Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
314/12.7TBTBU.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: CONTRATO ATÍPICO
DOAÇÃO
INCUMPRIMENTO
PROVA
Data do Acordão: 02/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - TÁBUA - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 405, 432, 790, 940, 963 CC
Sumário: 1.- Uma doação, ainda que com encargos, pressupõe a gratuidade e um espirito de liberalidade.

2. -Sendo a prestação e a contraprestação de valor sensivelmente equivalente, não podemos falar em doação, mas num contrato inominado atípico.

3.- O incumprimento definitivo por uma das partes, dá à outra o direito à resolução do contrato e à restituição do recebido.

4.-As dificuldades de prova respeitantes a factos difíceis de demonstrar, como o são as intenções, podem ser ultrapassadas mediante a atenuação do grau de prova exigível ao onerado para que determinado facto seja dado como provado, recorrendo-se a factos indiciários, para deles se presumir o facto a provar.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

A (…) instaurou a presente ação de condenação sob a forma de processo ordinário contra N (…) e esposa, H (…),

alegando, em síntese:

o autor e a sua esposa (falecida em 27.11.2011) eram um casal já idoso que vivia sozinho e sem filhos e a partir do ano de 2008 criou-se uma relação de proximidade com os Réus;

a partir de Março de 2010, o Autor (e a falecida esposa) combinaram com os Réus que estes prestariam auxílio remunerado àqueles, apoiando-os nas suas necessidades, como idas às compras, ao médico, ao centro de saúde;

na sequência do convívio existente, o Autor e os Réus compraram um trator, em comum, pelo qual o Autor pagou €.13.500,00.

acordaram com os Réus entregar-lhes a quantia de €.15.000,00 para que estes construíssem um anexo contíguo à sua habitação, onde o próprio e a esposa passariam a habitar na companhia e com o apoio dos Réus, que lhes prestariam os cuidados alimentares, de saúde e higiene necessários e até ao óbito;

nessa sequência, em Fevereiro de 2011, transferiu €.15.000,00 para a conta dos Réus e os Réus construíram o dito anexo para onde o Autor e a esposa iriam habitar.

ainda no início do ano de 2011, o Autor entregou aos Réus um veículo automóvel de marca Citroen avaliado em €.12.500,00;

o Autor e a esposa continuaram a residir na sua habitação até ao óbito da esposa, sendo que os Réus não asseguraram qualquer cuidado ao Autor até 17.11.2011, data em que deu entrada no lar.

como os Réus não cumpriram o acordado, está prejudicado numa quantia de €.41.000,00, pela qual os Réus são responsáveis, sendo que a conduta dos Réus também causa ao Autor tristeza e transtorno, danos morais esses que merecem a tutela do direito e que também devem ser reparados pelos Réus.

Conclui, pedindo que:

1 – Se declare o incumprimento do vínculo contratual acordado entre Autor (a falecida esposa) e Réus em 16 de Fevereiro de 2011, segundo o qual os Réus cuidariam dos primeiros, prestando-lhes cuidados de alimentação, higiene pessoal, conforto e limpeza e medicamentosos e de saúde, bem como apoio e companhia a prestar em anexo construído em espaço adjacente à casa de habitação dos Réus, sita no lugar das (...) , freguesia e concelho de Tábua, mediante o pagamento dos Autores da construção do dito anexo e entrega dos valores referentes a um trator e veículo Citroen, conforme referido nos artigos 1.º a 45.º da petição inicial, condenando os Réus a entregar ao Autor a quantia total de €.41.00,00, a título de prejuízo patrimonial causado com o incumprimento, e ainda que condene os Réus no pagamento ao Autor de uma compensação por danos morais no valor de €.1.500,00 (mil e quinhentos euros).

2 - A título subsidiário, declare o enriquecimento sem causa dos Réus e o inerente empobrecimento do Autor, conforme teor dos artigos 45º. a 50.º da petição inicial, condenando os Réus a restituir ao Autor as seguintes quantias:

a) €.13.500,00 (treze mil e quinhentos euros) referente ao valor do trator;

b) €.15.000,00 (quinze mil euros) referente à transferência bancária para construção do anexo; e

c) €.12.500,00 (doze mil e quinhentos euros) referente ao valor do veículo Citroen; no valor total de €.41.000,00 (quarenta e um mil euros).

Os Réus contestam a presente ação, por impugnação, alegando, em síntese que os 15.000,00 € lhes foram doados pelo autor e pela sua falecida esposa para os compensar dos serviços prestados, nomeadamente obras realizadas no telhado, portões, garagem e galinhos da casa do Autor e tempo despendido com a realização das despesas de transporte, duas vezes por semana, durante 7 anos e pagamento de transporte para as sessões de fisioterapia, valor esse que os Réus aceitaram; iniciaram a construção do anexo no início de 2011, mas não concluíram as mesmas, como era sua pretensão, porque entretanto faleceu a esposa do Autor e porque o Autor preferiu ser acolhido no Lar, situação em que se encontra.

Concluem pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.

Foi proferido despacho saneador que julgou a petição inicial parcialmente inepta no que concerne ao pedido de condenação no pagamento de €.13.500,00 relativos ao trator e, consequentemente, absolveu os Réus quanto pedido de condenação no pagamento de €.13.500,00, quer a título principal, quer a título subsidiário.

Na sessão da audiência de julgamento, Autor e Réus chegaram a acordo quanto ao veículo automóvel de marca Citroen, desistindo o autor do pedido, nessa parte, desistência parcial do pedido aí foi homologada por sentença.

