Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1715/14.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: CONTRATO DE ALUGUER DE VEÍCULO SEM CONDUTOR
Data do Acordão: 12/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – INST. LOCAL – SEC. CÍVEL – J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: DEC. LEI Nº 354/86, DE 23/10, E DEC. LEI Nº 151/2012, DE 6/08; ARTºS 799º, 1038º, AL. I), E 1045º DO C.CIVIL.
Sumário: I – O contrato de aluguer de veículo sem condutor esteve e está regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 354/86, de 23 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 373/90, de 27 de Novembro, e pelo Decreto-Lei n.º 44/92, de 31 de Março, tendo sido revogado pelo Decreto-Lei n.º 151/2012, de 6 de Agosto, após ter sofrido as alterações do Decreto-Lei n.º 77/2009, de 1 de Abril.

II - Não contemplando este contrato a possibilidade de compra do veículo no termo do aluguer, não estamos perante um contrato de locação financeira, nem perante um contrato de ALD, estando o mesmo sujeito à aplicação subsidiária das regras gerais do contrato de locação constantes do Código Civil em tudo o que não tenha previsão específica nos mencionados diplomas.

III - Assim, é obrigação do locatário restituir a coisa locada findo o contrato – art.º 1038º, i), do C. Civil.

IV - Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, passando essa indemnização para o dobro em caso de mora imputável ao locatário, conforme determina o disposto no art.º 1045º do C. Civil.

V - O locatário só não ficará obrigado ao pagamento de qualquer indemnização caso se prove que não pode efetuar a entrega, com segurança, por motivo relativo à pessoa do credor.

VI - A culpa pela mora no cumprimento da obrigação de entrega presume-se da Ré – art.º 799º, n.º 1, do C. Civil -, competindo a esta e não à locadora demonstrar que só não procedeu à entrega devida por razões imputáveis à contraparte.

Decisão Texto Integral:





Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A Autora intentou a presente acção declarativa de condenação, pedindo a   condenação da Ré a pagar-lhe  a quantia global de €18.579,48, correspondente à soma de €108,31, de remanescente de encargos com a recuperação e reboque do veículo, com a quantia de €16.920,46, pela mora na entrega do bem objecto do contrato de aluguer de longa duração e de €1.550,71, a título de juros moratórios sobre aquelas verbas, desde a data em que se venceu a obrigação do respectivo pagamento (11 de Fevereiro de 2010) até 19 de Dezembro de 2014, acrescidas dos juros  vincendos à razão de €1,94, por dia.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese:
- Por contrato celebrado em 7.10.2003 entre a L..., S. A. – que alterou a sua denominação para F..., S. A. – e a Ré, aquela deu-lhe de aluguer o veículo de marca Citröen C5 2.0 HDI Break, com a matrícula ...-VN.
- Esse contrato tinha a duração de 49 meses, prevendo o pagamento de 50 rendas mensais e sucessivas, sendo de €1.909,1 a primeira e as restante de €628,15 cada uma dela, com excepção da segunda que foi de €0,00, rendas acrescidas de IVA à taxa legal devida à data do respectivo vencimento e que poderiam ser alterados no caso de ocorrerem alterações às condições básicas do mercado financeiro, entendendo-se estas como variações na Euribor a 3 meses, superiores a 0,25%.
- O contrato de aluguer atingiu o seu termo em 5 de Dezembro de 2007, não tendo a Ré procedido à entrega do veículo.
- A Autora só recuperou o veículo em 11 de Fevereiro de 2010, tendo estado até essa data provada de o alugar ou de o vender.
- Com a recuperação do veículo a Ré suportou despesas no montante de €495,26.
- Calcula o seu prejuízo diário pela não entrega atempada do veículo em €21,18/dia.

