Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
922/06.5TTLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE LOUREIRO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
FORA DO LOCAL DE TRABALHO
ELEMENTOS CONSTITUTIVOS
Data do Acordão: 11/28/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE LEIRIA – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 6º, NºS 1, 2 E 3 DA LEI Nº 100/97, DE 13/09 (LAT) E DEC. LEI Nº 143/99, DE 30/04 (RLAT/99).
Sumário: I – Os três elementos a considerar para que o acidente seja qualificável como de trabalho, ao abrigo do artº 6º, nº 2, al. f) da LAT – acidentes ocorridos fora do local e do tempo de trabalho – são: - execução de serviços fora do local e/ou tempo de trabalho; - missão ou função profissional, que pode ter carácter duradouro ou meramente ocasional ou esporádico; - posição subordinada do trabalhador durante o cumprimento da missão.

II – Independentemente de ocorrer ou não no tempo e no local de trabalho, o que relevará fundamentalmente para que um acidente possa ser considerado como de trabalho é que o trabalhador se encontre, no momento da sua verificação, sob a autoridade da entidade empregadora, se encontre a executar um serviço ou tarefa por ela determinado.

III – Dentro de determinados condicionalismos legais, a entidade empregadora pode, no exercício do chamado jus variandi, impor ao trabalhador, transitoriamente, o desempenho de funções diversas daquelas para as quais o trabalhador foi contratado – artº 314º do CT/2003.

IV – Enquanto trabalhador identificado nas folhas de férias remetidas pelo empregador à seguradora, um dado trabalhador, nessas circunstâncias, está abrangido pelo âmbito de protecção emergente desse contrato de seguro, mesmo que exista discrepância relevante entre o declarado pelo empregador quanto às actividades que se pretendem ver abrangidas por esse seguro e aquelas que realmente são exercidas pelos trabalhadores desse empregador.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - Relatório

O autor instaurou contra as rés a presente acção emergente de acidente de trabalho, pedindo que as rés sejam condenadas a pagar-lhe, na medida das suas responsabilidades, a pensão anual e vitalícia no montante de € 5.153,68, com início a 14/3/2006, a quantia de € 164,11, a título de indemnização diferencial pelas incapacidades temporárias sofridas, a quantia de € 50 a título de despesas efectuadas com deslocações obrigatórias ao Tribunal e ao Gabinete Médico-Legal, e os juros de mora calculados à taxa legal.
Alegou, para tanto e em resumo, que foi vítima de um acidente de trabalho quando trabalhava para a segunda ré, tendo ficado afectado de incapacidades temporárias e permanente para o trabalho, pelo que tem direito ao pagamento das quantias peticionadas, sendo das rés a responsabilidade do seu pagamento.
A ré seguradora contestou a acção, sustentando, em resumo, que o acidente relatado na petição não é de trabalho, que tal acidente estava excluído do âmbito de garantia proporcionado pelo seguro de acidentes de trabalho celebrado entre as rés, que não concorda com o grau de incapacidade atribuída ao autor pelo GML e que a sua responsabilidade está limitada ao salário do autor efectivamente transferido.
A R. C..., Lda, não apresentou qualquer contestação.
Saneado e condensado o processo, procedeu-se a julgamento, com observância dos legais formalismos, após o que foi proferida sentença de cujo dispositivo consta, designadamente, o seguinte:
Pelos fundamentos expostos, julgo parcialmente procedente a presente acção para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho e, em consequência:
a) Declaro que o A. A... se encontra, em virtude do acidente de trabalho objeto deste processo, afetado de uma Incapacidade Permanente Parcial de 29,15 %, desde 14/3/2006;
b) Condeno a R. “ C..., Lda.” a pagar ao A. A... a indemnização ainda em dívida relativa aos períodos de Incapacidade Temporária Absoluta e Parcial, no valor total de € 2.393,85 (dois mil trezentos e noventa e três euros e oitenta e cinco cêntimos);
c) Condeno a R. “ B..., S.A.” a pagar ao A. A... o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 2.083,35 (dois mil oitenta e três euros e trinta e cinco cêntimos), devida desde 14/3/2006;
d) Condeno a R. “ C..., Lda.” a pagar ao A. A... o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 2.611,33 (dois mil seiscentos e onze euros e trinta e três cêntimos), devida desde 14/3/2006;
e) Condeno as RR. “ B..., S.A.” e “ C..., Lda.” a pagarem ao A. A..., a título de despesas com deslocações obrigatórias, as quantias de, respetivamente, € 22,19 (vinte e dois euros e dezanove cêntimos) e € 27,81 (vinte e sete euros e oitenta e um cêntimos);
f) Condeno as RR. “ B.., S.A.” e “ C..., Lda.” a pagarem ao A. A... juros de mora sobre as prestações pecuniárias supra atribuídas e em atraso, vencidos e vincendos à taxa legal, até integral pagamento;
g) Absolvo as RR. “ B..., S.A.” e “ C..., Lda.” do demais peticionado pelo A. A....”.
Do assim decidido recorreu a ré seguradora.
Apresentou as conclusões a seguir transcritas:
[…]
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do mérito, cumpre decidir.
*
II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões a decidir:
1ª) se o acidente descrito nos factos provados pode ser qualificado como de trabalho;
2ª) em caso de resposta afirmativa à primeira questão, se a ré seguradora é responsável pelas prestações infortunísticas devidas ao autor por causa desse acidente.
*
III – Fundamentação