Foi proferida sentença a julgar a ação improcedente, absolvendo os réus do pedido.

Não se conformando com a mesma, o autor dela interpôs recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem por súmula[1]:

(…)

Os réus apresentaram contra-alegações, defendendo a manutenção do decidido.
Cumpridos que foram os vistos legais, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo[2] –, as questões a decidir são as seguintes.
1. Nulidade da decisão, nos termos do art. 615º, nº1, als. b) e d), do CPC.
2. Impugnação da matéria de facto.
3. Se é de alterar o decidido.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Nulidade da decisão.

Alegando o apelante que “a decisão final, salvo o devido respeito, não manifesta quer nos factos provados quer nos factos não provados quer na motivação da matéria de facto, a existência de um raciocínio crítico da prova produzida quanto a todas as testemunhas ouvidas pelo tribunal, designadamente os 3 técnicos sociais, (…)”, conclui que a sentença padece de nulidade nos termos e para efeitos do art. 615º, nº1, alíneas b) e d), do CPC.

As irregularidades previstas na al. b) – falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito – e na alínea d), do art. 615º do CPC – quando deixe de pronunciar-se sobre questões que deva apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimentos –, nada têm a ver com eventuais deficiências na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e, muito menos, com discordâncias quanto ao sentido final de tal decisão.

As invocadas irregularidades, ainda que se verificassem, não conduziriam à nulidade da decisão, pelo que se tem por verificada tal nulidade.

2. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Com a sua impugnação, pretende o autor ver alterada a resposta dada pelo tribunal a quo às als. a), b) e c) d, dos Factos Não Provados com o seguinte teor:
a) Em Fevereiro de 2011, o Autor e a sua esposa acordaram com os Réus, entregarem aos mesmos a quantia de €.15.000,00 a que se alude em 14), para que estes construíssem o anexo referido em 16).
b) Como contrapartida do apoio referido em 17), os Réus fariam seu o dito anexo.
c) O comportamento dos Réus descrito em 19) e 20) causou grande tristeza, irritação e transtorno ao Autor.
O juiz a quo justificou pelo seguinte modo, a resposta negativa por si dada a tais matérias:
“No que concerne aos factos dados como não provados em a), b) e e), o tribunal não viu produzida qualquer prova suficientemente segura e convincente dos mesmos, motivo qual foram dados como não provados. Da prova produzida não ficou clara qual a motivação do Autor, e da falecida esposa, na entrega dos €.15.000,00 aos Réus. Não se provou, com certeza, que o dinheiro foi entregue para que os Réus construíssem o anexo onde o Autor e a esposa passariam a residir, nem se provou com segurança, que foi uma doação para pagamento dos trabalhos prestados pelos Réus. Nenhuma testemunha tinha conhecimento direto dos motivos subjacentes à transferência dos €.15.000,00, sendo que os depoimentos foram todos muito vagos e imprecisos. F (…) afirmou que o Autor, desde que foi para o lar, que costuma queixar-se que foi roubado, que lhe tiraram o dinheiro, que foi um senhor lá da aldeia. Por sua vez, A (…) também referiu que o Autor lhe disse que não tinha dinheiro, que lho tiraram. E também a testemunha A (…) afirmou que o Autor se queixava que o N (…) lhe devia…emprestou…para obras, sendo que nunca lhe falou de qualquer quantia.
Conjugando e analisando criticamente todos os depoimentos das testemunhas, com a prova documental, os depoimentos de parte, à luz das regras da lógica e da experiência comuns, não é possível dar por provado, com segurança, qual a motivação que esteve subjacente à entrega/transferência dos €.15.000,00, nem a versão do Autor, nem a versão dos Réus e por esse fundamento foram ambas dadas como não provadas.
Quanto aos factos dados como não provados em c), d) e f), verificou-se uma situação de total ausência de prova dos mesmos (não valendo aqui, obviamente, o depoimento de parte do Réu quanto ao facto referido em f) porque se trata de um facto favorável, nos termos do disposto no art. 352.º do Código Civil. Concretamente no que respeita ao facto dado como não provado em c), ele resulta desde logo de não se ter provado que existia o acordo e que os Réus o incumpriram e ainda do facto de se ter provado que foi o próprio Autor que pretendia ir para o lar de dia e de noite.”
Insurge-se o apelante contra tais respostas, defendendo a matéria constante de tais alíneas deveria ter sido que deveria dada como “provada”, com base no depoimento de parte do réu N (…) e nos depoimentos das testemunhas (…).
Ouvida a totalidade da prova, e numa primeira análise, constata-se que, efetivamente, de entre as várias testemunhas ouvidas, nenhuma delas soube esclarecer, com precisão e com conhecimento direto, quais os motivos ou as circunstâncias que estiveram por detrás da entrega da transferência de 15.000,00 € de uma conta do autor para uma conta do réu, uma vez que nenhuma delas presenciou o acordo que esteve na base de tal transferência.
Quanto a tal matéria, nos respetivos articulados da ação, as partes trouxeram aos autos as duas seguintes versões:
Segundo o autor, este a sua falecida esposa acordaram com os réus entregarem-lhes a quantia de 15.000,00 €, para que estes construíssem um anexo contíguo à sua casa de habitação, onde o casal (Autor e a falecida) passaria a habitar, com a ajuda dos RR., que lhes prestariam os cuidados necessários, sendo as despesas com a alimentação, higiene e medicamentos suportadas com as pensões do casal idoso; em contrapartida, pelos cuidados e apoio prestados aos idosos, os réus fariam seu o dito anexo.
Segundo os réus, os autores doaram tal quantia aos réus para os compensar pelos serviços prestados e despesas (nomeadamente, decapagem, obra de ampliação da garagem, limpeza de telhado, limpeza de caleiras, na casa do autor, bem como do tempo despendido com transporte duas vezes por semana durante sete anos, pagamento de transporte para a fisioterapia); confirmam terem acordaram em que o autor e a sua esposa passariam a residir num anexo à casa de habitação dos réus, por ser mais fácil solicitar a ajuda dos réus quando necessário, afirmando que, como contrapartida, os AA. apenas teriam de comparticipar nas despesas domésticas com parte das suas pensões.
Ora, relativamente a tal matéria, a audição dos depoimentos de parte do autor e do réu, em nosso entender, e ao contrário do expendido pelo juiz a quo, acabam por se mostrar esclarecedores, lançando alguma luz sobre as circunstancias que rodearam tal “transferência” do montante de 15.000,00 €, da conta do autor para a conta do réu, bem como da finalidade de tal “transferência”.
Senão, vejamos.
O réu, N (…), ouvido em depoimento de parte, afirmou que começou por fazer umas obras para o autor e que, como ele ficou sem carta, o depoente é que os levava para todo o lado, às compras, ao médico e à farmácia, fazia-lhe tudo, limpava-lhe os terrenos, fazia-lhe pequenas obras, etc.. E à pergunta do juiz, “E que acordo é que o Sr. fazia, isto era pago, como é que era? Fazia-lhe tudo o que era preciso, …. E fazia-o porquê?”, o réu deu a seguinte resposta: “Ele falava-me que pensava em vender a casa e um dia quando vendesse a casa até ia para ao pé de mim e que depois me gratificava; chegou a uma altura, que ele fez o negócio com o primo e ele chegou-se ao pé de mim e nós chegámos a um acordo … (aqui foi interrompido no seu depoimento). “Ele pensava em vender a casa e depois um dia ir viver para o pé de mim. Até comecei a fazer umas obras no R/C, uma coisa baixa, pois ele andava de moletas, para ele ir viver para o pé de nós, e ele disse-me que um dia me gratificava isso e chegou um dia e ele deu-me uma quantia, em dinheiro, para … (voltou a ser interrompido); mais adiante, volta a retomar o assunto, afirmando que “nas primeiras vezes que lá fui, umas coisitas no telhado, umas viagens, ele pagava-me o trabalho, dava-me alguma coisa, só passado algum tempo é que nós conversámos e ficou assim.” E, aqui, a juíza perguntou e o que era essa gratificação? “Era dar-me…, porque nós conversámos, eles não tinham família, conversamos todos, como ele ia vender a casa, em fazer um anexo, no rés-do-chão, para ele ir viver para o pé de nós, para a minha esposa tomar conta deles, e ele disse que me dava uma quantia, para me ajudar e para me pagar as coisas que eu lá fazia”; E a juíza perguntou-lhe “Em que consistia essa gratificação? Ele dava-lhe dinheiro?”, e o réu respondeu: “Não, não, ele não me deu dinheiro. Andei uma média de 4 ou 5 anos a levá-lo para todo o lado, e ele uma altura, ele chegou ao pé de mim e ele deu-me 15.000,00 €. O dinheiro foi ele que mo deu, ele e a esposa, para pagamento de coisas que que eu lá fiz, que havia muitas pessoas que iam para lá trabalhar e quem pagava às pessoas era eu.” E pedindo-lhe a juíza explicações sobre a construção do anexo, onde e porquê, o réu responde: “Era um anexo num terreno que eu tenho, para os levar para lé, para o pé de mim.” E à  pergunta do juiz, “e quem é que pagava essa construção?”, respondeu: “Essa construção eu é que a fazia com as minhas próprias mãos e esses 15.000 € que ele me pagou, que me deu, para me pagar esse tempo todo que eu andei lá a fazer as coisas que eu precisava, andei esse tempo todo (…). A construção era feita por si, mas quem é que pagava os materiais? “Os materiais era eu que pagava.” Ele não contribuía com nada. O que estava combinado é que ele depois entregaria a reforma para ajudar a tomar conta deles.”
Ou seja, notando-se, embora, alguma hesitação no seu discurso, como se estivesse medindo as palavras antes de responder e ainda que não intencionalmente, é o réu que acaba por fazer a ligação entre a “gratificação” e a construção do anexo, confirmando que a finalidade da construção do anexo era levar para lá o autor e a sua esposa, para melhor lhes prestar auxílio e que o sustento deles seriam custeado através das reformas deles.
