Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
201/21.8GACNF-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
PODER VINCULADO
Data do Acordão: 04/20/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - CINFÃES - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 33.º, N.º 1 DA LEI N.º 112/2009, DE 16 DE SETEMBRO
Sumário:
I - O poder conferido ao juiz pelo nº 1 do artigo 33º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro (Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Protecção e Assistência às suas Vítimas) de proceder à inquirição antecipada da vítima (prestação de declarações para memória futura), deve ser interpretado e entendido como um poder/dever, devendo ser considerado o regime regra para estas situações de vítimas de crimes de violência doméstica.
II - A não indicação no requerimento do Ministério Público dos concretos factos sobre que deve recair a prestação de declarações da vítima, não é fundamento de indeferimento, não ferindo tal omissão o princípio do acusatório nem constituindo violação de qualquer preceito constitucional.
Decisão Texto Integral:
1. Nos autos de processo (inquérito) supra referenciados, requereu o Ministério Público que se tomem declarações para memória futura a AA e BB, nos seguintes termos e com os seguintes fundamentos:

“Compulsados os autos, constata-se haver denúncia da prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelos artigos 152.º, n.º 1, alíneas a) e d) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, sendo um na pessoa da denunciante, AA, e outro na pessoa da filha comum, BB, nascida a .../.../2012.

Como decorre, AA e BB, atento o contexto da prática dos factos, a relação que mantiveram/mantêm com o arguido e, particularmente, no que respeita a BB, a sua idade, são pessoas especialmente vulneráveis, sendo certo que o decurso do tempo poderá fazer perigar um depoimento espontâneo e sem lapsos de memória, principalmente quanto à menor.

Deste modo, de forma a dar cumprimento à citada Directiva e a evitar a revitimização das pessoas acima identificadas, entende-se deverão ser-lhes tomadas declarações para memória futura, nos termos do artigo 33.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009 (numa perspectiva ampla), de 6 de Setembro.

Em tal diligência, deverão ser acompanhadas de técnico especializado que previamente seja designado para o efeito.

Nestes termos, o Ministério Público promove:

Se designe data para tomada de declarações para memória futura a AA e BB, (artigo 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 33.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, numa perspectiva ampla, de 6 de Setembro).

Sejam as vítimas acompanhadas de técnico especialmente habilitado (artigo 271.º, n.º 4, do Código de Processo Penal).

 Que tais declarações sejam prestadas na ausência do(s) arguido(s) (artigos 271.º, n.º 6 e 352.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal).

Se proceda ao seu registo de voz e imagem.

2. A pretensão do Ministério Público foi indeferida por despacho judicial de 9 de fevereiro de 2022, o qual tem o seguinte teor no que para o efeito mais releva:

“Nestes autos, o Ministério Público funda a sua pretensão na relação das ofendidas com o arguido e, especialmente no que se refere à BB, pela sua idade, a sua especial vulnerabilidade, acrescentando que o decurso do tempo poderá fazer perigar um depoimento espontâneo e sem lapsos de memória.

Todavia, compaginando o ora exposto com tais fundamentos, considera-se que tal pedido é, atentos os elementos constantes actualmente do processo, desadequado.

Como se disse, em face do enquadramento legal a que este Tribunal está vinculado (que não incluí as Directivas do Ministério Público), sendo legalmente facultativo o requerimento apresentado, o mesmo deve ser fundamentado com a invocação concreta de circunstâncias, ligadas à especificidade do caso, que justifiquem a realização da prova por declarações para memória futura.

Note-se que se trata de uma diligência que se traduz indiscutivelmente num desvio em relação àquilo que são os princípios gerais e basilares da imediação e do contraditório, segundo os quais, e entre o mais, as testemunhas, incluindo as vítimas, são ouvidas em julgamento; o que é por demais notório no caso concreto em que inexiste qualquer outra prova além das próprias ofendidas.

É de notar, aliás, que o legislador teve o cuidado de consagrar o expediente das declarações para memória futura em termos excepcionais, impondo-o em casos muito limitados (artigo 271.º, n.º 2 do CPP) e admitindo-o em circunstâncias muito específicas (artigos 271º, n.º 1 do CPP e 33.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro).

Quer isto dizer que, sendo os critérios de que depende o deferimento do requerido de apreciação casuística, não pode a prática judiciária criar uma regra (a de ouvir-se sempre a vítima em processos de violência doméstica) que o legislador não quis consagrar, pois que, se o tivesse querido fazer, decerto teria imposto as declarações para memória futura nos termos estritos que concebeu noutros quadrantes do ordenamento jurídico.

Ora, o requerimento em apreço não enuncia quaisquer razões concretas que tornem justificado realizar a diligência pretendida (no sentido da necessidade de especificar tais razões vide Cruz Bucho, Declarações para memória futura, in  https://www.trg.pt/ficheiros/estudos/declaracoes_para_memoria_futura.pdf, pgs. 68 e seguintes), assentando numa argumentação tabelar abstratamente aplicável a qualquer processo em que se investigue o crime de violência doméstica.

Dos argumentos aduzidos, não se verifica nenhum que justifique a opção por um desvio à regra processual da imediação.

Note-se, inclusive, que, dos elementos constantes dos autos, dúvidas podem existir acerca da própria qualificação jurídica dos crimes, razão pela qual se afigura que em momento algum a promoção aponta ou considera como indiciados tais factos (ancorando-se, ao invés, na sua denúncia).

Desde logo, a especial vulnerabilidade resulta da classificação atribuída por lei às ditas vítimas de violência doméstica, nos termos do disposto no artigo 67.-ºA, n.º 1, alínea b) e n.º 3, com a referência ao artigo 1.º, alínea j), todos do CPP.

Trata-se de uma classificação absolutamente automática e desgarrada da análise e ponderação de quaisquer elementos efectivos e factuais que permitam aferir da verificação dos pressupostos que, como regra, lhe são exigíveis.

Disto isto, acrescenta-se que apenas à ofendida AA foi atribuído o estatuto de vítima, nos termos do artigo 14.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro (fls. 10); nada existindo no processo que indicia que a BB tem vindo a ser tratada como tal ou beneficia de esse estatuto.