A) De facto


Os factos provados

Os factos dados como provados são os que a seguir se deixam transcritos:

[…]

*
B) De direito

Primeira questão: se o acidente descrito nos factos provados pode ser qualificado como de trabalho.

Em primeiro lugar, cabe decidir se o acidente a que os autos se reportam pode ser qualificado como de trabalho, e só no caso de resposta afirmativa a essa questão importará decidir a outra, dela totalmente independente, de saber se tal acidente está abrangido pelo âmbito de cobertura do contrato de seguro de acidentes de trabalho em que as rés outorgaram.
O acidente a que os autos se reportam ocorreu em 2005, estando por isso sujeito à disciplina legal da Lei 100/97, de 13/9 (LAT/97), e do DL 143/99, de 30/4 (RLAT/99).
Nos termos do art. 6º/1 da LAT/97, é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
O nº 2 desse mesmo normativo estendia o conceito de acidente de trabalho a outras situações, entre as quais figuram os acidentes ocorridos fora do local e do tempo de trabalho, quando verificados na execução de serviços determinados pela entidade empregadora ou por esta consentidos (alínea f).
Nos termos artigo 6º/3 da LAT/97, considera-se local de trabalho todo aquele em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador.
Importa reter, para os efeitos em análise, a lição de
Carlos Alegre, in Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 45-47, segundo a qual são três os elementos a considerar para que o acidente seja qualificável como de trabalho ao abrigo da mencionada alínea f): a) execução de serviços fora do local e/ou tempo de trabalho; b) missão ou função profissional, que pode ter carácter duradouro ou meramente ocasional ou esporádico; c) posição subordinada do trabalhador durante o cumprimento da missão.

E quanto à função profissional afirma:
Em regra, o cumprimento da missão impõe ao trabalhador não só a deslocação a determinados locais, como a sua permanência, mais curta ou mais longa, nesses locais, muitas vezes sem que o objecto específico da missão esteja a ser directamente trabalhado. Por outras palavras, o trabalhador que se desloca, fora do tempo e do local de trabalho, está sujeito a acidentes ocasionados directamente pelo cumprimento da sua missão profissional, como a acidentes ocasionados por actos da vida corrente, cujos riscos normalmente não correria.
É na diferenciação entre actos da vida corrente, impostos pelas necessidades pessoais quotidianas (higiene, repouso, refeições, lazer, etc.) e os actos decorrentes da execução da missão ou função profissional que, com frequência, se colocam as dificuldades práticas.

