Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
684/14.2T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
LETRA DE CÂMBIO
RELAÇÃO SUBJACENTE
Data do Acordão: 03/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – INST. CENTRAL – SEC. DE EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 458º, Nº 1, E 703º, Nº 1, AL. C) DO NCPC.
Sumário: I. A letra de câmbio privada da sua eficácia cambiária por força da prescrição é válida como título executivo, caso os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam pelo exequente alegados no requerimento executivo, consoante dispõe o art.º 703º, n.º 1, al. c) do nCPC.

II. Tal título pode ainda valer como reconhecimento unilateral da dívida ou promessa de prestação, caso em que, por aplicação do regime do nº 1 do art.º 458º do CPC, é presumida a existência da relação fundamental, com a consequente dispensa por banda do credor do ónus da respectiva prova.

III. Tal isenção, contudo, não abrange o ónus da alegação dos factos constitutivos da relação causal subjacente à emissão do título, da qual emerge o direito de crédito que o exequente pretende satisfazer, impondo-se que proceda à sua cabal identificação, de modo a permitir ao executado que se desincumba do ónus probatório que sobre ele recai.

IV. Sendo o Banco exequente portador de uma letra de câmbio que lhe foi endossada pelo sacador no âmbito de um contrato de desconto bancário, encontrando-se extintas as obrigações cartulares por ter operado a prescrição, não dispõe de título executivo contra o sacado/aceitante, que naquele contrato não interveio e por ele não se vinculou.

Decisão Texto Integral:




I. Relatório:

O Banco A..., S.A. instaurou contra F..., Lda. e J... execução para pagamento de quantia certa sob a forma de processo ordinária, dando à execução uma letra de câmbio sacada pela sociedade executada e aceite pelo executado. Mais invocou que a letra foi sacada no âmbito das relações comerciais entre executados e que, depois de sacada, foi descontada pelo executado.

Citado, veio o executado deduzir os presentes embargos, nos quais invocou a prescrição do título executivo, impondo-se portanto ao banco exequente que invocasse a relação material subjacente. Tendo alegado a este propósito tão-somente que a letra foi sacada no âmbito das relações comerciais mantidas pelos executados entre si, é tal alegação manifestamente insuficiente para que a letra de câmbio prescrita possa valer como título executivo.

Mais invocou a prescrição dos juros, tendo ainda impugnado a taxa utilizada para o respectivo cálculo, assim como a quantia ali incluída a título de imposto de selo.

Contestou o banco exequente, defendendo que a relação subjacente se encontra com suficiência explicitada no requerimento executivo, no qual foi alegada a existência de transacção comercial entre os executados, justificativa da emissão do título e a subsequente operação de desconto, pelo que a letra exequenda constitui título executivo plenamente válido.

Sustentou ainda a correcção do cálculo dos juros e validade da taxa aplicada, defendendo que a cobrança do imposto de selo corresponde a um imperativo legal.

Convidado o embargado a fazer prova da convenção de juros, veio o mesmo reconhecer não ter forma de o fazer, para além do que consta do sistema informático do banco.

Anunciando que os autos continham os elementos necessários à prolação de decisão conscienciosa de mérito, proferiu a Mm.ª juíza “a quo” douto saneador sentença, por cujos termos foram os embargos julgados parcialmente procedentes, tendo sido declarada a prescrição dos juros anteriores a 28.12.2010, com a consequente redução da quantia exequenda, determinando-se o prosseguimento da execução pelo montante inscrito no título acrescido dos juros vencidos a partir de 29/12/2010 contados à taxa de 4%, ao invés da taxa utilizada pelo exequente, em virtude do que o pedido executivo sofreu nova redução, e montante devido a título de imposto de selo.

Inconformado com a decisão apelou o embargante e, tendo desenvolvido em sede das doutas alegações apresentadas as razões da sua discordância com o decidido, condensou-as a final nas seguintes necessárias conclusões:

...

Com os aludidos fundamentos requer a final a revogação da decisão proferida e sua substituição por outra que, na procedência do recurso, declare extinta a execução quanto ao recorrente.

Contra alegou o Banco exequente/embargado, defendendo a manutenção do julgado.

Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, as questões submetidas à apreciação deste Tribunal são:

i. determinar se a sentença apelada padece dos vícios da falta de fundamentação e ambiguidade, que são causa de nulidade;

ii. decidir se a letra junta aos autos reúne os requisitos necessários para que possa ser considerada título executivo contra o embargante atento o disposto no art.º 703.º, n.º 1, al. c) do CPC.

i. da nulidade da sentença (por ambiguidade e falta de fundamentação)

Considerando a sua precedência lógica, impõe-se que se inicie o conhecimento das questões elencadas pela invocação da nulidade da decisão apelada.

O recorrente imputa à decisão recorrida o vício extremo da nulidade, por violação do disposto nas als. b) e c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.

Analisemos, pois, cada uma das invocadas nulidades de “per se”.

No entender do apelante, a sentença apelada “evidencia uma completa omissão de motivação da decisão sobre a matéria de facto”, assim incorrendo no vício da nulidade por falta de fundamentação.

Epigrafado de “Dever de fundamentar a decisão”, o art.º 154.º do CPC impõe o juiz que fundamente as decisões proferidas sobre qualquer dúvida suscitada no processo ou qualquer pedido controvertido (vide n.º 1). Em consonância com tal dever de fundamentação, as sentenças são nulas quando não especifiquem os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (vide al. b) do art.º 615.º do mesmo diploma legal).

O dever de fundamentação das decisões corresponde a uma exigência constitucional (cf. art.º 205.º, n.º 1 da CRP) e, sendo um instrumento legitimador da própria decisão -quanto mais persuasivo for o seu discurso, mais facilmente será convencido o seu destinatário e acatado o seu conteúdo-, constitui ainda garantia da efectividade do direito ao recurso. Todavia, conforme sem dissêndio vem sendo entendido -entendimento que mantém plena actualidade face à redacção da al. b) do art.º 615.º agora em vigor, uma vez que reproduziu, sem alterações, a solução normativa antes contida na al. b) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC- só a absoluta, que não a deficiente ou pouco persuasiva fundamentação, recai na previsão legal.

Assim, para que se verifique o vício da falta de fundamentação, exige a lei que tenham sido de todo omitidas as razões (de facto e/ou de direito) que conduziram à prolação daquela concreta decisão (v., por todos, aresto do STJ de 15/12/2011, processo n.º 2/09.9 TTLMG.P1S1 e desta mesma Relação de 17/4/2012, processo n.º 1483/09.9 TBTMR, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Do que vem de se expor resulta claro que a sentença proferida[1] não padece do imputado vício, uma vez que a Mm.ª juíza, independentemente do acerto da decisão, que para aqui não releva, enumerou e descreveu com clareza os factos considerados relevantes que julgou provados, tendo ainda explicitado, com indicação das normas jurídicas pertinentes, as razões de direito pelas quais considerou que a oposição deduzida pelo recorrente não merecia um juízo de procedência.

Cumpre ainda precisar que eventual insuficiência da matéria de facto ou deficiência na motivação da decisão a este propósito proferida não têm a virtualidade de afectar o valor formal da sentença, cuja nulidade é determinada pelos vícios taxativamente elencados nas diversas alíneas do n.º 1 do dispositivo legal a que nos vimos reportando. Por assim ser, eventuais deficiência, obscuridade ou contradição da decisão proferida sobre a matéria de facto, não constando do processo todos os elementos em ordem a permitirem a sua alteração, determinarão tão-somente o uso pelo Tribunal da Relação dos seus poderes de cassação, com a consequente anulação daquela decisão, solução consagrada na lei ainda para os casos em que se verifique a necessidade de proceder à respectiva ampliação (cf. al. c) do n.º 2 do art.º 662.º). Já a deficiente fundamentação, quando referenciada a qualquer facto essencial para o julgamento da causa, dá lugar à descida dos autos para que o tribunal de 1.ª instância fundamente a decisão, solução consagrada na al. d), sem que estejamos, ainda aqui, perante o vício previsto na sobredita al. b) do n.º 1 do art.º 615.º.

Por último, eventual erro na apreciação da matéria de facto, nomeadamente por violação de regras de direito probatório material, consubstanciando erro de julgamento, não tem aptidão, também ele, para prejudicar o valor formal da sentença, antes implicando a modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto e a reapreciação da nova factualidade à luz das normas tidas por pertinentes.

