Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
137/15.1T8OHP. C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
FALTA
NULIDADE DO CONTRATO
Data do Acordão: 07/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA, OLIVEIRA DO HOSPITAL, JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 1070.º/1 DO C. CIVIL E ART. 5.º DO DL 160/2006, DE 8 DE AGOSTO
Sumário: 1. O arrendamento urbano só poder recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente, através de licença de utilização, quando exigível.

2. O contrato de arrendamento para fim diverso do licenciado é nulo.

Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

A... e Herança ilíquida e Indivisa por óbito de B... , representada por C... , D... , E... , F... , G... , H... e I... , intentaram a presente ação de despejo contra J... e L... peticionando que:

Os Réus sejam condenados a reconhecer o direito de propriedade dos aqui Autores sobre as frações locadas;

E a reconhecer a existência do contrato de arrendamento celebrado sobre tais frações;

Declarar resolvido o dito contrato de arrendamento, por falta de pagamento de rendas vencidas

O Réu seja condenado no pagamento do montante de 15.000,00 € a título de rendas vencidas bem como das vincendas até efetiva entrega das frações locadas, acrescido de juros de mora.

O Réu seja condenado a entregar as frações locadas aos Autores.

Tais pedidos mostram alcandorados nos seguintes factos alegados:

Os Autores, são donos e legítimos possuidores das frações G e H do prédio urbano sito em Oliveira do Hospital, cujo gozo cederam ao Réu, por acordo celebrado a 15.01.2010. Sucede que o Réu deixou de pagar a renda mensal de €600,00 desde Abril de 2013, apesar de instado para proceder ao seu pagamento.

Os Réus apresentaram contestação, na qual aceitaram a referida factualidade, alegando que nas referidas frações funcionava um ginásio, o qual foi alvo de uma inspeção levada a cabo pela ASAE, que exigiram a licença de utilização daquele espaço.

Solicitou a dita licença a A... o qual não lha facultou, tendo obtido junto da Câmara Municipal que existia uma licença para aquele espaço destinada a Comércio e não de serviços como exigido.

De imediato comunicaram ao senhorio a necessidade de obter uma licença de utilização para serviços, o qual nada fez.

Mais, a 18 de Junho de 2015, foi enviada uma carta ao senhorio a considerar resolvido o contrato de arrendamento celebrado, tendo deixado o locado livre a 31.07.2015.

Assim, porque o senhorio não procedia à entrega da licença, deixou de pagar as rendas.

O Réu deduziu reconvenção na qual peticiona a condenação dos Autores a indemnizá-lo pelos prejuízos sofridos por conta de infiltrações no locado, perda de clientela quando o Réu alterou o local do ginásio, tudo no montante de €15.000,00, devendo tal crédito ser compensado com o crédito reclamado pelos Autores.

Os Autores responderam à matéria reconvencional, impugnando a veracidade dos factos para tal alegados.

No decurso destes autos verificou-se o decesso do Autor A... , e proferiu-se a sentença a reconhecer os seus identificados herdeiros como sucessores para estes autos de A... .

Foi designado dia para a realização de Audiência Prévia, na qual foram os Réus convidados a concretizar as alegadas infiltrações e perda de clientela, convite que aceitaram, como consta a fl.s 98 e 99.

Após o que foi proferido despacho saneador tabelar; foi admitida a reconvenção deduzida; determinou-se o objecto do litígio bem como os temas de prova.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, finda a qual foi proferida a sentença de fl.s 216 a 220 v.º, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte:

Julgo a presente ação parcialmente procedente e em consequência:

Reconheço e condeno os Réus a reconhecer os Autores como titulares do direito de propriedade sobre as Frações A e H do prédio identificado no ponto 1 dos factos dados como provados;

Reconheço que foi celebrado o acordo identificado no ponto 2 e 3, o qual já cessou os seus efeitos entre as partes, e em consequência:

Condeno o Réu J... no pagamento das rendas vencidas e não pagas no montante total de €15.000,00 acrescido de juros de mora, à taxa legal e contados desde a citação, até efetivo pagamento.

No mais peticionado vão os Réus absolvidos.

Julgo totalmente improcedente a reconvenção.

