Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA JOÃO AREIAS | ||
Descritores: | CONTRATO ATÍPICO DOAÇÃO INCUMPRIMENTO PROVA | ||
Data do Acordão: | 02/10/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE COIMBRA - TÁBUA - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 405, 432, 790, 940, 963 CC | ||
Sumário: | 1.- Uma doação, ainda que com encargos, pressupõe a gratuidade e um espirito de liberalidade. 2. -Sendo a prestação e a contraprestação de valor sensivelmente equivalente, não podemos falar em doação, mas num contrato inominado atípico. 3.- O incumprimento definitivo por uma das partes, dá à outra o direito à resolução do contrato e à restituição do recebido. 4.-As dificuldades de prova respeitantes a factos difíceis de demonstrar, como o são as intenções, podem ser ultrapassadas mediante a atenuação do grau de prova exigível ao onerado para que determinado facto seja dado como provado, recorrendo-se a factos indiciários, para deles se presumir o facto a provar. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção): I – RELATÓRIO A (…) instaurou a presente ação de condenação sob a forma de processo ordinário contra N (…) e esposa, H (…), alegando, em síntese: o autor e a sua esposa (falecida em 27.11.2011) eram um casal já idoso que vivia sozinho e sem filhos e a partir do ano de 2008 criou-se uma relação de proximidade com os Réus; a partir de Março de 2010, o Autor (e a falecida esposa) combinaram com os Réus que estes prestariam auxílio remunerado àqueles, apoiando-os nas suas necessidades, como idas às compras, ao médico, ao centro de saúde; na sequência do convívio existente, o Autor e os Réus compraram um trator, em comum, pelo qual o Autor pagou €.13.500,00. acordaram com os Réus entregar-lhes a quantia de €.15.000,00 para que estes construíssem um anexo contíguo à sua habitação, onde o próprio e a esposa passariam a habitar na companhia e com o apoio dos Réus, que lhes prestariam os cuidados alimentares, de saúde e higiene necessários e até ao óbito; nessa sequência, em Fevereiro de 2011, transferiu €.15.000,00 para a conta dos Réus e os Réus construíram o dito anexo para onde o Autor e a esposa iriam habitar. ainda no início do ano de 2011, o Autor entregou aos Réus um veículo automóvel de marca Citroen avaliado em €.12.500,00; o Autor e a esposa continuaram a residir na sua habitação até ao óbito da esposa, sendo que os Réus não asseguraram qualquer cuidado ao Autor até 17.11.2011, data em que deu entrada no lar. como os Réus não cumpriram o acordado, está prejudicado numa quantia de €.41.000,00, pela qual os Réus são responsáveis, sendo que a conduta dos Réus também causa ao Autor tristeza e transtorno, danos morais esses que merecem a tutela do direito e que também devem ser reparados pelos Réus. Conclui, pedindo que: 1 – Se declare o incumprimento do vínculo contratual acordado entre Autor (a falecida esposa) e Réus em 16 de Fevereiro de 2011, segundo o qual os Réus cuidariam dos primeiros, prestando-lhes cuidados de alimentação, higiene pessoal, conforto e limpeza e medicamentosos e de saúde, bem como apoio e companhia a prestar em anexo construído em espaço adjacente à casa de habitação dos Réus, sita no lugar das (...) , freguesia e concelho de Tábua, mediante o pagamento dos Autores da construção do dito anexo e entrega dos valores referentes a um trator e veículo Citroen, conforme referido nos artigos 1.º a 45.º da petição inicial, condenando os Réus a entregar ao Autor a quantia total de €.41.00,00, a título de prejuízo patrimonial causado com o incumprimento, e ainda que condene os Réus no pagamento ao Autor de uma compensação por danos morais no valor de €.1.500,00 (mil e quinhentos euros). 2 - A título subsidiário, declare o enriquecimento sem causa dos Réus e o inerente empobrecimento do Autor, conforme teor dos artigos 45º. a 50.