Improcede, pelo exposto, a invocada nulidade por falta de fundamentação.

Alega ainda o recorrente que a sentença proferida é ambígua, uma vez que, reconhecendo a sua posição de sacado na letra dada à execução, não se compreende como vem a considerá-lo descontário do mesmo título na dita “operação de desconto”.

Consoante dispõe a convocada al. c) do n.º 1 do art.º 615.º, sentença é ainda nula quando “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

Nos termos do preceito vindo de transcrever, a sentença é obscura quando contenha alguma passagem cujo sentido seja ininteligível, ou seja, quando não seja possível ao seu destinatário apreender o sentido da decisão; será ambígua quando o seu conteúdo comporte diferentes interpretações. “No primeiro caso não se sabe o que o juiz ou juízes quiseram dizer; no segundo, hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos – embora, em última análise, a ambiguidade seja uma forma especial de obscuridade, dado que se dado passo do acórdão é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento dos juízes” (do acórdão desta Relação e secção de 20/1/2015, processo n.º 2996/12.0 TBFIG.C1, acessível em www.dgsi.pt). Os assinalados vícios tanto podem afectar a decisão como os seus fundamentos.

No caso vertente, e tal como o apelante destaca, a Mm.ª juíza considerou, na senda aliás do que pelo banco exequente vinha alegado, ter sido o recorrente o sujeito activo da operação de desconto invocada. Todavia, não curou de explicar como é que, detendo este a posição de sacado e aceitante da letra de câmbio, poderia operar a transmissão do direito de crédito nela incorporado o qual, como se sabe, no contexto do contrato de desconto, “é o quid que dá corpo e consistência à relação jurídica a estabelecer entre as partes”[2]. Tal omissão prejudica decerto a cabal compreensão da decisão proferida, afectando o seu valor formal, sem que, todavia, constitua obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso, conforme expressa com clareza o n.º 1 do art.º 665.º do CPC.

Fundamentação

De facto

...

E com base no descrito elenco factual, depois de ter constatado a prescrição da obrigação cartular, veio contudo a considerar que a letra exequenda “está em condições de servir de título executivo contra o embargante na medida em que se refira ao desconto como causa de pedir – o que ocorre no presente caso – e pode servir de título executivo contra o aceitante porque, relativamente a este, contém a promessa duma prestação ou o reconhecimento duma dívida”.

O recorrente, como vimos, discorda de forma veemente do decidido, argumentando a este propósito que não existe nos autos, nem a Mm.ª juíza a indicou, prova suficiente para sustentar a decisão proferida quanto aos factos, já que da letra dada à execução -único documento oferecido- não é possível extrair quanto consta discriminado sob os pontos 3, 4 e 5, sendo certo, acrescenta, que sobre a instituição bancária exequente recaía o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito, no caso, e face à extinção, por prescrição, da obrigação cambiária, os elementos integrantes do contrato de desconto, designadamente, a proposta, entrega do título, montante disponibilizado e beneficiário da quantia adiantada, sem esquecer a natureza formal do mesmo contrato, de harmonia com a doutrina do assento n.º 17/94, in DR n.º 279/94, de 3/12/1994, I-Série A, hoje com valor de acórdão uniformizador.

Porque as questões atinentes à impugnada decisão de facto se encontram indissociavelmente ligadas à enunciada questão de direito -e que se reconduz a saber se a letra dada à execução constitui, quanto ao embargante, título executivo- delas nos ocuparemos em simultâneo.

Antes de mais, tenha-se como assente -por evidente e não impugnado- que se encontra prescrito o direito do banco exequente, enquanto portador da letra, de accionar os obrigados cambiários, dado o incontroverso decurso dos prazos prescritos no art.º 70.º da LULL[3].

Não obstante, e tal como referido na sentença sob recurso, o art.º 703.º do NCPC incluiu no elenco (taxativo) dos títulos executivos “os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo” (al. c) do n.º 1).

