Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1931/08.5TBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: ABUSO DE DIREITO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
SEGURADORA
Data do Acordão: 05/18/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 334.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Para que se possa falar de abuso do direito é mister que a outra parte esteja a exercitar um direito subjectivo em sentido amplo, e que esse exercício tenha lugar num quadro factual em que se possa concluir que ele constitui uma ofensa intolerável à consciência jurídica (art.º 334.º do CC).

2. Não pode existir abuso do direito na actuação de uma mera faculdade processual e, designadamente, quando o réu se limita a defender-se de algum facto (ainda que pessoal) atrás de uma cortina de silêncio.

3. A mera sugestão da emissão de um recibo, feita por uma seguradora a outra, não equivale a uma confissão de dívida, nem é suficiente para caracterizar uma situação de abuso de direito quando a seguradora lesada - que por via disso confiou numa solução extra-processual - não acautelou atempadamente os seus direitos.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A...COMPANHIA DE SEGUROS , S.A., instaurou no Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Águeda uma acção com processo comum sob a forma sumária contra B.... COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 28.401,01, acrescida de juros vencidos e vincendos desde 9/01/2006 até integral pagamento, e todas as demais quantias que futuramente venha a ter de pagar em consequência do acidente de viação aludido nos autos.

Para tanto alega – sinopticamente – ter contratado com C...., S.A., um seguro do ramo acidentes de trabalho por conta de outrem, mediante qual aquela transferiu para si a responsabilidade civil decorrente de acidentes de trabalho sofridos por D....; em função disso, tendo a referida D... sofrido um acidente de viação quando saía da fábrica da dita C..., acidente que foi culposamente causado por certo veículo seguro na Ré, a A. veio a pagar àquela, por força do aludido seguro, a título de capital de remissão, indemnizações salariais, assistência clínica, medicamentos e transportes, o montante de € 28.401,01; que a Ré é responsável pelo reembolso dessas quantias por virtude do direito de sub-rogação que legalmente lhe é conferido, tendo até chegado a solicitar à A. a emissão de um recibo.   

Contestando, a Ré defende-se, começando por negar a culpa do respectivo segurado na eclosão do acidente, imputando-a em exclusivo à sinistrada D...; depois, impugna os danos alegadamente sofridos por esta; por fim, excepciona a natureza não cumulável das indemnizações (com base no acidente estradal e na responsabilidade laboral). Termina com a improcedência da acção.

A A. respondeu às excepções e rematou como na petição.

A final foi a acção julgada totalmente improcedente, absolvendo-se a Ré do pedido.

Irresignada, deste veredicto interpôs a A. recurso, admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:

A) A autora exerce a actividade de seguros em diversos ramos.

B) No exercício da sua actividade, a autora contratou com a sociedade "C..." um contrato de seguro do ramo de Acidentes de Trabalho por Contra de Outrem, na modalidade de Folhas de Férias, titulado pela apólice nº .....

C) Através daquele contrato, a segurada " C..." transferiu para a autora a responsabilidade civil decorrente de Acidentes de Trabalho, sofridos por D....

D) No dia 25 de Junho de 2004, pelas 17:20 horas, ocorreu um acidente de viação na Estrada Municipal s/n Raso de Paredes, concelho de Águeda, que envolveu o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (....)DV e o velocípede conduzido por D....

E) As duas intervenientes no acidente saíam da fábrica da " C..." após término do seu horário de trabalho.

F) A condutora de veículo da matrícula (....)DV, ao sair do acesso da fábrica, parou a sua viatura ao chegar à entrada da estrada municipal.

G) A D...que circulava na traseira do veículo de matrícula (....)DV, vendo o mesmo parado, ultrapassou-o pela esquerda e entrou na referida estrada.

H) Em consequência do embate entre os dois veículos, a D... caiu do velocípede.

I) O veículo de matrícula (....)DV tinha a responsabilidade civil decorrente da sua circulação transferida para a Ré, através da apólice 372176001.

J) A D... estava a sair do seu local de trabalho, dirigindo-se para a sua casa, para tanto utilizando o caminho mais directo e habitual.

K) Após a participação do sinistro à autora, esta participou o mesmo ao Tribunal do Trabalho de Águeda, dando origem ao processo nº 327/05.5TTAGD, no qual foi fixado que a sinistrada ficou portadora de uma incapacidade de 38,57% (IPP).

