Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
316/10.8PTAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
PROVA TESTEMUNHAL
LIVRE CONVICÇÃO DO JULGADOR
Data do Acordão: 09/08/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA (ÍLHAVO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 124º,125º,127º128º , 412ºE 428º DO CPP
Sumário: 1.O recurso sobre a matéria de facto é um remédio para corrigir erros patentes de julgamento sobre a matéria apontados pelo recorrente e tendo por base a sua argumentação que pode levar a decisão diversa.
2 O Tribunal da Relação, no recurso sobre a matéria de facto, não tem que reexaminar toda a prova produzida, mas apenas aquela que, sem prejuízo do disposto no artigo 412º,nº6 do CPP, o recorrente, concretizando-a, tem como deficientemente apreciada.
3. A norma do art.127.º do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprida quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.
Decisão Texto Integral: pág. 10
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado foi proferida sentença que julgou procedente a acusação deduzida contra o arguido:
E, segurança, divorciado, filho de J. e de M. nascido em 28. 1968, … Aveiro, residente … Aveiro,
Sendo decidido:
- Condenar o arguido como autor material, sob a forma consumada, de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º, nº 1, do Código Penal, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante global de € 375,00 (trezentos e setenta e cinco euros).
- Condenar o arguido, nos termos do art. 69º, nº 1, al. a), do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos motorizados pelo período de 5 (cinco) meses, devendo, no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado desta decisão, entregar, a sua carta de condução na Secretaria deste Tribunal ou em qualquer Posto Policial que a deve, nesse caso, remeter àquela
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Inconformado interpôs recurso o arguido.
São do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do seu recurso, e que delimitam o objecto do mesmo:
QUANTO À MATÉRIA DE FACTO
1-A douta sentença recorrida baseia-se tão-somente no depoimento da testemunha de acusação, L, Agente da PSP de Aveiro, que disse no seu depoimento que o arguido havia dito e passo a citar: "sou eu o condutor e proprietário do veículo", não tendo a mesma, visto o arguido a conduzir ou a efectuar qualquer manobra com o respectivo veículo.
2-A douta sentença recorrida não teve em conta nem o depoimento do arguido, que em sede de audiência por várias vezes afirmou que não era ele quem ia a conduzir o veículo em causa, nem o depoimento da testemunha de defesa, J, que afirmou, estando sob juramento, que era ele que ia a conduzir o veículo uma vez que o arguido não se encontrava em condições para conduzir.
3-O tribunal formou a sua convicção, apenas no depoimento da testemunha de acusação, L da PSP de Aveiro, afirmando não considerar credíveis os depoimentos do arguido e da testemunha de defesa, J.
4-Não pretendendo por em causa o árduo trabalho das autoridades policiais, nem o seu senso de justiça, não posso contudo deixar de salientar, que por ser um agente policial tem mais credibilidade que um cidadão comum.
Deverá o recurso ser julgado procedente e revogada a sentença recorrida, absolvendo-se o arguido.
Foi apresentada resposta, pelo magistrado do Mº Pº que conclui:
1-O princípio da imediação traduz-se no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, permitindo-lhe ter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão.
2-Assim sendo, no caso sob júdice e em aplicação de tal princípio, face ao depoimento da testemunha de defesa arrolada pelo arguido, a sua versão de ser o condutor do veículo automóvel, na data e local dos factos, revelou-se pouco espontâneo, nada convincente, e pouco credível, isto é, de que seria a mesma e não o arguido a conduzir o referido veículo automóvel na data e local dos factos.
3-Pelo que, a sentença do Tribunal "a quo" que determinou a condenação do arguido pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, se revela ajustada.
Deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.
Nesta Instância, o Ex.mº Procurador Geral Adjunto, em parecer emitido, sustenta a improcedência do recurso.
Foi cumprido o art. 417 nº 2 do CPP.
Não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.