Neste contexto, nada nos autos permite concluir por uma efectiva vulnerabilidade a acautelar, o que ressalta em relação à ofendida AA, que disse estar separada do arguido há 4 anos, o que impele o Tribunal a questionar qual a relação mantida com o mesmo que torna premente a diligência pretendida.

A esse propósito, acrescenta-se que dos autos não constam os respectivos assentos de nascimento, não se percebendo qual o concreto tipo de relação mantida entre ambos (se foram efectivamente casados, unidos de facto ou mantiveram uma relação de namoro).

Ainda em relação à ofendida AA, nota-se que a mesma prestou depoimento por três vezes (no auto de 11 de Outubro de 2021, a fls. 3 e sgs.; no auto de 21 de Outubro de 2021, a fls. 39 e sgs.; e no DIAP em 1 de Fevereiro de 2022, a fls. 74 e sgs.), tendo manifestado vontade de dar continuidade ao processo, mas também vir a concordar com uma eventual suspensão provisória do processo. Ora, esta intervenção processual reiterada e o que dela se extrai é incompatível com a fundamentação aduzida pelo Ministério Público.

Depois, diga-se que a factualidade referente ao crime do qual a BB é vítima encontra-se numa fase bastante embrionária: não se alcança de que modo é que a progenitora teve conhecimento das chamadas, a sua reiteração, duração, teor ou existência de registos.

Ainda se nota que as declarações para memória futura, mesmo quando produzidas na fase de inquérito, constituem uma diligência presidida pelo juiz, a quem cabe a iniciativa primacial de efectuar a inquirição (artigo 271.º, n.º 1 do CPP), sendo que, no caso de testemunha menor de 16 anos (como sucederá com a BB), a inquirição deve mesmo ser realizada exclusivamente pelo juiz, nos termos em que o seria em julgamento (por nenhuma razão haver para que nesta sede se não dê aplicação ao determinado pelo artigo 349.º do CPP).

Nisto, importa então concatenar as ideias de que a direcção do inquérito compete ao Ministério Público e de que o processo penal tem uma estrutura acusatória, por um lado, com a ideia de que é o juiz quem dirige as declarações para memória futura, por outro lado, para daí concluir que é ao último que cabe mais protagonismo no âmbito e nos termos da diligência.

Perante isto, a única forma técnico-juridicamente acertada e eficaz do ponto de vista prático de lograr aquela concatenação de ideias (de sentido contrário ou divergente quanto aos papéis de cada magistratura) é a de o requerimento visando declarações para memória futura, desde logo quando formulado pelo Ministério Público, como será a regra, deve conter um enunciado de temas mais ou menos específicos e concretos que definam e delimitem o seu objecto (um pouco à semelhança do que sucede aquando da apresentação de arguidos detidos para primeiro interrogatório judicial).

Admitir como processualmente regular um requerimento de declarações para memória futura formulado pelo Ministério Público em termos de todo não concretizados quanto ao âmbito fáctico e temporal da diligência equivaleria a atribuir poderes investigatório fora de tempo ao juiz de instrução, como se este fosse o titular do inquérito, pois que caber-lhe-ia em concreto decidir ampla e abertamente os pontos específicos a questionar, quiçá traçando ou condicionando as linhas de investigação ulterior.

Isto para dizer que atento o estado dos autos, não cabe ao juiz decidir da abrangência dos depoimentos a prestar, o que é particularmente evidente no caso da BB.

Mais, o objectivo primordial das declarações no âmbito do crime em investigação prende-se com a pretensão da prevenção da vitimização secundária das ofendidas.

Todavia, vislumbra-se que a sua audição propiciaria essa mesma vitimização, especialmente no que se refere à BB. A criança convive ou contacta regularmente com o progenitor (o que permanece por esclarecer, diga-se, por ser omisso dos autos os termos em que foi efectuada a regulação do exercício das suas responsabilidades parentais), recentemente constituído arguido e confrontado com os factos em investigação.

Está anunciada nos autos a pendência de processo de promoção e protecção em favor da BB (fls. 37 e 38), estando por apurar que diligências ali foram encetadas passíveis de contender com os presentes autos, nomeadamente se a criança foi ouvida, verbalizando os episódios também aqui em apreço.

Se, em face destes elementos e incertezas o Ministério Público entende ser suficiente a medida de coacção termo de identidade e residência, não promovendo afastamentos ou quaisquer proibições de contactos entre as mesmas (artigo 31.º, n.º 1, alíneas c) e d) da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro), não se vislumbra por que razão a audição das ofendidas é imprescindível neste momento e fase processual ou que a manutenção do status quo as prejudique.

A tenra idade da BB e o discurso carreado pela ofendida AA acerca dos factos permitem questionar seriamente se o confronto judicial pretendido não lhes criará uma sensação disruptiva e estigmatizante, com a consequente e indesejada vitimização.

Crê-se que tais questões poderiam ser melhor acauteladas caso as ofendidas beneficiassem de atendimento psicológico e psiquiátrico prévio, de acordo com o previsto no artigo 22.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro (o qual já foi, aliás, requerido para a BB, conforme resulta de fls. 41).

Por fim, de acordo com o artigo 16.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, «as autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal».

Condensando todas as questões vertidas, não se vislumbra de que modo ficariam realizados os fins do processo penal.

Num processo no qual a prova da eventual acusação pública ficaria automaticamente subtraída do contraditório e imediação da audiência de discussão de julgamento, na ausência de quaisquer elementos concretos e efectivos que permitam concluir que o caso concreto deve ser excepecionado às regras que disciplinam o mesmo processo.

Por todas as razões expostas, indefere-se, por ora, o pedido de tomada de declarações para memória futura a AA e BB”.