L) Em sede do referido processo, ficou a autora obrigada, em Auto de Conciliação datado de 30/6/2005 a pagar à sinistrada D..."€ 10,00 de transportes ao Tribunal" e "capital de remissão da pensão anual e vitalícia de € 1.707.96. com início em 2/6/2005, dia seguinte ao da alta que lhe foi conferido pela seguradora - idade 60 anos / Trm 11,264 – prestação única € 19.248,42".

M) D... intentou acção contra a ora ré (Acção Ordinária nº 1673/05.3TBAGD do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Águeda), nos termos da petição inicial cuja certidão está junta a fls. 66 e ss., pedindo a condenação a ré no pagamento de uma indemnização por danos causados pelo acidente de viação referido em D).

                        1 Após o referido em F), o veículo de matrícula (....)DV retomou a sua                              marcha.

                        2. O veículo de matrícula (....)DV embateu com o vértice da frente esquerda

                        lateral direita do velocípede.

                        3. Em consequência da queda referida em H), a D... sofreu                 uma fractura da bacia.

                        4. E golpe suturado no antebraço direito.

                        5. E escoriações e hematomas diversos.

                        6. A Autora despendeu com a resolução do sinistro a quantia de € 19.248,46, a

                        título de capital de remissão.

                        7. E € 3.242,63 a título de indemnizações salariais.

                        8. A quantia de € 4.494,85 a título de assistência clínica.

                        9. A quantia de € 20,30 a título de medicamentos.

                        10. A quantia de € 1.404,17 a título de transportes.

                        11. O veículo (....)UV seguia integrado numa fila de viaturas automóveis                 que, saindo do parque da " C...", pretendiam entrar na E.M. Raso de                                   Paredes/Águeda.

                        12. O veículo (....)DV atravessou a estrada e virou à sua esquerda, tomando                      o sentido Aveiro/Águeda.

                        13. A D..., procurando evitar a fila de veículos, entrou E.M. no                       intuito de tomar a metade direita da estrada, considerando o sentido Aveiro-                 Águeda.

                        14. E tomou a berma esquerda considerando o sentido Aveiro-Águeda.

                        15. Depois, a D... atravessou a E.M., no intuito de tomar a                 metade direita da estrada, considerando o sentido Aveiro-Águeda.

                        16. O choque ocorreu entre a lateral direita da bicicleta a pedal e o vértice                 frontal esquerdo do veículo (....)DV.

                        17. Após essa colisão, a bicicleta caiu, juntamente com a respectiva condutora.                       

            I. A acção a que se reporta a alínea M) entrou em juízo no dia 8 de Junho de 2005.

           

                                                                             *      

A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação, a apelante vem suscitar, praticamente como única questão, a que diz respeito a saber se, na presente acção, a Ré actua com abuso do direito, abuso que assentaria no facto de, ainda em 2006, ter solicitado à A. o envio do recibo da quantia peticionada, reconhecendo, dessa forma, que esta era titular de um direito de crédito proveniente da aplicação do disposto no art.º 31, nºs 2, 3 e 4 da Lei dos Acidentes de Trabalho (LAT), aprovada pela Lei nº 100/97 de 13/09.

Importa atentar na linha de pensamento que foi seguida na sentença recorrida, que culminou no posicionamento segundo o qual, uma vez que a A. propusera a presente acção ao abrigo do art.º 31, nº 4 da LAT, mas o não fizera no prazo de um ano a contar do acidente, não podia exercer o direito de regresso ali previsto contra a ora Ré, na qualidade de seguradora do veículo causador do sinistro.

Vejamos.

É incontroverso que a recorrente e Autora nestes autos pagou à sinistrada D..., por força do contrato de seguro de acidentes de trabalho em vigor à data do acidente, a quantia global de € 28,401.01; que esta quantia se destinou a ressarcir a vítima dos danos resultantes de acidente de viação por ela sofridos quando se deslocava do seu local de trabalho para casa; e que o veículo DV – que interveio no acidente – tinha a responsabilidade civil decorrente de acidente de viação transferida para a Ré pela apólice nº 372176001 – cfr. os factos provados em I, J e M – 6, 7, 8, 9 e 10.

Sem que isso seja alvo de discussão, a responsabilidade no acidente do veículo seguro na Ré foi fixada na sentença recorrida em 70%.

            

O problema do recurso tem implícito que se saiba como se articulam as indemnizações devidas ao lesado em acidente de viação sempre que simultaneamente este seja para ele acidente de trabalho.

