Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
149/15.5PFCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
DEVERES
REGRAS DE CONDUTA
PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
Data do Acordão: 05/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (COIMBRA – SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA LOCAL DE COIMBRA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 50.º, 51.º E 52.º DO CP
Sumário: A lei substantiva penal não permite a subordinação da suspensão da execução da pena de prisão à condição de cumprimento de prestação de trabalho a favor da comunidade.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:                 

                                                                                 

I. Relatório:                                                                                                                        

No âmbito do processo abreviado n.º 149/15.5PFCBR que corre termos na Comarca de Coimbra – Coimbra – Instância Local – Secção criminal – J2, em 20/5/2016, foi proferida Sentença, cujo Dispositivo é o seguinte:

DECISÃO:

Pelo exposto, julgo procedente por provada a acusação e, consequentemente, condeno o arguido, A...., solteiro, empregado de mesa, filho de (...) e de (...) , nascido em 27/08/1992, natural da freguesia (...) , município de Tomar, residente na Rua (...) , Coimbra, pela prática, como autor material e em concurso real, de:

a) Um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo art.º 347.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal;

b) Um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.º 3.º, n.ºs 1 e 2, do Dec.-Lei 2/98, de 03/01, respetivamente, nas penas de:

- 1 (um) ano de prisão;

- 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.

Operando o cúmulo jurídico dessas penas parcelares, cuja soma material corresponde a 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, e considerando conjuntamente os factos provados e o que se apurou acerca da personalidade do arguido, nos termos do art.º 77.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Penal, condeno o arguido na pena única de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão.

Vistas as circunstâncias acima mencionadas e relativas ao arguido, nos termos dos art.ºs 50.º, n.ºs 1, 2, 3, 4 e 5, e 51.º, n.ºs 1, proémio, 2 e 4, do Código Penal, o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada, pelo período idêntico ao da pena, subordinada ao cumprimento do dever de prestação de 480 (quatrocentas e oitenta) horas de trabalho a favor da comunidade, para instituição a indicar, oportunamente, pelos serviços de reinserção social, que fiscalizarão o cumprimento de tal dever.

*

Custas a cargo do arguido, com taxa de justiça que se fixa, ponderada a “complexidade da causa”, em 3 UCs, compreendendo, ainda, os respetivos encargos (art.ºs 513.º, n.º 1, 514.º, n.º 1, do Cód. de Proc. Penal, 8.º, n.º 9, e Tabela Anexa III, do Regulamento das Custas Processuais).

*

Após trânsito em julgado:

a) Remeta boletim ao Registo Criminal – art.ºs 5.º, n.ºs 1, 2 e 3, 6.º, al. a), e 7.º, n.ºs 1, al. a), e 2, da Lei 37/2015, de 05/05;

b) Remetendo cópia da presente sentença, solicite aos serviços de reinserção social a elaboração, no prazo de 15 (quinze) dias, de plano destinado ao cumprimento do dever de prestação de trabalho a favor da comunidade.

*

Proceda-se ao depósito da presente sentença.

****

Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 9/11/2016, o arguido, extraindo da motivação as seguintes CONCLUSÕES:

1º) Na opinião do recorrente a sentença proferida encontra-se ferida de nulidade.

2º) O arguido, considerado notificado para a realização de julgamento, efetivamente, não o foi, porquanto tal notificação foi dirigida para uma residência sita no Bairro R (...) , quando há muito o mesmo já lá não habitava na sequência de ação de despejo intentada pelo município.

3º) Ainda que se considere que o recorrente foi regularmente notificado do despacho que designou data para a realização do julgamento, entendemos que não foi cumprido o estatuído no art. 333º do CPP.

4º) Com efeito, pese embora o arguido não estar presente na sessão de julgamento, não resulta que tenham sido ordenadas quaisquer diligências com o objetivo de assegurar a presença do mesmo em julgamento.

5º) Não foram assim respeitadas as exigências legais impostas pelo art. 333º do CPP, do que resulta uma significativa limitação do núcleo essencial dos direitos de audição, de defesa e de contraditório, garantidos no art. 32º da Constituição, o que é gerador de nulidade.

6º) E o mesmo se diga no que tange à data agendada para leitura do acórdão, que teve lugar em 20 de Maio de 2016.

7º) De acordo com o disposto no n.º 10 do art. 113º do CPP, as notificações que designam o dia para julgamento têm que ser feitas pessoalmente ao arguido.

