Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
51/16.3GBCNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: FALTA A JULGAMENTO;
JUSTIFICAÇÃO; CONDENAÇÃO EM MULTA;
SENTENÇA TRANSITADA
Data do Acordão: 05/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (J L CRIMINAL DE CANTANHEDE)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.613.º DO CPC; ARTS. 4.º E 116.º DO CPP
Sumário:
I – Uma vez proferida a sentença, apenas fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz, nos termos em que deve ser entendido o art. 613.º, do CPC, relativamente às questões relacionadas com o mérito da causa.
II – Não se esgota o poder jurisdicional para conhecer de questões incidentais ou processuais, designadamente respeitantes a condenação e multa por falta de comparência a acto processual, aplicável a arguidos, assistentes, testemunhas, peritos e outros intervenientes processuais.
III - O despacho de julgar injustificada a falta de comparência a julgamento e condenação em multa, ainda que relativa à arguida, proferido após a prolação da sentença, é uma decisão autónoma desta.
Decisão Texto Integral:

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
(Secção Criminal)

9

Acordam, em conferência, os juízes da 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório
No processo supra mencionado a arguida AA, ali identificada, tendo faltado à audiência de julgamento de 20/03/2017, foi condenada por despacho de 12/7/2017, nos termos do art. 116.º, n.º 1, do CPP, na multa de 2 UCs, com o fundamento de ter sido notificada para o efeito e não fazer prova da doença alegada pelo seu defensor e cuja justificação requerida, fora deferida para momento posterior por prova documental ou testemunhal.
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Inconformado recorreu a arguida, a qual pugna pela revogação do despacho recorrido, formulando as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso visa a revogação do despacho do tribunal a quo proferido em 05/07/2017, no qual se condena a arguida em 2UC de multa por falta injustificada à audiência de julgamento;
2. A recorrente entende que tal despacho enferma de ilegalidade por diversas razões;
3. Em primeiro lugar, o despacho foi proferido após a prolação e trânsito em julgado da sentença condenatória, que ocorreram em 31/03/2017 e 18/05/2017, respectivamente;
4. No CPP não existe norma semelhante ao art. 613.º do CPC, acerca do poder jurisdicional e suas limitações, pelo que, por força do art. 4.º do CPP, será de aplicar aquela norma do CPC;
5. Por força daquele art. 613.º, o poder jurisdicional do juiz esgota-se imediatamente após a prolação da sentença, porém, é lícito ao juiz proceder à correcção de tal acto decisório;
6. No que ao direito processual penal diz respeito, a correcção da sentença apenas é admitida nos casos e para os efeitos do art. 380.º do CPP;
7. Sendo de afastar a aplicação do regime processual civil constante dos arts. 614.º a 616.º do CPC, precisamente por do CPP constar norma própria, o mencionado art. 380.º;
8. O que significa que, em processo penal, a reforma da sentença quanto a custas e multas não cabe nos poderes de correcção conferidos ao juiz;
9. Não podendo, por isso, o tribunal recorrido vir agora condenar a arguida em multa por ausência injustificada à audiência de julgamento, pois, está a lançar mão de poderes que não lhe foram conferidos e, mesmo que o fossem, já se encontram esgotados;
10. Mesmo que se entenda que o juiz pode na mesma proceder à reforma da sentença, a verdade é que o art. 380.º do CPP veda que essas alterações o sejam em termos que comportem a modificação essencial desse acto decisório;
11. Ora, uma condenação em multa, nos termos em que o foi, não se trata de mero esclarecimento ou correcção de ambiguidade, mas sim de impor uma nova obrigação ao condenado, que se sujeita às consequências legais do seu incumprimento;
12. Tal modificação extravasa o âmbito dos poderes que a lei confere ao juiz para corrigir o acto por si praticado, pois, vai além da simples modificação, criando uma nova condenação;
13. Noutra senda, a verdade é que a questão suscitada da falta injustificada se trata de questão prévia à prolação da sentença, sendo que o art. 608.º do CPC impõe que na sentença o juiz decida de todas as questões suscitadas durante o processo, independentemente de quem as tenha suscitado;