º da petição inicial, condenando os Réus a restituir ao Autor as seguintes quantias: a) €.13.500,00 (treze mil e quinhentos euros) referente ao valor do trator; b) €.15.000,00 (quinze mil euros) referente à transferência bancária para construção do anexo; e c) €.12.500,00 (doze mil e quinhentos euros) referente ao valor do veículo Citroen; no valor total de €.41.000,00 (quarenta e um mil euros). Os Réus contestam a presente ação, por impugnação, alegando, em síntese que os 15.000,00 € lhes foram doados pelo autor e pela sua falecida esposa para os compensar dos serviços prestados, nomeadamente obras realizadas no telhado, portões, garagem e galinhos da casa do Autor e tempo despendido com a realização das despesas de transporte, duas vezes por semana, durante 7 anos e pagamento de transporte para as sessões de fisioterapia, valor esse que os Réus aceitaram; iniciaram a construção do anexo no início de 2011, mas não concluíram as mesmas, como era sua pretensão, porque entretanto faleceu a esposa do Autor e porque o Autor preferiu ser acolhido no Lar, situação em que se encontra. Concluem pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido. Foi proferido despacho saneador que julgou a petição inicial parcialmente inepta no que concerne ao pedido de condenação no pagamento de €.13.500,00 relativos ao trator e, consequentemente, absolveu os Réus quanto pedido de condenação no pagamento de €.13.500,00, quer a título principal, quer a título subsidiário. Na sessão da audiência de julgamento, Autor e Réus chegaram a acordo quanto ao veículo automóvel de marca Citroen, desistindo o autor do pedido, nessa parte, desistência parcial do pedido aí foi homologada por sentença. Foi proferida sentença a julgar a ação improcedente, absolvendo os réus do pedido. Não se conformando com a mesma, o autor dela interpôs recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem por súmula[1]: (…) Os réus apresentaram contra-alegações, defendendo a manutenção do decidido. 1. Nulidade da decisão. Alegando o apelante que “a decisão final, salvo o devido respeito, não manifesta quer nos factos provados quer nos factos não provados quer na motivação da matéria de facto, a existência de um raciocínio crítico da prova produzida quanto a todas as testemunhas ouvidas pelo tribunal, designadamente os 3 técnicos sociais, (…)”, conclui que a sentença padece de nulidade nos termos e para efeitos do art. 615º, nº1, alíneas b) e d), do CPC. As irregularidades previstas na al. b) – falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito – e na alínea d), do art. 615º do CPC – quando deixe de pronunciar-se sobre questões que deva apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimentos –, nada têm a ver com eventuais deficiências na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e, muito menos, com discordâncias quanto ao sentido final de tal decisão. As invocadas irregularidades, ainda que se verificassem, não conduziriam à nulidade da decisão, pelo que se tem por verificada tal nulidade. 2. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto. * Insurge-se ainda o autor contra a matéria constante dos pontos 22, 23 e 24, da matéria de facto dada como provada. Quanto ao ponto 22, a realização dos trabalhos aí referidos é confirmada pela generalidade das testemunhas que responderam a tal matéria, inclusivamente pelo réu. Quanto ao ponto 23, tal declaração é também confirmada pelos assistentes sociais que acompanharam o processo do seu internamento no lar onde atualmente se encontra, nomeadamente a testemunha A (…) que afirmou que embora tenha sido colocada a hipótese de ficar no Centro de Dia o Sr. A (…) é que não aceitou e insistiu que pretendia o internamento num lar. 1) O Autor nasceu em 19 de Julho de 1936, na freguesia de Belém, Lisboa e em 27 de Maio de 1977 casou civilmente, em segundas núpcias, com M (…). 2) M (…) faleceu em 27 de Outubro de 2011. 3) O Réu N (…) casou civilmente com a Ré H (…) no dia 07.10.1998. 4) O Autor e a esposa não tinham filhos nem ascendentes. 5) Desde 17 de Novembro de 2011 que o Autor reside no Lar de Idosos (...) . 6) Em Outubro de 2011, a casa onde o Autor vivia com a sua falecida mulher, sita no lugar das (...) , encontrava-se muito suja, com detritos vários. 7) O casal, devido às suas limitações físicas, não assegurava a limpeza da casa há vários anos. 8) Nem outras pessoas o faziam. 9) Os Réus eram vizinhos do Autor e de sua mulher. 10) Desde que o Autor deixou de poder deslocar-se e de poder conduzir, a solicitação deste e de sua mulher, o Réu conduzia-os aos supermercados em Tábua duas vezes por semana para que estes efetuassem as suas compras; aos médicos, à farmácia, ao Banco, e a todos os locais que exigissem a deslocação a Tábua. 11) O Réu efetuou alguns trabalhos agrícolas para o Autor. 12) Após o falecimento da mulher do Autor este pernoitou em casa de familiares do Réu, sita em (...) , Tábua, tendo o Réu passado a dormir igualmente nessa casa para prestar apoio ao Autor, durante vários dias. 13) Desde esse momento, o Autor, durante vários dias, fez as refeições com o Réu, que eram confecionadas pela esposa ou irmã do Réu, chegando estas a dar-lhe a possibilidade de escolher a refeição, sempre no sentido de que este se alimentasse por estar frágil devido à recente viuvez. 