O critério de distinção só pode ser exactamente este: os actos da vida profissional distinguem-se dos actos da vida corrente, desde que decorram directamente da execução da missão. Por isso mesmo, afigura-se-nos pouco rigoroso e susceptível de, em geral, inultrapassáveis confusões falar-se de nexo de causalidade entre o acidente e o trabalho do sinistrado, devendo, antes, averiguar-se da existência ou não do vínculo de autoridade da entidade patronal, a qual, obviamente, só se exerce sobre os actos da vida profissional e não sobre os da vida corrente.”.
Resulta de quanto acaba de referir-se que a qualificação de um dado acidente como sendo de trabalho exige, em situações como aquelas de que ora cuidamos, que o trabalhador/sinistrado se encontre em função profissional, o mesmo é dizer em actos decorrentes da sua actividade profissional, e não em meros actos (particulares) de lazer, repouso, etc.
Para lá do que acaba de referir-se, importa ainda ter em conta que subjacente ao regime dos acidentes de trabalho está hoje a denominada teoria do risco económico ou do risco de autoridade (Carlos Alegre, Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 12, 13, 41 e 42) que sustenta como elemento preponderante na qualificação de um acidente como de trabalho o da sujeição do trabalhador, no momento do acidente, à autoridade do empregador.
Assim, independentemente de ocorrer ou não no tempo e no local de trabalho, o que relevará fundamentalmente para que um acidente possa ser considerado como de trabalho é que o trabalhador se encontre, no momento da sua verificação, sob a autoridade da entidade empregadora, se encontre a executar um serviço ou tarefa por ela determinado.
No caso em apreço, temos que no momento do acidente o sinistrado estava a pintar um portão exterior aos escritórios da sua entidade empregadora, fora do seu horário de trabalho, mas cumprindo ordens e sujeito à direcção dessa empregadora – ponto 2º dos factos provados.
Como assim, temos que no momento do acidente a que os autos se reportam, o sinistrado estava no desempenho da concreta missão de que foi incumbido pela sua entidade empregadora, logo praticando actos da sua da vida profissional, que não actos da sua vida corrente, fora do seu horário de trabalho, e de forma subordinada em relação à entidade empregadora.
Por isso, o acidente deve ser qualificado como de trabalho.
*
Segunda questão: se a ré seguradora é responsável pelas prestações infortunísticas devidas ao autor por causa desse acidente.