Custas a cargo dos Réus/reconvintes.”.

Inconformados com a mesma, interpuseram recurso os réus J... e L... , recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo – (cf. despacho de fl.s 236), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

I

Em 15 de Janeiro de 2010 foi celebrado um “Contrato de Arrendamento” entre os Autores e o Réu J... referente às frações G e H do prédio descrito na CRP sob o artigo 337, sito na Rua (...) , da freguesia e concelho de Oliveira do Hospital, pelo prazo de um ano, prorrogável por iguais períodos, sendo a renda mensal de 600,00€.

II

Era do conhecimento dos Autores, que o espaço arrendado se destinava à exploração de um ginásio, desde logo, em virtude de este contrato ter sucedido a um anterior, datado de 2006, sendo que deste contrato para o anterior apenas mudou o arrendatário.

III

Aliás, esta realidade é dada como provada no ponto 7. dos Factos Provados

IV

Também os Factos dados como “Factos Não Provados” da douta Sentença a quo deveriam ter sido considerados provados em virtude da prova produzida por todas as testemunhas arroladas pelos Réus que atestaram a existência de infiltrações e a deterioração dos aparelhos e máquinas, bem como pela prova documental (fotografias) juntas com a contestação dos Réus.

V

Da mesma forma, também a perda de clientela e consequente perda de rendimentos deveria ter sido considerada provada pelas folhas de presença juntas aos autos pelos Recorrentes.

VI

Os Réus deparam-se que o locado não possuía licença de utilização correspondente ao fim que levavam a cabo no mesmo (prestação de serviços) mas tão só existia licença de utilização para fins de comércio.

VII

Como foi dado como provado, sempre foi do conhecimento dos Autores, mesmo antes da celebração do primeiro contrato, datado de 2006, que o fim que se pretendia dar ao locado era a exploração de um ginásio.

VIII

Ora, os Autores sabiam que a licença de utilização das referidas frações estava desconforme com a realidade e consequentemente fora da legalidade.

IX

Acresce que associado à falta de licença conforme, existiam os problemas de infiltrações que deterioravam máquinas e equipamentos dos Réus e limitavam de forma negativa o exercício da atividade pois afastava clientes.

X

Conforme decorre do disposto nos nºs 5 e 6 do art. 9º, do RAU, aprovado pelo Dec. Lei nº 321-B/95, de 15 de Outubro, a falta de licença de utilização, por causa imputável ao senhorio, importa a sujeição deste a uma pesada coima não inferior a um ano de renda e a ver resolvido o contrato pelo arrendatário, com indemnização nos termos gerais.

XI

Consagra o n.º 4 do já referido artigo 9º do RAU que “ A existência de licença de utilização bastante...deve ser referida no próprio texto do contrato… não podendo ser celebrado qualquer contrato de arrendamento sem essa menção.”. No entanto, como se pode aferir pela análise ao contrato de arrendamento celebrado, junto como doc. Nº4 na PI, tal menção não consta sequer do mesmo, não podendo os Recorrentes ter conhecimento que a licença de utilização estava desconforme o fim que pretendiam dar ao locado. Assim, tinham os Réus, arrendatários, direito a resolver o contrato, o que de facto fizeram (ponto 9. dos Factos Provados douta Sentença)

XII

Deveria, pois, a douta sentença reconhecer a ineptidão do locado para os fins a que era destinado e reconhecer que a falta de licença de utilização do locado limitou o gozo do locado aos Réus;

XIII

Assim, para além de não dever o Réu J... ser condenado no pagamento das rendas, deveria ter sido reconhecida a Reconvenção e em consequência serem os autores condenados no pagamento de uma indemnização aos Réus por todos os danos e prejuízos causados.

Termos em que nos Doutamente supridos e nos mais de Direito, devem Vossas Excelências julgar procedente o presente Recurso, e proferir Douto Acórdão que revogue a Douta Decisão do Tribunal a quo, devendo ser proferido Douto Acórdão que declare que a Reconvenção deduzida pelos Recorrentes em fase de Contestação é procedente por provada, e consequentemente os Recorrentes sejam absolvidos do pagamento do valor peticionado a título de rendas, assim se fazendo Justiça.