A questão de saber se, extinta a obrigação cartular, atingida pela prescrição, o título cambiário em causa poderia ainda servir de título executivo, desta feita enquanto escrito particular consubstanciando a obrigação fundamental subjacente, dividiu doutrina e jurisprudência, sendo todavia claramente maioritária a tese da sua exequibilidade desde que do título constasse a causa ou, não a mencionando, o exequente a invocasse no requerimento executivo[4]. Deste modo, considerando que o novo elenco de títulos executivos, reflectindo a opção legislativa pela drástica redução dos documentos particulares a que reconhece tal qualidade, veio no entanto consagrar normativamente aquela que era a corrente doutrinária e jurisprudencial maioritária, deverá a norma em apreço ter-se como interpretativa[5], aplicando-se aos títulos constituídos antes da sua entrada em vigor.

Aqui chegados, cumpre indagar se tal letra de câmbio, privada da sua eficácia cambiária e válida, portanto, como mero quirógrafo, não representará, ainda assim, uma promessa de cumprimento ou o reconhecimento unilateral da dívida, com a consequente inversão do ónus da prova da relação fundamental, nos termos do n.º 1 do art.º 458.º do CC[6].

De acordo com o entendimento dominante, a declaração unilateral que preencha a previsão da citada disposição legal faz apenas presumir a existência de uma causa, não tendo valor constitutivo. A promessa de cumprimento ou o reconhecimento da dívida não constituirão em si mesmas um autêntico negócio jurídico unilateral, sendo fonte da obrigação a relação jurídica fundamental cuja existência é por aquelas presumida[7]. Deste modo, quem se prevalece da declaração está dispensado de fazer a prova da existência e validade do negócio de que aquela promana, recaindo sobre aquele a quem é oposta o ónus da sua ilisão, invocando as vicissitudes da relação fundamental (inexistência, nulidade, incumprimento, etc.). Assinale-se, contudo, que o credor apenas se encontra isentado do ónus de provar a relação fundamental subjacente, mas não já de alegar tal relação[8].

Seja como for, indiscutido que o exequente se encontrava, no caso vertente, e por força do regime estabelecido na citada al. c) do n.º 1 do art.º 703.º, sujeito ao ónus de alegação dos factos constitutivos do direito de crédito invocado, não é indiferente a consideração de que a letra dada à execução, ainda que desprovida da sua eficácia cartular, configura uma promessa de cumprimento ou um reconhecimento de dívida, caso em que funciona a presunção a que nos vimos reportando, por força do regime estabelecido no n.º 1 do art.º 458.º, ou se deverá ser apenas atendida a sua validade como mero quirógrafo, aproveitável como meio de prova da relação fundamental, cuja demonstração constitui ainda ónus do credor.

Como é sabido, a emissão de uma letra dá origem a uma específica relação jurídica, autónoma e distinta de outra previamente existente: com a assinatura da letra, seja qual for a qualidade em que o subscritor intervenha, nasce uma nova obrigação, por este assumida, tendo como contraponto o reconhecimento ao sujeito activo da relação cambiária de um específico direito de crédito cambiário[9] - as letras (e as livranças) são pois títulos constitutivos. Não obstante o seu carácter constitutivo, e consubstanciando um desvio ao princípio da necessidade de indicação da causa (daí ser-lhes comummente apontada a característica da abstracção ou irrelevância jurídica da causa), a verdade é que os negócios cambiários têm naturalmente uma causa: a relação fundamental envolvendo os mesmos sujeitos, idónea a subsistir de forma desligada e independente da letra ou livrança emitidas[10].

No assinalado contexto, não custa configurar a letra de câmbio, ainda que prescrita a obrigação cartular, como uma promessa unilateral de prestação[11], remetendo para o destinatário o ónus da alegação da relação fundamental, mas conferindo-lhe dispensa do ónus da prova respectiva, desde que não sujeita a específicas formalidades legais, presumindo-se assim a sua existência até prova do contrário. Mas mesmo a ser assim, como nos parece que é, não basta ao credor exequente limitar-se a juntar aos autos o documento particular que corporiza o acto de reconhecimento unilateral da relação fundamental pré existente -no caso a letra de câmbio desprovida da particular força executiva conferida aos títulos de crédito- competindo-lhe alegar os factos constitutivos do direito de crédito que pretende coactivamente satisfazer.

No caso em apreço, o Banco exequente invocou ter sido o título cambiário emitido por via de transacções comerciais mantidas entre os executados, tendo sido sacada pela executada F..., Lda. devido a dificuldades de tesouraria, tendo o executado procedido posteriormente ao respectivo desconto.