8º) Compulsados os autos, constata-se que a designação de data para a continuação da audiência com a leitura da sentença, não foi objeto de qualquer comunicação ao arguido.

9º) Se é certo que o art. 333º do CPP confere ao Tribunal o poder de iniciar a audiência de julgamento sem a presença dos arguidos, e no limite, terminá-la, não o dispensa do dever de notificar pessoalmente o arguido da data marcada para a realização de mais alguma sessão de julgamento, que não estivesse antes marcada ou prevista, vindo a mesma a ocorrer, até porque o arguido, nos termos do n.º 3 daquele dispositivo, mantém o direito de prestar declarações, se assim o entender, até ao final da audiência e de estar presente na leitura pública da sentença.

10º) A realização da audiência onde se procede à leitura da sentença na ausência do arguido que para tal não foi notificado e sem que tenha sido tomada qualquer providência para obter tal comparência, constitui uma nulidade insanável, prevista no art. 119º, alínea c) do CPP.

11º) A ausência de notificação da sessão para leitura da decisão, tem como consequência a invalidade dos atos praticados devendo o tribunal efetuar a respetiva repetição, após realização das diligências de notificação do arguido para comparecer em tal diligência (entre outros Ac. do TRG de 02-12-2013 /in www.dgsi.pt, Ac. TRC de 08-10-2014 in www.dgsi.pt).

Sem prescindir do supra exposto,

12º) Sobre o desfecho do processo, apesar de o mesmo ser injusto porquanto o arguido clama e clamará sempre pela sua inocência e consequente absolvição, o mesmo não surpreende o aqui recorrente.

13º) Na verdade, não tendo este tido a possibilidade de se defender, não tendo sido ouvida a proprietária do veículo referido no contexto espácio temporal da acusação, difícil seria que o desfecho fosse diferente do conhecido.

14º) Sem prejuízo do exposto, dir-se-á que se quanto às penas parcelares as mesmas se afiguram justas e equilibradas, no que respeita à pena única encontrada, esta encontra-se a um mês do limite máximo previsto no art. 77º, n.º 2 do C.P., o que salvo o devido respeito, nos parece um exagero.

15º) Quanto à condição a que está subordinada a suspensão da execução da pena - prestação de 480 horas de trabalho a favor da comunidade - parece-nos salvo o devido respeito, injusta e legalmente inadmissível, porque destituída do consentimento do arguido.

16º) Salvo melhor entendimento, e atento o disposto no art. 58º, n.º 5 do C. P. a prestação de trabalho comunitário, seja enquanto pena de substituição, seja como condição de suspensão da execução da pena, pressupõe o consentimento do arguido, o que no caso não se verificou.

Normas violadas: art. 113º, n.º 10, 119º, 333º do CPP, art. 40º, 50º, 51º, 58º, 70º, 71º do C.P art. 32º da CRP.

****

            O recurso, em 15/11/2016, foi admitido.

****

            O Ministério Público, em 11/1/2017, respondeu ao recurso, defendendo a improcedência do mesmo, apresentando as seguintes conclusões:                      

1. Não se verifica qualquer vício, nomeadamente a invocada nulidade insanável prevista no artigo 119.º, c), do CPP.

2. A pena única de prisão aplicada ao arguido traduz uma equilibrada e adequada aplicação dos critérios estabelecidos nos artigos 40.º, 41.º, 70.º e 71.º, do Código Penal.

3. A obrigação a que foi condicionada a suspensão da execução da pena de prisão não depende da aceitação do arguido.

4. Não foram violadas quaisquer normas legais, nomeadamente as dos artigos 40.º, 41.º, 50.º, 51.º, 70.º e 71.º, do Código Penal, e 333.º e 361.º, do CPP.

****

Já no Tribunal da Relação de Coimbra, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu, em 1/2/2017, douto parecer, no qual defendeu que o recurso não merece provimento

Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.

Colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.


****

II. Decisão Recorrida:

            “A) DOS FACTOS PROVADOS:

Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:

1 – No dia 04 de Julho de 2015, pelas 04H50, na Rua da Sofia, em Coimbra, em direção à Rua Figueira da Foz, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a marca e modelo Ford Focus e a matrícula (...) NC, registado em nome de M (...) ;

2 – Nessa ocasião, o arguido deparou-se com uma patrulha da Equipa de Intervenção Rápida da Esquadra da Intervenção e Fiscalização Policial do Comando Distrital de Coimbra da PSP, em missão de fiscalização rodoviária;

3 – Composta pelos agentes da PSP R (...) e B (...) ;

