Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1695/18.4T8GRD-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: PLANO DE INSOLVÊNCIA
CRÉDITOS DA FAZENDA NACIONAL
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA A GUARDA – JUÍZO LOCAL CÍVEL DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 196º, Nº 1 DO CIRE; 196º E 199º DO CPPT.
Sumário: I – O regime do art.º 196º, nº 1 do CIRE não deve prevalecer sobre o regime fiscal dos art.ºs 196º e 199º do CPPT, nem os créditos da Fazenda Nacional podem, sem o consentimento desta, ser afectados pelo plano de insolvência, através da imposição de um plano de pagamento em prestações (especialmente em número superior ao estabelecido no art. 196º do CPPT), sendo que também é necessário o consentimento da Fazenda Nacional para conceder moratória no pagamento da obrigação tributária (em contrário do disposto nos art.s 85°, n° 3 do CPPT e 36°, n° 3, da LGT).
II - Decorre do texto da lei tributária, em conformidade com o disposto nos números 5 e 6 e do art.º 196º do CPPT, que está expressamente previsto para o processo de insolvência do devedor o pagamento da dívida tributária até 150 prestações não inferiores a 10 unidades de conta cada.
Decisão Texto Integral:









Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Nos autos de insolvência de J...- UNIPESSOAL, LDA, a correr termos pelo Juízo Local Cível da Guarda, Comarca da Guarda, foi aquela sociedade declarada insolvente por sentença proferida a 22.10.2018.

Na sequência de deliberação da Assembleia de Credores de apreciação do relatório, foi determinada a suspensão da liquidação e concedido o prazo de 30 para a devedora apresentar o plano de insolvência (fls. 159 e ss.) uma vez que esta manifestara já a respectiva intenção.

A 25.10.2018 apresentou então a devedora uma proposta de plano, pelo que foi designada data para continuação da Assembleia de Credores, por despacho de fls. 178 e ss., datado de 22.03.2019.

Realizou-se a Assembleia de Credores a 16.05.2019, e aí foram introduzidas alterações ao plano.

Nos termos e com os fundamentos constantes do despacho de fls. 202, onde, entre o mais, foi efectuada a contagem dos votos nos exactos termos aí constantes, considerou-se aprovada a proposta de plano de insolvência apresentada, sendo que o único voto contra foi do credor Fazenda Nacional.

Imediatamente publicada a deliberação de aprovação do plano de insolvência nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 213º e 75º do C.I.R.E., no decurso do prazo de 10 dias sobre a data da publicação, não foi requerida a não homologação do plano. 

A final foi prolatada sentença que homologou o plano de insolvência constante de fls. 170-177 com as alterações introduzidas na sobredita Assembleia de Credores de 16 de Maio de 2019.

Inconformado, recorreu o MºPº em representação da Fazenda Nacional, recurso admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

A apelação.

Nas conclusões, com as quais encerra a respectiva alegação, a recorrente Fazenda Nacional, representada pelo MºPº, suscita como única questão a que se prende com o saber se deveria ter sido recusada a homologação do plano de insolvência aprovado por ter sido infringida a regra da indisponibilidade dos créditos tributários, desse modo se violando os art.ºs 30 e 36 da LGT e 85, 196 e 199 do CPPT.

Contra-alegou a insolvente, batendo-se pela confirmação da sentença recorrida.

Apreciando.

São os seguintes os pressupostos de facto relevantes (para além daqueles que defluem do relatório que antecede):

A - O plano de insolvência que foi submetida a votação é o seguinte:

Segurança Social [crédito de € 87.871,04, representando 36,77%].

Atenta a indisponibilidade do crédito tributário, nos termos do artigo 30º da Lei Geral Tributária, será efectuado o pagamento através de um plano prestacional em reversão em nome da empresa, para a totalidade da dívida, a ser liquidado em 150 prestações mensais no âmbito da execução fiscal. Prestações, iguais e sucessivas, acrescido de juros vincendos até à data do respectivo pagamento, vencendo-se a primeira no mês ao trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Recuperação. Crédito Reconhecido Perdão custas Crédito final Prestações 87.871,04€ 1.319,08€ 86.551,96€ 577,00 € Garantias: Dispensa de garantia, nos termos do artigo 52.º, n.º 4.

Autoridade Tributária [crédito de € 43.648,00, representando 18,27%].