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Mostra-se apurada, a seguinte matéria de facto e fundamentação da mesma:
II. Factualidade provada
Da discussão da causa, resulta provado o seguinte com interesse para a decisão:
1. No dia 9 de …. de 2010, cerca das 04:21 horas, o arguido conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula 23-…ML, na Rua …, freguesia de Vera Cruz, Aveiro;
2. Nessa altura, foi submetido ao teste para detecção de álcool através do ar expirado, tendo acusado uma taxa de álcool no sangue de 2,11 g/l;
3. O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que não podia conduzir na via pública após a ingestão de bebidas alcoólicas e que tal conduta era criminalmente punida;
4. É segurança, estando desempregado desde Outubro do ano transacto;
5. Recebe a título de subsídio de desemprego a quantia de €: 350,00;
6. Vive em casa própria, pagando de empréstimo pela sua aquisição o montante mensal de €: 60,00;
7. Possui o 9º ano de escolaridade;
8. O arguido tem antecedentes criminais, tendo já sido condenado em pena de prisão 3 anos suspensa pelo mesmo período pela prática, em 20 de Março de 2000, de um crime de tráfico de estupefacientes, pena essa que já se encontra extinta pelo seu cumprimento.
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Nada mais se provou com relevância para a decisão da causa.
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III. Fundamentação da convicção do Tribunal
O Tribunal formou a sua convicção com base em toda a prova produzida em audiência de julgamento.
O arguido declarou que, no dia, hora e local em que ocorreram os factos, o veículo, sua propriedade, era conduzido pela testemunha J., uma vez que não se sentia em condições para o fazer pois havia ingerido várias bebidas de teor alcoólico. Que após terem sofrido um acidente (embate num passeio), as entidades policiais foram chamadas ao local, tendo pedido a documentação ao arguido uma vez que este se apresentou como proprietário do veículo. De seguida, levaram-no até ao posto da PSP onde efectuou o teste de pesquisa de álcool no sangue tendo o arguido, nesta altura, se insurgido com tal actuação uma vez que, segundo refere, não era o condutor do veículo quando ocorreu o acidente.
Esta versão dos factos apresentada pelo arguido não nos ofereceu credibilidade. Desde logo, a testemunha L, agente da PSP de Aveiro, que procedeu à detenção do arguido e elaborou o respectivo auto, não obstante ter sido insistentemente questionado, de forma clara e sem qualquer hesitação referiu que se dirigiu ao local face à ocorrência de um acidente tendo o arguido logo se identificado como condutor e proprietário do veículo acidentado. De seguida, adoptou todos os procedimentos habituais nestas situações, afirmando peremptoriamente que o arguido nunca negou ser o condutor do veículo.
Acresce que, a testemunha J, amigo do arguido há cerca de 30 anos que, segundo a versão deste, era o condutor do veículo, prestou um testemunho que não nos pareceu consistente e espontâneo, patente, desde logo, no facto de não ser capaz de explicar a razão porque não se apresentou perante as autoridades policiais como condutor do veículo, havendo que realçar o facto de se ter ausentado do local durante 15 a 20 minutos logo após o acidente, só regressando quando os agentes da PSP já haviam sido chamados.
Teve-se ainda em conta o talão de fls. 4 e o certificado de registo criminal de fls. 22 e 23.
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Conhecendo:
A recorrente insurge-se contra a matéria de facto apurada, alegando que a prova foi mal apreciada.
Que o tribunal formou a convicção em exclusivo no depoimento da testemunha de acusação, ignorando as declarações do arguido e o depoimento da testemunha de defesa.
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Matéria de facto:
Embora o recurso da matéria de facto não cumpra todos os requisitos expostos no art. 412 do CPP, é de simples percepção o teor da impugnação, daí a desnecessidade de qualquer aperfeiçoamento.
A matéria de facto apurada (factos provados e não provados) há-de resultar da prova produzida (declarações, depoimentos, pareceres documentos) conjugada com as regras da experiência comum.