A Mm.ª juíza, tendo dado como assente quanto se deixou acima discriminado, desprezou a alegação das pré-existentes relações comerciais entre executados por ter entendido -a nosso ver correctamente- que, “para além de ser alegação meramente genérica e inconclusiva, em nada respeitava à exequente”. No entanto, veio a julgar improcedentes os embargos por considerar suficiente a mera invocação da subsequente (em relação à emissão da letra) operação de desconto, identificada no requerimento executivo pelo respectivo número, e aceitando como boa a alegação de que teria sido o recorrente o sujeito activo dessa mesma operação. Tal entendimento, contudo, já não o podemos subscrever pelas razões que de seguida se alinham e coincidem, no essencial, com a argumentação do recorrente.

Antes de mais, cumpre precisar que, em bom rigor, e para o que aqui releva, não deu a Mm.ª juíza como demonstrados os factos descritos em 3., 4. e 5., antes se tendo limitado a dar como provado que tal factualidade foi alegada pelo exequente o que é, naturalmente, coisa diversa e imprestável para efeitos de decisão. Com efeito, ainda a entender-se que o exequente estava isentado do ónus da prova dos factos alegados, uma de duas: ou os mesmos tinham resultado provados por força da presunção (não ilidida) estabelecida no n.º 1 do art.º 458.º do CC, e como tal deveriam constar da sentença, ou a presumida existência da relação jurídica fundamental -e interessa-nos naturalmente o contrato de desconto- havia sido ilidida pela prova feita pelo embargante com ela onerado, dando-se então por comprovada a sua inexistência, por não se ter constituído, ou a sua insubsistência, por se ter entretanto extinto.

O desconto é um contrato nominado -vem previsto como operação bancária no art.º 362.º do CComercial- embora o legislador não lhe tenha atribuído uma disciplina específica.

Comummente descrito como contrato atípico, próximo do mútuo -será um mútuo com “datio pro solvendo”[12]-, pode definir-se como “o contrato pelo qual o banqueiro entrega ao seu cliente uma determinada quantia, em troca de um crédito, ainda não vencido, sobre um terceiro[13]. Normalmente, porém, e é essa a modalidade que aqui importa, o desconto funciona sobre títulos de crédito, cedendo o cliente ao banqueiro pela via do endosso um título que incorpora o débito do terceiro e sendo abonado pelo banco de uma importância calculada sobre o valor nominal da letra, deduzido dos juros, comissões e despesas devidos pela realização da operação[14].

De realçar que “a prévia entrega das letras endossadas constitui um dos traços característicos do desconto”[15], daí que a proposta feita ao banco pelo cliente descontário seja entregue acompanhada pelo título ou títulos a descontar já endossados, endosso que é geralmente em branco, tal como de resto ocorreu no caso em apreço.

Perfectibilizado o contrato com a entrega ao banco dos títulos endossados e pela antecipação, por este ao cliente descontário, da importância correspondente ao desconto efectuado, tratando-se, como é o caso, de uma letra, fica aquele vinculado a apresentá-la a pagamento ao aceitante na data do vencimento, dada a sua qualidade de obrigado principal (cf. art.º 28.º/I LULL). Recebendo deste o valor constante do título dá-se a extinção, pelo cumprimento, do contrato de desconto; recusando o aceitante o pagamento, fica o banco autorizado a demandar todos os obrigados cambiários caso opte -e possa- accionar o título cambial, podendo ainda recorrer a acção baseada na relação fundamental do desconto, “na qual o sacador e/ou endossante ocupa a posição jurídica de contra parte”[16].

Vistos os elementos essenciais do tipo contratual em referência, fácil é concluir que o banco exequente não alegou no requerimento executivo todos os elementos individualizadores do mesmo, não suprindo tal alegação a mera identificação, por apelo ao número que internamente lhe atribuiu, de uma “operação de desconto”. E tanto isto é exacto que a defesa do embargante resultou prejudicada, tendo tido como preocupação dominante impugnar a também genericamente invocada existência de “transacções comerciais” entre os executados, as quais constituiriam a relação fundamental subjacente à emissão do título.