Atenta a indisponibilidade do crédito tributário, nos termos do artigo 30º da Lei Geral Tributária, será efectuado o pagamento da totalidade do capital reclamado em 41 prestações mensais, postcipadas, iguais e sucessivas, acrescido de juros vincendos até à data do respetivo pagamento, vencendo-se a primeira prestação até ao final do mês seguinte da Assembleia de Credores que aprovar o Plano de Recuperação. Capital Reconhecido Nº prestações Unidades conta Prestações 41.269,42€ 41 10 / mês 1.020,00€ Nota: Atualmente, com apenas uma viatura a distribuir e a vender, a empresa tem grande dificuldade em cumprir com pagamentos mensais muito elevados, colocando à vossa consideração esse fato, pois além do cumprimento dos pagamentos do plano à Autoridade Tributária haverá prestações a cumprir com a Segurança Social, com o banco CCAM, além de todos os outros impostos, e despesas a pagar mensalmente. A viatura acidentada continua parada pois encontra-se penhorada à Autoridade Tributária, ficando impedida de ser vendida ou trocada por outra, obrigando-nos a encontrar recursos para a aquisição de outra em substituição. Garantias: Dispensa de garantia, nos termos do artigo 52.º, n.º 4.

Banca - Banco C... [crédito de 101.249,25, representando € 42,35%].

a) Pagamento de 12 prestações de 1.500,00€ cada uma, em prestações mensais, iguais e sucessivas, sendo que a primeira prestação vencer-se-á após 180 dias do mês seguinte ao trânsito em julgado da sentença de homologação do plano; b) As restantes prestações, será efectuado o pagamento do capital reclamado remanescente em prestações mensais, postecipadas, iguais e sucessivas, no valor de 400,00€ cada uma, vencendo-se a primeira no mês seguinte do termo do pagamento da 12.ª prestação mencionada no item a) acima. Crédito Reconhecido 12 Prestações Restantes Prestações 101.249,25€ 1.500,00€ 400,00€ Nota: O período de carência solicitado para iniciar o pagamento das 12 prestações, é fundamental para a empresa face à ausência da outra viatura de distribuição. Durante esse período a empresa poderá manter a actividade e em tempo adquirir outra viatura para distribuição, o que a partir daí auxiliará em muito no cumprimento das obrigações do plano aumentando a facturação da empresa. Garantias: Hipoteca de imóvel a favor da C... conforme processo executivo.

b) Funcionários:

E... [crédito de € 611,77, representando 0,26%].

Pagamento do valor dos ordenados em atraso em prestações mensais e sucessivas, limitado a 120 dias após o trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de recuperação. Ordenados em atraso 611,77€ Prestações aproximadas 153,00€ Mês A primeira prestação vence-se a 30 dias após o trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de recuperação. Nota: Os pagamentos dos ordenados em atraso conforme créditos reconhecidos também podem ser amortizados semanalmente, à medida de disponibilidade de caixa da empresa, até a totalidade do seu pagamento antes mesmo de se atingir o prazo limite.

B... [crédito de € 1.469,25, representando 0,61%].

Pagamento do valor dos ordenados em atraso em prestações mensais e sucessivas, limitado a 120 dias após o trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de recuperação. Ordenados em atraso 1.469,25€ Prestações aproximadas 368,00€ Mês A primeira prestação vence-se a 30 dias após o trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de recuperação. Nota: Os pagamentos dos ordenados em atraso conforme créditos reconhecidos também podem ser amortizados semanalmente, à medida de disponibilidade de caixa da empresa, até a totalidade do seu pagamento antes mesmo de se atingir o prazo limite.

H... [crédito de € 1.204,60, representando 0,50%].

Pagamento do valor dos ordenados em atraso em prestações mensais e sucessivas, limitado a 120 dias após o trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de recuperação. Ordenados em atraso 1.204,60€ Prestações aproximadas 301,15€ Mês A primeira prestação vence-se a 30 dias após o trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de recuperação. Nota: Os pagamentos dos ordenados em atraso conforme créditos reconhecidos também podem ser amortizados semanalmente, à medida de disponibilidade de caixa da empresa, até a totalidade do seu pagamento antes mesmo de se atingir o prazo limite.

H... [crédito de € 2.904,00, representando 1,22%].

Acordo de cessação do contrato de trabalho com pagamento do valor atual dos ordenados em atraso em 8 prestações mensais, iguais e sucessivas, a iniciar em Fevereiro de 2019. Ordenados em atraso 2019 2.904,00 8 prestações 363,00€ mês.