Também, se dirá que o recurso não tem como funcionalidade reexaminar a matéria de facto, e o recurso não serve para um novo julgamento.
Não há que reexaminar toda a prova produzida, mas apenas aquela que (concretizando-a) o recorrente tem como deficientemente apreciada.
O recurso sobre a matéria de facto é um remédio para corrigir patentes erros de julgamento sobre matéria apontada pelo recorrente e tendo por base a sua argumentação que pode levar a decisão diversa e apenas isso.
O recorrente questiona a matéria de facto, colocando em causa a prova e a apreciação da mesma.
Desde já se diz, e conforme se constata das declarações e depoimentos prestados, que não assiste razão ao recorrente.
É certo e conforme refere o recorrente, da conjugação das suas declarações e do depoimento testemunha J, deveria resultar serem outros os factos provados. No entanto, olvida a recorrente que também há que ter em conta e ponderar, o depoimento da testemunha de acusação L.
E, não aconteceu como o recorrente diz na conclusão 2ª que a sentença não teve em conta o depoimento do arguido, nem o depoimento da testemunha de defesa, pois que tais depoimentos foram tidos em conta, como o recorrente reconhece na conclusão 3ª, só que na sentença se considerou “não considerar credíveis os depoimentos do arguido e da testemunha de defesa”. Se não foram considerados credíveis, foram tidos em conta, embora pela negativa.
Assim como os depoimentos são valorados não em função da profissão de quem os presta, mas pelo grau de credibilidade e convencimento do julgador. Assim que se tem como lapso na conclusão 3ª ao afirmar-se “…que por ser um agente policial tem mais credibilidade que um cidadão comum”, quando se quereria dizer que por ser agente policial não tem mais credibilidade que o cidadão comum.
Como se refere no Ac. desta Rel. de 28-04-2009, proc. 435/07.8PATNV.C1 “As provas produzidas têm de ser apreciadas não apenas por aquilo que isoladamente valem, mas também valorizadas globalmente, isto é no sentido que assumem no conjunto de todas elas”.
E não basta o recorrente alegar que o juiz fundamentou toda a decisão no depoimento da testemunha de acusação por ser agente policial. Há que concretizar as contradições e incongruências de cada depoimento, para que de forma justificada se compreenda o motivo alegado pelo recorrente de se julgar inverosímil o depoimento da acusação. Não é suficiente alegar que é contrário ao depoimento de arguido e testemunha de defesa, até porque estes depoimentos foram tidos como não merecedores de crédito.
Para o julgador, que presidiu ao julgamento e perante quem os depoimentos foram prestados (oralidade e imediação), os da acusação foram os que o convenceram.
Face ao exposto, e conforme as regras da experiência, o julgador só poderia convencer-se nos termos em que se convenceu, valorando a prova que teve como coerente e isenta.
A prova é valorada tal qual é produzida em audiência, sendo a prova testemunhal perante os depoimentos orais e a imediação.
No nosso ordenamento jurídico/processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova, sendo esta valorada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador -, art. 127°do C. P. Penal.
As normas da experiência são, como refere o Prof. Cavaleiro de Ferreira, «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.» - Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, pág.300.
E, não se trata de apreciação arbitrária, antes tendo como pressupostos valorativos os critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica.
Conforme as regras da experiencia é que o arguido quando o agente de autoridade chega ao local do acidente e pergunta quem era o condutor, logo dissesse quem era. E in casu disse que era ele.
Assim como é normal e conforme ás regras da experiência o veículo ser conduzido pelo seu dono.
Fora da normalidade e desconforme às regras da experiência é alguém assumir-se como condutor do veículo e mais tarde, após ser submetido ao teste de alcoolemia e ter acusado taxa positiva, vir dizer que afinal o condutor era um amigo, pessoa que nem sequer estava no local do acidente quando chegou o agente da autoridade.
