Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
900/04.9TDLSB-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: CRIME FISCAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
MULTA
COIMA
RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
Data do Acordão: 05/28/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 8.º DO RGIT
Sumário: A responsabilidade subsidiária prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 8.º do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributárias) supõe a existência de um facto ilícito culposo do gerente que seja causa adequada do dano que para a Administração Fiscal constitui a não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa. Ou seja, terá de ser por culpa do gerente que o património da sociedade se tornou insuficiente para o pagamento da multa, responsabilidade essa que não se confunde com a responsabilidade pela prática do crime a que se apelava para a aplicação do regime de solidariedade.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo comum singular 900/04.9TDLSB do Tribunal Judicial de Alcanena os arguidos A... e B..., S.A. foram condenados, por decisão transitada em julgado, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal e de um crime de abuso de confiança à segurança social p. e p. pelos artigos 105º, nº 1 e 107º, nº 1 do RGIT nas penas, respectivamente, de 120 dias de multa à taxa diária de 7 euros e de 200 dias de multa à taxa diária de 7 euros.

Em 5.9.2013 o Ministério Público promoveu que, nos termos do artigo 8º, nº 1, alínea a) e nº 7 do RGIT, o arguido A... fosse declarado subsidiariamente responsável pelo pagamento da pena de multa em que foi condenada a sociedade arguida.

Em 10 de Setembro de 2013 foi proferido o seguinte despacho:

Emita e remeta ao arguido, A..., as guias necessárias para proceder ao pagamento da multa em que foi condenada a sociedade B.... S.A., notificando-o, simultaneamente, para efectuar tal pagamento, já que, em face do preceituado no artigo 8.°. número 1, alínea a), e número 7 do R.G.I.T, do que ficou demonstrado a respeito do exercício pelo notificando do cargo de administrador da sociedade arguida e, finalmente, das informações coligidas a respeito da situação de insuficiência patrimonial desta, forçoso se torna considerá-lo responsável pela multa em causa.

Notifique, sendo o arguido com cópia da promoção que antecede.

Deste despacho interpôs recurso o arguido A..., rematando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

I. Por Acórdão proferido, pelo Tribunal Judicial de Alcanena, em 03.11.2011 foram, o arguido ora recorrente e a sociedade arguida B..., S.A., pela prática de um crime de abuso de confiança p. p. pelo art. 105, n.º 1 do RGIT e de um crime contra a Segurança Social, p. p. pelo art. 107. n.º 1. do RGIT, condenados como co-autores, o primeiro, na pena única de cento e cinquenta dias de multa à taxa de € 7,00 (sete euros) por dia, perfazendo a multa global de € 1.050,00 (mil e cinquenta euros), e, a segunda, na pena única de duzentos dias de multa à taxa diária de € 7,00 (sete euros), perfazendo a multa global de € 1.400,00 (mil e quatrocentos euros).

II. Foram ainda, aqueles dois arguidos, condenados solidariamente na indemnização civil de € 24.601,33 (vinte e quatro mil seiscentos e um euros e trinta e três cêntimos), acrescida de juros calculados após 15 dias do mês seguinte àquele a que disserem respeito, à taxa legal e contados até efectivo pagamento.

III. Da referida decisão, interpôs o ora recorrente recurso, tendo, por Acórdão proferido em 11.07.2012, já transitado em julgado, o Tribunal da Relação de Coimbra concedido integral provimento ao mesmo, alterando a matéria de facto (no que se refere ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, o que teve repercussões na medida concreta da pena aplicada, reduzindo-a), condenando-o, pela prática dos referidos crimes, na pena única de cento e dez dias de multa à taxa diária de € 7,00 (sete euros), perfazendo o total de € 770,00 (setecentos e setenta euros) de multa que está a pagar em prestações - e reduzindo-se o montante em que o mesmo foi solidariamente condenado para € 5.622,86 (correspondente às prestações em falta do mês de Janeiro e primeira metade do mês de Fevereiro, ambos de 2004), acrescido dos juros devidos.

