Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
760/10.0GBILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: SIMULAÇÃO DE CRIME
CONSUMAÇÃO
Data do Acordão: 12/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL DE ÍLHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 366º, DO C. PENAL
Sumário: A consumação do crime de simulação de crime não dispensa a efectiva indução em «erro» do respectivo destinatário.
Decisão Texto Integral: 1. No âmbito do processo comum nº 760/10.0GBILH da Comarca do Baixo Vouga – Ílhavo – Juízo de Média Instância Criminal, mediante acusação pública, foi o arguido A..., melhor identificado nos autos, submetido a julgamento, sendo-lhe, então imputada a prática de um crime de simulação de crime, p. e p. pelo artigo 366º, nº 1 do Código Penal.

2. Realizado o julgamento, com a intervenção do tribunal singular, por sentença de 21.06.2012 veio o arguido a ser absolvido.

3. Inconformada com a decisão recorreu o Exma. Procuradora – Adjunta, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. Os presentes autos tiveram início com a queixa apresentada pelo arguido A... de fls. 3 e ss. no qual o mesmo dá conta que entre as 20.00 horas do dia 15 de Outubro de 2010 e as 10.00 horas do dia 16.10.2010, desconhecidos furtaram o veículo com a matrícula ..., ligeiro de passageiros, que se encontrava estacionado e devidamente trancado na via pública junto à sua residência.
2. O tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:
2.1. O veículo automóvel com a matrícula ..., marca Honda, modelo Concerto encontra-se registado em nome do arguido.
2.2. No dia 15 de Outubro de 2010, tal veículo foi encontrado pela GNR da Gafanha da Nazaré, estacionado em cima de um passeio, na Rua …
2.3. Tal veículo fora conduzido até ao referido local por … a quem o arguido havia vendido o referido veículo para desmantelamento pelo preço de 40,00 € (quarenta) euros.
2.4. No referido dia, elementos da Guarda Nacional Republicana encetaram diligências no sentido de apurar, junto do arguido, das razões pelas quais o veículo em questão se encontrava na rua referida e porque tinha sido apreendido apesar de estar apreendido por falta de seguro automóvel, advertindo-o das potenciais consequências da sua conduta.
2.5. No dia 16 de Outubro de 2010, cerca das 16 h 19 m, o arguido dirigiu-se ao posto da Guarda Nacional de Gafanha da Nazaré tendo sido advertido pelo agente … de que não deverão apresentar a queixa.
2.6. Agiu de forma livre e consciente.
3. Resultou assim provada toda a factualidade constante da acusação (com execepção de que no momento em que o arguido vendeu o veículo a … lhe tivesse dito que o veículo estava apreendido por falta de seguro e que o preço do negócio tivesse sido fixado em 45,00 €) e que a conduta seja criminalmente punível.
4. O crime de simulação de crime consuma-se com o conhecimento pela autoridade competente da comunicação feita pelo agente, não sendo indispensável a prática de qualquer acto pela autoridade competente (neste sentido veja-se Comentário de Código Penal, Paulo Pinto de Albuquerque, anotação ao art. 366.º do CP).
5. Porém, entendeu o tribunal a quo que “quando o arguido se apresentou na denúncia para fazer a denúncia, a GNR já estava a par do que se passara com o veículo”. E logo ali, naquele momento, o agente … advertiu o arguido para não apresentar queixa já que nenhum furto tinha ocorrido.
Considerou o tribunal a quo que, de modo algum, a autoridade policial foi induzida em erro e deu início ao normal procedimento pelo crime de furto. Que a denúncia do arguido, nas circunstâncias que se verificou, não foi idónea a fazer criar a suspeita do crime de que um crime de furto havia sido praticado, razºao pela qual, não induziu a autoridade em erro, nem a levou a desencadear a sua acção infundada e inútil.
6. Ao contrário do que entende o tribunal recorrido, em nossa opinião, resulta patente que a denúncia efectuada pelo arguido deu origem a um inquérito e, bem assim, a múltiplas diligências (inúteis e despiciendas) por parte das autoridades policiais para apurar a verdade dos factos (inexistência do crime de furto).
A saber:
As descriminadas no aditamento ao auto de denúncia de fls. 7, algumas das quais ocorreram após a apresentação da queixa.
Foi inquirida a testemunha … (cfr. fls. 9);
Inquirição do denunciante na qualidade de testemunha (cfr. fls. 30);
Por existiram fundadas suspeitas da prática pelo denunciante foi suspensa a inquirição e à constituição e interrogatório como arguido do denunciado (cfr. fls. 32 e 33);
Foi remetido aos presentes autos o expediente elaborado pela PSP de Aveiro relativos à localização do veículo ... alegadamente objecto de furto (cfr. fls. 43).
O veículo foi encontrado na posse de … que referiu que o veículo pertencia ao seu namorado … e lhe tinha sido vendido pelo arguido A....
Foi interrogado complementarmente A... (cfr. fls. 71).
Foi junta aos autos a declaração de compra do veículo 59-90-CG (cfr. 89 e 90).
Foi inquirida a testemunha … , militar da GNR, id. a fls. 93.
Aquando do encerramento do inquérito o crime de furto foi objecto de arquivamento e, no mesmo despacho, foi proferido despacho de acusação contra o arguido pela prática de factos susceptíveis de integrar o ilícito criminal de simulação de crime (cfr. fls. 95 a 101).
7. Não descortinamos as razões que levaram o tribunal a formar a convicção de que, no caso em apreço, não foi levado a cabo um verdadeiro inquérito, nem vislumbramos que outras diligências poderiam ser feitas para apuramento da verdade dos factos.
9. Só após a análise conjunta de tais elementos foi possivel concluir pela inexistência de crime de furto e bem assim, a existência de indícios do crime de simulação de crime.
10. Existem nos autos suficientes indícios de que o arguido denunciou um crime à autoridade competente sabendo que não se verificou e que foram afectados meios e gastos recursos para apuramento daquilo que efectivamente se passou, pelo que praticou o ilícito criminal de simulação de crime que lhe é imputado.
7. A douta decisão proferida pelo Tribunal “a quo” violou o disposto nos arts. 366º do CP.
8. Deverá, assim, tal decisão ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática do crime de simulação de crime.

