente das consequências que a aplicação da lei processual em matéria de execuções possa ou não trazer ao credor, permitindo-lhe receber mais ou menos, a verdade é que essa mesma lei estabelece a prioridade e a como os pagamentos são realizados, sendo que nenhum fundamento legal existe para que, no domínio da sanção pecuniária compulsória em discussão o credor tenha de ser pago primeiro que o Estado porque é o teor narrativo da lei que impõe o pagamento em igualdade.

Questão diversa, mas que não é trazida a este recurso para decisão, é a da saber se os exequentes que não requereram a aplicação do nº4 do art. 829-A do CCivil (e em nosso entender não careciam de requerer) podem ser afastados desse pagamento por se entender que prescindiram dessa quantia, porém, julgamos que mesmo essa questão está solucionada por si mesma, uma vez que, não prevendo esse preceito que a liquidação da taxa de 5% se faça apenas em metade (em 2,5%) a favor do Ministério Público, sempre teria de considerar-se que a quantia liquidada seria sempre de repartir em partes iguais e, assim, não se colocaria nunca a questão da prioridade.

Em resumo, improcede a Apelação devendo sem mantida a decisão recorridas.

Sumário da decisão nos termos do art. 663 nº7 do CPCivil:

- A sanção pecuniária compulsória visa reforçar a soberania dos tribunais o respeito pelas decisões e o prestígio da justiça e, também, favorecer a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção fungíveis;

- Quando se trate de obrigações de pagamento a efectuar em dinheiro corrente, a sanção pecuniária compulsória, no pressuposto de que possa versar sobre quantia certa e determinada e, também, a partir de uma data exacta (a do trânsito em julgado), poderá funcionar automaticamente uma vez que o seu fim não é o de indemnizar o credor pelos danos sofridos com a mora, mas o de forçar o devedor a cumprir, reforçando-se, assim, o prestígio da justiça;

- A sanção pecuniária compulsória prevista no nº4 do art. 829-A do CCivil está disciplinada fixando o legislador de forma directa e imediata o seu montante, ponto de partida (trânsito em julgado da sentença de condenação) e funcionamento automático, prescindindo de requerimento a solicitá-la, o que decorre da interpretação do art. 716 do CPCivil;

Decisão

Pelo exposto juga-se improcedente a Apelação e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelos Apelantes sem prejuízo do beneficio de apoio judiciário de que beneficiem.

Coimbra 8 de Novembro de 2016


[1] Vd. para maiores desenvolvimentos Calvão da Silva, Cumprimento…, 375. Cfr., igualmente, Pinto Monteiro, Cláusula penal e indemnização, Coimbra, 1990, 117; Galvão Telles, Direito das obrigações, 7.ª edição, Coimbra, 448 e 449; Menezes Cordeiro, Embargos…, in Revista…, 1998, III, 1225 e Pedro de Albuquerque,  in O Direito ao cumprimento de prestação de facto, O dever de cumprir e o princípio Nemo ad factum cogi potest. Providência Cautelar, Sanção Pecuniária Compulsória e Caução, RIDB, Ano 2 (2013), nº 9  p.9008 e ss.
[2] A propósito da evolução relatada v., por todos, Pinto Monteiro, Cláusulas..., in Boletim..., XXXVIII, 182 e ss.; Calvão da Silva, Cumprimento..., 375 e 376; e acerca do carácter cominatório ou coercitivo da astreinte v., ainda, na literatura jurídica francesa, a título meramente indicativo, Kayser, L’astreinte…, in Re-vue…, 1953, 209 e ss.. 
[3] Vd. por exemplo, quanto escreviam a este respeito Vaz Serra, Responsabilidade Patrimonial, in Boletim do Ministério da Justiça, 75, 21 e ss.; e Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 3.ª edição, Coimbra, 1985, 186 nota (2). 
[4] (5) Calvão da Silva, in "Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória", Coimbra, 1995, pág. 393.
[5] Calvão da Silva, in RLJ Ano 134º, pág. 50 (em anotação ao Ac. STJ de 19/04/2001 - relator Dionísio Correia).
[6] Calvão da Silva, "Cumprimento e Sanção ...", pág. 450.
[7] Vd. ac. STJ de 23-01-2003 no proc. n.º 4173/02, in dgsi.pt
[8] Calvão da Silva, ob. cit., pág. 456. Face à incoerência sistemática denunciada quanto ao nº 4 do art. 829º-A, já se entendeu que "a sanção do adicional de 5% se aplica apenas às cláusulas penais fixadas em dinheiro e às sanções penais compulsórias decretadas pelo tribunal, nos termos prescritos no nº 1 desta disposição" (Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. II, pág. 108).
[9] Para um mais aturado estudo acerca da questão, remete-se para a acima mencionada anotação de Calvão da Silva ao Ac. STJ de 19/04/2001, in RLJ Ano 134º, págs. 43 a 64.
[10] Anotação de Calvão da Silva ao Ac. STJ de 19/04/2001, in RLJ Ano 134º, pág. 51.
[11] Acs. STJ de 05/06/97, in BMJ nº 468, pág. 315.
[12] No mesmo sentido podendo ver-se os Acórdãos da Relação do Porto, de 05-07-2006 no proc. 0620782,
e da Relação de Évora, de 03-04-2012 in proc.  280.06.8TBSRP-B.E1, in dgsi.pt



[13] In “A Acção Executiva Depois da Reforma da Reforma”, 5ª ed., Coimbra Editora, 2009, pág. 98 e no mesmo sentido Amâncio Ferreira, in “Curso de Processo de Execução”, 11ª ed., Almedina, 2009, pág. 128.
[14] In proc. 06S384, www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[15] No proc.23387/10.2YYLSB-B.L1-2, www.dgsi.pt/jstj.nsf, esclarecendo-se que o art. 920 ali referido corresponde agora, com igual redacção, ao art. 850.