IV. Em virtude de a sociedade condenada não ter procedido ao pagamento da multa em que foi condenada e de não lhe serem conhecidos bens susceptíveis de garantir a cobrança coerciva daquela, o Ministério Público promoveu, invocando para o efeito o disposto no art. 8º, n.º 1, al. a), e n. 7, do RGIT, que o ora recorrente, porque foi administrador daquela e também condenado pela prática dos mesmos crimes, fosse declarado como subsidiariamente responsável pelo pagamento da pena de multa em que a sociedade foi condenada e, em consequência, que fossem emitidas guias para o pagamento da referida multa por este.

V. Na sequência de tal promoção, o Tribunal a quo, em 10.09.2013, proferiu o seguinte despacho:

Emita e remeta ao arguido, A..., as guias necessárias para proceder ao pagamento da multa em que foi condenada a sociedade B.... SA., notificando-o, simultaneamente, para efectuar tal pagamento, já que, em face do preceituado no artigo 8.º número 1, alínea a), e número 7 do R.G.I.T, do que ficou demonstrado a respeito do exercício pelo notificando do cargo de administrador da sociedade arguida e, finalmente, das informações coligidas a respeito da situação de insuficiência patrimonial desta, forçoso se torna considerá-lo responsável pela multa em causa.

Notifique, sendo o arguido com cópia da promoção que antecede.

VI. Não pode o recorrente aceitar e, muito menos, conformar-se com aquela decisão proferida, urna vez que, face ao direito aplicável, não poderá ser considerado responsável (a título subsidiário ou solidário) pela multa em que foi condenada a sociedade arguida, nem, consequentemente, condenado no respectivo pagamento, razão do presente recurso.

VII. Considerando que as, no despacho recorrido, invocadas disposições legais consignam diversos tipos de responsabilidade (chamada de civil), sendo distinto o campo de aplicação e pressupostos de cada uma delas e que o Tribunal a quo não qualifica a responsabilidade que assaca ao ora recorrente, i.e., se se trata de responsabilidade subsidiária (prevista no n.º 1 do art. 8º do RGIT) ou solidária (prevista no n.º 7 do art. 8° do RGIT), porque com fundamentos para o efeito, debruçar-nos-emos sobre a decisão recorrida, quer no pressuposto de que a mesma condena o recorrente na qualidade de responsável subsidiário, quer no pressuposto de que a mesma condena o recorrente na qualidade de responsável solidário. Vejamos:

A. Quanto à responsabilidade subsidiária consignada no art. 8º, n.º 1, al. a), do RGIT

1. Da inconstitucionalidade da norma ínsita no art. 8°, n.º 1, al. a), do RGIT

VIII. A norma do art. 8°, n.º 1, do RGIT, na parte em que se refere à responsabilidade subsidiária dos administradores pelos montantes correspondentes às multas aplicadas a pessoas colectivas em processo de crime fiscal, consubstancia, de facto, uma responsabilização pelo pagamento de uma sanção penal de outrem, estabelecida única e exclusivamente em função do responsável primário, ou seja, da sociedade, e desconsiderando, em absoluto, a culpa imputável aos "garantes" e respectiva situação económica e pessoal, consagrando uma pena fixa.

IX. Ademais, considerando que se o “responsabilizado civil e subsidiariamente” efectuar o pagamento da multa em que foi condenada a sociedade arguida fica esta desobrigada de o fazer, o que significa que se entendem (embora não se perceba como, uma vez que a responsabilidade criminal é própria) satisfeitos os fins preventivos e repressivos que subjazem à aplicação de uma pena em processo crime, ter-se-á que concluir, também por este motivo, pela existência da transmissão para aquele da pena em questão. Assim,

X. padece a referida norma de inconstitucionalidade por violação dos princípios constitucionais da culpa (consagrado nos arts. 1° e 27° da CRP), da igualdade (consagrado no art. 13° da CRP) e proporcionalidade (consagrado no art. 18° da CRP) e, bem assim, por violação do princípio da intransmissibilidade das penas (consagrado no art. 30º, n.º 3, da CRP), razão pela qual se impõe a sua não aplicação, designadamente, no caso em apreço.