Contra-alegando, os autores, defendem que o recurso, na sua vertente de facto, não deve ser recebido, com o fundamento em os recorrentes não terem observado o disposto no artigo 640.º, n.os 1 e 2, do CPC e; quanto ao mais, a assim não se entender, pugnam pela manutenção da decisão recorrida, com o fundamento em que a prova produzida foi bem apreciada e que a decisão de mérito fez correcta aplicação da lei que rege a situação em apreço.

Em sede de questão prévia, importa apreciar a pertinência do recurso, na vertente da matéria de facto, que, em nosso entender, não respeita, relativamente à matéria de facto constante dos itens 1.º a 8.º, dos factos não provados, os ditames legais para tal, o que acarreta a sua rejeição, com o fundamento em os recorrentes não terem cumprido o disposto no artigo 640.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do NCPC (no que seguiremos de perto o por nós já decidido anteriormente, quanto a esta questão).

De acordo com este preceito, em caso de impugnação da matéria de facto e se trate da reapreciação de provas gravadas, sob pena de rejeição, deve o recorrente indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e com exactidão as passagens da gravação em que se funda.

Ora, como resulta da acta da audiência de julgamento, procedeu-se à gravação dos depoimentos prestados, no sistema de gravação digital em aplicação informática, em uso no Tribunal recorrido.

Assim, nos termos do disposto no supra citado artigo 640.º, o recorrente, em caso de recurso sobre a matéria de facto, para além da indicação dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, tem de indicar, com exactidão, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, as passagens da gravação em que se funda o mesmo.

Os recorrentes, no que a esta questão concerne (com o âmbito acima delineado), sem que refiram, implícita ou expressamente quais as passagens da gravação em que fundam o seu recurso e/ou sem que procedam à transcrição de um qualquer excerto de um depoimento que considerem relevante para a sua pretensão recursiva, na vertente da impugnação da matéria de facto em causa, pretendem a sua alteração, passando a mesma a considerar-se como provada.

Efectivamente, como resulta das conclusões 4.ª e 5.ª do seu recurso (que reproduzem o alegado nos artigos 10.º e 11.º das alegações de recurso), os réus, ora recorrentes, apenas se limitam a dizer que tais factos devem ser dados como provados “em virtude da prova produzida por todas as testemunhas arroladas pelos réus … bem como pela prova documental (fotografias)” e “folhas de presença juntas aos autos”.

Pelo que tem de se concluir que os recorrentes não cumpriram com o ónus em apreciação.

Efectivamente, os mesmos, sem, sequer, como já se assinalou, transcreverem qualquer excerto que considerem relevante, dos depoimentos que foram prestados na audiência de discussão e julgamento e nos quais, a M.ma Juiz a quo, se baseou para dar como não provada a matéria submetida à sua apreciação, limitam-se a manifestar a sua discordância acerca do modo como a prova foi apreciada/valorada na decisão recorrida, defendendo que, no seu entender, tais factos, devem ser considerados como provados, mas sem que refiram os motivos, as razões para tal, o que, de modo algum, não basta, não é suficiente, para que se conclua que os recorrentes cumpriram o ónus que legalmente lhe é imposto, no âmbito da interposição de recurso no concernente à impugnação da matéria de facto dada como provada ou não provada.

Efectivamente, como resulta de fl.s 258 e v.º, a M.ma Juiz a quo, refere os elementos probatórios e respectiva análise crítica, para dar como provada e não provada a matéria ali descrita.

Pelo que, nos termos expostos, por referência às provas produzidas, se os recorrentes pretendiam impugnar as respostas que mereceram os itens em causa, tinham que indicar, sob pena de imediata rejeição, as passagens da gravação em que fundam tal pretensão recursiva, o que não fizeram.

Consequentemente, tem de concluir-se que o presente recurso, em sede de impugnação da matéria de facto, no que se refere ao itens 5.º e 9.º, não obedece aos critérios expostos no referido artigo 640.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do NCPC, pelo que tem de ser, imediatamente rejeitado, sem que exista lugar a qualquer despacho de aperfeiçoamento – neste sentido, veja-se Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Reimpressão, Almedina, Fevereiro de 2008, pág.s 141 a 143 e F. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos Em Processo Civil, 6.ª edição, Almedina, Setembro de 2005, a pág. 171, último parágrafo e nota 354.