Quanto ao autor, A (…), ouvido igualmente em depoimento de parte, vem afirmar que nunca deu qualquer dinheiro ao réu e que foi o seu primo que se distraiu e que, aquando da celebração da escritura com o seu primo, ele em vez de entregar o cheque ao autor, se enganou e deu o cheque ao réu, e que este apanhou a caderneta e foi ao banco. Nega assim ter-lhe dado o dinheiro para fazer o anexo, afirmando que o réu é que passava o dinheiro para a conta dele. Reconhece que o réu lhe prestou vários serviços – cultivar o quintal, arranjar o telhado, pintar os protões, limpar os terrenos – mas que sempre lhe pagou, e que embora o levasse às consultas e a sua esposa ia às compras com ele, quem pagava a gasolina era o depoente.
É certo que este depoimento é estranho e não coincide sequer com a versão em seu nome apresentada nos autos, podendo tais divergências ser em parte explicadas pelas suas falhas de memória ou a fragilidades associadas à idade.
Este sentimento do réu de que terá sido “roubado” pelo réu N (…), acaba por ser confirmado pelas testemunhas J (…) seu primo, e A (…)[3], que afirmam que após a morte da esposa quando foi para o lar, o Réu se queixava que lhe tinha tirado o dinheiro todo. No entanto, haverá que ter em consideração que o autor se encontrará já um bocado baralhado, uma vez que demonstrou não ter a noção de que a sua parte da casa havia sido transferida para o nome do seu primo.
De qualquer modo, se passou a ser este o “sentir” do autor após a morte da esposa, ou quando se apercebeu que afinal tinha de ir para um lar, ficando com uma versão dos factos eventualmente influenciada ou distorcida pelo sentimento de abandono (“ele até me chamava pai, e eu pensava que estava com uma pessoa séria e afinal, não é; ao fim e ao cabo, ele passava dinheiro para a conta dele”), o certo é que a versão de que o dinheiro teria sido entregue voluntariamente pelo autor ao réu, ganha algum apoio com o depoimento da testemunha J (…), primo do autor, que afirmou que o cheque que entregou ao autor, aquando da celebração da escritura da venda da casa, foi passado à ordem do seu primo Albertino e que então o seu primo lhe disse que o N (…) ficou com o cheque, e que a testemunha lhe perguntou, então, deste-lhe o cheque? E que ele lhe respondeu: “Ah, ele tem-me feito tantas coisas, eu fui para o hospital e ele até me levou a caderneta azul e a verde”. E, mais adiante, sendo perguntado à testemunha, “O Sr. alguma vez ouviu o seu primo dizer que o Sr. N (…) estava a construir um anexo e que nesse anexo iria viver o seu primo e a sua falecida prima?, respondeu: “Ele dizia, eles diziam, eles vão lá fazer uma casa, a (…) dizia, “vão lá fazer uma casa para mim,” ele dá o chão e o meu primo, eles davam o dinheiro”.
A testemunha A (…) vizinho do A. e dos RR., afirmou que os réus andavam a construir aquela casa e a população dizia que era para eles (o sr. A(…) e a sua mulher) viverem, toda a gente sabia, e que falou com a sra. M (…) e que ela lhe disse que eles lhe andavam a construir uma casa, para eles irem para lá. E embora tenha afirmado desconhecer qual o teor do acordo, afirmou que a Sra. M (…) dizia que era ela que pagava os materiais para as obras e que o Sr. (...) levantava o dinheiro para o material.
Resumindo, da posição assumida pelas partes nos seus articulados, temos por indiscutível que:
- no dia 26 de Fevereiro de 2011, foram transferidos 15.000,00 € da conta do autor para a conta do réu;
- o réu, que não é familiar do autor, andava a construir uns anexos na sua habitação com a finalidade de o autor e a sua falecida esposa irem para lá morar.
Ora, a partir de tais dados objetivos e que são aceites pelas partes, teremos de nos questionar sobre qual a finalidade ou os motivos que estarão por detrás de tal transferência (enquanto o autor refere que a mesma teve por objetivo o financiamento da construção dos anexos para que os autores fossem para lá viver a fim de os réus poderem tratar deles convenientemente, o réu defende que a mesma se destinava, tão só, a compensá-lo quer do trabalho, quer das despesas que tivera com os serviços que lhe havia prestado durante 4 ou cinco anos). Ou seja, as dificuldades de prova relacionam-se com a circunstância de nos encontrarmos no âmbito das “intenções[4], uma vez que a entrega do dinheiro não foi formalizada mediante a subscrição de qualquer documento.
Teremos, assim, de apreciar os elementos de prova disponíveis nos autos à luz da experiência e do senso comum. E sob tal olhar, desde logo, nos parece como pouco credível que alguém que tem como único rendimento a sua reforma que não chega sequer aos quinhentos euros (279,79 €, segundo o doc. de fls. 62, mais um complemento de reforma), e que não chega para pagar o lar onde se encontra desde faleceu a sua esposa[5] –, faça uma doação de 15.000,00 € a um terceiro, alegadamente para o compensar da ajuda que lhe vem dando e de uns alegados serviços, esgotando praticamente a totalidade das suas poupanças (resultantes, nomeadamente, de pagamentos que lhe haviam sido feitos pelo seu primo). Por outro lado, a alegação do réu de que pagava do seu bolso os trabalhos que foram sendo feitos na casa do autor e anexos, não foi minimamente confirmada: não só o réu afirmou que lhe pagou todos os trabalhos que lhe foi fazendo lá em casa, a gasolina que gastava nas deslocações e o tempo que aquele despendia, como a testemunha C (…), que andou algumas vezes a trabalhar nos terrenos do autor a pedido do réu, afirmou que uma vez perguntou a este: “tu é que me pagas” e que ele lhe respondeu: “Então, o Sr. (…) paga-se a mim para eu pagar”. Também a testemunha M (…) afirmou ter trabalhado para o N (…) na quinta do autor e que chegou a acompanhá-los na ida às compras e que as contas que fez foi sempre com o N (…), e que uma vez, à sua frente, o autor deu dinheiro ao N(...) para lhe pagar a si; mais afirmou que as compras eram sempre pagas com cartão multibanco que a D. M (…) trazia consigo. Ou seja, não podemos dar como demonstrado que o autor e a sua falecida esposa lhe devessem fosse o que fosse (a não ser gratidão), e muito menos o referido valor de 15.000,00 €. E o certo é que se  o que estava em causa era uma dívida de gratidão, e atendendo às posses do autor, tal valor, a servir como “gratificação” (nas palavras do réu) pelos serviços prestados, o valor da transferência surja como perfeitamente desadequado.
 Tal entrega de um valor tão elevado, deixando o autor a ter de sobreviver unicamente com o valor da sua pensão mensal, só faz sentido se, com tal doação, o autor e a sua esposa almejassem obter alguma vantagem ou compensação. Ou seja, só faria sentido se ambas as partes retirassem alguma vantagem de tal acordo.
Por outro lado, a tese de que tal entrega teve como condição ou objetivo a construção do anexo com a finalidade de os réus mais facilmente poderem tomar conta dos autores, tem algum apoio nalguns ainda noutros elementos de prova:
- o início da construção do anexo situa-se temporalmente próximo da transferência dos 15.000,00 € para a conta do réu;
- a testemunha A (…), embora afirmando desconhecer os termos do acordo entre o Autor e os RR. afirmou que toda a população sabia que os réus andavam a construir aquela casa para eles e que falou com a D. M (…)(mulher do autor) sobre este assunto e esta disse-lhe que o S. N (…) lhe andava a fazer uma casa e ele que ela dizia que ela é que pagava os materiais, que o Sr. N (…) levantava o dinheiro da conta para pagar os materiais.
Impor-se-á, assim, a alteração à resposta dada à matéria constante das alíneas a) e b) dos Factos Não Provados, e que nos merecerá a resposta de “provado”.
Quanto à matéria constante da alínea c) dos Factos Não Provados, respeitante ao facto de o comportamento dos réus lhes ter causado grande tristeza – pelo facto de ter sido o réu marido quem solicitou a intervenção dos serviços sociais e de não terem ido para a casa que o réu andava a construir – deverá manter-se a resposta de não provado, porquanto, nem o próprio autor, ouvido em depoimento de parte, demonstrou qualquer desgosto ou ressentimento por tais factos, mostrando-se unicamente arrependido por ter em tempos confiado nele, por achar que ele se aproveitou para lhe ficar com o seu dinheiro.