3. Deste despacho judicial recorre o Ministério Público que formula as seguintes conclusões:

1.        O Ministério Público promoveu a tomada de declarações para memória futura a AA e BB, ao abrigo do disposto nos artigos 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, 2.º, n.º 1, alínea b), 28.º e 33.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro, o que o Tribunal decidiu indeferir por decisão proferida em 9.2.2022 (ref.ª 89917950), com base no seguinte: o pedido de declarações para memória futura é desadequado, não sendo enunciadas razões que justifiquem o desvio à regra processual da imediação; dúvidas podem existir quando à qualificação jurídica dos crimes; nada indicia que a menor BB beneficie do estatuto da vítima; o Tribunal questiona qual a relação mantida por AA com o arguido que torna premente a tomada das suas declarações; a investigação do crime do qual BB é vítima encontra-se em fase embrionária; o requerimento para declarações para memória futura deve conter um enunciado de temas que delimitem o seu objecto (à semelhança do que sucede aquando da apresentação dos arguidos a primeiro interrogatório judicial); as declarações de BB propiciariam a sua vitimização, porque convive regularmente com o seu progenitor; se o Ministério Público entende ser suficiente a aplicação ao arguido do TIR, a audição das ofendidas não é imprescindível, nesta fase.

2.         Ora, os presentes autos de inquérito tiveram origem no auto de notícia elaborado pela GNR ..., do qual resulta a denúncia (melhor concretizada em sede de inquirições posteriores a AA) de que: desde a separação de AA do arguido CC, há cerca de quatro anos, que este a vem importunando a si e à filha menor, por não se conformar com o termo da relação; desde então, se desloca com frequência não apurada à residência daquelas, onde fica no exterior, controlando; realiza chamadas telefónicas indicando que atentará contra a vida, a integridade física e bens patrimoniais de AA; realiza chamadas telefónicas à filha menor ameaçando-a de que atentará contra a vida, a integridade física e bens patrimoniais da sua progenitora; apresenta-se alcoolizado nos fins de semana cujo convívio com a menor lhe está adstrito por regulação das responsabilidades parentais; nesses fins de semana, o arguido ameaça BB com anúncios de que atentará contra a vida, a integridade física e bens patrimoniais da respectiva progenitora; AA e BB temem o comportamento do arguido, sendo que esta última não gosta de passar os fins de semana com este (cfr. auto de denúncia e autos de inquirição de fls. 3 e ss., 39 e ss. e 74 e ss.).

3.        Mais resulta que no NUIPC (…) foi aplicada ao arguido a Suspensão Provisória do Processo pela prática de um crime de violência doméstica (p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal) na pessoa de AA, na presença da menor (cfr. certidão de fls. 84 e ss.).

4.        As declarações para memória futura às vítimas afiguram-se de relevo como meio com valor probatório em julgamento, assim se evitando a revitimização das vítimas e o perigo que é a obtenção de um depoimento espontâneo e sem lapsos de memória ou confusões entre factos (atento o decurso do tempo, a possível reiteração, prolongamento no tempo e consequente sobreposição das condutas e, em particular, a idade da menor).

5.        AA e BB são vítimas especialmente vulneráveis, o que resulta: da sua diminuta idade (BB), da relação de parentesco mantida com o arguido e do ascendente que daí decorre (BB), da relação amorosa anteriormente mantida com o arguido e do ascendente que daí decorre (AA), da relação de convivência mantida em função da filha comum de ambos (AA), da circunstância de, mais tarde ou mais cedo, poder ter que prestar declarações contra pessoas da própria família (BB), da circunstância de serem vítimas, segundo a denúncia, de crime de violência doméstica (criminalidade violenta) - artigo 2.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e 67.º-A, n.º 1, alínea b), por referência ao artigo 1.º, alínea j), do Código de Processo Penal.

6.        Existem, assim, razões concretas e legais para a tomada de declarações a AA e BB, o mais brevemente possível após a ocorrência do crime, evitando-se a sua repetição, mormente através do mecanismo da memória futura: são especialmente vulneráveis; está em causa a investigação de crimes de violência doméstica e o Ministério Público requereu tal meio de prova (artigos 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 28.º, n.º 1 e 33.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro).

7.        No caso concreto, a proximidade física entre as vítimas e um dos arguidos (residem no mesmo município, sendo que, segundo os factos apurados, o arguido se desloca frequentemente a casa das vítimas, tendo convívios pelo menos quinzenais com a menor), as respectivas relações (ex-companheiro quanto à AA, que não se conforma com o fim da relação, e ascendente de BB) e a idade da menor, mostram necessária a realização da requerida diligência.

8.        O artigo 33.º, n.º1,da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, estabelece como único requisito a apresentação de requerimento pela vítima ou pelo Ministério Público, dispensando a verificação dos erroneamente elencados na decisão recorrida.

9.        No caso concreto, é necessária a audição complementar de AA por Autoridade Judiciária no sentido de melhor concretizar os factos investigados que, atentas as vicissitudes do caso concreto e da presente Procuradoria, ainda não sucedeu. Por outro lado, é necessária a audição de BB, menor ainda não ouvida em sede de inquérito e cujo depoimento é essencial à descoberta da verdade, porquanto há factos que são directamente vivenciados e, alguns, apenas presenciados por si.

10. Na verdade, sequer se compreende como poderia o Ministério Público ponderar da enunciação de temas para a diligência a produzir quanto à menor, por exemplo, se a concretização dos factos de que a menor é vítima (e que presencia directamente) depende necessariamente do seu depoimento.

11. Na verdade, o que se pretende na decisão recorrida é que o Ministério Público defina um objecto que decorre já dos autos. E, se não decorre, é precisamente tal objecto que se pretende obter em sede de tomada de declarações para memória futura.

12. E é tal concretização dos factos que poderá, eventualmente, fundamentar, o agravamento do estatuto coactivo, não se vislumbrando qualquer relação entre a não promoção de aplicação de medidas de coacção distintas do TIR e a desnecessidade de produzir o requerido meio de prova.

13. E, não se ignorando que AA foi já ouvida em declarações por duas vezes (uma perante a GNR e outro perante Oficial de justiça), sendo as suas declarações e da sua filha agora tomadas noutro formato que não o de declarações para memória futura, sempre terão ambas as vítimas de ser ouvidas, pelo menos uma vez mais do que a necessária (para além daquela que se poderá alvitrar em perícia forense da menor), caso o processo prossiga.

14. Pese embora o Tribunal entenda que o meio de prova em causa no presente recurso seja um mecanismo excepcional, o artigo 33.º, da Lei 112/2009 consagra uma regra distinta da do Código de Processo Penal quanto à utilização de tal meio de prova, não sendo o seu deferimento um desvio a qualquer regra processual, mas antes o respeito por norma especial expressamente consagrada na matéria.

