Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
404/09.3TARGR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: ESCUSA
APRESENTAÇÃO QUEIXA CRIME
Data do Acordão: 01/19/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DEFERIDA
Legislação Nacional: ARTIGO 43º CPP
Sumário: É fundamentado o pedido de escusa sustentado no facto de ter apresentado queixa contra o arguido que devia julgar no processo
Decisão Texto Integral: Relatório
No 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Coimbra corre termos o processo comum singular 404/09.3TARGD em que o arguido J... se encontra acusado da prática de um crime de injúrias agravado p. e p. pelos artigos 181º, 182º e 184º do Código Penal, encontrando-se os autos em fase de julgamento.

A Mmª Juiz desse Juízo, Drª S..., vem suscitar o presente incidente de escusa nos termos do artigo 43º, nºs 1, 2 e 3 do Código de Processo Penal, invocando para tanto que apresentou queixa crime contra o mencionado arguido o que pode fazer questionar o cidadão médio sobre a sua imparcialidade, sendo motivo para incidente de recusa, o que pretende evitar.

Instruídos os autos, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que a pretensão de escusa deve ser deferida.

Os termos em que foi formulado o incidente não exigiram a produção de prova, para além da documental.
Colhidos os vistos legais e realizada conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Fundamentos de Facto do Pedido
Para além da qualidade da requerente enquanto Juíza de direito a exercer funções no referido Juízo Criminal que não oferece contestação, encontra-se comprovado documentalmente que no processo acima identificado o arguido apresentou requerimento em que a propósito de despacho que fixou efeito devolutivo a recurso, referindo-se à requerente, utiliza expressões como as seguintes: "parece querer seguir as pisadas de outros magistrados e magistradas que tanto prejudicaram o arguido", "quem foi capaz de verter tantos e tais desatinos", ""se não foi por inépcia, então moveu-se por malícia, o que sendo moralmente pior …", "a decisão … castiga duramente o arguido … barbaramente quase se poderá dizer", "aos comportamentos que levam a este desfecho (refere-se anteriormente à morte), o arguido recusa-se a chamar-lhe de jurisprudência, pelo muito respeito que lhe merece o poder judicial, o que é diferente de alguns que o exercem e de que V. Exª, tristemente, se está a revelar como exemplo".
A Mmª Juiz requerente ordenou a extracção de certidão do mencionado requerimento e a sua remessa ao Ministério Público para efeitos de procedimento criminal contra o arguido.
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Fundamentos de Direito do Pedido
Como preceitua o artigo 43º, nº 1 do Código de Processo Penal “A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
O incidente de recusa apresenta-se, assim, como um expediente que visa impedir a intervenção de um juiz em determinado processo quando existam razões sérias e graves susceptíveis de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, sendo que esta, a imparcialidade, é uma exigência específica de uma decisão justa, despida de quaisquer preconceitos ou pré-juízos em relação à matéria a decidir ou em relação às pessoas afectadas pela decisão.
Se é verdade que o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, tendo legitimidade para requerer a recusa as partes processuais (artigo 40º, nº 3 do Código de Processo Penal) confere-lhe a lei a faculdade de pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verifiquem as condições do artigo 40º, nº 1, transcrito (artigo 40º, nº 4 do Código de Processo Penal)
A lei não define o que deve entender-se por motivo sério e grave, mas deixa claro que ele terá que ser adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, ou seja, a seriedade e a gravidade das razões invocadas para fundamentar a desconfiança sobre a imparcialidade do juiz terão que ser apreciadas e valoradas à luz do senso e da experiência comuns.
Os factos que fundam a escusa têm de ser de tal modo sérios e graves que, de um ponto de vista objectivo, a generalidade da opinião pública possa sentir fundadamente, perante o conhecimento deles, que o juiz em causa de algum modo possa antecipar o desfecho da decisão, tome partido em favor/desfavor de uma das partes, independentemente de o juiz em causa poder ou não sentir-se afectado na sua imparcialidade perante os mesmos.
Na realidade, a imparcialidade, a garantia de que exista, é em primeiro lugar uma decorrência do princípio da independência dos tribunais que necessariamente implica um estatuto de independência dos juízes (cf. artigo 203º da CRP). Este tem uma expressão externa destinada a assegurar os fundamentos de uma actuação livre, incondicionada no acto de julgar perante pressões que se lhe dirijam do exterior e uma dimensão interna destinada a impedir a dúvida sobre a imparcialidade do juiz em virtude de especiais ligações a um caso concreto que deva julgar.