14. Caso o juiz não se pronuncie quanto a alguma dessas questões, fica-lhe vedado qualquer pronúncia posterior, por se encontrar extinto o seu poder jurisdicional, nos termos do já mencionado art. 613.º do CPC;
15. In casu, o despacho recorrido é posterior à sentença e decide de questão suscitada anteriormente à sua prolação, o que significa que o momento adequado para se decidir daquela questão seria, o mais tardar, até à da leitura da sentença, o que não aconteceu;
16. Ultrapassado esse momento e esgotado o poder jurisdicional do juiz, estava vedado ao tribunal a quo pronunciar-se quanto a essa questão;
17. Por outro lado, ainda se pode entender que o despacho recorrido não se trata de correcção de sentença, mas sim de despacho autónomo, por nenhuma relação ou remissão se encontrar para a sentença;
18. Ainda assim, tendo em conta que tal acto foi impulsionado por promoção do MP, há que constatar que também esta é posterior à prolação da sentença;
19. O que nos leva à mesma conclusão, a de que o despacho foi proferido após o esgotamento do poder jurisdicional do tribunal a quo, por se tratar de questão prévia à sentença e comportar modificação essencial da mesma, pelo que tal acto estava vedado ao juiz;
20. O despacho recorrido violou o n.º 1 do art. 613.º e o n.º 2 do art. 608.º, ambos do CPC, aplicável por força do art. 4.º do CPP e ainda o art. 380.º deste último diploma legal».
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Despacho recorrido:
«Uma vez que, devidamente notificada para o efeito, a arguida nada veio dizer ou juntar para prova da sua situação clínica, impeditiva da sua presença na audiência de discussão e julgamento, nos termos do disposto no art.116.º, n.º 1 CPP condeno-a em 2 UC de multa pela falta injustificada».
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Notificado o Ministério Público, nos termos do art. 413.º, n.º 1, do CPP respondeu, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção do despacho recorrido.
Nesta instância, os autos tiveram vista do Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto, para os feitos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, o qual emitiu douto parecer no mesmo sentido.
Notificada a arguida, nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP respondeu, reafirmando a posição vertida na motivação de que o juiz devia ter decidido tosas as questões do processo antes da sentença, fazendo apelo ao art. 608.º, n.º 2, do CPC.
Cumprido o art. 418.º, do CPP e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.
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II- O Direito
As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Questão a decidir:
Apreciar se estava esgotado o poder jurisdicional do juiz para proferir o despacho de 5/7/2017, após a sentença de 31/3/2017 já transitada, que injustificou a falta da arguida à audiência de julgamento de 20/3/2017 e a condenou em multa de 2UCs, em cujo acto o defensor comunicou que a ausência se devia a motivos de doença, agravada pela morte do filho de que juntou certidão de óbito e que tendo sido dado prazo para fazer prova da doença nada disse.

Apreciando:
Conforme resulta da respectiva acta a arguida faltou à audiência de julgamento realizada em 20/03/2017, tendo o seu defensor informado naquele acto, que aquela se encontrava impossibilitada de comparecer, por motivos de doença, agravada pela morte do seu filho, tendo requerido a junção aos autos da respectiva certidão do óbito e consequentemente a justificação da falta.
Sobre a justificação da falta, pronunciou-se o Ministério Público no sentido de ser concedido prazo à arguida para juntar aos autos prova documental comprovativa da doença, enquanto fundamento invocados para a sua ausência, tendo tal promoção sido deferida pelo tribunal a quo.
Notificada na pessoa do seu defensor oficioso, a arguida não veio juntar aos autos documento comprovativo da doença que a impossibilitava de comparecer no prazo consignado para o efeito.
Em 31/03/2017 realizou-se a segunda audiência de julgamento, na qual foi proferida a sentença condenatória da arguida pela prática do crime de que vinha acusada.
A sentença transitou em julgado em 18/05/2017.
Em 29/06/2017 o MP promoveu a que se considerasse injustificada a falta injustificada à audiência de julgamento de 20/03/2017 e a consequente condenação em multa, sendo que, na sequência, por despacho de 05/07/2017, a Ex.ma Juíza considerou injustificada a falta e condenou a arguida na multa de 2 UC.