Também o STJ, se pronunciou no sentido de que o incumprimento do ónus de alegação em causa, conduz à imediata rejeição do recurso, entre outros, nos seus Acórdãos de 27 de Outubro de 2016, Processo n.º 3176/11.8TBBCL.G1.S1; de 07 de Julho de 2016, Processo n.º 220/13.8TTBCL.G1.S1; de 15/09/2011, Processo 1079/07.0TVPRT.P1.S1, todos disponíveis in http://www.dgsi.pt/jstj e de 23/11/2011, in CJ, STJ, Ano XIX, Tomo III/2011, a pág. 126 e seg.s.

Como refere Abrantes Geraldes, ob. cit., a pág.s 142 e 143, as exigências contidas nos preceitos em referência devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor e visando impedir que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação inconsequente de inconformismo.

E, como se salienta, nos Arestos do STJ ora citados, só exigindo-se o fundamento da discordância, se apontem as passagens precisas dos depoimentos que fundamentam a concreta divergência, que se explique em que é que os concretos depoimentos contrariam o julgamento da matéria de facto operado no Tribunal recorrido e, após a inclusão da referida al. c), do n.º 1, do artigo 640.º do CPC, a decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, se dará cabal cumprimento ao princípio do contraditório, só assim se permitindo à parte contrária a possibilidade de contrariar os argumentos invocados pelo recorrente.

Compulsando o teor das alegações e conclusões de recurso, tem de concluir-se que os recorrentes, salvo o devido respeito, manifestamente, não cumpriram o ónus imposto pelo artigo 640.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, al. a), do NCPC, o que acarreta a rejeição do recurso no segmento relativo à matéria de facto, nos termos ali constantes.

O desacordo dos recorrentes não pode resumir-se a considerar que os factos não podem ser apreciados da forma como o fez o Tribunal recorrido, sendo-lhes imposto o ónus de indicar os fundamentos da sua discordância, indicando para tal as concretas passagens da gravação (ou outros elementos probatórios) em que funda o recurso e qual a decisão a proferir sobre as questões de facto impugnadas, até para a contraparte poder exercer o contraditório.

A interposição de recurso sobre a matéria de facto acarreta o ónus de a respectiva motivação ser fundamentada, sob pena se desvirtuar o intuito do legislador ao regulamentar o respectivo regime que teve em vista facultar às partes uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito, tendo o recorrente o ónus de os apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso, decorrendo este especial ónus de alegação do recorrente dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado – como já resulta do Preâmbulo do DL 39/95, de 15/2 e o refere Abrantes Geraldes, ob. cit., a pág. 143, nota 195.

O mesmo se aplicando aos documentos a que se referem o recorrentes, não bastando a sua indicação/menção, em termos genéricos.

Pelo que se rejeita o recurso interposto no que se refere à matéria de facto constante dos itens 1.º a 8.º, da matéria de facto dada como não provada; mantendo-se, por isso, a matéria dada como provada e não provada, em 1.ª instância.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado no artigo 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do NCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Se a falta de licença de utilização do locado, para o fim pretendido, dá aos réus o direito de resolver o contrato de arrendamento sub judice e;

B. Se deve ser julgada procedente a reconvenção deduzida.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o artigo 337 um prédio urbano sito na Rua (...) , freguesia e concelho de Oliveira do Hospital, constituído no regime de propriedade horizontal, composto pelas frações A a J, cujo direito de propriedade se encontra registado em nome do Autor A... e de B... , entretanto falecidos, cujas heranças se encontra representada nestes autos pelos seus herdeiros.

2. Por acordo escrito epigrafado de “Contrato de Arrendamento”, datado de 15 de Janeiro de 2010 (e não 2015, como, por lapso, se escreveu na sentença recorrida – cf. fl.s 16 v.º), os Autores acordaram em ceder ao Réu o uso das frações G e H do prédio descrito no ponto 1, com a licença de ocupação n.º 7/92, emitida em 28.01.92 pelo Município de Oliveira do Hospital, pelo prazo de 1 ano, a começar em 01 de Janeiro de 2010, considerando-se prorrogado por sucessivos períodos iguais e nas mesmas condições, e o Réu acordou em entregar o montante mensal de €600,00, até ao dia 8 do mês anterior ao que respeitar.