XI. De salientar é que, no caso em apreço, a decisão do Tribunal a quo no sentido de o ora recorrido responder pelo cumprimento da pena de multa em que foi condenada a sociedade arguida assume especial gravidade se considerarmos que a sanção em causa se manteve inalterada mesmo após a alteração, pelo Tribunal da Relação de Coimbra (conforme referido na conclusão III supra), da matéria de facto que, em parte, fundamentou a respectiva medida.

XII. Pelos motivos acima vertidos, não poderá manter-se o despacho recorrido, na parte em que determina a responsabilidade subsidiária do ora recorrente pelo pagamento da multa em que foi condenada a sociedade arguida.

Caso assim se não entenda e se considere de seguir a tese propugnada nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 437/2011, 561/2011 e 249/2012, no sentido da constitucionalidade do art. 8°, n.º 1, do RGIT, impera apreciar o seguinte:

2. Da não verificação dos pressupostos previstos no art. 8º, n.º 1, al. a), do RGIT, de que depende a existência de responsabilidade subsidiária

XIII. No art. 8º, n.º 1, al. a), do RGIT, no que ao presente recurso interessa, consagra-se, no dizer das citadas decisões do Tribunal Constitucional, a responsabilidade (civil) subsidiária, designadamente, dos administradores, desde que se prove que foi por culpa deles que o património da sociedade se tomou insuficiente para pagamento da multa em que a sociedade foi condenada.

XIV. Para a verificação daquela responsabilidade subsidiária - no que se refere ao pagamento da multa em que foi condenada a pessoa colectiva - exige-se uma conduta culposa do administrador ou gerente causadora da situação de insuficiência económica da sociedade para pagar a multa criminal a esta aplicada, traduzindo-se o dano sofrido pelo Estado no não recebimento da quantia que consubstancia aquelas sanções, sendo que tal conduta nada tem a ver com a conduta que preenche o crime tributário que deu origem àquela pena de multa, da mesma forma que o dano que o seu pagamento configura, nada tem a ver com o dano decorrente daquele crime [em regra, o não recebimento pelo Estado da receita fiscal devida].

XV. O disposto no artigo 8°, n. ° 1, do RGIT não opera iuris tantum, pois que, verificada a falta de pagamento da pena de multa em que foi condenada a pessoa colectiva, o devedor subsidiário só pode ser demandado na ausência total ou parcial, de bens do obrigado principal e desde que se alegue e prove que actuou com culpa (dolo ou negligência) para a insuficiência dos bens da sociedade. Sendo certo que,

XVI. a responsabilidade civil subsidiária a que alude o art. 8º, n.º 1 do RGIT tem de ser declarada na sentença e actuada pelo mecanismo de reversão fiscal (cfr. defendido, nomeadamente, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.02.2013 - Processo n.º 54/08.11DVIS-B.Cl, acessível em www.dgsi.pt - e por Germano Marques da Silva in op. cit)

XVII. Transitada em julgado a decisão proferida, o juiz vê esgotado o seu poder jurisdicional (não podendo, pois, imputar mais nenhuma responsabilidade ao arguido para além da que aquela decisão declarou e nos precisos e concretos termos do que ali foi declarado, podendo, tão-só, corrigi-la, nos termos do disposto no art. 380° do CPP, sob pena de violação do princípio ne bis idem consagrado no art. 29°, n.º 5, da CRP), do que resulta que, na fase executiva, não se pode ir para além do que na decisão que condenou o arguido se encontra declarado - seja em termos de condenação penal, seja em termos de responsabilidade civil, por manifesta falta de título executivo.