Esta é a realidade factual que se passou e que importa considerar para apreciar a legalidade do despacho, pois que o fundamento do recurso não é a razão material de não observância dos pressupostos para a injustificação da falta, mas por a recorrente entender que por o despacho recorrido ter sido proferido depois da sentença, já se encontrava extinção o poder jurisdicional do tribunal a quo.
É manifesta a improcedência do recurso, por o fundamento em que a recorrente alicerça a sua pretensão, fazendo apelo à extinção do poder jurisdicional, do art. 613.º, do CPC, não ser aplicável ao caso de o tribunal vir a condenar a arguida, depois da sentença, em multa processual por acto ocorrido anteriormente.
Carece de absoluta razão a arguida quando afirma que o tribunal devia ter-se pronunciado na sentença quanto à justificação da falta à primeira sessão de julgamento.
Perguntamos: e se a falta, com os mesmos fundamentos e com as mesma condições para provar a doença, tivesse ocorrido na sessão da leitura da sentença, sendo obrigada a comparecer, teria de ser justificada também na sentença, sob pena de se esgotar o poder jurisdicional da senhora juíza?
Claro que não.
Este argumento põe causa a falta de coerência e fragilidade da argumentação da arguida.
O juiz pode e deve depois da sentença, transitada ou não, providenciar pela observação da boa tramitação processual, designadamente se foram observados os procedimentos processuais, antes dos autos irem para o arquivo.
Sobre a extinção do poder jurisdicional e suas limitações informa o art. 613.º, n.º1, do CPC:
«Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa».
Não contendo o Código de Processo Penal norma que preveja expressamente o conceito de extinção do poder jurisdicional, tem-se esta norma aplicável ao processo penal, com o qual se harmoniza adequadamente o n.º 1, daquele preceito, por força do art. 4.º, do CPP.
Quanto à correcção da sentença existe norma própria no art. 380.º, do CPP, que estipula os casos e termos em que deve ocorrer.
Voltando ao fundamento do recurso da arguida, em primeira linha importa referir que a condenação em multa, por falta injustificada a julgamento, não faz parte do mérito da causa.
As questões sobre as quais o juiz se deve pronunciar na sentença são as questões que têm a ver com o objecto do processo, isto é, a apreciação dos factos da acusação, dos factos da defesa e dos que resultarem da discussão da causa, são pois as questões relevantes para uma decisão de mérito e que se prendem com a culpabilidade, conforme bem resulta claro da leitura do art. 368.º, do CPP.
A confusão da arguida é patente, pois que não deve chamar à colação o art. 608.º, do CPP, sob a epígrafe “questões a resolver – ordem do julgamento”, uma vez que o art. 368.º, do CPP, é bem explícito sobre as questões que o juiz deve apreciar na sentença.
E as questões précias ou incidentais que o juiz deve apreciar e tem o dever de apreciar na sentença continuam a ser questões correlacionadas com a “matéria da causa” ou objecto do processo.
Não faria sentido que fosse de forma diferente, pois a sentença deve traduzir apenas a composição do litígio trazido ao tribunal que directamente diz respeitos às partes envolvidas, sem que tenha que decidir, como aliás não deve decidir questões estranhas ao objecto do processo ainda que digam respeito às mesmas partes.
A condenação em multa, por falta injustificada a julgamento, nada tem a ver com o mérito da causa.
A arguida foi condenada em multa, por falta injustificada a julgamento, ao abrigo do art. 116.º, n.º 1, do CPP, que estipula o seguinte, sobre a epígrafe, “sobre falta injustificada de comparecimento”:
«Em caso de falta injustificada de comparecimento de pessoa regularmente convocada ou notificada, no dia, hora e local designados, o juiz condena o faltoso ao pagamento de uma soma entre 2 UC e 10 UC».
Tal disposição nada tem a ver com a matéria da causa, independentemente de ser multa aplicada à arguida, sujeito processual, a quem se destina especialmente a sentença a proferir nos autos.
Esta norma prevê a aplicação da sanção em multa a qualquer interveniente processual, pelo que seria descabido decidir na sentença todas as condenações em multa, por faltas injustificadas de comparência, mesmo que o faltoso seja o arguido.
Aliás, a condenação em multa por falta de comparência, e designadamente a julgamento, obedece a regime próprio e tem natureza jurídica diferente, mesmo em termos processuais, na sua impugnação, que segue um regime autónomo, como é o caso e o evidencia a interposição do presente recurso.