B – Votaram contra o plano o credor Fazenda Nacional (18,27%), a favor todos os restantes credores (81,68%), tendo-se abstido o credor E... (0,26%).

 

O dissídio da apelante plasmado nas inerentes conclusões recursivas cinge-se ao problema já por diversas vezes colocado a esta Relação concernente à invocada violação de normas imperativas sobre o pagamento dos créditos tributários, normas que essencialmente se reconduzem ao disposto nos art.ºs 30, nº 2 e 3 e 36, nº 3 da LGT.

Vejamos.

Já num acórdão proferido na apelação nº 41/15.3T8GVA.C1, este mesmo colectivo - em que o ora relator interveio nessa mesma qualidade – tomou partido sobre este mesmo tema com a seguinte visão:

“Na verdade, em 1 de Janeiro de 2011, entrou em vigor a Lei nº 55-A/2010 de 31.12 (Lei do Orçamento do Estado), que, no seu art.º 123º, aditou ao nº 2 do art. 30º da LGT – no qual se estatui que “ o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária” – um nº 3 com a seguinte redacção: “O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial”. Ao mesmo tempo, estabeleceu no art.º 125, sob a epígrafe “ disposições transitórias no âmbito da LGT”, o seguinte: “ O disposto no nº 3 do artigo 30 da LGT é aplicável, designadamente, aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objecto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer créditos”. Portanto, ao estabelecer no art.º 125 que o disposto no nº 3 do art.º 30 da LGT era “aplicável, designadamente, aos processos de insolvência”, o legislador evidenciou expressa intenção de fazer prevalecer o art.º 30, nº 2 da LGT sobre o CIRE e de evitar a sua derrogação no âmbito do processo de insolvência. O que significa que, a partir de 1 de Janeiro de 2011, deixou de ser possível em processo de insolvência, a redução ou extinção dos créditos tributários nos planos de insolvência ainda não homologados à data (a referência da lei a homologação só pode entender-se como referida aos referidos planos).

A lei não se pronunciou, no entanto, claramente, sobre o regime de pagamento em prestações nem sobre a concessão de moratória. Mas o pagamento em prestações e a concessão de moratória estabelecida no plano de revitalização estão também cobertos pelo princípio da indisponibilidade dos créditos tributários. Embora o art. 30, nº 2 da LGT relacione a indisponibilidade do crédito tributário apenas com a sua redução ou extinção não seria coerente que se proclamasse a indisponibilidade do crédito tributário e se permitisse, ao mesmo tempo, a moratória ou o pagamento prestacional. Aliás, é nesse sentido – de que também não é possível conceder moratória e o pagamento prestacional contra a vontade do Estado – que se vem pronunciando a jurisprudência (cfr., v.g., Ac. STJ de 10.5.2012, Acs. R.C. de 29.11.2011 e de 11.12.2012, Acs. R.P de 11.9.2012 e de 15.11.2012 e Ac. R.G. de 4.10.2011, todos em www.dgsi.pt) e a doutrina (v. Catarina Serra, citada pelo Ac. STJ de 13.11.2014, Rel. cons Fonseca Ramos, no mesmo site).

Desta forma, o regime do art.º 196, nº 1 do CIRE não deve prevalecer sobre o regime fiscal dos art.ºs 196 e 199 do CPPT, nem os créditos da Fazenda Nacional podem, sem o consentimento desta, ser afectados pelo plano de insolvência, através da imposição de um plano de pagamento em prestações (especialmente em número superior ao estabelecido no art. 196º do CPT), sendo que também é necessário o consentimento da Fazenda Nacional para conceder moratória no pagamento da obrigação tributária (em contrário do disposto nos art.s 85°, n°. 3 do CPPT e 36°, n.° 3, da LGT).

Contudo, inexistindo expressão de tal vontade do Estado, a solução que aqui tem vindo a ganhar maior adesão é da ineficácia da homologação do plano que introduza as mencionadas alterações relativamente aos créditos ilegalmente atingidos (cfr., designadamente, o Ac. do STJ de 1.04.2014, disponível em www.dgsi.pt). Entendemos, todavia, que não será de optar pela ineficácia mas antes pela recusa de homologação do plano sempre que a exequibilidade imediata dos créditos indisponíveis possa fazer perigar os objectivos que com a sua aprovação os credores visaram prosseguir, nomeadamente quando esse plano imponha consideráveis sacrifícios a outros créditos garantidos, como é o caso dos trabalhadores”.