15. Ademais, o Tribunal a quo não indica (nem fundamenta) a indispensabilidade de o depoimento das vítimas ser colhido em julgamento, se for o caso [1]

16. Cabe ao Ministério Público a direcção da acção penal, decidindo da tempestividade e oportunidade das diligências probatórias a realizar em sede de inquérito e, bem assim, decidir e promover da obtenção e conservação de provas indiciárias (artigos 53.º, n.º 2, alínea b) e 263.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

17. “Na nossa perspectiva, o art.° 33.° em causa haverá de ser interpretado no sentido de o juiz, como regra, dever deferir a pretensão dos requerentes, só assim não decidindo quando, objectiva e manifestamente, se revele total desnecessidade na recolha antecipada de prova, contrariamente ao aqui entendido pelo Mm.° Juiz "a quo", cuja regra já parece ser a do indeferimento, excepto quando haja "razões especiais", no caso concreto, para deferir a realização da mesma diligência. […][2], sendo que, no caso concreto, não se vislumbra, nem foram alegadas razões atendíveis para censurar o juízo de necessidade realizado pelo Ministério Público, determinado por uma linha investigatória que apenas a si compete definir.

18. Pelo exposto, entende-se que a decisão recorrida viola o disposto nos artigos 53.º, n.º 2, alínea b), 67.º-A, n.º 1, alínea b) e n.º 3, por referência ao artigo 1.º, alínea j), 263.º, n.º 1, 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, 2.º, n.º 1, alínea b), artigos 16.º, n.º 2, 28.º e 33.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro e 24.º, da Lei n.º 120/2015, de 4 de Setembro, devendo ser substituída por outra que determine a tomada de declarações a AA e BB, nos termos oportunamente requeridos pelo Ministério Público.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V.as Ex.as doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que determine a tomada de declarações a AA e BB.

4. Nesta instância, a Exmª Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, dizendo, em síntese:

“Com a previsão das declarações para memória futura, entendeu o legislador consentir num mecanismo susceptível de aumentar os níveis de eficácia na fixação e validação probatória em matéria penal, mas exigindo a sua jurisdicionalização e a observância de um conjunto de garantias e procedimentos, que impeçam, a todo o custo, que a estrutura do processo seja significativamente alterada ou que os direitos do arguido sejam de alguma forma postergados ou reduzidos.

Já quanto ao requerimento para essa tomada de declarações, concordamos que deve ele delimitar, na medida do possível, o objecto da diligência.

“Defendemos que, nos casos em que as declarações para memória futura forem tomadas durante a fase de inquérito, para que não haja violação da estrutura acusatória do processo penal, o que tornaria o artigo 271.º do CPP inconstitucional – uma vez que a entidade que investiga não é quem julga e a entidade que julga não investiga -, o Ministério Público, o arguido, o assistente e partes civis, na elaboração do requerimento da prova antecipada tem de delimitar o objeto da diligência.” - vide Pedro Jorge Fernandes Nunes na Dissertação para a obtenção de grau de Mestre/“Depoimentos para Memória Futura: conteúdo dogmático e aplicação prática”, da Universidade Autónoma de Lisboa, acessível na internet. (sublinhado nosso).

Em conclusão, aderindo, no essencial, à argumentação contida na fundamentada resposta do Ministério Público na primeira instância, somos de parecer que o recurso deve ser julgado procedente, sem prejuízo de o requerimento do Ministério Público dever delimitar, na medida do possível, o objecto do processo”.

            6. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.


II

            Cumpre apreciar:

           Traduz-se o objeto do presente recurso em apreciar se no concreto caso devem ser tomadas declarações para memória futura a AA e a BB.

1. Em processo penal vigora o princípio da imediação. Pelo que só excecionalmente as declarações de uma testemunha devem ser prestadas fora da audiência de julgamento – artigo 318º, do Código de Processo Penal.

Uma dessas exceções é precisamente a prestação de declarações para memória futura prevista  e regulada no artigo 271º do Código de Processo Penal.

No que concretamente respeita ao crime de violência doméstica, que é a situação que de momento nos ocupa, deve atender-se ao disposto na Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, que estabelece o Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Protecção e Assistência às suas Vítimas, determinando no artigo 33º sob a epígrafe declarações para memória futura:

1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

(…)

3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal.

4 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.

(…)

7 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.

Embora da terminologia legal resulte que a prestação de declarações para memória futura – de resto, uma antecipação das declarações - não seja necessariamente obrigatória[3] – basta atentar na expressão usada pelo legislador o juiz…pode proceder à inquirição – é entendimento generalizado na jurisprudência que este poder do juiz se trata de um poder/dever, devendo ser considerado o regime regra para as situações de vítimas de violência doméstica. V. ac. do TRL de 5.3.2020, Proc. 779/19.6PARGR-A.l1 9ª Secção:

“…na nossa perspectiva, o art.° 33.° em causa haverá de ser interpretado no sentido de o juiz, como regra, dever deferir a pretensão dos requerentes, só assim não decidindo quando, objectiva e manifestamente, se revele total desnecessidade na recolha antecipada de prova, contrariamente ao aqui entendido pelo Mm.° Juiz a quo, cuja regra já parece ser a do indeferimento, excepto quando haja razões especiais, no caso concreto, para deferir a realização da mesma diligência.

Assim, …atenta a superior relevância dos interesses em causa, entende-se que a regra haverá de ser a de deferir, sempre, o requerimento apresentado pela vítima ou pelo Ministério Público, até no exercício do dever de protecção à mesma vítima consagrado no art.° n.º 2 da Lei n.º .112/2009, só em casos excepcionais, de inequívoca e manifesta irrelevância, se devendo indeferir o mesmo requerimento.

Deste modo, se a vítima ou o Ministério Público requerem a tomada de declarações para memória futura é porque nisso vêm interesse, sendo este, também, necessária e consequentemente, o interesse da comunidade, os quais, afinal, todos passam pela descoberta da verdade e pela efectiva realização da justiça.».

