Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
69/11.2TBPPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: BALDIOS
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CAUSA DE PEDIR
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JC CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 30, 33, 186, 104, 278, 577, 581 CPC, LEI Nº 68/93 DE 4/9
Sumário: I - O conhecimento oficioso da exceção da incompetência territorial do tribunal apenas é exigível quando: «os autos fornecerem os elementos necessários»: artº 104º nº1 do CPC, vg. através do invocante da mesma.

II- A petição inicial apenas é inepta, por falta de causa de pedir, quando o autor não indica o núcleo essencial do direito invocado, tornando ininteligível e insindicável a sua pretensão.

III – Em qualquer dos casos, se o réu a interpretou convenientemente, tal vício fica arredado/sanado – artº 186º nº3 – sendo, então, a questão da (im)procedência do pedido a dilucidar a final.

IV –A legitimidade processual é apreciada e decidida em função do modo como a autora delineia a causa e/ou em atenção às normas que especificamente a atribuem.

V - As entidades e pessoas com legitimidade para instaurar acções atinentes à apropriação e apossamento de terrenos baldios por terceiros constam, taxativamente, no artº 4º nº2 da Lei 68/93, de 04.09, ao caso ainda aplicável, das quais sobressaem os órgãos do baldio – rectius o conselho directivo - ou qualquer dos compartes.

VI - Invocada pela autora de acção de tal jaez, Junta de Freguesia, e provada, a existência, à data da instauração da ação, de órgãos do baldio, a sua simples inércia para o administrar em época pretérita a esta data, ademais sem se provar a sua causa e as diligências tendentes a ultrapassá-la, não é o bastante para, à míngua de delegação de competências, atribuir à Junta legitimidade para a instaurar.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

FREGUESIA DE X (...) , representada pelo Presidente da Junta de Freguesia, C (…) instaurou contra:

1. J (…).

2. A (…) e mulher B (…).

3. A (…) e mulher M (…).

4. M (…) e marido M (…), acção declarativa, de condenação, com processo ordinário.

Pediu:

a) declarar-se que todo o terreno no limite de C (...) , freguesia de X (...) , concelho de (...) , onde está implantado um Parque Eólico, constituído por oito aerogeradores, e toda a área constituída pela cumeada entre os concelhos de Y (...) e (...) , e área adjacente variável entre 200 e 500 metros, a partir dessa cumeada e que se encontra assinalada, a cores verde e amarela, nos mapas dos baldios anexos ao plano florestal de 1954, de (...) , são terrenos comunitários ou baldios;

b) declarar-se a inexistência e nulidade do direito de propriedade que todos os RR. invocam, quer nas escrituras de justificação (1ºR) quer nas de compra e venda, quer nos registos ou inscrições matriciais por serem falsas as declarações neles proferidas quanto ao domínio e área em causa e, designadamente, quanto ao limite na cumeada com o concelho de Y (...) , e na parte em que invadem a área dos terrenos baldios;

c) declarar-se que os RR. não são nem nunca foram donos e possuidores exclusivos, em nome próprio e de boa fé, respetivamente, dos imóveis rústicos art.s 9475, 9500, 9502, 9331, 9337, 9349, 9358 e 9359 do limite de C (...) e limite de X (...) , com as áreas e limites referidos;

d) declarar-se que as ditas escrituras e registos, no respeitante aos ditos “prédios”, são nulas e não produzem quaisquer efeitos, designadamente para os termos do art. 116º-1 do Código do Registo Predial;

e) ordenar-se o cancelamento de todos os registos efectuados na CRP de (...) e inscrições matriciais, sobre os mencionados prédios.

Por via disso, devem os Réus ser condenados a reconhecer a fruição e gestão comunitária dos aludidos prédios, nos termos referidos.

Alegou:

O1º R. justificou o prédio art. 9475 rústico da freguesia de X (...) em duas escrituras notariais, metade indivisa em cada uma delas e que todos os factos justificantes, por serem falsas todas as declarações nelas prestadas, quer pelo justificante, quer pelos declarantes.

O R. J (…) está mesmo de má-fé porque justificou, em 2009, ½ do prédio, depois de, em Dezembro de 2008 ter sido notificado da denegação da providência de embargo de obra nova (proc. 53/08.3TBPPS) que ele requereu contra E (…), SA e E (…), SA, pela montagem de um parque eólico no local.

No mesmo local, os RR. A (…) e mulher vêm-se arrogando donos dos seguintes prédios sitos ao vale das (...) , Freguesia de X (...) :

1. artigo 9500 rústico, prédio nº 01685/270401 da CRP de (...) ;

2. artigo 9502 rústico, prédio nº 1511/000905 da mesma CRP.

Também estes RR. requereram embargo de obra nova (Proc. 53/08.3 TBPPS1) nesses prédios, contra PARQUE (…), SA, procedimento cautelar que foi desfavorável àqueles.

Nas proximidades dos locais referidos, mais propriamente em local denominado (...) , os Réus M (…) e M (…) também se arrogam donos dos seguintes prédios rústicos:

1. Artigo 9331 rústico, do limite de C (...) , da freguesia de X (...) ;

2. Artigo 9337, também rústico, sito no mesmo local, limite da freguesia de C (...) , freguesia de X (...) .

Os 3ºs Réus  arrogam-se, por sua vez, donos dos seguintes três prédios rústicos:

1. Artigo 9358 rústico sito em (...) , limite de C (...) , freguesia de X (...) , com a área inscrita de 26.400m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) , sob o nº 2236/20090917;

2. Artigo 9349 rústico sito às (...) , limite de C (...) , com a área inscrita de 21930m2 e descrito na C.R.P. de (...) sob o nº 2451/20100422;

3. 9359 rústico sito ao (...) , no mesmo limite, com área inscrita de 33600m2 e descrito na C.R.P. (...) sob o nº 2452/20100422 (doc.s 10 e 11)..

Estes Réus, referem que compraram o primeiro prédio a A (…) e M (…) em 17/09/2009, o 2º prédio a A (…) e 3º prédio ao mesmo A (…), em 22/04/2010, fazendo-os registar nessas datas, na Conservatória do Registo Predial de (...) .