Estávamos então em meados de 2016 e a arquitectura jurídica da questão não se modificou substancialmente.

Ainda assim, no balanço da jurisprudência que a este respeito se vem produzindo, assiste-se a uma tendência significativa para a modelação da interpretação dos aludidos normativos[1], com vista a possibilitar uma actuação proporcional e equilibrada da regra da indisponibilidade – vigorosa e quase absolutamente enfatizada pela lei orçamentista de 2011 – uma vez que no processo de insolvência sempre se jogam interesses cruzados que se devem compatibilizar com o objectivo mais fundo – e, verdadeiramente, o comando essencial do legislador – que é o de salvar o futuro dos devedores/insolventes, sejam ou não empresários – evidentemente associado ao dos respectivos credores – fortalecendo por essa via o tecido económico nacional e contribuindo para um imprescindível nível de arrecadação de receita fiscal.

Terá sido com esta perspectiva – ao que pensamos – que, em torno deste mesmo tema, no acórdão desta Relação de 30 de Abril de 2019, relatado pelo aqui 2º adjunto, proferido na apelação nº 2835/18.9T8CBR-E. C1, se escreveu a dado passo:

“ (…) A propósito do “plano de insolvência” – convenção ou negócio jurídico próprio do direito da insolvência, previsto no título IX do CIRE – atribuiu o legislador a força jurídica especial de afectar os direitos dos credores; uma vez que se pode através dele impor aos credores – aparentemente a todos os credores, com excepção das entidades referidas no art. 196.º/2 do CIRE (em que se incluem o BCE e os Bancos Centrais dos Estados membros) – uma compressão generalizada das suas faculdades típicas.

O que – por tal “compressão” afectar todos os credores e por, por outro lado, não constarem os créditos do Estado, das Instituições de Segurança Social e de outras entidades públicas sujeitas a regimes especiais da expressa ressalva constante do referido art. 196.º/2 do CIRE – de imediato levou a que se passasse a problematizar a questão da sujeição ou não do plano de insolvência à regra da “indisponibilidade” dos créditos tributários (estabelecida nos art. 30.º/2, 36.º/2 e 3 da LGT); ou seja, de imediato se passou a discutir se as dívidas fiscais e as dívidas à segurança social podiam ser ou não comprimidas pelo plano de insolvência, pese embora a referida regra da “indisponibilidade”, sem o respectivo acordo do Estado ou da Segurança Social.

Questão em que o STJ se veio a inclinar, maioritariamente, no sentido afirmativo, ou seja, no sentido de ser possível a compressão; para o que se argumentou não existir, no caso do plano de insolvência prever perdões, reduções ou moratórias no pagamento das dívidas fiscais e da segurança social, violação das normas fiscais imperativas por vontade das partes ou dos credores, mas sim a necessidade de observar um regime especial criado pelo próprio legislador (consagrando-se a igualdade de tratamento para todos os credores do insolvente e prevendo-se a possibilidade dos créditos do Estado serem despojados de privilégios, mesmo sem a sua aquiescência, inexistindo assim violação de qualquer princípio constitucional, nomeadamente o estabelecido no art. 103.º/2 do CRP), sendo por isso legítimas, no âmbito do plano de insolvência, quaisquer alterações aos créditos do Estado ou da Segurança Social mesmo, sem o consentimento destes.

Foi pois neste contexto e encadeamento que surgiu e que devem ser “lidos” os referidos art. 123.º e 125.º da Lei do Orçamento de 2011, que no fundo vêm dizer que a regra geral tributária constante do art. 30.º/2 – que estabelece a indisponibilidade do crédito tributário e que diz que só no respeito pelos princípios da igualdade e da legalidade tributárias o mesmo poderá ser comprimido – não é alterável por uma qualquer legislação ou regime especial; que no fundo vêm alargar o alcance da protecção dos créditos tributários.

Mais, para que não houvesse lugar a dúvidas – ou veleidades interpretativas – como que se “blindou” a prevalência da regra da indisponibilidade da lei geral tributária sobre qualquer legislação especial com a introdução duma disposição transitória em que se “advertiu” o intérprete para a aplicação/observância de tal prevalência nos processos de insolvência.