Decidindo-se também no ac. do TR... de 17.2.2021, proc. nº 6/21....:             “…estando os direitos e interesses das vítimas de violência doméstica tutelados pela mencionada Lei n.º 112/2009, no “poder” que é conferido ao juiz está implícito o “dever” de, em qualquer fase do inquérito, e independentemente de já existir recolha de outra prova, tudo fazer no sentido de precaver a recolha e a conservação de uma prova que surge como essencial, a menos que a diligência solicitada pelo Ministério Público não se afigure, de todo, necessária, o que não se revela no caso presente.

              Em situações como a que está agora em causa, consideramos que a regra deve ser a de deferir, sempre, o requerimento apresentado pela vítima ou pelo Ministério Público, pois está em causa o “dever de proteção” à mesma vítima consagrado no artigo 20.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, pelo que, só em casos excecionais, de inequívoca e manifesta irrelevância, se deve indeferir uma pretensão como a que foi formulada nos presentes autos”.

Adiantando ainda o ac. do TR... de 5.3.2020 (Proc. ...79/19.6PARGR-A.l1 ... Secção), uma posição pragmática e evidente, quando afirma: “Depois, que incómodos ou transtornos causa ao Mm.° Juiz poder proceder a uma recolha antecipada de prova relativamente a um crime de violência doméstica, ainda que se coloquem dúvidas sobre a real necessidade da mesma? Não é essa disponibilidade/responsabilidade e prudência, enquanto administrador da justiça em nome e no interesse dos cidadãos, que estes de si esperam!?

Assim, sendo certo que o art.° 33.° da citada Lei n.º 112/2009 deixa nas mãos do juiz o poder de proceder à recolha das declarações da vítima para memória futura ainda na fase de inquérito, não é o mesmo um poder arbitrário ou que possa ser levianamente exercido, pois que a crescente gravidade dos factos neste, também, cada vez mais o repetido tipo de crime exige de todos os operadores judiciários empenho e uma acção prática efectiva e proveitosa”.

Regime regra este com apoio no citado artigo 33º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro conjugado com o estatuto da vítima especialmente vulnerável que é reconhecido à vítima de crime de violência doméstica.

Com efeito, nos termos previstos no nº 1, alínea b do art 67-A do Código de Processo Penal, é 'Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;

Por sua vez, nos termos do nº 3 deste mesmo preceito, As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.

Ora, sendo o crime de violência doméstica punível com pena de 1 a 5 anos de prisão no caso do nº 1 do artigo 152º do Código Penal e com a pena de 2 a 5 anos na situação do nº2, integra o mesmo o conceito de criminalidade violenta definido pelo artigo 1º, alínea j), do Código de Processo Penal, ao estipular que «Para efeitos do disposto neste Código considera-se criminalidade violenta: as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos”[4].

Mas também a Lei n° 130/2015, de 4 de setembro - Estatuto da Vítima - prevê o direito das vítimas especialmente vulneráveis, - como uma das medidas especiais de protecção, - à prestação de declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo 24ª. “1 - O juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal”.

Decidindo-se a propósito no ac. do TR... de 04-06-2020, proc. nº 382/19....:

III - A par do direito de audição em declarações para memória futura das vítimas especialmente vulneráveis, reconhecido pela Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro — diploma aplicável a qualquer vítima de criminalidade mostra-se também legalmente reconhecido o direito de audição em declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, nos termos constantes do referido artº 33.° da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro. Acresce que o art.° 67.°-A do C.P.P., no qual se considera, como dissemos, vítimas especialmente vulneráveis, para além do mais, as vítimas de criminalidade violenta, foi introduzido precisamente pela referida Lei n. 130/2015, de 04 de Setembro.

A ratio desta posição (de considerar como um poder/dever ou mesmo o dito regime regra na prestação de declarações para memória futura nas situações de vítimas de violência doméstica)  encontra suporte na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 248/X/4ª que esteve na base da citada Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro: “Sendo a prevenção da vitimização secundária um aspecto axial das políticas hodiernas de protecção da vítima, estabelece-se, sempre que tal se justifique, a possibilidade de inquirição da vítima no decurso do inquérito a fim de que o depoimento seja tomado em conta no julgamento, ou ainda, no caso da vítima se encontrar impossibilitada de comparecer em audiência, a possibilidade de o tribunal ordenar, oficiosamente, ou a requerimento, que lhe sejam tomadas declarações no lugar em que se encontra, em dia e hora que lhe comunicará - Diário da Assembleia da República, II série A, n.º 58/X/4, de 22-1-2009, págs. 30-53.

Por sua vez, foi objetivo claro do legislador reforçar a tutela judicial da vítima, consagrando um regime mais favorável que visa reforçar uma proteção célere e eficaz da vítima de molde a prevenir a sua vitimização secundária e sujeição a pressões desnecessárias – v. Cruz Bucho, in Declarações para memória futura (elementos de estudo) de 2-4-2012, no X aniversário da Relação de Guimarães, consultável em www.trg.pt/ficheiros/estudos/declaracoes para memoria_futura.pdf.

2. A situação dos autos:

Sopesando os fundamentos do recorrente Ministério Público e da decisão recorrida, que nos dispensamos de enumerar aqui e agora, porque reproduzidos supra, cumpre dizer o seguinte:

2.1. Questiona-se, desde logo, na decisão recorrida, a substancialidade de vítima especialmente vulnerável da ofendida AA, pois que, formalmente, a lei é inquestionável em lhe atribuir esse estatuto por diversas vias.

Mas tendo por base os elementos já fornecidos pelos autos, também em termos substantivos essa especial vulnerabilidade se verifica.

Se se atentar no exato teor dos factos descritos nos autos e relatados em diferentes momentos pela ofendida AA, constata-se que os mesmos se traduzem em permanente importunação psicológica daquela (v. o suspeito aos fins de semana desloca-se até à sua residência e senta-se num muro existente mesmo em frente à habitação, controlando todos os movimentos da mesma, perseguindo-a e intimidando-a ao ponto de se colocar em frente ao veículo quando esta está a circular), violência física para com bens desta (como a vítima não abriu a porta -de casa -, o mesmo desceu as escadas e já na via pública começou aos pontapés e murros ao veículo matrícula ..-CJ-.., marca ..., de cor ..., registado em nome da mesma, que se encontrava estacionado em frente à residência) e finalmente receio pela própria saúde e vida pelas expressões proferidas para a menor BB, filha de ambos (v. quando apanhar a tua mãe vou dar-lhe 4 lambadas na cara e quando a voltares a ver vai ser no hospital; nos telefonemas que o arguido faz à sua filha diz-lhe que a vai matar, que vai incendiar a casa, que vai destruir o carro). A que acresce o facto de muitos destes factos serem praticados sob o efeito do álcool.