3. Mais acordaram as partes que as ditas frações destinavam-se a uma loja comercial.

4. O Réu apenas procedeu ao pagamento da sua contrapartida até Março de 2013, inclusive.

5. Por carta datada de 08.04.2014, foi solicitado ao Réu o pagamento das rendas em atraso, sob pena de se recorrer ao processo de despejo.

6. O Município de Oliveira do Hospital emitiu o Alvará de Licença n.º 7 a 28.01.1992, através do qual concedeu a ocupação para comércio das ditas frações.

7. Aquando da celebração do acordo constante do ponto 2 e 3, os Autores sabiam que o fim que o Réu destinava as frações era um ginásio.

8. A 18.12.2012 o ginásio do Réu (C (...) ) foi alvo de fiscalização levada a cabo pela ASAE, tendo-se verificado que se encontrava a funcionar sem o devido licenciamento prévio.

9. Os Autores receberam a missiva, datada de 18.junho.2015, através do qual foi considerado resolvido o acordo referido no ponto 2, tendo sido realizada a entrega do locado, com efeitos partir de 31.07.2015.

Factos Não Provados:

1. Aquando da celebração do acordo referido em 2 e 3 da factualidade provada foi entregue ao Réu a licença de utilização referida no ponto 6 dos factos dados como provados.

2. Aos Autores foi solicitada a entrega da licença devida.

3. Nas frações ocorriam infiltrações nas janelas das traseiras, em virtude de as mesmas possuírem caixa de estores sem conterem os respetivos estores, deterioram-se as paredes, rodapés e chão flutuante naquela zona.

4. Na parede de espelhos na zona de musculação ocorriam infiltrações na parede, deteriorando os espelhos, o chão flutuante, o rodapé e colocava o alarme em curto-circuito, tendo de proceder à sua desativação.

5. As máquinas de musculação, halteres, barras, barras e discos existentes nos locais afetados oxidavam, deixando as mãos dos clientes com ferrugem, fazendo com que estes não os utilizassem.

6. Os Réus insistiram várias vezes para que os Autores procedessem à reparação das ditas infiltrações.

7. No ano de 2014, o ginásio do Réu tinha 154 clientes inscritos, passando nos meses de setembro, outubro, novembro de dezembro a 115, 2013, 112 e 110, respetivamente, devido à existência dos factos descritos nos pontos 3 a 5 da materialidade dada como não provada.

8. Com a mudança do ginásio para outro local, verificou uma diminuição de clientes.

A. Se a falta de licença de utilização do locado, para o fim pretendido, dá aos réus o direito de resolver o contrato de arrendamento sub judice.

Alegam os réus, ora recorrentes que em virtude de o locado não se encontrar licenciado para o fim tido em vista, não têm que pagar as rendas pedidas, com fundamento em, por tal motivo, lhes ser lícito incumprir o contrato.

Na sentença recorrida, julgou-se procedente o pedido dos autores, porque os réus sabiam que o locado só se encontrava licenciado para comércio e não para serviços e porque usaram o locado, tendo por referência o disposto no artigo 62.º do RAU.

Desde já cumpre referir não estar demonstrado que os réus soubessem qual a finalidade estipulada na licença de utilização, embora isso seja inócuo para a resolução da questão.

Por outro lado (e embora os regimes não sejam muito diferentes), atento a que o arrendamento em causa foi celebrado em 2010, tem aplicação o disposto no DL160/2006, de 8 de Agosto (na sua versão inicial, atento a que o mesmo foi alterado pelo DL n.º 266-C, de 31 de Dezembro).

Sucede, no entanto, que o contrato invocado é nulo.

E porquê?