Todos os Réus alegam que os seus prédios atingem o viso, ou seja, a cumeada que delimita o concelho de (...) do concelho de Y (...) .

Todos os terrenos dessa cumeada, na linha delimitadora dos dois concelhos e freguesias, numa extensão que varia entre um mínimo de 200 metros e, em alguns locais, mais de 500 metros, tanto na encosta da serra, na direcção de C (...) , freguesia de X (...) do concelho de (...) , como na encosta do concelho de Y (...) , freguesia de (...) , estão inseridos e fazem parte dos terrenos baldios pertencentes às comunidades locais de C (...) da freguesia de X (...) , concelho de (...) e de (...) , das freguesias da (...) do concelho de Y (...) .

Há mais de 50 e até 100 anos que, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, conscientes de exercerem um direito próprio e comunitário e não lesarem direitos de outrem, os povos das localidades acima referidas têm vindo a usar e fruir, em comum, os terrenos mencionados, seja de forma direta, seja através dos Serviços Florestais.

Contestaram os RR. A (…) e B (…).

Alegando que:

Compraram os prédios atrás descritos nos termos e condições constantes das Escrituras Públicas celebradas:

A) Em 12 de Março de 2002 no Segundo Cartório Notarial de (...) a fls. 2 a 2 verso do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº 249-F relativa ao prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 1685, da freguesia de X (...) , concelho de (...) , inscrito na matriz predial rústica sob o nº 9500;

B) Em 18 de Agosto de 2000 no Cartório Notarial de (...) a fls. 53 a 54 verso do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº 27-D relativa ao prédio rústico ora descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 1511, da freguesia de X (...) , concelho de (...) , já então inscrito na matriz predial rústica sob o nº 9502.

Contestaram também os RR. J (…), A (…)e mulher, A (…) e mulher M (…), M (…) e marido.

Excecionaram a ineptidão e falta de causa de pedir, a ilegitimidade substantiva da Junta por falta de poderes de representação e a caducidade da ação e impugnabilidade das presentes justificações notariais.

Impugnaram a factualidade invocada pela autora e contrapuseram que o réu J (…) adquiriu do I (…) e mulher e de A (…)  e mulher P (…), que os adquiriram por sucessão hereditária dos seus antepassados, o quais sobre eles exerceram posse pacífica, publica, ininterrupta, colhendo os matos, pastoreando, explorando as torgas, colhendo a pouca lenha existente e ainda que os prédios dos réus M (…) e M (…), como os dos réus A (…) e M (…), vieram à sua posse por sucessão hereditária e, tanto eles, diretamente, como os seus antepassados, exerceram sobre eles a posse, colhendo os matos e explorando torgas para carvão vegetal, bem como o pastoreio, seu e dos vizinhos, em entreajudas mútuas, como é de uso naquelas serranias pobres.

Finalizando requerem que os legítimos representantes do Baldio da (...) sejam chamados a intervir nesta ação como associados da autora, ou, ainda, associados dos réus.

Replicou a autora.

Concluindo que devem  ser desatendidas as exceções deduzidas pelos RR e pedindo a sua

condenação como litigantes de má fé, em indemnização não inferior a 5.000€, a favor da A., por todas as despesas decorrentes deste  processo, e multa a favor do Estado por alegarem factos cuja falta de fundamento conhecem.

Por despacho de fls. 198 foi indeferido o chamamento da Assembleia de Compartes da C (...) .

Foi proferido despacho saneador no qual foi julgada improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial, relegando-se para final a apreciação e decisão das demais exceções invocadas pelos RR.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«…julgo a ação procedente e, em conformidade:

a) Declaro que todo o terreno no limite de C (...) , freguesia de X (...) , concelho de (...) , onde está implantado um Parque Eólico, constituído por oito aerogeradores, e toda a área constituída pela cumeada entre os concelhos de Y (...) e (...) , e área adjacente variável entre 200 e 500 metros, a partir dessa cumeada e que se encontra assinalada, a cores verde e amarela, nos mapas dos baldios anexos ao plano florestal de 1954, de (...) , são terrenos comunitários ou baldios;

b) Declaro a inexistência do direito de propriedade que todos os RR. invocam, quer nas escrituras de justificação (1ºR) quer nas de compra e venda, quer nos  registos ou inscrições matriciais por serem falsas as declarações neles proferidas quanto ao domínio e área em causa e, designadamente, quanto ao limite na cumeada com o concelho de Y (...) , e na parte em que invadem a área dos terrenos baldios;

c) Declaro que os RR. não são nem nunca foram donos e possuidores exclusivos, em nome próprio e de boa fé, respetivamente, dos imóveis rústicos art.s 9475, 9500, 9502, 9331, 9337, 9349, 9358 e 9359 do limite de C (...) e limite de X (...) , com as áreas e limites referidos;

d) Declaro que as ditas escrituras e registos, no respeitante aos ditos prédios, são ineficazes e de nenhum efeito, designadamente para os termos do art. 116º-1 do Código do Registo Predial;

e) Ordeno o cancelamento de quaisquer registos operados com base nas ditas escrituras.

Julgo improcedente a reconvenção formulada pelos RR. A (…) e mulher B (…) e absolvo a autora reconvinda do pedido reconvencional.

Custas da ação a cargo dos RR..

Custas da reconvenção a cargo dos RR. reconvintes.».

3.

Inconformados recorreram os réus.

3.1.

Conclusões dos réus A (…) e M (…):

(…)

3.2.

Conclusões dos réus A (…) e B (…).

(…)

3.3.

Conclusões do réu J (…)

(…)

3.4.

Contra alegou a autora pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

(…)

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são, lógica e metodologicamente, as seguintes:

1ª – Incompetência territorial do tribunal.

2ª – Nulidade do processo por Ineptidão da petição inicial.

3ª– Ilegitimidade da autora.

4ª – Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

5ª - Improcedência da acção.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

Alguns dos réus parecem invocar a incompetência territorial do tribunal recorrido (ainda que, numa interpretação mais arguta, se possa alcançar apenas o lançamento de uma dúvida quanto a tal competência).