4 – Os quais se encontravam devidamente uniformizados e utilizavam colete refletor e lanterna de sinalização (tipo cone);

5 – O local encontrava-se bem iluminado e tem boa visibilidade;

6 – Na referida ocasião e local, o agente da PSP R (...) deu ordem de paragem ao veículo conduzido pelo arguido;

7 – Posicionando-se aquele, com antecedência, na faixa de rodagem e levantado o braço com a palma da mão para a frente;

8 – O arguido abrandou a sua marcha, como se fosse parar;

9 – Ao chegar próximo da zona de fiscalização, acelerou bruscamente o veículo por si conduzido na direção do agente da PSP R (...) ;

10 – Forçando-o a saltar para o passeio, para evitar ser embatido;

11 – Colocando-se, de seguida, o arguido em fuga, para parte incerta;

12 – Na referida ocasião, o arguido não era titular de carta de condução ou de outro documento com força legal equivalente;

13 – O arguido sabia que não podia conduzir veículos automóveis na via pública, sem para tal estar devidamente habilitado;

14 – O arguido agiu com o propósito de não acatar a ordem de paragem que lhe foi feita pelos agentes, dirigindo contra o agente da PSP R (...) o veículo automóvel, de modo a obstar à sua fiscalização, sabendo que se tratava de membro das forças de segurança no exercício das suas funções e de ter compreendido a ordem que lhe foi transmitida;

15 – Atuou o arguido de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo a proibição e punição penal das condutas referidas;

16 – O arguido tem inscritas, no respetivo registo criminal, as condenações constantes do certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 48 e ss., cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido.

*

B) DOS FACTOS NÃO PROVADOS:

Inexistem factos não provados.

Não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa.

C) DA MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:

Os factos dados como provados foram assim considerados tendo em atenção a prova produzida e analisada em audiência de julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do tribunal (art.ºs 127.º e 355.º do Cód. de Proc. Penal). Designadamente:

Em relação às circunstâncias de tempo, modo e local, exercício da condução e demais comportamento do arguido, o Tribunal atendeu aos circunstanciados e conjugados depoimentos prestados pelas testemunhas R (...) , agente da PSP que intentava proceder à fiscalização do arguido, tendo-o observado diretamente, e B (...) , outrossim agente da PSP que integrava a mesma brigada e se encontrava nas proximidades, em articulação, outrossim, com o teor do auto de notícia, no que respeita à precisão temporal dos eventos.

Com efeito, ambas as testemunhas, já conhecedoras do arguido do exercício da sua atividade profissional, descreveram o que diretamente presenciaram de forma coerente, espontânea e desinteressada, facilmente identificando o arguido enquanto condutor, pelo assinalado aspeto do seu conhecimento e pela fácil observação do interior do veículo, transitando por artéria dotada de boa iluminação pública.

A ausência de titularidade de carta de condução assentou-se com base na informação colhida na pesquisa na base de dados do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, a fls. 4.

O conhecimento da ilicitude e a vontade de ação, quanto à condução sem habilitação legal, provaram-se com base nas regras gerais da experiência: a vontade de ação e conhecimento das características do veículo e da via é decorrente da própria normalidade da vida social, sendo do saber geral dos cidadãos as características e qualificações dos veículos, bem como a perceção que têm dos espaços por onde circulam e a exigência de especial habilitação para a condução de veículos com motor na via pública, não se afigurando possível que o arguido circulasse aos comandos do veículo em causa sem ser por determinação da sua própria vontade ou que desconhecesse a ilicitude e a punibilidade da sua conduta, também, regra geral, do domínio do saber do comum dos cidadãos, particularmente do arguido, já anteriormente condenado pela prática de crimes de idêntica natureza.

Quanto ao mais, pela própria conduta empreendida e seu circunstancialismo, outrossim se não descortina outro propósito que não aquele de uma conduta deliberada, no sentido de obstar à atuação do agente da PSP na concretização da fiscalização, missão que, ostensivamente, empreendia, não se afigurando, ademais, plausível que o arguido pudesse desconhecer a punibilidade de tal comportamento, do geral conhecimento dos cidadãos.

No que respeita aos antecedentes criminais, foi considerado o certificado de registo criminal junto aos autos.

*

D) DA FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DE DIREITO:

Da Responsabilidade Penal:

a) Do crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal:

[…].

*

b) Do crime de resistência e coação sobre funcionário:

[…].

*

Da Determinação da Pena:

[…].

*

Da medida concreta da pena:

[…].