14) Em 16 de Fevereiro de 2011, o Autor transferiu para a conta dos Réus, €.15.000,00 (quinze mil euros). 15) O Autor e os Réus acordaram que este e a sua esposa passariam a residir num anexo à casa de habitação dos Réus. 16) As obras para a construção do referido anexo iniciaram-se no primeiro trimestre do ano de 2011. 16.a. Em Fevereiro de 2011, o Autor e a sua esposa acordaram com os Réus, entregarem aos mesmos a quantia de €.15.000,00 a que se alude em 14), para que estes construíssem o anexo referido em 16). 16.b. Como contrapartida do apoio referido em 17), os Réus fariam seu o dito anexo. 17) Quando o Autor e a sua mulher fossem viver para o anexo referido em 16), os Réus prestariam àqueles os necessários cuidados alimentares, de higiene e medicamentosos. 18) As despesas com alimentação, higiene, medicamentos e saúde seriam suportadas com as pensões do Autor e sua mulher. 19) O Autor e sua esposa não foram viver para o anexo referido em 16). 20) No início do mês de Novembro de 2011, o Réu marido comunicou aos serviços de ação social de Tábua e do Centro de Saúde de Tábua, que o Autor residia sozinho, que se encontrava doente e que não possuía quaisquer familiares próximos que o auxiliassem. 21) O Autor vive com o produto da sua reforma e complemento de viuvez, no valor aproximado de €.500,00, tendo de suportar a mensalidade do Lar de Idosos, no valor de €.650,00 e a despesas mensais de medicação de cerca de €.30,00. 22) O Réu marido pintou os portões, fez obras num barracão, onde instalou eletricidade, limpou o telhado e colocou madeira nova no telhado da casa, limpou as caleiras, procedeu à limpeza dos terrenos e das oliveiras e transportou o Autor para várias sessões de fisioterapia. 23) Após a comunicação efetuada pelo Réu marido referida em 20), o Autor declarou que preferia permanecer numa instituição durante os períodos diurno e noturno. * Face às alterações aqui introduzidas em sede de impugnação à decisão da matéria de facto, temos como demonstrado a celebração do seguinte acordo entre autor e réus: O Autor e a sua falecida esposa e os réus acordaram em entregarem a estes a quantia de 15.000,00 €, para que estes construíssem um anexo à casa de habitação dos réus, onde aqueles passariam a residir, acordando ainda em que, quando tal acontecesse, os réus prestariam àqueles os necessários cuidados alimentares, de higiene e medicamentosos, e como contrapartida deste auxílio, os réus fariam seu o dito anexo. Contudo, o acordado não se chegou a concretizar: iniciada a construção dos ditos anexos em inícios de 2011, a mulher do autor veio a falecer no dia 27 de Outubro de 2011 sem que as referidas obras se encontrassem concluídas e o autor deu entrada num lar cerca de 20 dias depois, a 17 de Novembro de 2011. O autor intenta a presente ação pedindo a condenação dos réus na devolução dos referidos 15.000,00 €, com fundamento na existência de um contrato inominado e atípico e no incumprimento contratual por parte dos réus, uma vez que, não tendo chegado a construir os referidos anexos e falecida a esposa do autor, os RR. pediram aos serviços sociais da Segurança Social que tratassem e apoiassem o autor, colocando-o num lar; a título subsidiário, o autor faz ainda assentar o seu pedido no instituto do enriquecimento sem causa. Opõem-se os réus a tal pretensão, alegando, por um lado, que se trataria de uma mera doação e, por outro lado, não terá ocorrido qualquer incumprimento da sua parte, uma vez que os RR. se disponibilizaram a cuidar do autor e até para o ajudar nas despesas do lar se necessário, o que este recusou. Levantar-se-á, assim, em primeiro lugar, a questão da qualificação do contrato celebrado entre as partes, nomeadamente, se nos encontramos perante um contrato inominado, como defende o autor, ou como uma doação, ainda que com a imposição de encargos sobre o donatário. Segundo o nº1 do artigo 940º do Código Civil, doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente. São três os requisitos exigidos pelo artigo 940º, para que exista uma doação[6]: a) Disposição gratuita de certos bens ou direitos, ou a assunção de uma dívida, em benefício do donatário, ou seja, a atribuição patrimonial sem correspetivo; b) Diminuição do património do doador; c) Espírito de liberalidade. Para haver doação, a atribuição patrimonial há de ser gratuita e exigindo-se ainda que não exista um correspetivo de