O que dimana da seguinte asserção conclusiva dos réus A (…) e M (…):

Se a causa de pedir é um baldio que abrange mais de dois concelhos, só é possível determinar qual o tribunal competente territorialmente se o autor indicar a área do baldio. A competência do território é de conhecimento oficioso pelo tribunal.

Seja como for, esta pretensão não colhe.

Primus porque não se alcança que ela tenha sido invocada no processo e, em função de tal invocação, decidida na 1ª instância.

Ora, como é consabido, os recursos são de mera reponderação, destinando-se à reapreciação de questões alegadas e decididas pelo tribunal recorrido e não tendentes a  neles se colocarem questões novas.

Secundus porque, mesmo que tal exceção seja de conhecimento oficioso, a lei apenas impõe  tal conhecimento «sempre que os autos fornecerem os elementos necessários» - artº 104º nº1 do CPC.

Ou seja, quando do processo  emirjam e se revelem, clara e inequivocamente,  elementos que apontem no sentido da ocorrência de tal incompetência.

No caso vertente tal requisito sine qua non não se verifica, pois que nem os próprios réus são inequívocos e assertivos quanto à localização dos terrenos em disputa.

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

Estatui o artº 186º do CPC:

«1. É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.

2.  Diz-se inepta a petição:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir.

3.  Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com o fundamento na alínea a)…não se julgará procedente a arguição, quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.»

O nosso direito adjetivo, e quanto à causa de pedir, adota a teoria da substanciação  perante ou em função da qual pode definir-se causa de pedir como sendo o ato ou facto jurídico, simples ou complexo, de que deriva o direito que se invoca ou no qual assenta o direito invocado pelo autor e que este se propõe fazer valer – cfr. artº 581º nº4 do CPC.

 Tem-se em vista não o facto jurídico abstrato, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico material concreto, conciso e preciso, cujos contornos se enquadram na definição legal.

A causa de pedir é, pois, o facto material apontado pelo autor e produtor de efeitos jurídicos e não a qualificação jurídica que este lhe emprestou ou a valoração que o mesmo entendeu dar-lhe.

A ideia geral  e primordial  - desde logo na perspetiva do julgador - no que concerne à figura da ineptidão da petição inicial, é a de impedir o prosseguimento duma ação viciada por falta ou contradição interna da matéria ou objeto do processo, que mostre desde logo não ser possível um correto, coerente e unitário ato de julgamento, “judicium”- Cfr. Prof. Castro Mendes, Direito Processual Civil, ed. AAFDL, 1978, 3º, p.47.

O fito secundário – na perspetiva das partes – é permitir o cabal conhecimento por banda do réu das razões fácticas que alicerçam o pedido do autor para, assim, poder exercer cabalmente o contraditório.

 Por isso o estatuído no nº3 do artº 186º.

A dificuldade reside em manter uma linha de separação entre a ineptidão da petição, vício formal, e a inviabilidade ou improcedência, questão de mérito ou substancial.

Nesta matéria urge ter presente que  os factos que podem enformar os articulados  se podem integrar em três espécies, a saber:

- Factos essenciais ou estruturantes, aqueles que integram a causa de pedir ou o fundamento da exceção.

- Factos complementares, que concretizam a causa de pedir ou a exceção complexa.

- Factos instrumentais, probatórios ou acessórios, que indiciam os factos essenciais e/ou complementares.

Ora apenas a falta na pi dos factos essenciais determina a inviabilidade da ação por ineptidão daquela.

Já os factos complementares são indispensáveis à sua procedência, não contendendo a sua falta com aquele vício, mas com a questão de mérito a dilucidar a final – Neste sentido, cfr. Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed pág. 70.

Destarte, pode dizer-se que, por via de regra, se se formula um pedido com fundamento em facto aduzido e inteligível, mas que não pode ser subsumido no normativo invocado, o caso é de improcedência e não de ineptidão.

O que interessa, no ponto de vista da apreciação da causa de pedir é que o ato ou o facto de que o autor quer fazer derivar o direito em litígio esteja suficientemente individualizado na petição.

Na verdade e na lição sempre atual do Mestre Alberto dos Reis, há que ter presente que:

 «Se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta.

Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente…quando…sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstancias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta: o que então sucede é que a acção naufraga - Comentário, 2º, 364 e 371.

No seguimento destes ensinamentos a jurisprudência tem, desde sempre, vindo a defender, em uníssono, que a insuficiência ou incompletude do concreto factualismo consubstanciador da causa petendi, não fulmina, em termos apriorísticos e desde logo formais, a petição de inepta, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a atendibilidade do pedido.

Efetivamente, reitera-se, petição prolixa não é o mesmo que petição inepta e causa de pedir obscura, imprecisa ou inadequada não é o mesmo que causa de pedir inexistente ou ininteligível.

No fundo só existe falta de causa de pedir quando o autor não indica o facto genético ou matricial, a causa geradora do núcleo essencial do direito ou da pretensão que aspira a fazer valer. – cfr. entre outros Acs. do STJ de 12.03.1974, BMJ, 235º, 310, de 26.02.1992, dgsi.pt, p.082001 e Acs. da RC de 25.06.1985 e de 01.10.1991, BMJ, 348º, 479 e 410º, 893.

Nesta conformidade, verdadeiramente só haverá falta de indicação da causa de pedir determinante da ineptidão quando, de todo em todo, falte a indicação dos factos invocados para sustentar a pretensão submetida a juízo, ou tais factos sejam expostos de modo tal que, seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar, qual o pedido e a causa de pedircfr. Acs. do STJ de 30.04.2003, 31.01.2007 e 26.03.2015,  p.03B560,  06A4150 e  6500/07.4TBBRG.G2,S2, in dgsi.pt,.

Neste entendimento se enquadra o estatuído no citado nº3.

Pois que, mesmo que o réu, na contestação, invoque a falta ou ininteligibilidade do pedido, tal invocação não é atendível se se concluir que ele, não obstante as deficiências invocadas, inteligiu o feito que o demandante introduziu em juízo e está cônscio das consequências que dele pretende retirar.