Da globalidade de todos estes comportamentos, que se vêm, pelos vistos, repetindo, é legítimo e natural concluir que a ofendida está exposta a comportamentos e atitudes do arguido, que a fragilizam e condicionam o seu dia a dia, sujeitando-a ao risco de, a qualquer momento, o arguido passar de meras ameaças e importunação verbal, a concretização efetiva dessas afirmações. A manifestação de vontade da ofendida em dar continuidade ao processo, revela preocupação desta com a conduta do arguido, temendo pelo que lhe poderá acontecer.

Pelo que é de entender e reconhecer que a situação da ofendida AA é de uma efetiva e especial vulnerabilidade, de acordo com o conceito legal definido para esta figura jurídica.


*

Quanto à menor BB, nascida a .../.../2012, neste momento com apenas nove anos de idade, também a qualidade de vítima especialmente vulnerável é inquestionável, desde logo por dois fatores relevantes: a sua idade e a exposição e sofrimento psicológico permanente em que se encontra perante as ações e atitudes do arguido pai, quer através dos constantes telefonemas que lhe faz e nos quais afirma e manifesta vontade de perpetrar maus tratos físicos à mãe, incluindo “matá-la” como tem de se sujeitar a acompanhá-lo pelos cafés, em estado alcoolizado. Reconhecendo-se na própria decisão recorrida que a menor já beneficia de apoio psicológico.

Pelo exposto, assiste razão ao recorrente Ministério Público  quando diz que “a especial vulnerabilidade das vítimas pode resultar, como resulta no caso concreto, da sua diminuta idade (BB), da relação de parentesco mantida com o arguido e do ascendente que daí decorre (BB), da relação amorosa anteriormente mantida com o arguido e do ascendente que daí decorre (AA), da relação de convivência mantida em função da filha comum de ambos (AA), da circunstância de, mais tarde ou mais cedo, poder ter que prestar declarações contra pessoas da própria família (BB)”.


*

2.2. Questiona-se também na decisão recorrida, a oportunidade e/ou necessidade da prestação de declarações pela ofendida AA, quando é certo que já foi ouvida no inquérito pelo menos em três momentos - aquando da participação datada de 13.10.2021, pela GNR ... em 21.10.2021 e nos serviços do Ministério Público em 1.2.2022 -, ao mesmo tempo que questiona  qual a relação mantida com o arguido que torna premente a diligência pretendida.

Com o devido respeito, resulta expressamente dos autos, segundo as declarações da ofendia AA, que esta teve uma relação com o participado CC cerca de cinco anos; que da relação tiveram a BB,  atualmente com nove anos de idade; e que a relação com o CC acabou no mês de setembro de 2017.

Mais se mostra junta aos autos certidão judicial do NUIPC (…), da qual resulta ter sido já aplicada a Suspensão Provisória do Processo ao aqui arguido pela prática de um crime de violência doméstica (p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal) na pessoa de AA e na presença da menor BB – v. certidão de fls. 84 e ss.

Quanto à necessidade da prestação de declarações para memória futura pela ofendida AA, importa dizer que todas as declarações que a mesma já prestou até ao momento no inquérito, não dispensam ou substituem aquelas, cuja finalidade e valor probatório é completamente diferente.

Com efeito, a prestação das declarações (para memória futura) tem ainda a relevante finalidade de recolher e, deste modo, preservar prova importante -  o depoimento da ofendida AA – que, na terminologia do artigo 33º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

Para além de obstar a futuros constrangimentos da vítima/ofendida bem como a pressões desnecessárias, é sabido que o decorrer do tempo traz consigo lapsos de memória e, consequentemente, dilui ou apaga muitos pormenores quanto a certos factos, impossibilitando ou pelo menos dificultando a sua prova, o que significa a inviabilização da realização da justiça pretendida no caso concreto.

Quando é certo que o processo se pode prolongar no tempo mais que o desejável, nomeadamente se for requerida perícia forense sobre a personalidade quanto à menor BB ttendo como finalidade uma avaliação/valoração mais idónea e fundamentada das suas declarações.

 


*

Se a prestação de declarações para memória futura se justifica quanto à ofendida AA, por maioria de razão se justifica quanto à menor BB, quer pela sua idade (9 anos), quer pelo ascendente do pai sobre ela. E, essencialmente, por dois fatores mais:

- A audição de uma criança em audiência de julgamento é suscetível de criar uma situação constrangedora e desencadeadora de stress, podendo ter até impacto psico-emocional negativo na mesma.

- Também com o decurso do tempo a memória da criança vai ficando mais difusa, perdendo rigor quanto à exatidão dos reais factos ocorridos, com o risco de o imaginário e a fabulação ganhar relevo ou mesmo até ficar mais sugestionada sobre a realidade do que aconteceu.

Sobre este aspeto, v. o excerto do Ac. da Rel. do ... de 19-1-2005, proc.º n.º 0510063, (rel. Fernando Monterroso), in www.dgsi.pt (a propósito de um crime sexual mas cuja ratio e interesse se mantém neste caso): “…em crianças de tão tenra idade, não só a memória se torna rapidamente difusa, mas também que são progressivamente maiores os riscos de fabulação, que podem levar o menor a contar o que lhe dizem ter acontecido, em vez do que viu e viveu. Por isso, mesmo que os menores voltem a depor em julgamento, tudo aconselha, para a boa administração da justiça, que lhes sejam desde já tomadas declarações, desse modo fornecendo aos julgadores um leque mais vasto de material probatório a ser livremente por eles apreciado e conjugado.

A isto acrescem interesses de protecção dos menores. É certo que os juízes não são técnicos dos fenómenos do foro psicológico, mas não estão inibidos de, com base nas regras da experiência, afirmarem a probabilidade de os menores depois do depoimento verem baixar os níveis de ansiedade, que o caso inevitavelmente provoca”.