Por o local arrendado (pelos autores aos réus) não dispor de licença de utilização, para a actividade que nele iria ser desenvolvida – o que era do conhecimento dos autores, cf. item 7.º dos factos provados – uma vez que o alvará de licença só consentia o seu uso para o comércio (item 6.º), e segundo o art. 1070.º/1 do C. Civil, o arrendamento urbano só poder recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente, através de licença de utilização, quando exigível”, e conforme o art. 5.º/1 do DL 160/2006, de 8 de Agosto, “só podem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios ou suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestado pela licença de utilização”.

Correspondendo a tal falta de licença de utilização (falta que no momento actual ainda se mantém), a invalidade/nulidade do negócio celebrado (arrendamento comercial), quer por força do art. 294.º do C. Civil, quer por argumento de maioria de razão extraível do art. 5.º/8 do DL 160/2006, de 8 de Agosto, em que se diz que “o arrendamento para fim diverso do licenciado é nulo (…) [1].

É certo que o art. 5.º do DL 160/2006, de 8 de Agosto, se encontra redigido de modo algo confuso[2], designadamente ao prever, no seu n.º 7 (que reproduz parte do art. 9.º/6 do RAU), que “na situação prevista no n.º 5, o arrendatário pode resolver o contrato, com direito a indemnização nos termos gerais”, o que faz pensar – para o arrendatário (ainda) poder resolver o contrato – que o contrato não será nulo.

Mas não parece, a nosso ver, que tal inferência possa estar certa[3].

Efectivamente, estando em jogo interesses de ordem pública – a exigência da licença de utilização baseia-se na necessidade de obrigar ao cumprimento de todas as normas legais, relativas à construção à segurança, salubridade ou estética – e não meros interesses interprivados, está-se perante um vício que a ordem jurídica não tolera e a que faz/fez corresponder, como sanção, a nulidade.

E uma nulidade típica, isto é, que permite a sua arguição por qualquer interessado, sem limite de tempo e que determina o seu conhecimento oficioso pelo tribunal.

Efectivamente, não estamos perante uma situação em que a lei se limita a proteger uma das partes, tida como tipicamente mais fraca e mais carecida de protecção, em detrimento da outra, ou seja, não estamos perante uma invalidade atípica (como é o caso do art. 410.º/3 do C. Civil), em que apenas o inquilino poderá arguir a nulidade, estando ao tribunal vedado o seu conhecimento oficioso[4].

Como referido no Acórdão do STJ, de 22/09/2016, Processo n.º 681/14.8TVLSB.L1.S1, disponível no respectivo sítio do itij, “a nulidade do contrato está especificamente prevista para os casos em que exista uma divergência entre a finalidade do contrato e aquela que se encontre definida pelo licenciamento, ainda assim, sem prejudicar o direito de indemnização reconhecido ao arrendatário”.

Isto dito, somos chegados ao ponto nevrálgico do recurso, isto é, à questão da condenação nos efeitos de tal declaração (cfr. 289.º do C. Civil).

E vale a pena começar por referir que o negócio nulo não é propriamente um nullum/nada, sendo antes um evento existente a que a ordem jurídica recusa as consequências negociais desejadas pelas partes, embora lhe reconheça alguma eficácia jurídica, embora não negocial. Como refere Pais de Vasconcelos, Teoria Geral, pág. 631, “o negócio jurídico inválido não alcança criar direito, não gera direito interprivado, não põe em vigor uma regulação negocial. Pelo contrário, é tido como simples facto jurídico, de cujas consequências jurídicas constitui mero suporte inerte. As consequências jurídicas do negócio inválido não são já aquelas que os seus autores lhe quiseram atribuir, mas antes as que a lei determina”.

E, como já se referiu, a recusa de tais consequências negociais é desde o momento inicial do negócio, que é ineficaz desde o original momento em que foi celebrado (ex tunc); motivo por que se diz que, em sentido próprio, só há retroactividade na anulação, uma vez que, na declaração de nulidade, a eficácia jurídica não chega a verificar-se e, por isso, não será correcto, em termos puramente técnico-jurídicos, falar de retroactividade.

De todo o modo (pondo de lado a pureza técnico-jurídica), o que releva é que, não raras vezes, o negócio nulo, antes da declaração de nulidade, produz efeitos fácticos, tornando-se assim necessário repor a situação fáctica de acordo com a situação jurídica (ineficácia originária do negócio).