natureza patrimonial. Pode existir um correspetivo de natureza moral, sem que o ato perca a sua gratuidade, assim como podem existir encargos impostos ao donatário (clausulas modais), que limitem o valor da liberalidade[7]. Escreve Manuel Batista Lopes quanto à natureza de tal contrato: “A doação tem como móbil primário e essencial o espírito de liberalidade do doador, oposta é de necessidade ou de dever. O doador dá para beneficiar o donatário, num acto espontâneo, isto é não determinado por uma obrigação jurídica anterior (…). É o animus donandi, o intuito de fazer uma liberalidade, enriquecendo o donatário por vontade do doador, que verdadeiramente carateriza o contrato, que é ou se presume feito espontaneamente, sem nenhuma obrigação, nullo iure cogente, e só com o fim de locupletar o donatário[8]”. Tal espírito de liberalidade não é incompatível com um interesse pessoal do doador, interesse que pode ser puramente moral ou objetivo ou material e parcialmente altruísta (ex., doação de um terreno ao domínio público para construção de uma estrada que por sua vez ira valorizar os demais terrenos contíguos do doador). Mesmo nas doações modais – doações oneradas com encargos (artigo 963º) – a vontade das partes tem de ser dirigida a um enriquecimento do recetor, embora diminuído na medida dos meios necessários para a execução do encargo; a intenção de doar tem de exceder a de obrigar o outro a uma prestação; a execução do encargo só pode ser fim acessório[9]. Dispõe o art. 963º, sob a epígrafe, “cláusulas modais”: O modo ou o encargo consiste numa restrição imposta ao beneficiário da liberalidade que o obriga a determinada prestação no interesse do autor da liberalidade, de terceiro ou do próprio beneficiário, podendo, por isso, consoante os casos, revestir tanto a natureza de uma obrigação em sentido técnico, como a de um mero ónus jurídico. Segundo Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, ao elemento objetivo da atribuição patrimonial geradora de enriquecimento, a lei acrescenta um elemento subjetivo que é de que esse enriquecimento seja determinado espontaneamente por intenção do próprio doador: “Sempre que não seja visível o espírito de liberalidade, o acto não estará em condições de ser qualificado como doação[10]”. Funcionando como uma mera restrição à liberalidade e não como uma contraprestação, o encargo fica limitado ao valor da própria liberalidade, não sendo o donatário obrigado a cumprir senão dentro dos limites da coisa ou do direito doado (nº2 do art. 963º. Como salientam Pires de Lima e Antunes Varela[11], essencial no conceito de modo (encargo) é que o dever imposto ao onerado não constitua o correspetivo da prestação recebida pelo donatário, mas apenas uma limitação ou restrição dela. No caso em apreço, os factos dados como provados não nos permitem qualificar o acordo celebrado entre as partes como uma doação. Como já referimos, uma doação, ainda que com encargos, pressupõe a gratuidade e um espirito de liberalidade, o que não encontra apoio na factualidade apurada: a entrega da quantia de 15.000,00 € aos RR., por parte do autor surge, não só como um modo de custear a construção de uns anexos à casa dos Réus que se destinavam precisamente a ser habitados pelo autor e sua esposa, mas, também, como modo de compensar os réus pelos cuidados que se comprometiam a prestar ao casal quando para lá fosse viver. À obrigação de entrega dos 15.000,00 € por parte do autor, contrapõem-se três obrigações distintas por parte dos réus: construírem uns anexos à sua casa, disponibilizarem tal espaço para o casal aí residir e, ainda, a obrigação de cuidarem de tal casal. Afigurando-se tais prestações de valor aparentemente equivalente, ou pelo menos, sem que se distinga uma diferença significativa de valor entre a prestação e a contraprestação, encontrar-nos-emos perante um negócio oneroso. Como refere Vaz Serra, a propósito das chamadas doações mistas – quando a um negócio oneroso se liga uma disposição gratuita –, sendo objeto de um tratamento unitário como doações mesmo que o seu fim principal não seja o enriquecimento do donatário, “se o encargo tem o sentido de um equivalente ou contraprestação, não haverá doação”[12]. Ainda segundo tal autor, se o modo for só aparente, representando uma verdadeira contraprestação, sai-se do campo da doação e há que determinar qual o negócio existente[13]. Face às considerações expostas, concluímos encontramo-nos nos autos perante um contrato atípico e inominado, dentro do princípio da