XVIII. Na decisão que condenou o ora recorrente nada se cotejou relativamente aos factos que, segundo o disposto no invocado art. 8°, n.º 1, al. a), do RGIT, constituem pressuposto da responsabilização subsidiária e, consequentemente, nada se dispôs relativamente à responsabilidade subsidiária do mesmo no que concerne ao pagamento da multa em que foi condenada a sociedade arguida,

XIX. Apenas, agora, na sequência da promoção do Ministério Público e, aparentemente, sem que este tenha promovido a execução contra a sociedade nos termos do disposto no art. 491 ° do CPP, foi pelo Tribunal a quo proferida decisão sobre tal matéria e declarada a responsabilidade [alegadamente em face do disposto no art. 8º, n.º 1, al. a), do RGIT] do ora recorrente.

XX. Considerando o supra exposto, a decisão recorrida viola, nomeadamente, o disposto no art. 8º, n.º 1, al. a), do RGIT e art. 491º do CPP, sendo, em consequência, ilegal o despacho recorrido, cuja revogação e substituição por outro que indefira a pretensão do Ministério Público se impõe.

XXI. Mas, ainda que a responsabilidade subsidiária do ora recorrente, pelo pagamento da multa em questão, pudesse ser aferida e declarada no momento em que o foi - por despacho proferido em 10.09.2013 -, imprescindível era que a respectiva decisão estivesse fundamentada, nos termos legalmente impostos para o efeito, o que não acontece.

XXII. Nos termos do art. 8.º, n.º 1, al. a), do RGIT - na interpretação que do mesmo foi julgada constitucional pelos Acórdãos do Tribunal Constitucional supra identificados -, para que os respectivos administradores possam ser declarados subsidiariamente responsáveis pela falta de pagamento da multa criminal aplicada a uma sociedade, impõe-se alegar e provar (para além dos restantes pressupostos, nomeadamente os previstos no art. 483º do CC) que é por culpa sua (dos administradores) que o património da sociedade se tomou insuficiente para efectuar o pagamento da multa, maxime através do processo de execução, instaurado nos termos do artigo 491.º do CPP.

XXIII. Na promoção que antecedeu o despacho recorrido, o Ministério Público não invoca nenhum facto praticado culposamente (ou sem culpa) pelo ora recorrente que tenha colocado a sociedade recorrida numa posição patrimonial de incapacidade de pagamento da sanção que lhe foi aplicada.

XXIV. Outrossim, no despacho recorrido (tal como na decisão condenatória proferida, na qual, conforme supra dito, nada se deu como provado a este respeito), o Tribunal a quo não aprecia os pressupostos previstos no art. 8º, n.º 1, al. a), do RGIT, nem os pressupostos gerais relativos à responsabilidade civil extracontratual previstos no disposto no art. 483º do CC, especialmente no que concerne à existência culpa do recorrente na insuficiência de bens da sociedade para proceder ao pagamento da multa, do que resulta a respectiva ilegalidade.

XXV. Tal pressuposto nunca se poderia ter como verificado, porque inexiste culpa sua na insuficiência de património da sociedade (e inexiste qualquer nexo de causalidade entre qualquer conduta imputável ao recorrido e o não pagamento pela sociedade daquela multa/dano supostamente provocado) para efectuar ou assegurar o pagamento da multa em que foi condenada, tendo a sociedade arguida sido declarada insolvente por sentença judicial proferida em 07.06.2005 e já transitada em julgado, insolvência que, por sentença proferida em 25.07.2008, no respectivo incidente de qualificação - que correu termos na Secção Única do Tribunal Judicial de Alcanena sob o processo n.º 167/05.1TBACN-F -, foi qualificada como fortuita.

XXVI. Estando, como está, por demonstrar a culpa do ora recorrente na alegada insuficiência de bens da sociedade arguida, não se verificam preenchidos os pressupostos legais de que depende a aplicação do art. 8º, n.º 1, al. a) do RGIT [assim como da al. b) do mesmo número] e, consequentemente, a respectiva responsabilização subsidiária pelo pagamento da multa em questão, padecendo o despacho recorrido, na parte em que fundamentado na citada norma, de ilegalidade.