A todo o exposto acresce que também ao abrigo da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho ( LEI DE PROTECÇÃO DE TESTEMUNHA), as declarações das vítimas devem ter lugar o mais rapidamente possível, dispondo o artigo 28º:

1 - Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.

2 - Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal.

2.3. Finalmente, questiona-se na decisão recorrida o facto de o requerimento do Ministério Público não “conter um enunciado de temas mais ou menos específicos e concretos que definam e delimitem o seu objecto (um pouco à semelhança do que sucede aquando da apresentação de arguidos detidos para primeiro interrogatório judicial).

Isto para dizer que atento o estado dos autos, não cabe ao juiz decidir da abrangência dos depoimentos a prestar, o que é particularmente evidente no caso da BB”.

Esta observação da decisão recorrida assenta no pressuposto de que “importa concatenar as ideias de que a direcção do inquérito compete ao Ministério Público e de que o processo penal tem uma estrutura acusatória, com a ideia de que é o juiz quem dirige as declarações para memória futura, para daí concluir que é ao último que cabe mais protagonismo no âmbito e nos termos da diligência”.

Pois bem, esta exigência ou dever legal de no requerimento para prestação declarações para memória futura ser concretizado ou delimitado o âmbito do objeto dessas declarações, começa a ganhar alguma controvérsia.

Este dever é desde logo defendido por Pedro Jorge Fernandes Nunes na Dissertação para a obtenção de grau de Mestre/“Depoimentos para Memória Futura: conteúdo dogmático e aplicação prática”, da Universidade Autónoma de Lisboa, acessível na internet, sugerindo tal procedimento  “… para que não haja violação da estrutura acusatória do processo penal, o que tornaria o artigo 271.º do CPP inconstitucional – uma vez que a entidade que investiga não é quem julga e a entidade que julga não investiga”.

 

Também o Desembargador Cruz Bucho, in Declarações para memória futura (elementos de estudo) de 2-4-2012, no X aniversário da Relação ..., supra referido, entende, a fls 67, que o requerimento deve “mencionar os factos sobre os quais deve recair a produção antecipada de prova (em regra por referência ao auto de notícia, ou à acusação pública ou particular, caso já tenham sido deduzidas) “. Isto, por aplicação subsidiária das regras processuais civis - Código de Processo Civil, artº 520.º e 521.º (atualmente, artigos 419º e 420º, do mesmo diploma).

2.3.1. Em ac. desta Relação ... e deste mesmo coletivo, de 22.11.2017, proc. nº 2057/16...., decidiu-se que:

I - Na tomada de declarações para memória futura, o juiz não está vinculado a qualquer delimitação do objeto feito pelo Ministério Público.

II - O juiz está vinculado aos factos fornecidos pelos autos, a investigar, que se indiciam e que constituem o objeto da investigação.

Importa referir que em tais autos estava em causa a prática de um crime de abuso sexual de criança, logo, menor de idade, em que inexistia ainda arguido constituído no processo. Pelo que, ao abrigo do artigo 271º, nº 2, do Código de Processo Penal, estando em causa crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, deve proceder-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior. Ou seja, a tomada de declarações para memória futura era obrigatória.

Também no ac. do TR... de 29.6.2011, proc. nº 13391/08...., estando igualmente em causa a prática de um crime de abuso sexual de criança p.p. pelo artº 171º 1 e 2 CP, tendo a ofendida á data dos factos 13 anos de idade, foi entendido que o Ministério Público não está obrigado a indicar os factos sobre os quais deve incidir a inquirição. Tendo sido fundamentada a não aplicação subsidiária dos preceitos do Código de Processo Civil.

Com efeito, o disposto pelo artigo 271º do CPP não impõe ou exige e nem sequer aconselha ao requerente das declarações, a obrigação de indicar o objeto do depoimento e muito menos a descrição ou indicação dos factos sobre que há-de recair.

A única situação em que se impõe a descrição dos factos sobre que deve incidir a atividade jurisdicional é a do 1º interrogatório de arguido detido – artº 141º 4 c) CPP.

Como se refere no nº 1, in fine, do respetivo artigo 271º - bem como no nº1, in fine, do artigo 33º, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro -, a tomada das declarações para memória futura tem como finalidade que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

Daí a exigência de que o depoimento deva seguir o formalismo da tomada de declarações em audiência, com as especificações do artº 271º do Código de Processo Penal e com a observância do contraditório, que existe na audiência – v. o disposto no nº 3 (artº 271º) - presença dos intervenientes processuais - e nº5 - direito a formular perguntas.

Ora, nas situações em que a tomada de declarações para memória futura é obrigatória – v. quando está em causa a prática de um crime de abuso sexual em que a vítima é menor – sem prejuízo de, como já afirmado, o legislador em lado algum exigir ou fazer menção da necessidade da descrição dos factos sobre que deve incidir o depoimento, não se vislumbra como seria de conciliar essa exigência do juiz (a especificação dos concretos factos sobre que deve incidir o depoimento), sob pena da não realização da diligência, com a obrigatoriedade legal da realização da mesma!!

Para que se realize a tomada de declarações para memória futura nesta situação, é pressuposto que já existe processo, com a participação em que são enunciados factos indiciadores do crime ou crimes e, eventualmente, em muitos casos, até com o depoimento da vítima/ofendido(a). Pelo que, implicitamente, e o bom senso assim o determina, o  objeto das declarações para memória futura deverá incidir, no essencial, sobre os factos participados ou no teor das declarações já prestadas onde tais factos estão descritos.

E se é verdade que vigora no nosso processo penal o princípio do acusatório – v. artigo 32º, nº 5, da CRP/76 -, com o inerente princípio da vinculação temática, este só ganha efetivos contornos e relevo com a dedução da acusação pelo Ministério Público, titular da ação penal, segundo as exigências previstas no artigo 283º, do Código de Processo Penal. Sendo esta (a acusação) que, na verdade, define o objeto do processo e que vincula o juiz de julgamento.

Não se olvida que a direção do inquérito e respetiva investigação, cabe ao Ministério Público. Mas também é verdade que, sabendo o legislador quem é o titular da ação penal, faça intervir obrigatoriamente[5] o juiz para a tomada de declarações para memória futura e não imponha a definição obrigatória do objeto deste depoimento, em obediência ao princípio do acusatório.