Enfim, por mais pertinentes e racionais que sejam os argumentos contrários – efectivamente, não se alcança o mérito do Estado/legislador que impõe aos particulares um regime de excepção, obrigando-os a um plano de insolvência que inclui o perdão ou a redução dos seus créditos sem ou contra o seu acordo, e que, ao mesmo tempo, se “abstém de contribuir para a prossecução dos fins que visou atingir com o processo de insolvência, mantendo intocáveis os seus créditos e impondo aos demais credores todo o esforço de recuperação do insolvente” – não padecendo a lei (neste caso, a Lei 55-A/2010) de patente inconstitucionalidade, impõe-se (cfr. 203.º da CRP e 4 do EMJ), como sempre, respeitá-la e aplicá-la.

Há, é certo, alguma unanimidade em considerar-se a “indisponibilidade” do crédito tributário – nos termos aparentemente inflexíveis impostos pela Lei do Orçamento de 2012 – como contraditória e inconciliável com o reforço das medidas de revitalização e o incentivo legal à aprovação de plano de recuperação de empresas insolventes ou em situação económica difícil; há acordo em dizer que não se justifica manter o credor tributário totalmente à margem dos deveres de cooperação e solidariedade económica e social que devem recair sobre todos os credores, no sentido de possibilitar a recuperação da empresa e evitar o seu encerramento e as consequências económicas que tal pode gerar, nomeadamente, fomentar a insolvência de outras empresas, o acréscimo de desemprego, entre outras consequências nefastas para a economia; todos dizem que o legislador já devia ter “deslindado” esta desarticulação de objectivos e de diplomas legais.

Com o devido respeito pelas soluções já encontradas pelo nosso mais Alto Tribunal, uma adequada ponderação dos interesses que a questão convoca, tendo em conta os fins que as leis falimentares visam (recuperação de empresas) e, por outro lado, o interesse público na arrecadação das receitas fundamentais à preservação e desenvolvimento do Estado Social (o dever geral que todos temos de contribuir para as receitas suficientes para fazer face às necessidades colectivas), tem que permitir, no respeito pelo princípio da proporcionalidade, uma interpretação, em certos casos, restritiva dos art. 30.º/2 e 3, 36.º/3 da LGT; uma interpretação que restrinja o seu pleno campo de aplicação à relação tributária e que permita, em certos casos de confronto com a legislação especial do direito falimentar, uma interpretação restritiva.

Ponderando tudo adequada e proporcionalmente, desde que a intervenção nos créditos do Estado não evidencie uma modificação injusta e desproporcional – tendo em conta o somatório dos créditos dos particulares e a medida em que eles abdicam, visando a recuperação da empresa pré-insolvente – entendemos que será de admitir que o “Plano” possa incluir alguma modificação dos prazos de pagamento ou das taxas de juros (ou mesmo, em casos muito extremos, desde que devidamente justificado/explicado, uma moratória e o perdão ou redução do valor do capital) dos créditos da AT ou da Seg. Social; desde que tal “Plano” também inclua, quer uma cláusula idêntica à do art. 218.º/1/b) do CIRE (nos termos da qual, sendo posteriormente declarada a insolvência do devedor, a “intervenção” no crédito fique sem efeito), quer uma cláusula “de salvo regresso de melhor fortuna”.

Em suma, tudo reside em saber se, em concreto, a imposição ao Estado da abertura de uma ou mais “brechas” nas regras da indisponibilidade tributária se mostra razoável e equilibrada, sendo para tanto de avaliar de tal sacrifício não é desproporcional quando confrontado com o tratamento dado aos demais credores.

Mas bem pode suceder não se verifique nenhuma “brecha”.

É o que, apesar de tudo, julgamos suceder na situação que agora é alvo da insurgência recursiva.

Na verdade, no caso vertente, a recorrente Fazenda Nacional limita-se a rebelar-se contra o que entende ser o número excessivo das prestações para o pagamento do respectivo crédito (número que foi de 41), no quadro do plano aprovado e homologado contra o qual votou.

Ora o art.º 196 do CPPT estatui para o que epigrafa de“ Pagamento em prestações e outras medidas” o seguinte regime:

“1 - As dívidas exigíveis em processo executivo podem ser pagas em prestações mensais e iguais, mediante requerimento a dirigir, até à marcação da venda, ao órgão da execução fiscal.

2 - O disposto no número anterior não é aplicável às dívidas de recursos próprios comunitários e às dívidas resultantes da falta de entrega, dentro dos respectivos prazos legais, de imposto retido na fonte ou legalmente repercutido a terceiros, salvo em caso de falecimento do executado.

