Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
379/09.9T2ILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: EXPURGAÇÃO DE HIPOTECA
COMPETÊNCIA MATERIAL
Data do Acordão: 07/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE GRANDE INST. CÍVEL DE AVEIRO.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 991º, Nº 2, 1002º, Nº 1, E 1005º DO CPC; 4º, AL. G) E 5º DO ETAF (LEI Nº 13/02, DE 19/02); 686º E 693º CC
Sumário: I – De acordo com a al. g) do nº 1 do artº 4º do ETAF, compete à jurisdição administrativa o julgamento das questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante da função jurisdicional e da função legislativa.

II – Estando em causa a expurgação de uma hipoteca sobre imóvel constituída e registada a favor da Segurança Social, e discutindo-se se a dívida garantida pela hipoteca está ou não paga, o que está em apreço é uma questão de direito privado a analisar à luz das normas do C. Civil que dispõem sobre a hipoteca, pelo que está arredada da jurisdição dos tribunais administrativos tal apreciação.

III – A hipoteca, como garantia real, é constituída para garantir um crédito, futuro ou condicional, e outros acessórios do mesmo, como sejam os juros moratórios ou remuneratórios dos últimos três anos, deles se fazendo menção no registo (artºs 686º e 693º CC).

IV – A hipoteca tem a sua existência condicionada à da obrigação garantida – artº 730º, al. a), do CC -, pelo que uma vez regularizada a dívida ao credor hipotecário, a hipoteca em questão extinguiu-se e aquele que adquiriu o bem hipotecado pode pedir a expurgação da hipoteca.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
      I- RELATÓRIO

            I.1- «A..., Ldª», com sede na ..., intentou em 27.7.10 contra «Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP», com sede em Lisboa, «acção especial de expurgação e cancelamento de hipoteca», pedindo que declare expurgada e extinta, pelo pagamento, a hipoteca legal incidente sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo sob o nº ... da freguesia da ..., ali inscrita pela Ap. nº09, de 09 de Novembro de 2003, a favor do «Instituto de Gestão da Segurança Social – Delegação de Aveiro», e se ordene o cancelamento do respectivo registo.

Para o caso de assim não se entender, a autora pede que se declare a substituição daquela hipoteca legal pela garantia bancária que oferece e se encontra exarada no respectivo título, o qual junta como documento nº 12.

Fundamenta o seu pedido, do ponto de vista processual, no disposto nos arts.991º, nº 2 e 1002º, nº 1 do Cód. Proc. Civil.

Em suporte da sua pretensão, alega a autora que é proprietária do prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar, destinado à indústria, sito no lugar da ..., ..., inscrito na respectiva matriz predial urbana e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo sob o nº ..., encontrando-se a aquisição inscrita no registo predial a seu favor.

Acrescenta que quando adquiriu este prédio, encontrava-se inscrita uma hipoteca legal a favor do «Instituto de Gestão da Segurança Social – Delegação de Aveiro», por débitos da anterior titular do imóvel, a qual estava registada pela Ap. nº 09, de 09 de Novembro de 2003, pelo valor máximo de 77.161,98€.

Sustenta que esta hipoteca se destinava a garantir o pagamento de dívidas da anterior proprietária do imóvel à Segurança Social, de contribuições relativas às remunerações dos meses de Dezembro de 1997, Maio de 1998, Novembro e Dezembro de 1998, Agosto de 2000, Dezembro de 2000, Março de 2001, Setembro de 2001, Outubro de 2001, Dezembro de 2001, Julho de 2002, Outubro de 2002 a Março de 2003 e Julho a Setembro de 2003, no valor total de 69.406,19€, acrescido da quantia de 7.755,79€ a título de juros vencidos.

Defende que a anterior proprietária do imóvel pagou a referida dívida à Segurança Social em 11 de Fevereiro de 2005, tendo sido emitida uma declaração de pagamento na qual se especifica que ele se reporta aos créditos que determinaram a hipoteca legal em questão, pelo que esta estava extinta pelo pagamento aquando da aquisição por parte da autora.