Para além do argumento já adiantado de que este princípio ganha força efetiva na dedução da acusação, acrescenta-se que esta tomada de declarações para memória futura reveste natureza excecional durante a fase do inquérito. E ainda, sem prejuízo do princípio da investigação consagrado no artigo 340º do Código de Processo Penal, que vincula o juiz no dever de o observar nos termos aí previstos, ordenando, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, esta diligência de prestação de declarações para memória futura não tem mais que a natureza de um meio de prova, produzido antecipadamente, que pode ser tomado em conta no julgamento para prova do objeto do processo definido pelo titular da ação penal, o Ministério Público.

Nesta medida, entende-se que a não indicação no requerimento do Ministério Público, dos concretos factos sobre que deve recair a prestação de declarações, não fere o princípio do acusatório, inexistindo, consequentemente, a violação de qualquer preceito constitucional.

Aliás, se a especificação dos factos objeto da prestação de declarações deve ser entendida como exigência obrigatória para obstar à não violação do princípio do acusatório, sempre esta obrigatoriedade se não justificaria quando o requerimento fosse da iniciativa do arguido, na medida em que seria de a interpretar e presumir em benefício da sua defesa!!

Mas, na verdade, não vemos razão para tratamento diferente consoante o requerimento seja da iniciativa do Ministério Público ou do arguido, também não o exigindo o legislador (o tratamento diferente).


*

2.3.2. O que vimos dizendo/afirmando, tem em vista aquela enunciada situação de investigação de crime sexual em que a vítima é ainda menor de idade.

Pelo que importa apreciar se esta ideia, raciocínio e fundamentos, têm validade e aplicação no presente caso de tomada de declarações para memória futura por crime de violência doméstica.

E a verdade é que não vislumbramos fundamentos para que assim não deva ser.

Começou por se afirmar que a tomada de declarações para memória futura quando está em causa uma vítima do crime de violência doméstica, mais que um poder do juiz se trata de um poder/dever, devendo ser considerado o regime regra para estas situações.

 E se é certo que seria recomendável ou aconselhável que o Ministério Público, no seu requerimento, delimitasse ou concretizasse, dentro do possível, o objeto dos depoimentos das duas vítimas, o que poderia ser feito até por remissão (para a participação ou teor de declarações no inquérito), não o fazendo, tal facto não é fundamento para indeferimento. É verdade que sempre poderia o juiz convidar o Ministério Público a especificar esses factos. Mas, mesmo assim, se o Ministério Público não o fizer, continuamos a entender que inexiste fundamento para indeferimento e consequente não realização da diligência (com este fundamento, entenda-se).

Seguindo-se o entendimento do já citado ac. de 22.11.2017, proc. nº 2057/16...., cumpre também agora dizer que contêm os presentes autos, os factos da participação crime, corroborados e explicitados nas declarações prestadas pela ofendida AA. Factos estes que, não os tendo o Ministério Público descrito ou sequer para eles remetido no respetivo requerimento da tomada de declarações, todavia os descreveu em pormenor na motivação do recurso. Mas descreveu-os agora, porque são factos que constam efetivamente dos autos.

Pelo que, continuamos a entender que também aqui, implicitamente, o  objeto das declarações para memória futura deverá incidir, no essencial, sobre os factos participados e confirmados/ampliados no teor das declarações já prestadas pela ofendida AA.

É certo que a menor BB ainda não prestou declarações no inquérito, não se podendo dizer que no depoimento para memória futura deverá o juiz atender ao teor do mesmo. Não prestou declarações e ainda bem que as não prestou, tendo em conta tudo o que supra se afirmou quanto aos cuidados a observar no depoimento de uma criança que, em julgamento, apenas pode ser ouvida/inquirida, pelo juiz presidente – v. artigo 349º, do Código de Processo Penal.

Mas, como resulta dos autos - e mais uma vez tais factos estão especificados na motivação de recurso do Ministério Público -, o objeto do depoimento da menor BB facilmente se retira das declarações já prestadas em inquérito pela ofendida AA.

Assim, sendo a primeira vez que a menor BB prestará declarações, poderá fazê-lo no ambiente previsto pelo nº 4, do artigo 271º, do Código de Processo Penal, segundo o qual: “Nos casos previstos no n.º 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito”.

Embora o formalismo da prestação destas declarações esteja previsto para os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, não encontramos fundamento para que assim não seja também quando está em causa a prestação de depoimento de uma criança de nove anos de idade, vítima de violência doméstica na vertente psicológica (segundo os indícios dos autos). A ratio para este procedimento, mantém-se.


V

Decisão

Por todo o exposto, decide-se conceder provimento ao recurso do recorrente Ministério Público e, consequentemente, decide-se revogar a decisão recorrida e determinar a prolação de nova decisão que ordene a tomada de declarações para memória futura de AA e BB, nos termos decididos.


*

Sem tributação.

Coimbra, 20.4.2022.

Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos signatários.

Luís Teixeira (relator)

Vasques Osório (adjunto)

Brízida Martins (presidente)


[1] Veja-se, a propósito, o Acórdão da Relação do Porto de 24.9.2020 (Processo n.º 2225/20.3JAPRT-A.P1; Relator: João Pedro Nunes Maldonado; disponível em www.dgsi.pt).
[2] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5.3.2020 (Processo n.º 779/19.6PARGR-A.L1-9; Relator: Almeida Cabral; disponível em www.dgsi.pt) - sublinhado e negrito da signatária.
[3] O que se verifica nas situações do artigo 271º, nº 2, do Código de Processo Penal, ou seja,  nos casos de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, em que se procede sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
[4] V. ac. do TRC de 7.4.2021, proc. nº 86/20.1T90FR-A.C1:
I - Por força do disposto no n.º 3 do artigo 67-A do CPP, as vítimas de condutas constitutivas do crime de violência doméstica integram-se, ope legis, na categoria de “vítimas especialmente vulneráveis”.
II – Daí decorre a faculdade concedida ao juiz de tomada antecipada de declarações das referidas vítimas, devendo a pretensão solicitada para a realização do dito acto ser deferida, excepto quando, objectiva e manifestamente, se revele totalmente desnecessária”.
[5] Referimo-nos à situação em que está em causa a prática de um crime de abuso sexual em que a vítima é menor.