*

Insurge-se ainda o autor contra a matéria constante dos pontos 22, 23 e 24, da matéria de facto dada como provada.

Quanto ao ponto 22, a realização dos trabalhos aí referidos é confirmada pela generalidade das testemunhas que responderam a tal matéria, inclusivamente pelo réu. Quanto ao ponto 23, tal declaração é também confirmada pelos assistentes sociais que acompanharam o processo do seu internamento no lar onde atualmente se encontra, nomeadamente a testemunha A (…) que afirmou que embora tenha sido colocada a hipótese de ficar no Centro de Dia o Sr. A (…) é que não aceitou e insistiu que pretendia o internamento num lar.
Quanto ao ponto 23, a única testemunha que se pronunciou sobre tal matéria, A (…) (assistente social de Tábua, que conhece o réu de este ter ido aos serviços comunicar a situação do Sr. A(…)), afirmou que, a certa altura, o Sr. N (…)terá combinado com uma colega assumir um compromisso no sentido de este contribuir nas despesas do autor, mas que este documento chegou a ser elaborado mas não chegou a ser assinado.
Assim sendo, a matéria constante do ponto 23, deverá, também ela, ser objeto de alteração, obtendo resposta de “não provado”.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto será de proceder parcialmente nos termos expostos.
3. Subsunção dos factos ao direito.
A. Matéria de Facto
São os seguintes os factos dados como provados pelo tribunal a quo, com as alterações aqui introduzidas em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

1) O Autor nasceu em 19 de Julho de 1936, na freguesia de Belém, Lisboa e em 27 de Maio de 1977 casou civilmente, em segundas núpcias, com M (…).

2) M (…) faleceu em 27 de Outubro de 2011.

3) O Réu N (…) casou civilmente com a Ré H (…) no dia 07.10.1998.

4) O Autor e a esposa não tinham filhos nem ascendentes.

5) Desde 17 de Novembro de 2011 que o Autor reside no Lar de Idosos (...) .

6) Em Outubro de 2011, a casa onde o Autor vivia com a sua falecida mulher, sita no lugar das (...) , encontrava-se muito suja, com detritos vários.

7) O casal, devido às suas limitações físicas, não assegurava a limpeza da casa há vários anos.

8) Nem outras pessoas o faziam.

9) Os Réus eram vizinhos do Autor e de sua mulher.

10) Desde que o Autor deixou de poder deslocar-se e de poder conduzir, a solicitação deste e de sua mulher, o Réu conduzia-os aos supermercados em Tábua duas vezes por semana para que estes efetuassem as suas compras; aos médicos, à farmácia, ao Banco, e a todos os locais que exigissem a deslocação a Tábua.

11) O Réu efetuou alguns trabalhos agrícolas para o Autor.

12) Após o falecimento da mulher do Autor este pernoitou em casa de familiares do Réu, sita em (...) , Tábua, tendo o Réu passado a dormir igualmente nessa casa para prestar apoio ao Autor, durante vários dias.