A entidade empregadora do sinistrado tinha transferido para a ré seguradora a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 10/078842, na modalidade de folhas de férias, constando dessa apólice que “trabalhos seguros” são “empregados escritório c/ou s/serviços externos” – pontos 8º e 9º dos factos provados.
O sinistrado tinha a categoria profissional de director comercial (ponto 1º dos factos provados); no momento do acidente encontrava-se em cima de um escadote a pintar um portão no exterior dos escritórios da sua entidade empregadora (ponto 2º dos factos provados).
Ora, tendo em conta que os trabalhadores seguros declarados na apólice eram empregados de escritório, que a pintura de portões não pode ser considerada como uma actividade típica dos empregados de escritório, nem como uma actividade complementar ou acessória daquelas que tipicamente são desempenhadas por empregados de escritório, considera a recorrente que a actividade no desempenho da qual o sinistrado se acidentou não estava abrangida pelo âmbito de cobertura proporcionado pelo contrato de seguro em que outorgaram as rés, razão pela qual se deveria considerar que a recorrente não era responsável pelas prestações devidas por causa do acidente a que os autos se reportam.
Não acompanhamos a recorrente.
Comece por referir-se as rés outorgaram num contrato de seguro de acidentes de trabalho na modalidade de folhas de férias – cfr. art. 4º/2 da Norma n.º 12/99-R, de 8 de Novembro (publicada no DR, II Série, de 30/11/99, e alterada pelas normas nºs 11/2000-R, de 13 de Novembro, 16/2000-R e 13-2005-R, publicadas, respectivamente, nos DR, II Série, de 29/11/00, de 16/1/2001 e de 7/12/05), que aprovou a “Apólice Uniforme para Trabalhadores por conta de Outrem”.
Assim, o seguro cobre um número variável de pessoas seguras, com retribuições seguras também variáveis, umas e outras mensalmente comunicadas pela empregadora à seguradora mediante remessa das denominadas folhas de férias.
Por outro lado, nos termos do art. 2º/1 da dita Apólice Uniforme “A seguradora, de acordo com a legislação aplicável e nos termos desta apólice, garante a responsabilidade do tomador de seguro pelos encargos obrigatórios de acidentes de trabalho em relação às pessoas seguras identificadas na apólice, ao serviço da unidade produtiva também identificada nas condições particulares, independentemente da área em que exerçam a sua actividade”.
Assim sendo, o objecto do contrato e o correspondente âmbito de cobertura deverão ser determinados pela natureza da actividade económica a que o tomador do seguro se dedica e pretendeu ver coberta, sendo em função dela que são estipulados o prémio e as restantes condições contratuais (acórdão do STJ de 13/3/02, CJ do STJ, tomo  I, p. 274).
Ora, vistos os factos provados e analisada a apólice de seguro neles identificada (fls. 155 e 156), logo se verifica que nada deles resulta quanto ao tipo de actividade a que se dedicava a empregadora do sinistrado, nem quanto ao seu objecto social.
Esse tipo de actividade ou esse objecto social também não podem inferir-se, sem mais, da denominação da empregadora, pois não raras vezes existem discrepâncias a esse nível.
Aliás, mesmo que estivesse determinado o objecto social da ré empregadora e que dele não fizesse parte, a título principal, complementar ou acessório, a concreta actividade que era desempenhada pelo sinistrado no momento do acidente aqui em causa, é preciso ter em devida conta que dentro de determinados condicionamentos legais, a entidade empregadora pode, no exercício do jus variandi, impor ao trabalhador, transitoriamente, o desempenho de funções diversas daquelas para as quais o trabalhador foi contratado, não estando excluído, face aos factos provados, que tal tenha ocorrido na situação que está em apreço – cfr. art. 314º do CT/03 em vigor à data do acidente.
Como assim, por esta via não logra acolhimento a pretensão da ré seguradora no sentido de uma delimitação do objecto do contrato de seguro em termos de excluir do seu âmbito de cobertura a concreta actividade que era desempenhada pelo sinistrado no momento do acidente (pintura de um portão).
Importa referir, também, que não logra acolhimento o argumento da recorrente no sentido de que a actividade de pintura de portões não fazia parte do conteúdo funcional do sinistrado e dos “empregados de escritório” referidos na apólice de seguro.
Com efeito, dos factos provados não resultam: a) as concretas funções que foram acordadas entre a empregadora, o trabalhador sinistrado e os demais empregados de escritório da empregadora; b) as concretas funções regularmente desempenhadas pelo sinistrado e pelos demais trabalhadores da tomadora do seguro.
Para lá disso, deles também não resulta que nessas funções não estava incluída ou delas estava expressamente excluída a pintura de portões.
Dos factos provados resulta apenas que o sinistrado tinha a categoria de director comercial, sem concretização factual do correspondente conteúdo funcional, sendo frequente registarem-se situações de desconformidade entre aquela categoria e este conteúdo funcional.