Efetivamente:

«A petição inicial constitui um ato processual da parte, dirigido ao tribunal, que encerra declarações de vontade do respetivo autor.

Não estando, ao menos quanto à narração, sujeita a fórmulas especificamente fixadas, as declarações em causa estão, como quaisquer outras, sujeitas a interpretação…tendo sempre presente a sua natureza e fins em razão do processo» – Ac. do STJ. de 16.12.2010, p. 942/04.4TBMGR.C1.S1 in  dgsi.pt..

(sublinhado nosso)

Por conseguinte, é exigível um esforço interpretativo no sentido de se alcançar qual a pretensão do autor/reconvinte e as razões/fundamentos em que a alicerça.

E se esta interpretação, que, até certo ponto, se pode considerar restritiva no sentido da verificação do vício em dilucidação, já assim era maioritária antes da reforma processual de 1995, maior pertinência e acuidade ganhou com esta reforma, atento o fito primordial por ela propugnado, qual seja, privilegiar a obtenção de uma decisão de fundo, que aprecie o mérito da pretensão deduzida, em detrimento de procedimentos que condicionam o normal prosseguimento da instância.

Na verdade, e conforme se alcança do relatório do DL 329-A/95 de 12/12, consagrou-se como regra, que «a falta de pressupostos processuais é sanável».

 Tudo de sorte a «obviar-se a que regras rígidas, de natureza estritamente procedimental, possam impedir a efectivação em juízo dos direitos e a plena discussão acerca da matéria relevante para propiciar a justa composição do litígio».

Sendo que o processo civil - rectius as respectivas normas - não pode ser perspetivado, interpretado e aplicado como um fim em si mesmo, mas antes como: «um instrumento ou …mesmo uma alavanca no sentido de forçar a análise, discussão e decisão dos factos…»

A reforma de 2013 acentuou ainda mais este fito, impondo ao juiz uma atuação pro ativa no sentido de, se entender existir deficiência alegatória, diligenciar pelo suprimento da mesma – cfr. artºs 6º e 590º nºs 3 e 4 do CPC.

5.2.2.

No caso vertente.

O vício, meridianamente, não existe.

Primus porque a autora deu a conhecer, suficientemente, os alicerces e as premissas factuais da sua pretensão.

Identificou, pelo menos o q.b., factual e jurídico-formalmente – através das suas inscrições matriciais e descrições prediais -  os prédios que se reportam aos negócios jurídicos impugnados, quais sejam, a escritura de justificação e a compra e venda.

Mais alegou que os prédios em causa foram incluídos num plano de arborização, tendo para o efeito  sido constituído o perímetro florestal de (...) , definido através de mapas a cores que definem, com total clareza, a verde e amarelo, todas as áreas baldias do Concelho de (...) – cfr. vg. artºs 26º a 33º da pi.

Tem assim de concluir-se que a autora deu a conhecer, pelo menos suficientemente, as razões essenciais ou determinantes, ou seja, a causa petendi, da sua pretensão.

Sendo tais fundamentos inteligíveis e sindicáveis o que, como se viu,  reitera-se, é o qb, para se concluir que não é taxável de inepta.

Nesta conformidade, e mesmo que na petição faltassem factos complementares ou instrumentais, e como supra se viu, nunca estaríamos perante caso de ineptidão da pi, mas antes perante uma  situação que poderia levar à (im)procedência, sendo  tal dilucidado, como o foi, a final em sede de decisão de mérito.

Secundus porque, e se mais não houvesse, que há, como se expendeu, sempre seria de chamar à colação o disposto no nº3 do artº 186º.

Na verdade, os réus contestaram, e defenderam-se, quer por exceção quer por impugnação, demonstrando, muito clara e inequivocamente, ter intuído, plena e cabalmente, a pretensão da autora e os fundamentos por ela invocados para a sufragar.

Destarte, inexiste o apontado vício.

5.3.

Terceira questão.

5.3.1.

Estatui o artigo 30.º do CPC

Conceito de legitimidade

1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.

2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.

3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

Este preceito prescreve sobre a legitimidade processual, exceção dilatória que implica a absolvição da instância.

Como é consabido a legitimidade processual afere-se pela posição  - titularidade -  da parte – o autor titular do direito e o réu sujeito da obrigação - em relação ao objeto do processo, à matéria que nesse  nele se dilucida e escalpeliza.

Assim para  se aferir da legitimidade há que comparar os sujeitos da relação jurídica subjacente com os sujeitos da relação jurídica processual.

E como também é consabido uma vexata quaestio surgiu, neste particular, na doutrina e na jurisprudência e que teve como protagonistas maiores os Profs. Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães.

Para aquele a parte só é legítima quando é titular da efetiva e real relação jurídica controvertida.

Para este tal relação não é necessária, sendo a parte legítima se for sujeito da relação material controvertida, tal como a configura o autor.

Ora esta posição e consagração legal reduz a ilegitimidade a um vício raro de académica configuração. Como sejam os casos em que A demanda B pedindo a condenação de C ou pedindo a condenação de B a pagar a D cfr. Prof. Castro Mendes, in Direito Processual Civil, ed. Da AAFDL, 1978, 2º vol.p.170.

Porém, e como ressuma da parte supra sublinhada, a (i)legitimidade pode ainda resultar de disposições legais ou negociais especiais que  concreta e especificamente regulem os poderes de agir de qualquer interessado ou sujeito de direitos.

É o que ainda dimana do disposto no artº 33º nº1  do CPC: « se…a lei ou o negócio exigir a intervenção de vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade».

Para além da legitimidade processual pode falar-se ainda em legitimidade material, substantiva ou “ad actum”,  cuja falta consubstancia exceção peremptória que implica a absolvição do pedido.

Esta consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa.

E se se reconhecer que a relação jurídica delineada e invocada pelo autor,  quer quanto ao seu facto constitutivo (causa petendi), quer quanto ao sujeito passivo, quer quanto ao seu objecto,  não existe,  tal é caso de ilegitimidade material, e a questão passa do campo da forma para a vertente do  mérito, sendo então caso de  improcedência do pedido – cfr. Ac. STJ de 18.10.2018, p. 5297/12.0TBMTS.P1.S2 in dgsi.pt.