Do depoimento do agente da autoridade resulta à saciedade (por insistência das perguntas) que havia perguntado quem era o condutor e o arguido respondeu que era ele. Que ainda no local fez o teste de despistagem ao arguido e acusando álcool levaram-no à esquadra onde fizeram o teste quantitativo, com os resultados constantes do talão.
Perante a normalidade do acontecer, logo no local e ao pretender-se fazer o teste de despistagem do teor alcoólico, o arguido diria que quem conduzia era outro (que até estava no local). Mas ambos se calaram.
Segundo as regras da experiência e após serem ouvidos os depoimentos, verifica-se que a versão dos factos narrada pelo arguido e testemunha de defesa, não passa de “uma história bem engendrada”, mas em nada convincente. Mas com “alguns rabos de fora”, pois que o arguido nas suas declarações em audiência refere que “tinha tido um acidente no meu carro”, assim como mais tarde diz “não era preciso nada”, que “mudava o pneu e ia embora”, expressões que indiciam ser ele o condutor.
O princípio da livre apreciação da prova está intimamente ligado à obrigatoriedade de motivação ou fundamentação fáctica das sentenças criminais, com consagração no art. 374°/2 do Código de Processo Penal. E essa motivação consta da sentença recorrida, conforme transcrição supra.
E não dispensa a prova testemunhal um tratamento cognitivo por parte do julgador mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objecto de formulação de deduções ou induções baseadas na correcção de raciocino mediante a utilização das regras de experiência.
A atribuição de credibilidade ou da não credibilidade a uma fonte de prova por declarações assenta numa opção motivável do julgador na base da sua imediação e oralidade que o tribunal de recurso só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum. O juiz é livre de formar a sua convicção no depoimento de um só declarante em desfavor de testemunhos contrários, cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 207.
Refere Figueiredo Dias que só a oralidade e a imediação permitem o indispensável contacto vivo com o arguido (assistente e testemunhas) e a recolha deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabelece-se com o tribunal de 1ª instância, e daí que a alteração da matéria de facto fixada em decisão colegial deverá ter como pressuposto a existência de elemento que, pela sua irrefutabilidade, não afecte o princípio da imediação.
Observe-se que a decisão da primeira instância será sempre o resultado duma «convicção pessoal» nela desempenhando papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionais não explicáveis -, v. g. a credibilidade que se concede a determinado meio de prova -, pelo que o tribunal de recurso ao apreciar a prova por declarações deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido.
Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de Março de 2002 ( C.J. , ano XXVII , 2º , página 44 ) , “ quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade , o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
Paulo Saragoça da Matta, in Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 253, refere que se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração.
Como se refere no recurso desta Rel. nº 4172/05, de 15-03-2006, “Para respeitar os princípios da oralidade e da imediação, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das soluções possíveis segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso”.
Como se salienta no Ac. da rel. de Lx. de 12-12-2006, in col. jurisp. tomo V, pág. 136, “o local ideal para apreciar criticamente as provas é a audiência de discussão e julgamento, em que os julgadores dispõem de melhores condições para as apreciar. A conclusão que se impõe é que, perante o texto da decisão recorrida, nada ressalta que indique apreciação notoriamente errada”.
A que o recorrente pretende é que o tribunal de recurso faça um novo julgamento e que julgue de acordo com as suas próprias convicções e não segundo as regras de experiência e a sua livre convicção, como disciplina o art. 127 do CPP.
E, diremos que o preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.
O alegado pela recorrente não abala os fundamentos da convicção do julgador, que temos conformes às regras da experiência.
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Pelo exposto, entendemos ter ficado demonstrada a sem razão do recorrente, não merecendo qualquer censura a sentença recorrida, pelo que improcedem todas as conclusões do recurso.
Decisão:
Acordam os Juízes desta Relação e Secção Criminal em negar provimento ao recurso do arguido E. e, em consequência, mantém-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 Ucs.

Coimbra,
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