Vossas Excelências, porém, melhor apreciarão, fazendo, como sempre, Justiça.

4. Na 1.ª instância não foi apresentada resposta ao recurso.

5. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito foram os autos remetidos e este Tribunal.

6. Na Relação, o Exmo. Procurador – Geral Adjunto apôs o visto.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].
No caso em apreço a questão a decidir traduz-se em saber se foi violado o artigo 366º do Código Penal.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença recorrida:

«FACTOS PROVADOS

O veículo automóvel com a matrícula ..., marca Honda, modelo Concerto encontra-se registado em nome do arguido.
No dia 15 de Outubro de 2010, tal veículo foi encontrado pela GNR da Gafanha da Nazaré, estacionado em cima de um passeio, na Rua … .
Tal veículo fora conduzido até ao referido local por … a quem o arguido havia vendido o referido veículo para desmantelamento pelo preço de cerca de 40€ (quarenta euros).
No referido dia, elementos da Guarda Nacional Republicana encetaram diligências no sentido de apurar, junto do arguido, das razões pelas quais o veículo em questão se encontrava na rua referida e porque tinha sido vendido apesar de estar apreendido por falta de seguro automóvel, advertindo-o das potenciais consequências da sua conduta.
No dia 16 de Outubro de 2010, cerca das 16h19m, o arguido dirigiu-se ao Posto da Guarda Nacional Republicana de Gafanha da Nazaré e apresentou aí uma denúncia contra desconhecidos, dando notícia de que o veículo aludido lhe tinha sido subtraído junto à sua residência.
No momento em que foi apresentada a denúncia, tinham o arguido e a GNR conhecimento de que o veículo não lhe tinha sido furtado, tendo sido advertido pelo agente ... de que não deveria apresentar queixa.
Agiu livre, voluntária e conscientemente.
O arguido é solteiro.
Pescador, anda à ria, auferindo rendimentos que não ultrapassam mensalmente o salário mínimo nacional.
Tem uma filha menor.
Estudou até ao 6º ano de escolaridade.
Tem antecedentes criminais por furto qualificado e falsificação de documento.

FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provou que no momento em que o arguido vendeu o veículo a … lhe tivesse dito que o veículo estava apreendido por falta de seguro e que o preço do negócio tivesse sido fixado em 45 € (quarenta e cinco euros).
Não se provou que a conduta seja criminalmente punida.

FUNDAMENTAÇÃO DA MATÈRIA DE FACTO

Antes de mais diga-se que quer a versão dos factos trazida a juízo pelo arguido, quer pela testemunha (comprador) carecem de razoabilidade. Ambos, por razões certamente diferentes, relataram os factos pro forma a justificar o seu comportamento em relação ao veículo, uma vez que o mesmo estava apreendido e não podia ser transacionado. Mas de ambos era exigível outra atitude a partir do momento em que foram interpelados pela GNR.
Efectivamente, o arguido disse que o veículo lhe foi furtado já depois de celebrado (e resolvido?) o negócio feito com … e este disse que pretendia desmantelá-lo, mesmo depois de o saber apreendido … Foram depoimentos com várias incoerências, quer analisados à luz das regras da experiência comum, quer e no confronto com a restante prova produzida.
É que, na queixa apresentada o arguido limitou-se apenas a referir que o veículo estava à sua porta, tinha no interior a declaração de venda e a fotocópia do livrete e desapareceu. Apresentou denúncia contra desconhecidos.
No entanto, resultou das próprias declarações do arguido e da restante prova que o veículo fora comprado (no dia anterior ao alegado desaparecimento) por … , por valor não concretamente apurado, - (que o arguido disse ser 40€ (quarenta euros) e a testemunha (comprador) disse ser 60€ (sessenta euros), com entrega imediata de 40€ (quarenta euros) e 20€ (vinte euros) posteriormente, aquando da entrega de documentos) -.
Seja qual for o valor, ambos concordaram que houve um pagamento de 40€ (quarenta euros) por parte do comprador, no momento em que o carro foi vendido pelo arguido.
O carro avariou-se – ou, pelo menos, imobilizou-se por razões não apuradas – no trajecto de casa do arguido para a casa do comprador e aí foi visto pela GNR que abordou o comprador e lhe disse que o carro estava apreendido e não podia, por isso, ser transacionado. O comprador levou-o para a sua residência onde o manteve durante vários dias e onde foi visto pela GNR, conforme depoimento do agente … em Tribunal.
Este mesmo agente disse também que, por saber o que se passara com o veículo no dia anterior, no momento em que o arguido foi apresentar queixa por furto, o advertiu de que pensasse no que estava a fazer, já que todos (incluindo o arguido) sabiam onde o veículo se encontrava (na casa do comprador).
Perante esta realidade o arguido limitou-se a dizer que não ia a casa do comprador buscar o veículo, porque era uma zona onde moravam pessoas de comportamento duvidoso e/ou violento, para além de não ter reboque para o ir buscar.
Por outro lado, a testemunha (comprador) disse ter comprado o veículo para sucata, mas a GNR garantiu em julgamento que o veículo esteve uns dias à porta dele e, dias mais tarde, veio a ser interceptado em Aveiro a ser conduzido pela namorada do comprador, na altura em que já sabiam que o veículo estava apreendido.
Nunca tentou obter os documentos que disse que não lhe foram entregues no momento da compra, o que também não é razoável …
Só que acima destas versões eleva-se a seguinte circunstância: quando apresentou queixa o arguido foi advertido, pelo agente … , de que a não deveria fazer. (Ao fazê-lo, não há dúvida de que tentou evitar para si próprio os incómodos decorrentes do facto de ter vendido um veículo que estava apreendido e que, portanto, não poderia ser vendido, como sabia …)
Aliás esta intervenção da GNR, é precedida e seguida de uma atuação que revela coerência: foram feitas diligências junto do arguido e do comprador logo no dia em que foi encontrado o veículo; foi feito um aditamento à denúncia do arguido explicando o que se passara e vieram a constitui-lo arguido 4 dias depois.
Estes factos não constam da acusação, mas estão documentados e resultaram da discussão da causa, maxime do depoimento do agente … ouvido.
O arguido relatou a sua situação de vida.
Os antecedentes criminais estão documentados.

Os factos não provados resultaram de não ter ficado claro qual o preço do veículo e qual a conversa havida entre o arguido e o comprador.
O facto de o comportamento não ser criminalmente punido será explicado no tratamento jurídico.