Como foi enfatizado na decisão recorrida, à data do acidente, a vítima D... beneficiava de um seguro de acidentes de trabalho no qual foi seguradora a ora A. Por seu turno, a Ré assumiu a responsabilidade civil inerente aos prejuízos ocasionados pela circulação do ligeiro DV. Das duas fontes de responsabilidade, uma contratual e outra extracontratual, advêm para o mesmo lesado direitos de indemnização que em concreto se sobrepôem.

As duas indemnizações não são, no entanto, cumuláveis, o que não impede a lesada de optar por aquela que entenda mais conveniente[1].

Porém, coexistindo os fundamentos para ambas as indemnizações, a lei considera como devedor final o responsável pelos danos provenientes do acidente de viação.

É que nos termos do art.º 18, nº 1 do DL 522/85 de 31/12, tratando-se de acidente ao mesmo tempo de viação e trabalho, aplicam-se as disposições de tal diploma "tendo em atenção as constantes da legislação especial de acidentes de trabalho".

E a norma da disciplina dos acidentes de trabalho que directamente rege esta matéria é, hoje, a do art.º 31 da LAT, que tem o seguinte conteúdo:

"1 – Quando o acidente for causado por outros trabalhadores ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos da lei geral.

2 – Se o sinistrado em acidente receber de outros trabalhadores ou de terceiros indemnização superior à devida pela entidade empregadora ou seguradora, esta considera-se desonerada da respectiva obrigação e tem direito a ser reembolsada pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido.

3 - Se a indemnização arbitrada ao sinistrado ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente ou da doença, a desoneração da responsabilidade será limitada àquele montante.

4 – A entidade empregadora ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente tem o direito de regresso contra os responsáveis referidos no n.° 1, se o sinistrado não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente.

5 – A entidade empregadora e a seguradora também são titulares do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se refere este artigo".

Há quem sustente o ponto de vista de que se verifica uma situação de solidariedadeeventualmente imperfeita – entre os diversos responsáveis.

Não cremos.   

A circunstância de a vítima poder exigir a reparação dos danos de qualquer dos responsáveis pelo acidente (seja aquele que o é por virtude da circulação do veículo causador, seja aquele que o é por virtude de uma relação laboral da vítima) não transforma os devedores em sujeitos de uma mesma obrigação solidária. Nem tão pouco ocorre aqui um caso de verdadeira sub-rogação. Não estamos perante o cumprimento da mesma obrigação. As obrigações são essencialmente distintas, por terem matrizes diferenciadas e os danos abrangidos pelo objecto de cada uma delas terem uma extensão não necessariamente coincidente.

A lei apenas estabelece o que chama direito de regresso[2] num único sentido: a favor de quem pagou a indemnização devida com fundamento no acidente laboral sobre o responsável pelo acidente de viação.    

Da conjugação daqueles diversos números deve também inferir-se que quem pagar a indemnização pelo acidente de trabalho, imputável a terceiro como acidente de viação, dispõe de uma tripla via para obter o reembolso:

Ou intervem na acção proposta pelo sinistrado contra o responsável pelo acidente de viação, reclamando o reembolso desse responsável, se essa acção for instaurada no prazo de um ano contado da data do acidente (2ª parte do nº 4 e nº 5 do art.º 31);

Se a vítima ou sinistrado o não fizer em tal prazo, pode demandar em acção própria esse responsável (1ª parte do nº 4 do art.º 31);

Não se dando nem uma nem outra hipótese, aguarda que o sinistrado eventualmente obtenha a indemnização pelo acidente de viação, podendo então demandá-lo, com vista ao reembolso do que despendeu, mas apenas dentro dos limites do que por este haja sido recebido (nºs 2 e 3 do art.º 31).

Por conseguinte, na segunda hipótese - a de se dirigir aos responsáveis pelo acidente de viação para lhes exigir o reembolso do despendido com o sinistrado - a entidade que haja pago a indemnização laboral tem de comprovar[3] que aquele não propôs a acção no prazo de um ano contado da data do acidente.

Para isto é irrelevante que aquele que satisfez a indemnização do acidente laboral (e, no caso vertente, a A. e apelante) tenha confiado numa hipotética negociação destinada ao pagamento extrajudicial pela seguradora do acidente de viação. É indiferente que esta tenha adoptado uma conduta que haja alimentado a expectativa a quem pagou o dano laboral de ver a efectivado o reembolso desse pagamento. Quem satisfez a indemnização laboral, e ainda não foi efectivamente reembolsado, não tem outra escolha que não seja a de deduzir a sua pretensão na acção que o lesado tem pendente, se essa for a situação, ou cingir-se a aguardar que este receba a eventual indemnização.