XXVII. Deverá assim, porque (manifestamente) ilegal, o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que indefira a pretensão do Ministério Público, no que se refere à pretensa responsabilidade subsidiária do ora recorrente.

B. Quanto à responsabilidade solidária consignada no art. 8º, n.º 7, do RGIT

XXVIII. O despacho recorrido apela (também) ao disposto no art. 8º, n.º 7, do RGIT para efeitos de fundamentação da decisão de responsabilização do ora recorrente pelo pagamento da multa em que foi condenada a sociedade arguida, sendo que tal norma prescreve a responsabilidade solidária pelas multas aplicadas pela prática de infracção tributária de quem colaborar dolosamente na prática da mesma, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso.

XXIX. No caso do n.º 7 do art. 8º do RGIT o facto ilícito (infracção) de que depende a responsabilização solidária é exactamente o mesmo do qual decorreu a aplicação da sanção, i.e., prevendo o artigo 8º, n.º 7, do RGIT, como facto ilícito a colaboração dolosa na infração, independentemente da culpa na falta de pagamento, então a obrigação de pagar a multa emergirá sempre como consequência da prática do crime e apenas dela.

XXX. Assim, na situação prevista no art. 8º, n.º 7, do RGIT, a responsabilidade solidária, quando declarada relativamente a pessoa condenada pela mesma infracção criminal, como acontece no caso em apreço, equivale a uma dupla condenação, violando o princípio ne bis idem, consagrado no art. 29º, n.º 5, da CRP - vide Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1/2013 _, devendo em consequência o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que negue provimento à pretensão do Ministério Público.

XXXI. Igualmente assim, na situação prevista no art. 8º, n.º 7, do RGIT, a responsabilidade solidária, mesmo quando declarada relativamente a pessoa condenada pela mesma infracção criminal, como acontece no caso em apreço, porque teria como resultado inevitável o cumprimento, por esta - no caso, pelo ora recorrente - de uma pena/sanção alheia, equivale à transmissão da responsabilidade penal, violando o princípio da intransmissibilidade das penas, constitucionalmente consagrado no art. 30°, n.º 3, da CRP - vide Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 279/2013 _, devendo em consequência o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que negue provimento à pretensão do Ministério Público.

XXXII. Mais, na sequência do supra dito, a norma consignada no n.º 7 do art. 8º do RGIT ofende ainda os já referidos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, porquanto a medida da sanção/multa aplicada à sociedade arguida nos presentes autos não foi determinada em função da culpa e das condições pessoais do ora recorrente - o qual se pretende responsabilizar pelo respectivo cumprimento -, mas antes e tão-só por circunstâncias que respeitam exclusivamente ao autor da infração que é a pessoa coletiva, sendo que a moldura legal da pena de multa aplicável à pessoa coletiva não é também ajustada à que seria devida com base na mera responsabilidade individual da pessoa singular (prova disso é, sem prejuízo da não conformação da pena aplicada à sociedade arguida com a decisão sobre a matéria de facto proferida em sede de recurso por este Tribunal da relação de Coimbra, a diferença entre a pena que foi aplicada ao ora recorrente e a aplicada à sociedade arguida), impondo-se a revogação da decisão recorrida.

XXXIII. A aceitar-se a aplicação das citadas normas do art. 8º do RGIT nos termos e com as consequências constantes do despacho recorrido, estar-se-á a admitir a subversão de todos os princípios constitucionais acima referidos, já que ficará o ora recorrente (subsidiária ou solidariamente) compelido a cumprir, para além da pena em que foi condenado, a pena em que foi condenada a sociedade arguida por infracção a esta imputável.

Nestes termos e nos mais de Direito, deve o presente recurso ser julgado integralmente procedente, por provado, revogando-­se o despacho recorrido, porque, com a aplicação do art. 8º, n.º 1, al. a) e n.º 7 do RGIT, viola os princípios constitucionais ne bis idem, da intransmissibilidade das penas, da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.