Do exposto resulta que seja por via do objecto social da tomadora do seguro, seja por via do conteúdo funcional cometido aos trabalhadores abrangidos pelo contrato de seguro, os factos provados não permitem uma delimitação do âmbito de protecção conferida por esse contrato em termos de excluir do mesmo a concreta actividade que o trabalhador desempenhava no momento do sinistro.
Aliás, o concreto risco de cuja concretização no acidente em apreço a recorrente pretende desonerar-se, considerando-o excluído do âmbito de cobertura do contrato de seguro de acidentes de trabalho em que outorgou, reporta-se ao risco de queda em altura por ocasião da subida, permanência e descida do trabalhador num escadote, que não a qualquer concreto risco associado à actividade de pintura de um portão propriamente dita.
Por outro lado, tanto quanto resulta da posição sustentada pela recorrente, a mesma consideraria que o acidente a que os autos se reportam e as suas consequências estariam abrangidos pela garantia prestada pelo contrato aqui em causa se pudesse concluir-se, face aos factos provados, no sentido de que tal acidente representou a concretização de um determinado risco inerente ao exercício das funções de empregado de escritório.
Ora, não resultando dos factos provados quais as concretas funções a executar pelo sinistrado e pelos demais trabalhadores da empregadora na execução dos “trabalhos seguros” de “empregados escritório c/ou s/serviços externos” a que se alude nos pontos 8º) e 9º) dos factos provados, é perfeitamente admissível que no desempenho daqueles trabalhos de empregado de escritório o sinistrado tivesse que subir, permanecer e descer em escadotes, correndo os inerentes riscos de queda em altura, por exemplo, em realização de operações de arquivo, de substituição de consumíveis localizados em pontos mais altos do espaço em que funcionassem os escritórios (v.g. lâmpadas eléctricas), ou de depósito de materiais de escritório em estantes para acesso às quais fosse necessário recorrer a escadotes.
Nesse enquadramento, aquela actividade de subida, permanência e descida de escadotes poderia fazer parte integrante do conteúdo funcional típico de um empregado de escritório ou, pelo menos, ser dele complementar.
Assim sendo, afigura-se-nos que o contrato de seguro em análise não pode ser interpretado, como a recorrente o faz, em moldes de serem excluídos do seu âmbito de cobertura os riscos de queda em altura por ocasião da subida, permanência ou descida de escadotes.
Com efeito, como se escreveu no acórdão deste Tribunal da Relação proferido no âmbito do processo nº 97/07.2TTCBR.C1, de que foi relator o aqui segundo adjunto, “Nos negócios jurídicos em geral – como também, por norma, nas cláusulas de um contrato de seguro – a regra interpretativa é a de que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante – art. 236.º do Código Civil. Só assim não acontecerá quando seja irrazoável imputar ao declarante o sentido declarativo assim apurado, ou quando o declaratário conhecer a vontade real do declarante. Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações (art. 237.º do mesmo Código).
Mas nos negócios formais – como é o caso do contrato de seguro – o sentido hipotético da declaração, tem de ter um mínimo de correspondência no texto que a corporiza (art. 238.º n.º 1 do CC).
Todavia, nos contratos de adesão como também é o caso, de acordo com o disposto nos arts. 10.º e 11.º do D.L. n.º 446/85, de 25/10, as cláusulas ambíguas têm o sentido que lhes conferiria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição do aderente real e, em caso de dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.”.
Assim sendo, consideramos que um declaratário normal e um contratante indeterminado normal que subscrevesse o contrato de seguro a que os autos se reportam consideraria que a actividade de subida, permanência e descida em escadotes e os inerentes riscos de queda em altura estariam abrangidos, pelo menos enquanto actividade acessória, pela cláusula “empregados escritório c/ou s/serviços externos” que consta daquele contrato para efeitos de identificação dos “trabalhos seguros”.
De resto, é esse o sentido mais favorável à empregadora/aderente, assim como é o mais consentâneo com os ditames da boa-fé a que deve sujeitar-se a interpretação do contrato.
Flui de quanto vem de referir-se que a queda do autor de um escadote referida nos factos provados e as consequências daí emergentes representam a concretização de um risco de queda em altura que igualmente poderia materializar-se em execução de operações típicas ou complementares da actividade de um empregado de escritório, sem que dos factos provados resulte que a actividade de pintura de um portão desempenhada pelo sinistrado na ocasião da queda  implicava um risco de queda em altura mais grave do que aquele que correria um empregado de escritório numa dada actividade que tivesse que desenvolver no âmbito do seu conteúdo funcional e que implicasse subir, permanecer e descer de um escadote.
Como assim, deve considerar-se abrangido pela garantia proporcionada pelo contrato aqui em apreço o risco de queda em altura que acabou por concretizar-se no acidente que deu origem a estes autos.
Para lá de quanto vem de referir-se, atente-se, também, que não encontra suporte nos factos provados a diferença de prémio a que alude a recorrente entre aquele que efectivamente cobrava à tomadora do seguro e aquele que cobraria se lhe tivesse sido comunicada a actividade desempenhada pelo sinistrado no momento em que ocorreu o acidente.