Pretende a Constituição que, especificamente no processo penal, os arguidos, que hajam de ser submetidos a julgamento, acusados da prática de uma infracção criminal, (e em geral as partes) tenham um julgamento independente e imparcial, que é, justamente, o que também se lhes garante no artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada pela Lei nº 65/78 de 13 de Outubro, quando aí se dispõe:
«Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial [...]».
Num Estado de direito, a solução jurídica dos conflitos deve, com efeito, fazer-se sempre com observância de regras de independência e de imparcialidade, pois tal é uma exigência do direito de acesso aos tribunais, que a Constituição consagra no artigo 20º, nº 1 (cf. os Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 86/88 e nº 186/98 in www.tribunalcontitucional.pt).
A garantia de um julgamento independente e imparcial é, de resto, também uma dimensão importante do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição, para o processo criminal.
Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de “administrar justiça”. Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de intervir.
Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial. Com efeito, a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais, ao “administrar a justiça”, actuem, de facto, “em nome do povo” (cf. artigo 205º, nº 1 da CRP).
Com resulta do exposto não só importa assegurar a imparcialidade do juiz como assegurar que a sua actividade possa transparecer como imparcial para a generalidade das pessoas, devendo, neste caso, o ser e parecer “andar de mãos dadas”.
Dai que, como já se afirmou, a seriedade e a gravidade das razões invocadas para fundamentar a escusa devam ser apreciadas e valoradas à luz do senso e da experiência comuns, posto que desse modo se objectivará o seu peso para que a actuação do juiz possa ser e sobretudo parecer imparcial.
No caso concreto a Mmª Juiz fundamenta o seu pedido de escusa no facto de ter apresentado queixa contra o arguido que devia julgar no processo acima referenciado.
Verifica-se que os factos que determinaram a participação criminal contra o arguido foram praticados no próprio processo, em requerimento a ele dirigido, subscrito pelo arguido e em que põe seriamente em causa a honorabilidade da Mmª Juiz requerente enquanto profissional, sendo aquela participação manifestamente justificada.
Embora, como se disse, o Código de Processo Penal não defina o que seja motivo grave e sério adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade, confrontando as disposições relativas a impedimentos e motivos de recusa quer no Código de Processo Penal (artigos 39º e segs) quer no Código de Processo Civil (artigos 122º e segs.) verificamos que motivos ligados ao relacionamento do juiz com os sujeitos processuais, com o próprio processo ou com outros magistrados ou advogados, mas neste caso com base em relações pessoais e não meramente profissionais, poderão integrar o conceito.
A Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (citada por Paulo Pinto de Albuquerque em Comentário do Código de Processo Penal, 2ª edição actualizada, em anotação ao artigo 43º) a propósito da apreciação da imparcialidade e da compreensão das situações em que possa estar em causa, apela ao que denomina de testes subjectivo e objectivo. O teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. Apenas factos objectivos evidentes devem afastar a presunção de imparcialidade. O teste objectivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade.
Ora o motivo invocado reconduz-se a ofensa contra a honra que o arguido dirigiu à requerente e que está sentiu como tal, usando do seu direito de queixa. Cremos, pois, ser manifesto, que estamos perante motivo grave e sério que pode colocar em causa a imparcialidade do Juiz, não só perante a comunidade que assiste à administração da justiça, como também, humano será que assim aconteça e os juízes não se devem despir dessa qualidade, do ponto de vista subjectivo da requerente que, sentindo-se ofendida com as imputações que lhe foram dirigidas, não estará certamente em condições de distanciamento que garantam a objectividade e isenção necessárias, ainda que sendo essa a sua intenção.
Merece, pois, provimento, o pedido de escusa.
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Decisão
Pelo exposto, decide-se deferir o requerido pedido de escusa formulado pela Exmª Srª Juiz de Direito titular do processo acima referido em prosseguir nos mesmos autos, devendo estes ser remetidos ao Juiz de Direito que, de harmonia com as leis de organização judiciária, deva substitui-la, em conformidade com o disposto no artigo 46º do Código de Processo Penal.
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Maria Pilar Pereira de Oliveira (Relatora)
José Eduardo Fernandes Martins