*

Da medida da pena do concurso:

[…].

*

Da suspensão da execução da pena de prisão:

O art.º 50.º do Código Penal permite a suspensão da execução da pena de prisão, nos seguintes termos:

“1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.

3 - Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.

4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.

5 - O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão”.

Sobre os deveres, prescreve o art.º 51.º do citado compêndio substantivo: “1 - A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:

a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;

b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;

c) Entregar a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente.

2 - Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.

3 - Os deveres impostos podem ser modificados até ao termo do período de suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tiver tido conhecimento.

4 - O tribunal pode determinar que os serviços de reinserção social apoiem e fiscalizem o condenado no cumprimento dos deveres impostos”.

Quanto a regras de conduta, dispõe o art.º 52.º do Código Penal: “1 - O tribunal pode impor ao condenado o cumprimento, pelo tempo de duração da suspensão, de regras de conduta de conteúdo positivo, suscetíveis de fiscalização e destinadas a promover a sua reintegração na sociedade, nomeadamente:

a) Residir em determinado lugar;

b) Frequentar certos programas ou atividades;

c) Cumprir determinadas obrigações.

2 - O tribunal pode, complementarmente, impor ao condenado o cumprimento de outras regras de conduta, designadamente:

a) Não exercer determinadas profissões;

b) Não frequentar certos meios ou lugares;

c) Não residir em certos lugares ou regiões;

d) Não acompanhar, alojar ou receber determinadas pessoas;

e) Não frequentar certas associações ou não participar em determinadas reuniões;

f) Não ter em seu poder objetos capazes de facilitar a prática de crimes.

3 - O tribunal pode ainda, obtido o consentimento prévio do condenado, determinar a sua sujeição a tratamento médico ou a cura em instituição adequada.

4 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo anterior”.

Tendo em consideração o juízo de prognose favorável que mereceu o arguido na posterior condenação e a circunstância de se tratar da primeira condenação pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, afigura-se que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, maxime a ressocialização do arguido, sobretudo se essa suspensão, ponderadas as apontadas exigências de afirmação do Direito perante a comunidade e o arguido, for subordinada ao dever de prestação de trabalho a favor da comunidade, para instituição a indicar, oportunamente, pelos serviços de reinserção social, como modo de interiorização mais instante dos valores jurídicos postos em causa e reforço do sentimento comunitário da vigência do Direito.

Mostra-se razoável, tendo em atenção a dosimetria penal determinada, ser de fixar tal prestação no limite máximo previsto para a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade (cfr. art.º 58.º, n.º 3, do Cód. Penal), ou seja, 480 (quatrocentas e oitenta horas).”

****

III. Apreciação do Recurso:

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.

Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

            São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

As questões a conhecer são as seguintes:

            1 – Saber se o arguido foi corretamente notificado para a audiência de julgamento.

            2 – Saber se a pena única aplicada se mostra desadequada.

            3 – Saber se a condição de prestação de trabalho a favor da comunidade a que foi subordinada a suspensão da execução da pena não é legalmente admissível em virtude de o arguido não ter dado o seu consentimento.

                                                           ****

1 - Da notificação do arguido para a audiência de julgamento:

O arguido, no dia 9/12/2015, prestou TIR nos presentes autos, tendo-lhe sido dado conhecimento das obrigações a que se refere o artigo 196.º, n.º 3, do CPP, conforme resulta de fls. 41.

Indicou, então, como sua residência, “Bairro R... (...) , Lote 7, R/C Esquerdo.”

Uma vez que, após tal data, nada comunicou aos autos, a notificação efetuada a fls. 56 tem de ser considerada como válida.

Acontece que o arguido não compareceu na 1ª data designada para julgamento e não justificou a falta, tendo sido, por isso, condenado em multa.

A audiência decorreu na sua ausência.

Terminada a produção da prova, nada foi requerido pelo ilustre defensor oficioso do arguido, no âmbito do disposto no artigo 333.º, n.º 3, do CPP, pelo que houve lugar a alegações e designado dia para a leitura da sentença – ver ata de fls. 61e 61 verso.

Logo, não se coloca sequer a hipótese de o arguido dever ser notificado para estar presente numa outra data.

Com efeito, a este propósito, há que ter em consideração o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 9/2012, de 8/3/2012, publicado no DR n.º 238, I Série, de 10/12/2012, p. 6931, em que foi decidido o seguinte:

Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade, nos termos do nº 1 do artigo 333º do CPP, deverá dar início ao julgamento, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença do arguido, e poderá encerrar a audiência na primeira data designada, na ausência do arguido, a não ser que o seu defensor requeira que ele seja ouvido na segunda data marcada, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.