Assim e de acordo com os art. 289.º e 290.º do C. Civil:

Deve, em primeiro lugar, ser restituído tudo o que tiver sido prestado.

Se ainda possível, a restituição deve ser feita em espécie; se já não for possível, deve ser restituído o valor correspondente.

Se sobre a coisa tiver sido constituída “posse”, aplicam-se as respectivas regras (1269.º e ss do C. Civil), seja directamente seja por analogia.

Se da nulidade resultarem obrigações de restituição que sejam recíprocas, devem ser cumpridas simultaneamente, podendo cada uma das partes sustar a restituição que lhe incumbe, enquanto a outra não cumprir.

É pois por estas regras que se rege a relação de repristinação/liquidação actualmente existente entre as partes e resultante da declaração de nulidade negocial.

Concretizando:

Como restituição em espécie, temos clara e indiscutivelmente a restituição (dos réus aos autores) do imóvel objecto do contrato – o que já se verifica desde 31 de Julho de 2015, cf. item 9.º.

Ainda como restituição em espécie, os autores (senhorios) devem restituir as rendas recebidas, porém, não podendo os réus (inquilinos) restituir em espécie o uso que fizeram da coisa, mas apenas o valor do uso da mesma, temos – correspondendo este valor do uso ao valor das rendas – que as recíprocas obrigações de restituição são de igual valor e se compensam, não havendo a final nada a restituir, a tal propósito, por qualquer das partes, ou seja, os autores não têm que restituir as rendas recebidas e os réus (inquilinos) não têm que restituir o valor correspondente ao uso que fizeram da coisa.

Tendo em linha de conta que os réus deixaram de pagar as rendas devidas a partir de Abril de 2013 (item 4.º) e só “resolveram” o contrato em 18 de Junho de 2015, entregando o locado em 31 de Julho desse ano, têm de suportar as rendas até esta data – até à efectiva entrega do locado, uma vez que até aí o usaram e fruíram como entenderam, no âmbito do contrato de arrendamento que está na génese dos presentes autos.

Uma vez que os autores peticionam a quantia de 15.000,00 €, a título de rendas em dívida (sendo que o montante correcto ascende a 16.800,00 €, correspondente aos meses de Abril de 2013 a Julho de 2015), é de proceder tal pretensão.

Pelo que, embora com diversa fundamentação, é de manter a decisão recorrida.

Consequentemente, quanto a esta questão, improcede o presente recurso.

B. Se deve ser julgada procedente a reconvenção deduzida.

Como é óbvio, a procedência do recurso, no que a esta questão respeita, estava na total dependência do sucesso dos recorrentes, no que concerne à vertente de reapreciação da matéria de facto dada como provada e não provada, o que aqueles não lograram.

Assim sendo, tratando-se, como se trata, de factos constitutivos do direito a que se arrogam os réus, a não demonstração dos mesmos, acarreta, sem mais, a improcedência do pedido reconvencional, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil

Consequentemente, também, quanto a esta questão, improcede o presente recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

Coimbra, 12 de Julho de 2017.


[1] Já antes o art. 9.º/7 do RAU estabelecia idêntica nulidade, porém, apenas para o caso do arrendamento não habitacional de local licenciado apenas para habitação; alargando-se agora a nulidade à hipótese inversa (arrendamento habitacional de local licenciado para fim diverso).
[2] Reproduz a confusão que já constava do art. 9.º/6 do RAU.

[3] O legislador, com todo o respeito, ter-se-á equivocado e terá esquecido que na nulidade (sendo originária) o negócio não chega a alcançar eficácia jurídica; que tal significa que o negócio não chega verdadeiramente a vigorar, que é ineficaz desde o momento em que foi celebrado (ex tunc).

[4] Quando muito, admitimo-lo, se alguma “atipicidade” pode haver é apenas na questão da sanação; inadmissível na nulidade típica, mas que será (em termos de ratio legis) aceitável no caso, isto é, se, entretanto, o locado passasse a ter licença de utilização, não se vislumbraria razão para o vício não ser considerado sanado (mas não é este o caso dos autos, continuando o locado, no momento actual, sem licença de utilização).