No caso vertente, era isso que a apelante devia ter feito.

A recorrente faz radicar o suposto abuso do direito na materialidade alegada em 34, 35 e 36 da p.i, que não teria sido alvo da pertinente impugnação. Nestes itens a apelante invocara uma interpelação da Ré de 9 de Janeiro de 2006 pela Convenção de Regularização de Sinistros e a aceitação da indemnização proposta em carta posteriormente enviada pela apelada, contendo uma minuta de recibo (doc.s de fls. 24, 25 e 26).

Em primeiro lugar, dir-se-á que se não vê a que direito se quer referir a recorrente.

Para que se pudesse falar de abuso do direito – como quer a recorrente – seria mister que a Ré estivesse a exercitar um direito subjectivo em sentido amplo, e que esse exercício tivesse lugar num quadro factual em que se pudesse concluir que ele constituía uma ofensa intolerável à consciência jurídica (art.º 334 do CC).

Ora não pode existir abuso do direito na actuação de uma mera faculdade processual e, designadamente, quando o réu se limita a defender-se de algum facto (ainda que pessoal) atrás de uma cortina de silêncio.

Sucede que a Ré não faz valer qualquer direito na exacta medida em que não é reconvinte.

Além disso, a mera sugestão da emissão de um recibo não equivale – como de certa maneira apelante agora parece querer sugerir – a uma confissão de dívida[4], visto que, entre outras possibilidades, não é de excluir a sua inserção num contexto de uma negociação cujos contornos se desconhecem e, nomeadamente, a sua submissão a condições que não se sabe quais são. Pelo que, olhada em si mesma, não lhe pode ser conferido o valor de uma declaração negocial. E sobretudo – como acima se deixou vincado – impunha-se à A. que, mesmo que convicta que iria ser reembolsada pela Ré, não deixasse de acautelar a tutela dos seus direitos, deduzindo o pedido de pagamento (das quantias por si satisfeitas) na acção que a vítima propusera contra a seguradora - agora também Ré - em 8 de Junho de 2005.

E faz todo o sentido que o legislador tenha vinculado a entidade credora da indemnização pelo acidente laboral a intervir na acção pendente (instaurada dentro do ano seguinte ao acidente), porquanto é essa a sede adequada à definição da responsabilidade pela eclosão do acidente, quer ao nível da culpa, quer ao nível da amplitude dos danos que dele derivaram para a vítima. Achando-se os termos da responsabilidade pelo acidente a ser objecto de discussão entre os lesados e os responsáveis pela sua produção, é nesse processo que devem confluir todas as pretensões indemnizatórias. Seria, p. ex., incompreensível que, estando pendente a acção intentada pelo sinistrado, numa outra acção (a propor pela A.), o responsável pelo acidente de viação visse a sua culpa decidida em termos diferentes daqueles que ficaram delineados perante o lesado[5].

Não tendo intervindo na mencionada acção (que é a mencionada no facto provado em M), restava à apelante aguardar o seu desfecho e, no caso da sinistrada vir a ser contemplada com o recebimento da indemnização, actuar subsequentemente contra esta, ao abrigo e de harmonia com os nºs 2 e 3 do mencionado art.º 31 da LAT.

Pelo que a decisão recorrida não merece censura.            

Donde que o recurso esteja integralmente votado ao insucesso.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a sentença.

Custas pela apelante.


[1] Cfr., entre outros, os Ac.s do STJ de 24/01/2002 e 22/09/2004, in CJ, Ac.s do STJ, X, I, 54, e XII, III, 251, respectivamente.
[2] Que se identifica como o direito ao reembolso por algo que constituiu, de certo modo, um adiantamento, mesmo que parcial, da prestação devida pelo responsável do acidente.
[3] Como requisito ou elemento negativo constitutivo do direito (art.º 342, nº 1 do CC).
[4] Enquadrável eventualmente no art.º 458 do C. Civil.
[5] É certo que se o sinistrado propuser a acção após o aludido prazo de um ano, a questão da possível contradição de julgados não deixa de se colocar, mas nada impede de ela poder ser obviada, conforme as circunstâncias, com a apensação de acções.