13) Desde esse momento, o Autor, durante vários dias, fez as refeições com o Réu, que eram confecionadas pela esposa ou irmã do Réu, chegando estas a dar-lhe a possibilidade de escolher a refeição, sempre no sentido de que este se alimentasse por estar frágil devido à recente viuvez.

14) Em 16 de Fevereiro de 2011, o Autor transferiu para a conta dos Réus, €.15.000,00 (quinze mil euros).

15) O Autor e os Réus acordaram que este e a sua esposa passariam a residir num anexo à casa de habitação dos Réus.

16) As obras para a construção do referido anexo iniciaram-se no primeiro trimestre do ano de 2011.

16.a. Em Fevereiro de 2011, o Autor e a sua esposa acordaram com os Réus, entregarem aos mesmos a quantia de €.15.000,00 a que se alude em 14), para que estes construíssem o anexo referido em 16).

16.b. Como contrapartida do apoio referido em 17), os Réus fariam seu o dito anexo.

17) Quando o Autor e a sua mulher fossem viver para o anexo referido em 16), os Réus prestariam àqueles os necessários cuidados alimentares, de higiene e medicamentosos.

18) As despesas com alimentação, higiene, medicamentos e saúde seriam suportadas com as pensões do Autor e sua mulher.

19) O Autor e sua esposa não foram viver para o anexo referido em 16).

20) No início do mês de Novembro de 2011, o Réu marido comunicou aos serviços de ação social de Tábua e do Centro de Saúde de Tábua, que o Autor residia sozinho, que se encontrava doente e que não possuía quaisquer familiares próximos que o auxiliassem.

21) O Autor vive com o produto da sua reforma e complemento de viuvez, no valor aproximado de €.500,00, tendo de suportar a mensalidade do Lar de Idosos, no valor de €.650,00 e a despesas mensais de medicação de cerca de €.30,00.

22) O Réu marido pintou os portões, fez obras num barracão, onde instalou eletricidade, limpou o telhado e colocou madeira nova no telhado da casa, limpou as caleiras, procedeu à limpeza dos terrenos e das oliveiras e transportou o Autor para várias sessões de fisioterapia.

23) Após a comunicação efetuada pelo Réu marido referida em 20), o Autor declarou que preferia permanecer numa instituição durante os períodos diurno e noturno.


*
B. O Direito

Face às alterações aqui introduzidas em sede de impugnação à decisão da matéria de facto, temos como demonstrado a celebração do seguinte acordo entre autor e réus:

 O Autor e a sua falecida esposa e os réus acordaram em entregarem a estes a quantia de 15.000,00 €, para que estes construíssem um anexo à casa de habitação dos réus, onde aqueles passariam a residir, acordando ainda em que, quando tal acontecesse, os réus prestariam àqueles os necessários cuidados alimentares, de higiene e medicamentosos, e como contrapartida deste auxílio, os réus fariam seu o dito anexo.

Contudo, o acordado não se chegou a concretizar: iniciada a construção dos ditos anexos em inícios de 2011, a mulher do autor veio a falecer no dia 27 de Outubro de 2011 sem que as referidas obras se encontrassem concluídas e o autor deu entrada num lar cerca de 20 dias depois, a 17 de Novembro de 2011.

O autor intenta a presente ação pedindo a condenação dos réus na devolução dos referidos 15.000,00 €, com fundamento na existência de um contrato inominado e atípico e no incumprimento contratual por parte dos réus, uma vez que, não tendo chegado a construir os referidos anexos e falecida a esposa do autor, os RR. pediram aos serviços sociais da Segurança Social que tratassem e apoiassem o autor, colocando-o num lar; a título subsidiário, o autor faz ainda assentar o seu pedido no instituto do enriquecimento sem causa.

Opõem-se os réus a tal pretensão, alegando, por um lado, que se trataria de uma mera doação e, por outro lado, não terá ocorrido qualquer incumprimento da sua parte, uma vez que os RR. se disponibilizaram a cuidar do autor e até para o ajudar nas despesas do lar se necessário, o que este recusou.

Levantar-se-á, assim, em primeiro lugar, a questão da qualificação do contrato celebrado entre as partes, nomeadamente, se nos encontramos perante um contrato inominado, como defende o autor, ou como uma doação, ainda que com a imposição de encargos sobre o donatário.

Segundo o nº1 do artigo 940º do Código Civil, doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.

São três os requisitos exigidos pelo artigo 940º, para que exista uma doação[6]:

a) Disposição gratuita de certos bens ou direitos, ou a assunção de uma dívida, em benefício do donatário, ou seja, a atribuição patrimonial sem correspetivo;

b) Diminuição do património do doador;

c) Espírito de liberalidade.

            Para haver doação, a atribuição patrimonial há de ser gratuita e exigindo-se ainda que não exista um correspetivo de natureza patrimonial. Pode existir um correspetivo de natureza moral, sem que o ato perca a sua gratuidade, assim como podem existir encargos impostos ao donatário (clausulas modais), que limitem o valor da liberalidade[7].

Escreve Manuel Batista Lopes quanto à natureza de tal contrato:

“A doação tem como móbil primário e essencial o espírito de liberalidade do doador, oposta é de necessidade ou de dever. O doador dá para beneficiar o donatário, num acto espontâneo, isto é não determinado por uma obrigação jurídica anterior (…). É o animus donandi, o intuito de fazer uma liberalidade, enriquecendo o donatário por vontade do doador, que verdadeiramente carateriza o contrato, que é ou se presume feito espontaneamente, sem nenhuma obrigação, nullo iure cogente, e só com o fim de locupletar o donatário[8]”.