De outro lado, a letra junta aos autos, e único elemento de prova a considerar, contraria a alegação do banco exequente de que o descontário foi o aqui embargante, que ocupa no título em causa a posição de sacado e aceitante, tendo o título sido endossado ao banco, como teria que ser, pela sociedade sacadora (endosso em branco como se referiu). Aliás, conforme o próprio banco apelado alegou, a executada sociedade encontrava-se com dificuldades de tesouraria, daí ter sacado a letra em causa, não fazendo pois sentido que fosse o aceitante (devedor) a financiar-se junto do banco endossado, o que estava impedido de fazer pela razão fundamental de não ser titular do crédito cartular a ceder. É que o aceite, recorda-se, “é o negócio jurídico unilateral não receptício dirigido à constituição da obrigação cambiária principal”, declaração cujo conteúdo se esgota na assunção da respectiva obrigação, sem qualquer incidência sobre o lado activo da relação jurídica (cambiária). O aceitante é o obrigado principal e não o titular do direito cambiário[17].

Em razão do que vem de se dizer, e porque a prescrição do direito de acção contra os obrigados cambiários obstava a que o banco exequente e ora apelado demandasse o sacador e o sacado/aceitante (o sacado, conforme é sabido, não é obrigado cambiário, assumindo tal posição por via do aceite - cf. art.º 28.º/I LULL) com fundamento na relação cartular, restava-lhe invocar a relação fundamental, no caso, o contrato de desconto, dada a sua qualidade de “credor originário do descontário”[18]. No entanto, tal relação subjacente só ao descontário -no caso, conforme se extrai da análise do documento junto, a sociedade sacadora/endossante- podia ser oposta, não dispondo o banco exequente de título executivo contra o aqui apelante, que não interveio no contrato e, consequentemente, não assumiu, no âmbito da daquela relação fundamental -única, repete-se, que o banco exequente se encontra em condições de invocar- qualquer obrigação.

Em conclusão, a invocada “operação de desconto (e respectivo endosso) não pode, pois, relativamente ao embargante, ser juridicamente qualificada como relação subjacente à emissão do título de crédito em questão”[19]. Com o que procedem os argumentos recursivos impondo-se, nesta parte, a revogação da decisão proferida.

III Decisão

Acordam os juízes da 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso e, na procedência dos embargos deduzidos pelo executado J..., declaram extinta, quanto a ele, a execução movida pelo Banco A..., SA.

Custas nesta e na 1.ª instância a cargo do exequente.

Relatora:

Maria Domingas Simões

Adjuntos:

1º - Jaime Ferreira

2º - Jorge Arcanjo

Sumário:

I. A letra de câmbio privada da sua eficácia cambiária por força da prescrição é válida como título executivo, caso os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam pelo exequente alegados no requerimento executivo, consoante dispõe o art.º 703.º, n.º 1, al. c) do CPC.

II. Tal título pode ainda valer como reconhecimento unilateral da dívida ou promessa de prestação, caso em que, por aplicação do regime do n.º 1 do art.º 458.º do CPC, é presumida a existência da relação fundamental, com a consequente dispensa por banda do credor do ónus da respectiva prova.

III. Tal isenção, contudo, não abrange o ónus da alegação dos factos constitutivos da relação causal subjacente à emissão do título, da qual emerge o direito de crédito que o exequente pretende satisfazer, impondo-se que proceda à sua cabal identificação, de modo a permitir ao executado que se desincumba do ónus probatório que sobre ele recai.

IV. Sendo o Banco exequente portador de uma letra de câmbio que lhe foi endossada pelo sacador no âmbito de um contrato de desconto bancário, encontrando-se extintas as obrigações cartulares por ter operado a prescrição, não dispõe de título executivo contra o sacado/aceitante, que naquele contrato não interveio e por ele não se vinculou.