A Ré contestou, alegando que a culpa no atraso da recuperação pela Autora do veículo só à mesma é imputável pois nunca lhe solicitou a entrega da mesma, defendendo a improcedência da acção.
Veio a ser proferida sentença que, julgando a acção improcedente absolveu a Ré do pedido.
Inconformada a Autora interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
...
A Ré não apresentou resposta.
1. Do objecto do recurso
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas cumpre conhecer da seguinte questão:
É imputável à Ré o incumprimento da obrigação de entrega do veículo locado, após o termos do contrato de aluguer?
2. Factos provados
...
3. O direito aplicável
A L..., como locadora, e a Ré, como locatária, celebraram em 7 de Outubro de 2003 um contrato de aluguer de veículo sem condutor.
Quando celebraram este contrato o mesmo encontrava-se regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 354/86, de 23 de Outubro, que já havia sofrido as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 373/90, de 27 de Novembro, e pelo Decreto-Lei n.º 44/92, de 31 de Março, tendo sido revogado pelo Decreto-Lei n.º 151/2012, de 6 de Agosto, após ter sofrido as alterações do Decreto-Lei n.º 77/2009, de 1 de Abril.
Não contemplando este contrato a possibilidade de compra do veículo no termo do aluguer, não estamos perante um contrato de locação financeira, nem perante um contrato de ALD [1], estando o mesmo sujeito à aplicação subsidiária das regras gerais do contrato de locação constantes do Código Civil em tudo o que não tenha previsão específica nos mencionados diplomas.
Assim, é obrigação do locatário restituir a coisa locada findo o contrato – art.º 1038º, i), do C. Civil.
E se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, passando essa indemnização para o dobro em caso de mora imputável ao locatário, conforme determina o disposto no art.º 1045º do C. Civil.
O locatário só não ficará obrigado ao pagamento de qualquer indemnização caso se prove que não pode efetuar a entrega, com segurança, por motivo relativo à pessoa do credor [2].
Tendo o contrato de locação sub iudice terminado, pelo decurso do prazo, em 5 de Dezembro de 2007, deveria a locatária ter entregue o veículo locado nessa data. No entanto a entrega do veículo só veio a ocorrer em 11 de Fevereiro de 2010.
A sentença recorrida considerou que a mora ocorrida não era imputável à Ré, uma vez que a Autora não alegou que tenha comunicado à Ré a fusão de que foi objeto e a consequente incorporação noutra sociedade.
A culpa pela mora no cumprimento da obrigação de entrega presume-se da Ré – art.º 799º, n.º 1, do C. Civil -, competindo a esta e não à locadora demonstrar que só não procedeu à entrega devida por razões imputáveis à contraparte.
Apenas se provou que locadora L..., após a celebração do contrato de aluguer acima referida e antes do seu termo se fundiu com outra sociedade, tendo passado a incorporar a sociedade F..., S.A., actualmente denominada M..., S.A., e que a Ré sempre aguardou que a Autora a informasse de como iria proceder ao levantamento da viatura, atendendo a que, devido à alteração da denominação da locadora após a incorporação, a Ré não sabia a quem entregar a viatura alugada.
Em primeiro lugar há que frisar que competia à Ré entregar à locadora a viatura alugada, não sendo esta última que tinha a obrigação de proceder ao seu “levantamento”.
Em segundo lugar, para que se mostre ilidada a presunção de culpa estabelecida no art.º 799º, n.º 1, do C. Civil deveria a Ré demonstrar que a circunstância da viatura não ter sido entregue atempadamente à Autora resultou de factos imputáveis a esta.
Ora, o simples facto da locadora, devido a uma operação de fusão societária, ter passado a integrar uma sociedade com outra denominação não é suficiente para que se considere ilidida tal presunção. Na verdade, constatando-se que o local de entrega da viatura clausulado no contrato é a sede da Autora, não há razões que justifiquem que a Ré tenha aguardado que a Autora a informasse de como iria proceder ao levantamento da viatura, atendendo a que devido à alteração da denominação da locadora após incorporação, a Ré não sabia a quem entregar a viatura alugada.
Era obrigação da Ré diligenciar pela entrega da viatura no local acordado para a entrega e só no caso de se frustrar essa diligência, por razões imputáveis à locadora, é que era, então, possível considerar-se que passava a recair sobre esta o dever de adotar as condutas necessárias ao cumprimento pela Ré do dever de entrega da viatura locada, passando a mora a ser-lhe imputável.
Não sendo suficiente a simples ocorrência da operação de fusão com a consequente alteração da denominação da locadora para que se considere ilidida a presunção de culpa pelo não cumprimento atempado da obrigação de entrega da viatura, constituiu-se a Ré no dever de indemnizar a Autora.
Apesar do funcionamento da presunção contida no art.º 799º, n.º 1, do C. Civil, determinar o pagamento da indemnização prevista no art.º 1048º, n.º 2, do C. Civil, ou seja o dobro do valor da renda acordada, a Autora apenas peticionou a condenação da Ré o valor simples da renda acordada, pelo que atenta a limitação imposta art.º 609º do C. Civil, deve a Ré ser condenada a pagar o montante peticionado.
Por estas razões deve o recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida e condenando-se a Ré a pagar à Autora a quantia de €18.579,48, acrescida de juros de mora desde a data da citação, até integral pagamento da quantia em dívida, calculados ela, à taxa definida por lei.
Decisão
Pelo exposto julga-se procedente o recurso e, em consequência revoga-se a decisão recorrida, condenando-se a Ré a pagar à Autora a quantia de €18.579,48, acrescida de juros de mora desde a data da citação, até integral pagamento da quantia em dívida, calculados sobre ela, à taxa definida por lei.
Custas da ação e do recurso pela Ré.


***


[1] Note-se que o atual Decreto-Lei n.º 151/2012, de 6 de agosto, que veio substituir o Decreto-Lei n.º 354/86, de 23 de outubro, dispõe expressamente que as regras nele contidas não se aplicam nem aos contratos de locação financeira, nem aos contratos de ALD ou renting (artigo 1º, n.º 2, a) e c)).
 
  Sobre a distinção entre estes tipos contratuais, Gravato Morais, em Manual de locação financeira, pág. 25 e seg, Almedina, 2006, Rui Pinto Duarte, em Escritos sobre leasing e factoring, pág. 168, Principia, 2001, e Paulo Duarte, em Algumas questões sobre ALD, em Estudos de direito do consumidor, vol. 3, pág. 301 e seg.

[2] Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil anotado, vol. II, pág. 382, 4.ª ed., Coimbra Editora.