Acompanhamos na íntegra esta posição.

Assim sendo, tem de soçobrar a pretensão do recorrente.

                                                           ****

2 – Da pena aplicada:

O recorrente não coloca em causa as penas parcelares.

Pugna, apenas, pela redução da pena única.

A este propósito, limita-se a alegar o seguinte:

“(…) no que respeita à pena única encontrada, esta encontra-se a um mês do limite máximo previsto no artigo 77.º, n.º 2, do C.P., o que, salvo o devido respeito, nos parece um exagero afastando-se aqui o tribunal do equilíbrio e da sensatez que presidiu à escolha dos quantum aplicados a título de penas parcelares.”

Se bem repararmos, o recorrente não avança com qualquer argumento concreto que justifique uma redução da pena, já que apenas transmite a sua perceção quanto ao decidido pelo tribunal recorrido.

Como todos sabem, o tribunal de recurso deve intervir na alteração da pena concreta, apenas quando se justifique uma alteração minimamente substancial, isto é, quando se torne evidente que foi aplicada, sem fundamento, com desvios aos critérios legais.

No caso em apreço, não vislumbramos motivo para alterar a pena única.

Na verdade, face a tudo o que consta, nesta matéria, da fundamentação da sentença, não pode ser menosprezado, além do mais, que o arguido apresenta diversas condenações por condução sem habilitação legal.

Mais, os factos ora em causa tiveram lugar durante o período da suspensão de execução de uma pena de prisão, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade.

Em síntese, nenhum fator existe nos autos que possa justificar uma pena mais baixa.

                                                           ****

3 – Da ausência de consentimento do arguido à condição de prestação de trabalho a favor da comunidade:

É alegado que, atento o disposto no artigo 58.º, n.º 5, do Código Penal, a prestação de trabalho comunitário, seja enquanto pena de substituição, seja como condição de suspensão da execução da pena, pressupõe o consentimento do arguido.

Assiste, nesta parte, razão ao recorrente.

A lei, ao referir-se à prestação de trabalho a favor da comunidade, enquanto pena de substituição, impõe a aceitação do condenado.

Permitir que, enquanto dever imposto em sede de suspensão da execução da pena, tal aceitação fosse de afastar, iria criar uma situação de trabalho forçado, cuja natureza não tem cobertura legal.

Não é razoável exigir a alguém que trabalhe sem uma contrapartida monetária e, mais do que isso, contra a sua vontade.

Aliás, impor uma condição como a que consta da sentença recorrida não se coaduna com a natureza da suspensão da execução da pena - ver, neste sentido, o Acórdão do TRE, de 20/1/2015, Processo 584/12.0GEALR.E1, relatado pela Exma. Desembargadora Ana Barata de Brito, in www.dgsi.pt, no qual pode ser lido o seguinte:

“(…). Na verdade, não se apresenta como juridicamente admissível condicionar a suspensão da execução da pena de prisão à prestação de trabalho, “mesmo que em instituições de solidariedade social e ainda que dispondo do consentimento do condenado” (assim, Figueiredo Dias, loc. cit., p. 354).

As consequências jurídicas do crime encontram-se submetidas ao princípio da legalidade e da tipicidade (art. 29º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e art. 1º do Código Penal), que abrange a definição das penas, as condições da sua aplicação, o controlo das fontes, a proibição da retroatividade, a proibição da analogia contra reo.

A “suspensão da execução da prisão” e a “prestação de trabalho a favor da comunidade” são duas penas de substituição de diferente natureza, que o Código Penal prevê e trata nos arts 50º a 57º e arts 58º e 59º, respetivamente.

Condicionar a suspensão da prisão a uma prestação de trabalho comunitário redundaria numa “mistura arbitrária – e violadora, por conseguinte, do princípio da legalidade da pena – de duas diferentes penas de substituição, cada qual com o seu sentido e os seus pressupostos próprios” (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 354).”

****

IV – DECISÃO:

Nos termos expostos, acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso, revogando-se a decisão na parte em que condicionou a suspensão da pena de prisão à prestação de trabalho comunitário, mantendo-se em tudo o mais a sentença.

Sem custas.

****

(Elaborado e revisto pelo relator, antes de assinado)

                                                                       ****

Coimbra, 17 de Maio de 2017

(José Eduardo Martins – relator)

(Maria José Nogueira – adjunta)