***


[1] Tem valor de sentença, nos termos prescritos no n.º 3 do art.º 595.º, o despacho saneador que conheça do mérito da causa
[2] Nas impressivas palavras de Carolina Cunha, “Letras e Livranças Paradigmas actuais e Recompreensão de um Regime”, Almedina, pág. 195.
[3] Tal como definitivamente decidida se encontra a prescrição dos juros vencidos até 28/12/2010, posto que este segmento da decisão não foi pelo banco exequente impugnado.
[4] Cf. Lebre de Freitas, “A acção executiva depois da reforma da reforma”, 5.ª edição, págs. 61-62.
[5] Cf. neste sentido acórdão do STJ de 5/7/2014, proferido no processo 303/2002-P1-S1, acessível em www.dgsi.pt.
[6] Assim desde logo porque, conforme é unanimemente reconhecido, a prescrição da obrigação cambiária em nada interfere com a subsistência daquelas que as partes tenham assumido no domínio da relação fundamental, que subsistirá enquanto não se verificar a sua extinção nos termos gerais.
[7] Assim inequivocamente, Prof. A. Varela, “Das obrigações em geral”, 6.ª edição, págs. 408-409 - “Nenhum destes actos constitui, com efeito, fonte autónoma de uma obrigação. Criam apenas a presunção da existência de uma relação negocial ou extranegocial (a relação fundamental a que o preceito se refere), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação”.
No mesmo sentido, Prof. Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, Vol. I, 9.ª edição, págs. 286-287.
Aproximando a promessa de cumprimento e o reconhecimento da dívida à confissão extra-judicial, com a particularidade de não ter por objecto factos, mas antes uma obrigação, estando sujeita a regime especial, Carolina Cunha, obra citada, pág. 131.
[8] Cf. Prof. Lebre de Freitas, “A Confissão no Direito Probatório”, pág. 390, destacando que a inversão do ónus da prova não dispensa o autor do ónus de alegação, impondo-lhe a invocação do facto constitutivo do direito de crédito, o que é confirmado pela exigência de forma do art.º 458º, n.º 2, do CC, que pressupõe o conhecimento da relação fundamental; daí que a prova da inexistência de relação causal válida a cargo do devedor/demandado se tenha de fazer apenas relativamente à causa que tiver sido invocada pelo credor. Neste preciso sentido, e citando-se a título meramente exemplificativo, acórdãos desta mesma Relação de Coimbra de 7/2/2013, processo n.º 647/08.7 TBCNF-A.C1, ainda que proferido a propósito de um cheque, e da Relação de Guimarães de 30/4/2015, processo n.º 1072/13-3 TBCHV-A.G1, acessíveis em www.dgsi.pt.
[9] Carolina Cunha, obra citada, págs. 152 e seguintes.
[10] Note-se que mesmo nas letras de favor existe uma causa próxima, sendo nestes casos a relação subjacente constituída pela convenção de favor.
[11] O entendimento expressado não é pacífico – veja-se o acórdão da Relação do Porto de 24/10/2011, processo n.º 1528/10.0 TJVNF-A.P1, também citado pelo recorrente, disponível no identificado sítio.
Parecendo aceitar que o regime do art.º 458.º será de aplicar, “sem esforço, àqueles títulos de crédito que – embora imprestáveis para servirem de base à aplicação do regime de abstracção substantiva previsto na respectiva LU – contenham um acto de reconhecimento de dívida ou envolvam uma promessa de prestação por parte do respectivo subscritor/aceitante (como sucederá com as letras e livranças) (…)”, citado aresto do STJ de 5/7/2014, sendo nosso o destaque.
[12] Prof. Menezes Cordeiro, “Manual de Direito Bancário”, 3.ª edição, pág. 548. Na jurisprudência, acórdão do STJ de 14/10/2003, revista n.º 2662/03, acessível em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=16266&codarea=1.
[13] Ob. e autor cit. na nota anterior, pág. 546.
[14] Para uma descrição detalhada desta operação, Carolina Cunha, obra citada, págs. 183-184.
[15] Fernando Olavo “Desconto Bancário”, págs. 48-49, citado por Carolina Cunha, ob. cit., pág. 187.
[16] Carolina Cunha, obra citada, pág. 203.
[17] Idem, págs. 95-96.
[18] Ac. do STJ de 21/6/1983, n.º 0708341, disponível em www.dgsi.pt. citado por Carolina Cunha na obra que vimos citando – cf. nota 258 na pág. 203.
[19] Neste preciso sentido, contemplando situação semelhante, embora com fundamentação não inteiramente coincidente, acórdão da Relação de Lisboa de 30/4/2013, processo n.º 9138/11.8 TBOER-A.L1, ainda em www.dgsi.pt.