Porém, a Segurança Social tem-se recusado a emitir o necessário título de renúncia/distrate para cancelamento do registo da hipoteca ou a promover tal cancelamento.

Considera que tem direito de ver declarada a expurgação, pelo pagamento já efectuado, da referida hipoteca, bem como o cancelamento do respectivo registo.

Para o caso de assim não se entender, que a obrigação subjacente à hipoteca, assim como esta, se extinguiram, a autora requer a substituição da garantia em causa por outra caução, oferecendo uma garantia bancária à primeira solicitação, até ao valor de 79.000€, do «B.E.S.», a pagar se e quando o tribunal entender devido, e nos termos e quantitativos a fixar em sentença.

Finalmente, a autora refere que a ré tem legitimidade em virtude da extinção da «Delegação de Aveiro», tendo sido transferidos para ela os respectivos direitos, deveres e atribuições nos termos do art. 2º, nº 1 e 2 do DL nº 112/2004, de 13 de Maio.

Citada, a ré contestou.

Em primeiro lugar, sustenta que a presente acção engloba o reconhecimento de direitos em sede de contribuições para o regime da segurança social, na medida em que se reporta à existência de dívida à segurança social garantida por hipoteca legal e que nos termos das disposições conjugadas dos arts. 212º, nº 3 da Constituição da Republica Portuguesa, 1º, nº 1 e 4º, nº 2 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, são materialmente competentes para a apreciação das questões suscitadas os Tribunais Administrativos.

            Com efeito, sustenta que a causa de pedir da presente acção assenta nas contribuições devidas à segurança social, a qual tem sido qualificada como sendo questão tributária uma vez que «essas contribuições constituem prestações unilaterais exigidas pelo Estado, com carácter imperativo, que se destinam ao funcionamento do sistema nacional de segurança social, constituindo uma questão fiscal por se entender como “questões fiscais” as que emergem de soluções autoritárias que imponham aos particulares o pagamento de quaisquer prestações pecuniárias com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos».

Em segundo lugar, a ré defende que a hipoteca legal constituída a seu favor e registada através da Ap. nº 9 de 2003/11/09 sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo sob o nº ... não pode ser cancelada por subsistirem dívidas dos períodos garantidos pela mesma, tendo o Departamento de Fiscalização do Centro do Instituto da

Segurança Social, IP apurado oficiosamente dívidas de contribuições referentes aos meses de Junho de 2000, Agosto de 2000, Novembro de 2000, Março de 2001, Maio de 2001 a Julho de 2001, Outubro de 2001, Janeiro de 2002, Maio de 2002 a Agosto de 2002, Outubro de 2002 e Dezembro de 2002, as quais persistem não obstante o pagamento parcial efectuado em 11.02.2005.

Finalmente, alega que o contribuinte deduziu oposição no âmbito da execução fiscal que corre termos pela Secção de Processos de Coimbra e cuja dívida coincide parcialmente com a dívida garantida pela hipoteca em questão, não tendo o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra ainda proferido decisão.

A autora respondeu, sustentando que a questão a dirimir nos presentes autos não se encontra prevista no art. 4º, nº 1 do ETAF, tratando-se de matéria eminentemente privada do foro comum, uma vez que em causa está apenas a expurgação de uma hipoteca, estando prevista a expurgação de hipotecas legais no art. 1005º do Cód. Proc. Civil, insistindo em afirmar que a dívida garantida pela hipoteca cuja expurgação visa se encontra paga.

            Em face da alegação das partes e verificando a 1ª instância subsistirem dúvidas quanto à existência de dívidas garantidas pela hipoteca dos autos, notificou a ré IGFSS, IP, em ordem a juntar aos autos documentos que sustentem consistentemente o alegado, assim como para documentar a invocada existência de um processo de oposição relativamente a tais dívidas.

A ré juntou os documentos de fls.83 e segs., vindo a autora pronunciar-se sobre os mesmos a fls. 108, defendendo que em causa estão dívidas diferentes daquelas que originaram a hipoteca que se pretende expurgar, as quais não constam do título que serviu de base à sua constituição e registo.