Por essa via também não logra alcançar-se qualquer restrição ao âmbito de protecção conferido pelo contrato de seguro aqui em causa em termos de excluir da mesma a actividade de pintura de um portão desempenhada pelo sinistrado por ocasião do acidente.
Neste enquadramento, há que aplicar o regime regra decorrente do art. 2º/1 da dita Apólice Uniforme, de onde se extraia que a ré seguradora garantia a responsabilidade da ré empregadora pelos encargos obrigatórios de acidentes de trabalho em relação às pessoas seguras identificadas na apólice e que se mostrassem ao serviço da unidade produtiva da ré empregadora, neles se incluindo o aqui autor e sem restrição do âmbito de protecção conferida pelo contrato que dela excluísse a actividade de pintura de portões.
Cumpre referir, ainda, que a desconformidade entre o declarado pela tomadora do seguro a respeito da actividade desenvolvida pelos seus trabalhadores a segurar e aquela que verdadeiramente era desempenhada pelos mesmos, a existir realmente, deveria ser enquadrada nos termos previstos no art. 429º do Código Comercial vigente à data da celebração do contrato de seguro em causa nestes autos, onde, segundo a melhor doutrina e jurisprudência, está prevista uma situação de mera anulabilidade do contrato de seguro para aqueles casos em que no momento da celebração do contrato de seguro o tomador do seguro presta à seguradora declarações falsas, inexactas ou reticentes que tenha tido influência na decisão da seguradora aceitar a contratação, pois sem elas não teria contratado ou tê-lo-ia feito em condições diversas das acordadas – v.g. acórdãos do STJ 2/12/09, proferido no âmbito do processo 08A3737, de 15/6/99 (BMJ 488, p. 381), de 3/3/98 (CJ do STJ tomo I. pp. 98), de 10/5/01 (CJ do STJ, tomo II, p. 60), de 4/3/04 (CJ do STJ, tomo I, p. 102), da Relação do Porto de 23/2/12, proferido no âmbito do processo 6833/09.5TBVNG.P1, da Relação de Lisboa de 21/6/11, proferido no âmbito do processo 2044/07.2TBAMD.L1-1, da Relação de Coimbra de 5/12/12, proferido no âmbito do processo 397/2002.C2, da Relação de Guimarães de 20/11/12, proferido no âmbito do processo 3677/11.8TBVCT.G1, da Relação de Évora, proferido no âmbito do processo 1462/06-3, José Vasques, Contrato de Seguro, 1999, pp. 379 e 384, Moitinho de Almeida, O contrato de Seguro, p. 61, nota 29.
Ora, estando em causa um vício de mera anulabilidade e não tendo sido judicialmente peticionada a sua declaração, tudo se passa como se tal vício se não se registasse, pois que o tribunal não pode dela conhecer oficiosamente.
Consequentemente, enquanto trabalhador identificado nas folhas de férias remetidas pela empregadora à seguradora, o autor estava abrangido pelo âmbito de protecção emergente do contrato de seguro celebrado entre a recorrente e a empregadora do sinistrado, mesmo que existisse discrepância relevante entre o declarado pela empregadora quanto às actividades que pretendiam ver-se abrangidas pelo seguro e aquelas que realmente eram exercidas pelos trabalhadores da empregadora.
Finalmente, é preciso ter em devida conta que o contrato de seguro de acidentes de trabalho é obrigatório e reveste a natureza de contrato a favor de terceiro.
Como tal, o contrato de seguro está sujeito à disciplina do art. 449º do CC, nos termos do qual “São oponíves a terceiro, por parte do promitente, todos os meios de defesa derivados do contrato, mas não aqueles que advenham de uma relação entre promitente e promissário.” - neste sentido, acórdãos do STJ de 30/3/89 (BMJ 385, p. 563), da Relação de Coimbra de 12/2/98 (CJ, tomo I, p. 64), da Relação de Évora, de 9/4/03 (CJ, tomo II, p. 264), e José Vasques, ob. cit., pp. 120 a 123.
Dada a sua fisionomia de contrato a favor de terceiro, ao celebrar o contrato de seguro de responsabilidade civil o segurador obriga-se, também, para com o lesado a satisfazer a indemnização devida ao segurado, ficando aquele com o direito de demandar directamente a seguradora.
As excepções que o segurador tenha contra o segurado são do domínio exclusivo da relação entre eles, só sendo relevantes nas relações imediatas ou internas entre ambos.
Na situação em análise, se porventura se verificassem excepções determinativas da anulabilidade do contrato de seguro ou da exclusão do âmbito de protecção do mesmo da actividade desempenhada pelo sinistrado no momento do acidente, elas não podiam ser opostas ao sinistrado enquanto terceiro lesado pelo acidente – neste sentido, acórdãos do STJ de 8/6/06, proferido no âmbito do processo 06A1435, bem como demais decisões do mesmo STJ identificadas nesse acórdão, desta Relação de 23/11/2004, proferido no âmbito da apelação 2568/04, e de 26/5/2011, proferido no âmbito da apelação 128/09.1, este último subscrito como 1º adjunto pelo aqui 2º adjunto, da Relação de Évora de 26/11/09, proferido no âmbito do processo 572/03.8PAVRS.
Consequentemente, a ré seguradora é responsável pelas prestações infortunísticas devidas ao sinistrado em consequência do acidente a que os autos se reportam.
*
IV) Decisão

Termos em que deliberam os juízes desta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Coimbra, 28/11/2013

 (Jorge Manuel Loureiro - Relator)

 (Ramalho Pinto)

 (Azevedo Mendes)