5.3.2.

O caso vertente.

Os réus alegaram a ilegitimidade substantiva da autora para a presente acção.

Na sentença e quanto a esta questão, foi decidido nos seguintes termos:

«Relativamente à exceção de ilegitimidade substantiva da Junta por falta de poderes de representação, os RR. ALEGAM que é a Assembleia de Compartes e  não a Junta de Freguesia que deveria agir na defesa do baldio e na elaboração do contrato.

A administração e gestão dos terrenos baldios em causa competia, à data da instalação dos parques eólicos, à Junta de Freguesia de X (...) pois a Assembleia de Compartes de C (...) , de cujo Conselho Directivo o R. R (…) fez parte, foi constituída após a instalação do parque eólico.

Na ausência da Assembleia de Compartes em C (...) , a gestão e administração dos baldios competia à Junta de Freguesia de X (...) . Por isso, a negociação e a contratação para utilização daquele espaço foi feita com a Junta de Freguesia de X (...) , tendo sido celebrado um contrato de cessão de exploração.

Ademais à Autora, por força do disposto na alínea m) do nº 6 do artigo 34º da Lei nº 169/99 de 18 de Setembro, alterada pelo Lei nº 5-A/2002de 11 de Janeiro, que definia o Quadro de Competências e Regime Jurídico de Funcionamento dos órgãos dos Municípios e Freguesias e atualmente por força do disposto na al. oo) do artigo 16º da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, que instituiu o Regime Jurídico das Autarquias Locais, compete proceder à administração ou à utilização de baldios, sempre que não existam Assembleias de Compartes, nos termos da lei dos Baldios.».

(sublinhado nosso)

No recurso os réus reiteram a sua pretensão.

Mais do que (i)legitimidade substantiva  trata-se, ou  determinantemente se trata, de um caso de (i)legitimidade processual ou ad causa.

Como se viu, para apreciar esta questão urge atentar no modo como a própria autora  a delineou na sua petição inicial.

Ora perscrutada esta verifica-se que a demandante, ela própria, admitiu a existência, pelo menos desde a década de setenta, de órgãos próprios para a administração e gestão dos baldios  em causa, como sejam a assembleia de compartes e o conselho diretivo – artº 34º e sgs.

Tanto assim que, em função de tal alegação, foram dados como provados os seguintes factos:

«9. Durante a década de 70 do século XX, foi constituída uma Assembleia de Compartes na zona de C (...) [quesito 10].

10. Tal assembleia, cujos órgãos foram empossados, destinava-se a administrar e gerir os baldios de C (...) , que estavam bem identificados nos mapas existentes nos Serviços Florestais de Y (...) e que abrangiam uma vasta área que estremava em toda a cumeada com o limite do concelho de Y (...) , estendendo-se até às proximidades da povoação de C (...) [quesito 11].

12. Aquela Assembleia de Compartes funcionou durante um período relativamente curto, acabando os seus órgãos por não reunir, ficando praticamente desactivada [quesito 13].

16. …após a decisão de duas providências cautelares que denegaram o direito a que se arrogavam os dois primeiros Réus, foi reactivada a  Assembleia de Compartes de C (...) , para gerir e administrar a vasta área baldia da localidade, incluindo a cumeada onde estava instalado o Parque Eólico e a linha de transporte de energia eléctrica .

17. Os Autores das citadas providências cautelares para além de não terem intentado as correspondentes acções judiciais, para verem reconhecidos os direitos que indiciariamente lhes foram denegados, acabaram por integrar os corpos sociais da Assembleia de Compartes [quesito 18].

18. O Réu R (…) integrou o Conselho Directivo, como vogal, órgão esse que reclamou, perante a Junta de Freguesia de X (...) , o recebimento dos rendimentos de todos os aerogeradores instalados no baldio de C (...) , ou seja, em toda a cumeada que confina com o concelho de Y (...) [quesito 19].

19. Por conta desses rendimentos, o Conselho Directivo, através do seu Presidente, recebeu, como adiantamento da Junta de Freguesia, uma verba de 3.500 [quesito 20].

21. Após a demissão do Presidente do Conselho Directivo e de outros membros, foram eleitos novos corpos sociais, tendo o Réu R (…) assumido a Presidência do Conselho Directivo [quesito 22].

22. É nessa qualidade que escreve, em 30/08/2010, uma carta à Junta de Freguesia de X (...) , querendo voltar a pôr em causa a natureza comunitária ou baldia dos terrenos onde estavam instalados os aerogeradores [quesito 23].

(bold e sublinhado nosso).

Destarte, e versus o expendido na sentença - e em contradição com o nela provado na parte supra sublinhada -  e defendido pela recorrida, verifica-se, bem interpretada a matéria alegada e provada, que imediatamente antes de instaurada a presente acção – que é o que  releva -  os aludidos  órgãos de representação e gestão dos baldios existiam.

O facto de, ao que parece,  em tempos passados terem tido uma atuação algo passiva e neles se integrarem elementos, como alguns dos réus, que pudessem ter conflitos de interesses com os dos baldios que representavam,  não basta para afastar tal existência e concluir por um vazio ou impossibilidade representativa de tais órgãos, vg. para accionar judicialmente, relativamente aos baldios em causa.

Efetivamente, a lei dos baldios em vigor à data dos factos  - Lei n.º 68/93, de 04 de Setembro -  estatuiu para os órgãos dos mesmos – assembleia de compartes, conselho directivo e comissão de fiscalização -  uma composição e uma atribuição de competências  que, como não podia deixar de ser,  consecute um equilibrado mecanismo de controlo recíproco –  dir-se-ia de  «checks and balances», na terminologia anglicista -   o qual, se despoletado pelos interessados, permitiria, em princípio, um desbloqueamento de eventuais inércias.

Desde logo  porque, e no que tange a estes dois últimos,  estamos perante órgãos colegiais, compostos por vários elementos.

O conselho diretivo é composto por três, cinco ou sete membros eleitos pela assembleia de compartes de entre os seus membros pelo sistema de lista completa. – artº 20º.