Considerou ainda a 1ª instância que o processo tem em vista a expurgação da hipoteca inscrita a favor da ré IGFSS, sob o nº ... pela Ap. nº 9, de 09.11.2003 e que a pretensão da autora assenta no pagamento do crédito garantido por tal hipoteca, e, ainda, que o crédito garantido se encontra devidamente descrito na certidão junta a fls. 33 e segs., na sequência determinou que a Segurança Social tomasse posição expressa e clara quanto a tal matéria, o que veio a fazer a a fls. 112 e segs.

Observou-se o contraditório, vindo a autora a concluir que é procedente o seu pedido primeiramente formulado, devendo julgar-se extinta a hipoteca pelo pagamento da dívida subjacente e ordenar-se o cancelamento do respectivo registo.

I.2- No saneador decidiu-se pela improcedência da excepção dilatória da incompetência material do tribunal, proferiu-se sentença nessa fase discriminando-se os factos que se consideraram provados com interesse à decisão da causa, e, aplicando-se o direito aos mesmos, julgou-se a acção procedente.

Apelou a ré, concluindo as alegações de recurso pela seguinte forma:

[…]

I.3- Em requerimento apresentado na 1ª instância, o A. veio desistir do pedido subsidiário, solicitando a declaração de extinção/cancelamento da garantia bancária, pretensão a apreciar nessa instância no momento oportuno.

Em contra-alegações, o A. pugna pelo improvimento do recurso.

Nada havendo a obstar ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciá-lo.

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II - FUNDAMENTOS

II.1 - de facto

Foi considerada provada a seguinte factualidade:

[…]

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            II.2 - de direito

            II.2.1- A questão essencial colocada no recurso prende-se com a competência do tribunal de jurisdição comum (no caso, o de Aveiro – instância cível) para conhecer da presente acção, conforme decidido.

            Ao invés, a recorrente insiste em que, sendo um instituto público integrado na administração indirecta do Estado, apresentando-se na acção na veste de entidade pública, e estando em causa a apreciação de uma relação jurídico-administrativa, são os tribunais administrativos os competentes para dirimir o presente litígio.

            Não tem razão.

De harmonia com os arts.66º/C.P.C. são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. 

            É consabido que a competência se determina pela ponderação do pedido e da causa de pedir. Resolve-se com os termos da pretensão do autor, compreendidos aí os respectivos fundamentos, embora sem avaliar o seu mérito.

            O Tribunal de Conflitos tem sido inúmeras vezes chamado a resolver conflitos de competência entre o foro civil e o administrativo, entendendo que a questão da competência material deve ser resolvida tendo em conta a relação jurídica a discutir na acção, mas à luz da estruturação concreta apresentada pelo autor e, logicamente, dando especial atenção à natureza intrínseca e aos fundamentos da pretensão aduzida, e bem assim à concreta delimitação entre actos de gestão pública e actos de gestão privada.

            Em consonância com o disposto no art.5º do ETAF (Lei nº13/02, de 19.2 – de que serão as normas a citar sem menção expressa), a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento em que a acção se propõe.

            É, pois, à luz deste diploma (em vigor desde 1.1.04), que a questão decidenda deve ser apreciada.

            De acordo com a al.g) do nº1 do art.4º, compete à jurisdição administrativa o julgamento das “questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante da função jurisdicional e da função legislativa”.

            A partir da vigência do referido diploma, deixou de relevar a distinção entre regime de direito público e regime de direito privado como critério de determinação da competência judiciária – administrativa ou comum, respectivamente – para conhecer da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público.

            A questão a dirimir consiste na expurgação de uma hipoteca sobre imóvel constituída e registada a favor da ré -, pessoa colectiva pública -, estando em discussão se a dívida garantida pela hipoteca está ou não paga. A autora, entidade privada, e terceiro adquirente do prédio hipotecado, pretende desonerá-lo, libertando-o do ónus que sobre ele impende. Para tanto alega que o anterior proprietário e devedor liquidou todo o débito relativo a contribuições e juros que servia de base à hipoteca, e que a ré se tem injustificadamente recusado a emitir o título de distrate.