Tal espírito de liberalidade não é incompatível com um interesse pessoal do doador, interesse que pode ser puramente moral ou objetivo ou material e parcialmente altruísta (ex., doação de um terreno ao domínio público para construção de uma estrada que por sua vez ira valorizar os demais terrenos contíguos do doador).

Mesmo nas doações modais – doações oneradas com encargos (artigo 963º) – a vontade das partes tem de ser dirigida a um enriquecimento do recetor, embora diminuído na medida dos meios necessários para a execução do encargo; a intenção de doar tem de exceder a de obrigar o outro a uma prestação; a execução do encargo só pode ser fim acessório[9].

Dispõe o art. 963º, sob a epígrafe, “cláusulas modais”:
1. As doações podem ser oneradas com encargos.
2. O donatário não é obrigado a cumprir os encargos senão dentro dos limites do valor da coisa ou do direito doado.

O modo ou o encargo consiste numa restrição imposta ao beneficiário da liberalidade que o obriga a determinada prestação no interesse do autor da liberalidade, de terceiro ou do próprio beneficiário, podendo, por isso, consoante os casos, revestir tanto a natureza de uma obrigação em sentido técnico, como a de um mero ónus jurídico.

Segundo Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, ao elemento objetivo da atribuição patrimonial geradora de enriquecimento, a lei acrescenta um elemento subjetivo que é de que esse enriquecimento seja determinado espontaneamente por intenção do próprio doador: “Sempre que não seja visível o espírito de liberalidade, o acto não estará em condições de ser qualificado como doação[10]”.

Funcionando como uma mera restrição à liberalidade e não como uma contraprestação, o encargo fica limitado ao valor da própria liberalidade, não sendo o donatário obrigado a cumprir senão dentro dos limites da coisa ou do direito doado (nº2 do art. 963º.

Como salientam Pires de Lima e Antunes Varela[11], essencial no conceito de modo (encargo) é que o dever imposto ao onerado não constitua o correspetivo da prestação recebida pelo donatário, mas apenas uma limitação ou restrição dela.

No caso em apreço, os factos dados como provados não nos permitem qualificar o acordo celebrado entre as partes como uma doação.

Como já referimos, uma doação, ainda que com encargos, pressupõe a gratuidade e um espirito de liberalidade, o que não encontra apoio na factualidade apurada: a entrega da quantia de 15.000,00 € aos RR., por parte do autor surge, não só como um modo de custear a construção de uns anexos à casa dos Réus que se destinavam precisamente a ser habitados pelo autor e sua esposa, mas, também, como modo de compensar os réus pelos cuidados que se comprometiam a prestar ao casal quando para lá fosse viver. À obrigação de entrega dos 15.000,00 € por parte do autor, contrapõem-se três obrigações distintas por parte dos réus: construírem uns anexos à sua casa, disponibilizarem tal espaço para o casal aí residir e, ainda, a obrigação de cuidarem de tal casal.

Afigurando-se tais prestações de valor aparentemente equivalente, ou pelo menos, sem que se distinga uma diferença significativa de valor entre a prestação e a contraprestação, encontrar-nos-emos perante um negócio oneroso.

Como refere Vaz Serra, a propósito das chamadas doações mistas – quando a um negócio oneroso se liga uma disposição gratuita –, sendo objeto de um tratamento unitário como doações mesmo que o seu fim principal não seja o enriquecimento do donatário, “se o encargo tem o sentido de um equivalente ou contraprestação, não haverá doação”[12].

Ainda segundo tal autor, se o modo for só aparente, representando uma verdadeira contraprestação, sai-se do campo da doação e há que determinar qual o negócio existente[13].

Face às considerações expostas, concluímos encontramo-nos nos autos perante um contrato atípico e inominado, dentro do princípio da liberdade contratual ínsito no artigo 405º do Código Civil.

Passemos agora a analisar se há incumprimento do mesmo por parte dos réus e, em caso afirmativo, se o mesmo lhes é imputável.

O autor e a sua esposa cumpriram a prestação a que se encontravam obrigados, transferindo a quantia de 15.000,00 € para a conta do réu.

Os réus não chegaram a cumprir a sua parte. Poder-se-á discutir se tal incumprimento lhes é, ou não, imputável a título de culpa, sendo certo que, a nível da responsabilidade contratual, a mesma se presume (artigo 790º do CC).

Embora a mulher do autor tenha falecido antes de concluídas as obras no anexo à casa de habitação dos réus – impossibilitando, nesta parte e relativamente à esposa do autor, o cumprimento da obrigação a que se obrigaram –, a obrigação por estes assumida continuava a ser possível relativamente ao autor, continuando os réus a construção de tal anexo e prestando-lhes os cuidados prometidos.

Contudo, decorridos cerca de 20 dias após o falecimento do seu cônjuge, o autor já se encontrava internado num lar, pelo que a prestação a que os réus se obrigaram não chegou a ser cumprida: nunca terminaram o anexo e, sobretudo, não asseguraram ao autor os cuidados a que se haviam comprometido.

E tal prestação não chegou a ser cumprida porquanto, no início do mês de Novembro de 2011, o réu marido comunicou aos Serviços de Ação Social de Tábua e do Centro de Saúde de Tábua que o autor residia sozinho, que se encontrava doente e que não possuía quaisquer familiares próximos que o auxiliassem (ponto 20 da matéria de facto), após o que o autor declarou que preferia permanecer numa instituição durante os períodos diurno e noturno.