 A comissão de fiscalização é constituída por cinco elementos, eleitos pela assembleia de compartes, de entre os seus membros, de preferência com conhecimentos de contabilidade – artº 24º.

Logo, mesmo que o réu J (...) presidisse ao conselho directivo,  ele nele não formava maioria; e não se provou que este fosse constituído maioritariamente pelos autores e que, assim,  e, vg., por conflito de interesses,  não atuasse no sentido da gestão, administração e defesa dos baldios.

Até porque a sua atuação é fiscalizada pelos restantes órgãos, os quais, assim, sempre poderiam diligenciar no sentido de que os órgãos competentes, rectius o conselho diretivo, atuassem e assumissem as suas competências para a defesa dos direitos e interesses dos baldios.

Na verdade, à  assembleia de compartes compete:

«b) Eleger e destituir, em caso de responsabilidade apurada com todas as garantias de defesa, os membros do conselho diretivo e os membros da comissão de fiscalização;

d) Regulamentar e disciplinar o exercício pelos compartes do uso e fruição do baldio, sob proposta do conselho directivo» – artº 15º.

Já à comissão de fiscalização compete:

«a) Tomar conhecimento da contabilidade do baldio, dar parecer sobre as contas e verificar a regularidade dos documentos de receita e despesa;

b) Fiscalizar o cumprimento dos planos de utilização do baldio e a regularidade da cobrança e aplicação das receitas e da justificação das despesas;

c) Comunicar às entidades competentes as ocorrências de violação da lei e de incumprimento de contratos tendo o baldio por objecto» - artigo 25.º

Provada a existência destes órgãos, ainda que com atuação algo lassa, a autora não provou que tal lassidão fosse inultrapassável -  vg. porque dimanante da vontade própria e inamovível dos membros dos órgãos ou da mancomunação entre estes -, através do accionamento  dos mecanismos legais de controlo recíproco.

E, mesmo que tal se verificasse, tal óbice deveria ser ultrapassado pela substituição dos membros dos órgãos nos termos da lei dos baldios.

Acresce que o ter-se provado que a autora se substituiu à assembleia de compartes, na década de 90 e na primeira década do século actual, na negociação dos terrenos baldios para instalação de Parques Eólicos, irreleva.

Primeiro porque não se sabem os termos em que tal substituição se verificou, vg. se ela teve a anuência dos órgãos do baldio.

Depois porque tal substituição se verificou em tempo pretérito já longínquo, sendo que posteriormente, pelo menos após a decisão de duas providências cautelares  interpostas pelos Réus, ou seja, senão antes, pelo menos em 2008,  foi reactivada a  Assembleia de compartes – ponto 16.

Depois porque se provaram factos  - exigência dos órgãos dos baldios  à Junta das rendas do parque eólico: pontos 18 e 19 - que inequivocamente apontam no sentido de que eles, pelo menos nos anos que precederam a instauração da acção, se assumiram perante esta como os legítimos donos e representantes dos baldios.

Finalmente porque os poderes de administração exercidos pela Junta nos terrenos, designadamente na intervenção da instalação de um parque eólico nos mesmos, e porque   apenas atinentes à sua gestão/exploração/rentabilização, são um minus relativamente ao que está em causa na presente acção: o destino ou atribuição da sua  posse definitiva, propriedade e domínio.

Assim sendo,  constatada a existência de tais órgãos representativos dos baldios em causa antes, imediatamente antes, da instauração da presente acção, verifica-se que a legitimidade para a  mesma a eles compete, rectius ao conselho diretivo.

 Não apenas pelo modo como a autora alegou, como, outrossim, por imposição legal.

Assim o impunham os normativos atinentes da lei dos baldios então em vigor, citada lei 68/93, a saber:

Artº 4º

Apropriação ou apossamento

1 - Os atos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, tendo por objeto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito, exceto nos casos expressamente previstos na presente lei.

2 - A declaração de nulidade pode ser requerida:

a) Pelos órgãos do baldio ou por qualquer dos compartes;

b) Pelo Ministério Público;

c) Pela entidade na qual os compartes tenham delegado poderes de administração do baldio nos termos dos artigos 22.º e 23.º;

d) Pelos arrendatários e cessionários do baldio, nos termos do artigo 10.º

3 - As entidades referidas no número anterior têm também legitimidade para requerer a restituição da posse do baldio, no todo ou em parte, a favor da respetiva comunidade ou da entidade que legitimamente o explore.

Artigo 11.º

Administração dos baldios

1 - Os baldios são administrados, por direito próprio, pelos respetivos compartes, nos termos dos usos e costumes locais, através de órgãos democraticamente eleitos.

2 - As comunidades locais organizam-se, para o exercício dos atos de representação, disposição, gestão e fiscalização relativos aos correspondentes baldios, através de uma assembleia de compartes, um conselho diretivo e uma comissão de fiscalização.

3 - Os membros da mesa da assembleia de compartes, bem como do conselho diretivo e da comissão de fiscalização, são eleitos pelo período de quatro anos, renováveis, e mantêm-se em exercício de funções até à sua substituição.

Artigo 15.º

1 - Compete à assembleia de compartes:

b) Eleger e destituir, em caso de responsabilidade apurada com todas as garantias de defesa, os membros do conselho diretivo e os membros da comissão de fiscalização;

d) Regulamentar e disciplinar o exercício pelos compartes do uso e fruição do baldio, sob proposta do conselho diretivo;

e) Discutir, aprovar e modificar o plano de utilização do baldio e as respetivas atualizações, sob proposta do conselho diretivo;

j) Deliberar sobre a alienação, o arrendamento ou a cessão de exploração de direitos sobre baldios, nos termos do disposto na presente lei;

l) Deliberar sobre a delegação de poderes de administração prevista nos artigos 22.º e 23.º;

m) Fiscalizar a atividade do conselho diretivo e, no âmbito da delegação a que se referem os artigos 22.º e 23.º, das entidades em que tiverem sido delegados poderes de administração, bem como emitir diretivas a ambos sobre matérias da sua competência, sem prejuízo da competência própria da comissão de fiscalização;

o) Ratificar o recurso a juízo pelo conselho diretivo, bem como a respetiva representação judicial, para defesa de direitos ou legítimos interesses da comunidade relativos ao correspondente baldio, nomeadamente para defesa dos respetivos domínios, posse e fruição contra atos de ocupação, demarcação e aproveitamento ilegais ou contrários aos usos e costumes por que o baldio se rege;

3 - Quando não exista conselho diretivo ou comissão de fiscalização, a assembleia de compartes assume a gestão e representação do baldio e exerce as demais competências que estejam atribuídas àqueles órgãos nos termos da presente lei.