3 - É excepcionalmente admitida a possibilidade de pagamento em prestações das dívidas referidas no número anterior, sem prejuízo da responsabilidade contra-ordenacional ou criminal que ao caso couber, quando:

a) O pagamento em prestações se inclua em plano de recuperação no âmbito de processo de insolvência ou de processo especial de revitalização, ou em acordo sujeito ao regime extrajudicial de recuperação de empresas em execução ou em negociação, e decorra do plano ou do acordo, consoante o caso, a imprescindibilidade da medida, podendo neste caso haver lugar a dispensa da obrigação de substituição dos administradores ou gerentes, se tal for tido como adequado pela entidade competente para autorizar o plano; ou

b) Se demonstre a dificuldade financeira excecional e previsíveis consequências económicas gravosas, não podendo o número das prestações mensais exceder 24 e o valor de qualquer delas ser inferior a 1 unidade de conta no momento da autorização.

4 - O pagamento em prestações pode ser autorizado desde que se verifique que o executado, pela sua situação económica, não pode solver a dívida de uma só vez, não devendo o número das prestações em caso algum exceder 36 e o valor de qualquer delas ser inferior a 1 unidade de conta no momento da autorização.

5 - Nos casos em que se demonstre notória dificuldade financeira e previsíveis consequências económicas para os devedores, poderá ser alargado o número de prestações mensais até 5 anos, se a dívida exequenda exceder 500 unidades de conta no momento da autorização, não podendo então nenhuma delas ser inferior a 10 unidades da conta.

6 - Quando, para efeitos de plano de recuperação a aprovar no âmbito de processo de insolvência ou de processo especial de revitalização, ou de acordo a sujeitar ao regime extrajudicial de recuperação de empresas do qual a administração tributária seja parte, se demonstre a indispensabilidade da medida, e ainda quando os riscos inerentes à recuperação dos créditos o tornem recomendável, a administração tributária pode estabelecer que o regime prestacional seja alargado até ao limite máximo de 150 prestações, com a observância das condições previstas na parte final do número anterior.

7 - Quando o executado esteja a cumprir plano de recuperação aprovado no âmbito de processo de insolvência ou de processo especial de revitalização, ou acordo sujeito ao regime extrajudicial de recuperação de empresas, e demonstre a indispensabilidade de acordar um plano prestacional relativo a dívida exigível em processo executivo não incluída no plano ou acordo em execução, mas respeitante a facto tributário anterior à data de aprovação do plano ou de celebração do acordo, e ainda quando os riscos inerentes à recuperação dos créditos o tornem recomendável, a administração tributária pode estabelecer que o regime prestacional seja alargado, até ao limite máximo de 150 prestações, com a observância das condições previstas na parte final do n.º 5.” 

Decorre do texto da lei tributária, em conformidade com o disposto nos números 5 e 6 e do art.º 196 do CPPT, que está expressamente previsto para o processo de insolvência do devedor o pagamento da dívida tributária até 150 prestações não inferiores a 10 unidades de conta cada.

Ora o plano de insolvência da devedora não ultrapassa tais limites.

Pelo que o recurso soçobra inexoravelmente.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

                              Coimbra, 10 de Dezembro de 2019

                                                                         


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[1] Que poderá não ser catalogada de uma clássica “interpretação restritiva”. Para tanto basta considerarmos que a lei orçamentista de 2011 não alargou efectivamente  as regras de indisponibilidade à execução universal, dado que não revogou nem alterou o campo de aplicação da lei tributária, nomeadamente no que toca ao art.º 1º da LGT, onde se afirma que todas as normas desta lei respeitam a uma relação jurídica tributária singular.
Na realidade, dispõe-se no mencionado art.º 1º, nºs 1 e 2:
“1 - A presente lei regula as relações jurídico-tributárias, sem prejuízo do disposto no direito comunitário e noutras normas de direito internacional que vigorem directamente na ordem interna ou em legislação especial.
2 - Para efeitos da presente lei, consideram-se relações jurídico-tributárias as estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas”.

Salvo o respeito devido, poder-se-ia falar aqui de um cenário de uma interpretação quase ultra legem dos normativos dos art.ºs 30, nº 2 e 36, nºs 2 e 3 da LGT, na medida em que não seria apenas a relação tributária entre a administração e sujeito passivo da obrigação tributária, em si própria, que então estaria em causa. Seria antes a interacção complexa entre os vários direitos de crédito e as correspondentes obrigações que se jogam na discussão e aprovação do plano, interacção que pode até sacrificar em grande medida a garantia patrimonial dos créditos tributários.