Ora, os réus não demonstram a ocorrência de qualquer causa justificativa para o seu incumprimento – a declaração do autor no sentido de que pretendia permanecer numa instituição no período diurno e noturno é posterior ao pedido dos réus de intervenção dos Serviços de Ação social e de saúde, surgindo este pedido como um reconhecimento de que não iriam cumprir com o acordado, constituindo tal declaração uma consequência deste pedido –, nomeadamente que as circunstâncias se houvessem alterado e que existisse algum motivo médico ou outro a impor o internamento do autor ou que os impossibilitasse de prestar pessoalmente os cuidados ao autor.

De qualquer modo, mesmo que se integrasse a situação em apreço numa impossibilidade de incumprimento e que a mesma não lhes fosse imputável – tal circunstancia apenas seria relevante para efeitos de excluir a sua responsabilidade pelos prejuízos decorrentes de tal incumprimento –, nunca lhe permitindo reter a prestação que receberam em troca dos prometidos serviços.

Com efeito, se a obrigação se extingue quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor (nº1 do artigo 790º do CC), sendo o contrato bilateral fica o credor desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa (nº1 do art. 795º).

Como tal, concluindo-se pelo incumprimento por parte dos réus, incumprimento que lhes é imputável, tem o autor direito à resolução do contrato, sendo os réus obrigados à restituição ao autor dos 15.000,00 € que este lhes entregou (artigos 432º, 433º e 43º, do CC).

Quanto ao pedido de indemnização, não tendo o autor logrado a alteração da decisão da matéria de facto a tal respeito – o autor não provou a ocorrência dos alegados danos morais – mantém-se, nesta parte, o juízo de improcedência formulado na primeira instância.

A apelação é de proceder parcialmente.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se a decisão recorrida, e condenando os réus a restituírem ao autor a quantia de 15.000,00 €.

Custas na ação e na apelação, a suportar por Autor e réus, na proporção do vencimento.         

Coimbra, 10 de fevereiro de 2015

Maria João Areias ( Relatora )

Fernando Monteiro

Inês Moura

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

1. As dificuldades de prova respeitantes a factos difíceis de demonstrar, como o são as intenções, podem ser ultrapassadas mediante a atenuação do grau de prova exigível ao onerado para que determinado facto seja dado como provado, recorrendo-se a factos indiciários, para deles se presumir o facto a provar.

2. Sendo a prestação e a contraprestação de valor sensivelmente equivalente, não podemos falar em doação, mas num contrato inominado atípico.

2. O incumprimento definitivo por uma das partes, dá à outra o direito à resolução do contrato e à restituição do recebido.


[1] Face ao nítido incumprimento da obrigação de sintetizar os fundamentos do recurso, imposta pelo nº1 do artigo 639º do NCPC, quer quanto à impugnação da matéria de facto, perdendo-se em considerações quanto aos motivos pelos quais determinados factos deveriam ter sido dados como provados ou como não provados, quer quanto às divergências na aplicação do direito, chegando a reproduzir o teor das normas legais aplicáveis.
[2] Tratando-se de decisão proferida após a entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos constante do novo código, de acordo com o art. 5º, nº1 do citado diploma – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 16.
[3] Segundo esta testemunha, assistente social que o visitou quando este se encontrava em casa da irmã do réu, o Sr. (…)queixava-se que haveria uma dívida ou um empréstimo, era o Sr. (...) que lhe devia o dinheiro, que lhe teria emprestado ou seria para umas obras.
[4] Quanto aos factos difíceis de demonstrar, como o são as intenções, Elisabeth Fernandes defende a atenuação do grau de prova exigível ao onerado para que determinado facto seja dado como provado: “Os factos indiciários deverão permitir que o juiz, com recurso às máximas da experiência, possa presumir a verificação do facto. O tribunal tem, nestes casos, que estar apto a forma a sua convicção de modo indireto e não como habitualmente de um modo direto, introduzindo, desta forma, um fator corretivo da distribuição das cargas probatórias previa e exclusivamente assentes na função que os factos desempenham nas normas invocadas” – “A Prova difícil ou impossível (A tutela judicial efetiva no dilema entre a previsibilidade e a proporcionalidade) ”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. José Lebre de Freitas, Vol. I, Coimbra Editora, págs. 832 e 833.
[5] A situação económica do autor é confirmada não só pelo seu primo (…), como essencialmente pela testemunha (…), assistente social, que afirmou terem-se apercebido que não haveria dinheiro para pagar a mensalidade do lar e que a reforma não chegava.
[6] Cfr., Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II Vol., 3º ed., Coimbra Editora, pág. 257.
[7] Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, pág. 259. No sentido de que a doação é o contrato gratuito típico, se pronuncia ainda Manuel Batista Lopes, “Das Doações”, Almedina, pág. 11.
[8] “Das Doações”, Almedina, págs. 11 e 12.
[9] Neste sentido, Larenz, citado por Vaz Serra, in BMJ Ano 75, “Responsabilidade Patrimonial”, pág. 271, nota 407.
[10] “Direito das Obrigações”, Vol. III Contratos em Especial, 3ª ed., págs. 172 e 173.
[11] Obra citada, anotação ao artigo 965º, pág. 292.
[12] “Responsabilidade Patrimonial”, BMJ nº 75, pág. 269, nota 405.
[13] Artigo citado, nota 407, pág. 272.