 Artigo 21.º

Compete ao conselho diretivo:

a) Dar cumprimento e execução às deliberações da assembleia de compartes que disso careçam;

h) Recorrer a juízo e constituir mandatário para defesa de direitos ou interesses legítimos da comunidade relativos ao correspondente baldio e submeter estes atos a ratificação da assembleia de compartes;

i) Representar o universo dos compartes nas relações com entidades públicas e privadas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 16.º;

A presente acção é  uma acção atinente à apropriação ou apossamento pelo que a legitimidade para a mesma é prevista no  nº2  do citado artº 4º, no artº 11º e no artº 21º.

Sendo de notar que, para além dos órgãos do baldio, qualquer dos compartes tem legitimidade para a mesma.

A autora, Junta de Freguesia, pessoa colectiva de direito público administrativo, juridicamente diferenciada e autónoma dos baldios e dos seus órgãos, apenas a assumiria se lhe fossem delegados, pelos compartes, poderes de administração, conforme permitido pelo artº 22º.

Tal delegação não está provada nem parece que  tenha sido invocada.

Decorrentemente, a final conclusão a retirar é que à demandante faltava a legitimidade para a instauração da presente acção.

Como supra mencionado, ilegitimidade ad causa é exceção dilatória que implica a absolvição da ré da instância – artºs 278º nº1 al. d) e 577º al. e) do CPC.

Procedente esta questão queda prejudicada a apreciação das subsequentes.

6.

Sumariando- artº 663º nº7 do CPC.

I - O conhecimento oficioso da exceção da incompetência territorial do tribunal apenas é exigível quando: «os autos fornecerem os elementos necessários»: artº 104º nº1 do CPC, vg. através do invocante da mesma.

II-  A petição inicial apenas é inepta, por falta de causa de pedir, quando o autor não indica o núcleo essencial do direito invocado, tornando ininteligível e insindicável a sua pretensão.

III – Em qualquer dos casos, se o réu a interpretou convenientemente, tal vício fica arredado/sanado – artº 186º nº3 – sendo, então, a questão da (im)procedência do pedido a dilucidar a final.

IV –A legitimidade processual é apreciada e decidida em função do modo como a autora delineia a  causa e/ou em atenção às normas que especificamente a atribuem.

 V - As entidades e pessoas com  legitimidade para instaurar acções atinentes à apropriação e apossamento de terrenos baldios por terceiros constam, taxativamente, no artº 4º nº2  da Lei 68/93, de 04.09, ao caso ainda aplicável, das quais sobressaem os órgãos do baldio – rectius o conselho directivo -   ou qualquer dos compartes.

VI - Invocada pela autora de acção de tal jaez, Junta de Freguesia, e provada, a existência, à data da instauração da ação, de órgãos do baldio, a  sua simples inércia para o administrar em época pretérita a esta  data, ademais sem se provar a sua causa e as  diligências tendentes a ultrapassá-la,  não é o bastante para, à míngua de delegação de competências, atribuir à Junta legitimidade para a  instaurar.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar procedente o recurso no que tange à ilegitimidade da autora, declarar esta ilegitimidade e, consequentemente, absolver os réus da instância.

Custas pela autora.

Coimbra, 2019.04.11.

Carlos Moreira ( Relator)

Moreira do Carmo

Fonte Ramos ( vencido )


VOTO DE VENCIDO - 2.º ADJUNTO


Conheceria da impugnação de facto e reapreciaria a decisão da subsistente questão adjectiva e a subsequente decisão de mérito, considerando, nomeadamente:

I - Os negócios efectuados pelos Réus respeitam a terrenos baldios/comunitários [“terrenos baldios pertencentes às comunidades locais de C (...) da freguesia de X (...) ”; cf., nomeadamente, os factos provados 2., 3., 4. e 5.], pelo que serão nulos [ou, no dizer do Tribunal recorrido, “as ditas escrituras e registos, no respeitante aos ditos prédios, são ineficazes e de nenhum efeito”, com o “cancelamento de quaisquer registos operados com base nas ditas escrituras”];

II - Tal vício pode/deve ser declarado pelo Tribunal (art.ºs 4º, n.º 1, da Lei n.º 68/93, de 04.9 - aplicável à situação dos autos - e 286º do Código Civil);

III - A Junta de Freguesia actuou no circunstancialismo mencionado na factualidade dada como provada (a reapreciar), donde decorre, designadamente:

9. Durante a década de 70 do século XX, foi constituída uma Assembleia de Compartes na zona de C (...) .

10. Tal assembleia, cujos órgãos foram empossados, destinava-se a administrar e gerir os baldios de C (...) , que estavam bem identificados nos mapas existentes nos Serviços Florestais de Y (...) e que abrangiam uma vasta área que estremava em toda a cumeada com o limite do concelho de Y (...) , estendendo-se até às proximidades da povoação de C (...) .

12. Aquela Assembleia de Compartes funcionou durante um período relativamente curto, acabando os seus órgãos por não reunir, ficando praticamente desactivada.

13. Perante a sua passividade e total inactividade, a Junta de Freguesia de X (...) acabou por ter que se substituir à Assembleia de Compartes e passar a gerir, em conjunto com os Serviços Florestais, os terrenos baldios.

14. E foi nessa sequência que acabou por intervir, na década de noventa do século passado e já na primeira década do século actual, na negociação dos terrenos baldios e, designadamente, naqueles que os Réus disputam, para instalação de torres de medição dos ventos e, posteriormente, instalação de Parques Eólicos.