            Configurada nestes termos a acção, vê-se que está em apreço uma questão de direito privado, envolvendo, é certo, uma entidade pública. O que se pretende apreciar é se o devedor, que não é parte na acção, pagou integralmente à ré o débito garantido. Ao contrário do que sustenta a recorrente, aqui não está em discussão a regularização das dívidas à segurança social na óptica do contribuinte faltoso/Estado. Entende-se por relação jurídica de direito administrativo, a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas.[1]

            Como antes dito, a questão dirimenda opõe um terceiro, que nada tem a ver com contribuições sociais em falta, ao Estado, conectada com normas e princípios do direito civil.

 Portanto, estando em causa uma relação jurídica de direito privado, a analisar à luz das normas do C.Civil que dispõem sobre a hipoteca, a mesma está arredada da jurisdição dos tribunais administrativos.   

              Em suma, não tem aqui aplicação o estatuído no art.1º/1 como defende a recorrente, havendo assim de concluir-se, conforme decidido, que a competência material para apreciação do litígio objecto da presente acção cabe aos tribunais judiciais. No caso, o juízo de grande instância cível de Aveiro.

            II.2.2- Sustenta ainda a recorrente, insurgindo-se contra a sentença, que a obrigação garantida pela hipoteca em causa se mantém, por subsistir a dívida relativa ao período por ela garantido.

            A factualidade apurada - que não impugna -, retira-lhe razão.

            Com efeito, a hipoteca, registada em 9.11.03, garantia o pagamento de contribuições pelo período temporal aludido no item II.1-3. Essas contribuições em dívida, no montante de 69.406,19 €, foram regularizadas. A declaração junta a fls.117 emitida pela Segurança Social, é bem clara: as contribuições devidas e que correspondem ás que constam do registo de hipoteca, foram regularizadas em diversas datas, acrescidas dos juros de mora.

            A hipoteca, como garantia real, é constituída para garantir um crédito, futuro ou condicional, e outros acessórios do mesmo, como sejam os juros moratórios ou remuneratórios dos últimos três anos, deles se fazendo menção no registo (arts.686º e 693º do C.C.).

            A hipoteca tem a sua existência condicionada à da obrigação garantida. Conforme dispõe o art.730º-a), C.C., a hipoteca extingue-se “pela extinção da obrigação a que serve de garantia”.

            Neste quadro, regularizada a dívida ao credor hipotecário, a hipoteca em questão extinguiu-se, e aquele que adquiriu o bem hipotecado pode pedir a expurgação da hipoteca.

            Diz a recorrente que ainda existem contribuições devidas ao período em apreço. De facto, como resulta do item II.2-6, encontram-se em dívida contribuições referentes a meses não de todo coincidentes com aqueles que constam do registo de hipoteca, e que correspondem ao apuramento efectuado em 2.6.05 (declaração referida).

            Mas essa realidade é inócua, pois o crédito e acessórios garantidos pela hipoteca foram pagos. O que implica que a hipoteca não pode abranger outros créditos como parece defender a recorrente. Quando muito, apurando-se contribuições ainda em dívida, podia a credora ter reforçado a hipoteca, cujos efeitos só se produziriam a partir da data em que fossem inscritos no registo (art.701º/C.C.).

            Concluindo, não merece censura a sentença que declarou extinta a hipoteca em consequência do pagamento da dívida por ela garantida, e ordenou o cancelamento do registo respectivo.

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         III – DECISÃO

         Acorda-se, pelo exposto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se na íntegra a sentença apelada.

         Custas pela apelante.

                                                        ##


Regina Rosa (Relatora)
Jorge Arcanjo
Jaime Carlos Ferreira


[1]  Cons. Fernando Cadilha, citado no Ac.STJ de 8.5.07 (CJstjII/07-53)