O DIREITO

Dispõe o artigo 366º, nº 1 do Código Penal “quem sem o imputar a pessoa determinada, denunciar crime ou fizer criar suspeita da sua prática à autoridade competente, sabendo que ela não se verificou, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Trata-se, como da inserção sistemática resulta, e um crime contra a realização de justiça determinando-se a punição à protecção da eficácia funcional das instituições judiciárias.
Isto é, com a punição pretende-se evitar que sejam afectados ou gastos meios e recursos, já normalmente escassos, em vão.
O crime consuma-se quando a autoridade competente (que recebe a denúncia) é induzida em erro, com a denúncia do crime.
A este propósito, como ensina o Professor Costa Andrade (Comentário Conimbricense, III, 563) impõe-se “saber se a infracção se consuma com a mera tomada de conhecimento da denúncia ou suspeita pela autoridade competente ou se, inversamente, para tanto será indispensável a lograda efectiva indução daquela autoridade em erro”.
Conclui aquele insigne Professor que no nosso direito, contrariamente ao que acontece por exemplo no direito germânico, se impõe a mais exigente das alternativas: isto é, o nosso direito exige que se esteja perante um engano bem sucedido no sentido da sua eficácia causal, indutora de um erro na pessoa do destinatário.
Portanto, o tipo pressupõe a formulação de um juízo de suspeita por parte da autoridade competente. Dito de outro modo, ensina aquele Professor, estamos perante uma infracção reconduzível à categoria dos crimes materiais com o erro a figurar como resultado típico.
Ora, conforme resulta da matéria de facto provada, quando o arguido se apresentou na GNR para fazer a denúncia, a GNR já estava a par do que se passara com o veículo. E logo ali, naquele momento, o agente ... advertiu o arguido para não apresentar queixa, já que nenhum furto tinha ocorrido, como todos sabiam.
Isto é, de modo algum, a autoridade policial foi induzida em erro e deu início ao normal procedimento pelo crime de furto.
Efetivamente o que aconteceu foi que, após a recepção da queixa, a autoridade policial não só não deu o normal seguimento ao processo, como veio a fazer um aditamento à denúncia apresentada pelo arguido (folhas 7 e seguintes) dando conta de que o arguido tinha declarado ter o automóvel sido furtado “mesmo depois de ter sido informado de locoal onde se encontrava”, na sequência do que o arguido veio a ser constituído nessa qualidade, escassos quatro dias depois (não tendo o alegado autor do furto sido sequer constituído arguido).
Isto é, a denúncia do arguido, nas circunstâncias em que se verificou não foi idónea a fazer criar a suspeita de que um crime de furto havia sido praticada, razão pela qual não induziu a autoridade em erro, nem a levou a desencadear a sua acção infundada e inútil.
Uma vez que como se começou por dizer a consumação só ocorre quando é induzida em erro a autoridade competente (e não, como no direito germânico quando a denúncia chega ao conhecimento da autoridade competente) quando muito estar-se-ia perente uma tentativa, a qual não é punida.
Tanto basta para que o arguido tenha de ser absolvido.»

3. Apreciando

Uma prévia observação para deixar claro que a questão controvertida, traduzida, tão só, em saber se foi violado o artigo 366º do Código Penal, terá de ser equacionada à luz da matéria de facto tal como fixada foi pelo tribunal a quo posto que não vem a mesma impugnada, tão pouco se detectando qualquer vício de conhecimento oficioso susceptível de conduzir a diferente resultado.
Como tal, tratando-se de sentença absolutória proferida em 1.ª instância, cuja fundamentação de direito merece a nossa concordância, designadamente quanto à conformação do tipo em causa, enquanto foi defendido não dispensar a sua consumação a efectiva indução em «erro» do respectivo destinatário, fazendo uso do disposto no nº 5 do artigo 425º do CPP, limitamo-nos a remeter para os fundamentos da decisão impugnada e, em consequência, a reconhecer não assistir razão à recorrente.

III. Decisão

Termos em que acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Sem tributação

Coimbra, , de , de
[Processado informaticamente e revisto pela relatora]

(Maria José Nogueira)


(Isabel Valongo)