liberdade contratual ínsito no artigo 405º do Código Civil. Passemos agora a analisar se há incumprimento do mesmo por parte dos réus e, em caso afirmativo, se o mesmo lhes é imputável. O autor e a sua esposa cumpriram a prestação a que se encontravam obrigados, transferindo a quantia de 15.000,00 € para a conta do réu. Os réus não chegaram a cumprir a sua parte. Poder-se-á discutir se tal incumprimento lhes é, ou não, imputável a título de culpa, sendo certo que, a nível da responsabilidade contratual, a mesma se presume (artigo 790º do CC). Embora a mulher do autor tenha falecido antes de concluídas as obras no anexo à casa de habitação dos réus – impossibilitando, nesta parte e relativamente à esposa do autor, o cumprimento da obrigação a que se obrigaram –, a obrigação por estes assumida continuava a ser possível relativamente ao autor, continuando os réus a construção de tal anexo e prestando-lhes os cuidados prometidos. Contudo, decorridos cerca de 20 dias após o falecimento do seu cônjuge, o autor já se encontrava internado num lar, pelo que a prestação a que os réus se obrigaram não chegou a ser cumprida: nunca terminaram o anexo e, sobretudo, não asseguraram ao autor os cuidados a que se haviam comprometido. E tal prestação não chegou a ser cumprida porquanto, no início do mês de Novembro de 2011, o réu marido comunicou aos Serviços de Ação Social de Tábua e do Centro de Saúde de Tábua que o autor residia sozinho, que se encontrava doente e que não possuía quaisquer familiares próximos que o auxiliassem (ponto 20 da matéria de facto), após o que o autor declarou que preferia permanecer numa instituição durante os períodos diurno e noturno. Ora, os réus não demonstram a ocorrência de qualquer causa justificativa para o seu incumprimento – a declaração do autor no sentido de que pretendia permanecer numa instituição no período diurno e noturno é posterior ao pedido dos réus de intervenção dos Serviços de Ação social e de saúde, surgindo este pedido como um reconhecimento de que não iriam cumprir com o acordado, constituindo tal declaração uma consequência deste pedido –, nomeadamente que as circunstâncias se houvessem alterado e que existisse algum motivo médico ou outro a impor o internamento do autor ou que os impossibilitasse de prestar pessoalmente os cuidados ao autor. De qualquer modo, mesmo que se integrasse a situação em apreço numa impossibilidade de incumprimento e que a mesma não lhes fosse imputável – tal circunstancia apenas seria relevante para efeitos de excluir a sua responsabilidade pelos prejuízos decorrentes de tal incumprimento –, nunca lhe permitindo reter a prestação que receberam em troca dos prometidos serviços. Com efeito, se a obrigação se extingue quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor (nº1 do artigo 790º do CC), sendo o contrato bilateral fica o credor desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa (nº1 do art. 795º). Como tal, concluindo-se pelo incumprimento por parte dos réus, incumprimento que lhes é imputável, tem o autor direito à resolução do contrato, sendo os réus obrigados à restituição ao autor dos 15.000,00 € que este lhes entregou (artigos 432º, 433º e 43º, do CC). Quanto ao pedido de indemnização, não tendo o autor logrado a alteração da decisão da matéria de facto a tal respeito – o autor não provou a ocorrência dos alegados danos morais – mantém-se, nesta parte, o juízo de improcedência formulado na primeira instância. A apelação é de proceder parcialmente. IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se a decisão recorrida, e condenando os réus a restituírem ao autor a quantia de 15.000,00 €. Custas na ação e na apelação, a suportar por Autor e réus, na proporção do vencimento.
Coimbra, 10 de fevereiro de 2015
Maria João Areias ( Relatora ) Fernando Monteiro Inês Moura
V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC. 1. As dificuldades de prova respeitantes a factos difíceis de demonstrar, como o são as intenções, podem ser ultrapassadas mediante a atenuação do grau de prova exigível ao onerado para que determinado facto seja dado como provado, recorrendo-se a factos indiciários, para deles se presumir o facto a provar. 2. Sendo a prestação e a contraprestação de valor sensivelmente equivalente, não podemos falar em doação, mas num contrato inominado atípico. 2. O incumprimento definitivo por uma das partes, dá à outra o direito à resolução do contrato e à restituição do recebido.
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