A multa processual, por falta de comparência acto processual, não deve ser confundida com a multa por litigância de má-fé em processo civil, e discutível se deve ser aplica em processo penal, que tendo a ver com o comportamento, lisura e lealdade processual, deve ser aplicada na própria sentença, uma vez que esta peça processual deve conter os elementos que permitam a sua aplicação.
E é normal que assim seja, pois que tem a ver como a parte interveio no processo na discussão da causa, abusando do direito processual que lhe é conferido legalmente ou deturpando os factos, no sentido de obter uma decisão favorável.
Neste sentido o Ac. do TRG de 2/8/2016 – Proc. 128/12.4TBVLN.G2, in www.dgsi.pt/jtrg.
Diz a recorrente que a sentença condenatória, já transitada em julgado, é omissa no que respeita à apreciação dos fundamentos invocados para a justificação da falta de comparência a julgamento, assim como é omissa quanto às consequências do não cumprimento do ónus que sobre a arguida recaía, o de comprovar a justificação apresentada em sede de audiência de julgamento.
Depois conclui que só depois do trânsito em julgado da decisão condenatória, entendeu o tribunal a quo que a arguida não justificou a sua falta, pelo que deveria ser condenada em multa, encontrando-se tal decisão viciada de ilegalidade, porque extravasa, o já esgotado poder jurisdicional do juiz.
É óbvio o erro em que incorre a arguida, como atrás já referimos, pois que, uma vez proferida a sentença, apenas fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz, nos termos em que deve ser entendido o art. 613.º, do CPC, relativamente às questões relacionadas com o mérito da causa, que nada têm a ver com as questões incidentais ou processuais, designadamente respeitantes a condenação e multa por falta de comparência a acto processual, aplicável a arguidos, assistentes, testemunhas, peritos e outros intervenientes processuais.
Não pode afirmar a recorrente que relativamente a estas questões se esgota o poder jurisdicional do juiz imediatamente após a prolação da sentença, pois que ao juiz continua conferido o poder e o dever de disciplina processual, podendo ocorrer, como acontece frequentemente haver necessidade de chamar aos autos alguém, mesmo depois de proferida sentença e não faria sentido que o tribunal não continuasse a dispor de mecanismos legais, impedindo-o de lançar mão ao art. 116.º, do CPP, em caso de recusa em comparecer.
É claro que no nosso sistema processual penal, como afirma a recorrente, a reforma da sentença quanto a custas e multas não cabe no âmbito dos poderes de correcção conferidos ao juiz pelo dito art. 380.º, do CPP, conforme aponta o Ac. STJ, de 12/03/2015, Proc. 593/11.7PBBGC.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt e por si citado, na motivação de recurso.
Mas tal douto aresto do STJ não vem a propósito e não tem aplicação ao caso, porque a condenação em multa, por falta injustificada de comparência a julgamento ter sido aplicada, como aliás deve ser, em despacho autónomo, que injustificou a falta e condenou a arguida em multa.
Em conclusão: o despacho de julgar injustificada a falta de comparência a julgamento e condenação em multa, ainda que relativa à arguida, proferido após a prolação da sentença, é uma decisão autónoma, que incide sobre uma questão de disciplina processual e estranha à decisão de mérito da causa ou objecto do processo e como tal não respeitante a questão incidental que devesse ser apreciada na sentença, pelo que não se trata de correcção da sentença, ao abrigo do art. 380.º, do CPP, mas no estrito cumprimento do dever do juiz, ao abrigo do art. 116.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, sancionar a ausência injustificada de interveniente processual para cujo acto foi devidamente notificada, sem que no prazo legal que lhe foi concedido para o efeito, tenha feito prova da doença alegada na sessão em que faltou.
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III- Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, negar provimento ao recurso interposto pela arguida AA, confirmando-se o despacho que injustificou a falta a julgamento e a condenou na multa de 2UCs.
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Custas pela arguida, cuja taxa de justiça se fixa em 2UCS.
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NB: O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP.
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Coimbra, 8 de Maio de 2018

Inácio Monteiro (relator)
Alice Santos (adjunta)