16. (…) após a decisão de duas providências cautelares que denegaram o direito a que se arrogavam os dois primeiros Réus, foi reactivada a Assembleia de Compartes de C (...) , para gerir e administrar a vasta área baldia da localidade, incluindo a cumeada onde estava instalado o Parque Eólico e a linha de transporte de energia eléctrica.

17. Os Autores [os dois primeiros Réus nesta acção] das citadas providências cautelares para além de não terem intentado as correspondentes acções judiciais, para verem reconhecidos os direitos que indiciariamente lhes foram denegados, acabaram por integrar os corpos sociais da Assembleia de Compartes.

18. O Réu J (...) integrou o Conselho Directivo, como vogal, órgão esse que reclamou, perante a Junta de Freguesia de X (...) , o recebimento dos rendimentos de todos os aerogeradores instalados no baldio de C (...) , ou seja, em toda a cumeada que confina com o concelho de Y (...) .

20. O Réu J (...) teve conhecimento deste facto e sabia que tal verba se destinava à reparação de uma piscina da aldeia, até porque era Vogal do Conselho Directivo e foi ele que, a título individual, fez as obras da piscina.

21. Após a demissão do Presidente do Conselho Directivo e de outros membros, foram eleitos novos corpos sociais, tendo o Réu J (...) assumido a Presidência do Conselho Directivo.

22. É nessa qualidade que escreve, em 30/8/2010, uma carta à Junta de Freguesia de X (...) , querendo voltar a pôr em causa a natureza comunitária ou baldia dos terrenos onde estavam instalados os aerogeradores.

24. O Réu J (...) , mais tarde, constitui uma Associação de Proprietários Florestais, assumindo a Presidência dessa Associação, tendo em vista gerir terrenos que sempre foram considerados baldios e como tal geridos e fruídos.

25. A referida Associação de Proprietários Florestais, destinava-se a esvaziar e a incorporar os terrenos comunitários.

26. A autora chegou a referir numa assembleia-geral, como consta da acta n.º 3 de 20 de Setembro de 2009 (…): “o senhor presidente da Junta, alertou os senhores deputados, nomeadamente os da aldeia da (...) para uma escritura que o senhor J (...) fez por usucapião, colocando em risco as receitas da própria aldeia”.

27. O réu J (...) chegou a apresentar no IFADAP o Projecto de Florestação AIBT – Pinhal Interior n.º (...) .31.0010986.

28. Nos terrenos baldios em causa, para aproveitamento de energia eólica, foram instalados aerogeradores, AG1 a AG8.

IV. Assim, indeferido o chamamento da Assembleia de Compartes da C (...) [despacho de fls. 198, transitado em julgado, no qual se considerou: "que os réus continuam a dizer que os Compartes têm um interesse igual quer à autora, quer aos réus, o que manifestamente consubstancia um conflito de interesses e viola frontalmente o disposto no art.º 325º do CPC"], dado o manifesto desinteresse e a omissão de quem devia (formalmente) representar a comunidade local na defesa dos baldios e, por último, verificando-se que os Réus (em particular, o 1º e o 2º Réus) tinham/têm uma posição eivada de promiscuidade, má fé e conflito de interesses com os (eventuais) demais compartes [cf., designadamente, a alínea Q) dos factos assentes, os factos provados, sobretudo, nos pontos 17, 22, 24 e 25 e, v. g., o disposto nos art.ºs 20º, n.º 3 de 21º, alínea h) da Lei n.º 68/93, de 04.9; como se afirma na fundamentação da decisão relativa à matéria de facto: «os RR. que constituíram uma assembleia de compartes para gerir baldios que agora afirmam a sua propriedade privada»], nada será de objectar ao decidido na sentença sob censura quanto à legitimidade da A., que se reproduz: 

«Relativamente à excepção de ilegitimidade substantiva da Junta por falta de poderes de representação, os RR. alegam que é a Assembleia de Compartes e não a Junta de Freguesia que deveria agir na defesa do baldio e na elaboração do contrato./ A administração e gestão dos terrenos baldios em causa competia, à data da instalação dos parques eólicos, à Junta de Freguesia de X (...) pois a Assembleia de Compartes de C (...) , de cujo Conselho Directivo o R. J (...) fez parte, foi constituída após a instalação do parque eólico./ Na ausência da Assembleia de Compartes em C (...) , a gestão e administração dos baldios competia à Junta de Freguesia de X (...) . Por isso, a negociação e a contratação para utilização daquele espaço foi feita com a Junta de Freguesia de X (...) , tendo sido celebrado um contrato de cessão de exploração./ Ademais à Autora, por força do disposto na alínea m) do n.º 6 do artigo 34º da Lei n.º 169/99 de 18 de Setembro, alterada pelo Lei n.º 5-A/2002de 11 de Janeiro, que definia o Quadro de Competências e Regime Jurídico de Funcionamento dos órgãos dos Municípios e Freguesias e actualmente por força do disposto na al. oo) do artigo 16º da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, que instituiu o Regime Jurídico das Autarquias Locais, compete proceder à administração ou à utilização de baldios, sempre que não existam Assembleias de Compartes, nos termos da lei dos Baldios

V - Ademais, a Junta de Freguesia integrará porventura membros que também são compartes dos baldios em causa (e sabemos que qualquer comparte e o M.º Público têm legitimidade para instaurar a acção de declaração de nulidade - cf. os art.ºs 1º, n.º 3 e 4º, n.º 2, alíneas a) e b) da Lei n.º 68/93, de 04.9);

VI - Esta, pois, a solução que também respeitará a prioridade axiológica da decisão de mérito em relação às demais decisões [e como, com inteiro acerto, afirmou uma das testemunhas: “a explicação de todos estes problemas é estar ali o parque eólico”…], bem como o interesse público e o interesse das comunidades locais, pondo desde já cobro à mais que provável maquinação e actuação fraudulenta e abusiva dos 1ºs Réus e seus apaniguados/coniventes!

VII – Vingando a tese maioritária deste acórdão – e dada a indiciada almejada e permanente inércia dos “órgãos dos baldios”… (veja-se, até, o ponto VI do “sumário”) – os autos deverão ir com vista ao M.º Público para que se promova e alcance a justiça material!



José da Fonte Ramos