Caso assim se não entenda, deverá o despacho recorrido ser revogado com fundamento em ilegalidade por violação do disposto no art. 8º, n.º 1, al. a), do RGIT.

Em qualquer dos casos deverá o despacho recorrido ser substituído por outro que negue provimento à pretensão do Ministério Público, com o que se fará a COSTUMADA JUSTIÇA!

O recurso foi objecto de despacho de admissão e, notificado ao Ministério Público, este não respondeu.

Remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado procedente.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal não foi exercido o direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.

***

            II. Apreciação do Recurso

            Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação. Vistas as conclusões do recurso interposto, as questões a apreciar são as seguintes:

- Se o conteúdo normativo do artigo 8º, nº 1, alínea a) do RGIT no sentido da responsabilidade subsidiária de gerente por multa em que seja condenada a sociedade que representa deve ser considerado inconstitucional; 

- Se não se verificam no caso os pressupostos da responsabilidade subsidiária prevista na citada disposição legal;

- Se o conteúdo normativo do artigo 8º, nº 7 do mesmo diploma legal no sentido da responsabilidade solidária de gerente por multa em que seja condenada a sociedade que representa deve ser considerado inconstitucional.

Vejamos.

Está em causa despacho que declarou o arguido responsável pelo pagamento da multa em que foi condenada a sociedade arguida de que era gerente, invocando-se para tanto o disposto no artigo no artigo 8º, nº 1, alínea a) e nº 7 do RGIT que preceitua:

1 - Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:

a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;

b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.

(…)

7 - Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso.

Ou seja, no nº 1 vêm previstos casos de responsabilidade subsidiária de gerentes e outras pessoas por multas e coimas em que seja condenada a sociedade e no nº 7 casos em que a responsabilidade do gerente e de outras pessoas é solidária.

A leitura do transcrito preceito é bem clara no sentido de que são diferentes os pressupostos da responsabilidade subsidiária e solidária dos gerentes pelas multas em que foi condenada a sociedade.

Quanto à responsabilidade solidária, invoca o recorrente a jurisprudência do Tribunal Constitucional que vinha casuisticamente declarando inconstitucional o nº 7 do artigo 8º do RGIT.

Actualmente encontra-se esse preceito declarado inconstitucional com força obrigatória geral pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 171/2014, de 18.2.2014 o que tem como efeito que não possa ser aplicado no caso.

Quanto à responsabilidade subsidiária dos gerentes por multas, o mesmo Tribunal na sua recente jurisprudência vem considerando que o nº 1, alínea a) do artigo 14º do RGIT não padece de inconstitucionalidade (cfr. acórdãos 437/2011 e 249/2012 para cuja fundamentação se remete).

Contudo, a responsabilidade subsidiária supõe a existência de um facto ilícito culposo do gerente que seja causa adequada do dano que para a Administração Fiscal constitui a não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa. Ou seja, terá de ser por culpa do gerente que o património da sociedade se tornou insuficiente para o pagamento da multa, responsabilidade essa que não se confunde com a responsabilidade pela prática do crime a que se apelava para a aplicação do regime de solidariedade.

O referido acórdão do TC nº 437/2011 é bem elucidativo no sentido de definir os requisitos desse tipo de responsabilidade que qualifica de responsabilidade por facto ilícito, qual seja a colocação culposa da sociedade em situação de não poder pagar a multa ou coima em que esta foi condenada (cfr. Germano Marques da Silva em Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus Administradores e Representantes, Verbo 2009, págs. 443 a 448 e o Acórdão desta Relação de 16.10.2013, proferido no processo 138/05.8TALSA.C2, publicado em www.dgsi.pt, onde com detalhe se caracteriza a responsabilidade subsidiária em causa). 

Ora, dos autos nada consta no sentido de que tenha sido por culpa do ora recorrente que a sociedade arguida ficou em situação de não poder proceder ao pagamento da multa em que foi condenada, nem, aliás, tal consta como fundamento do despacho recorrido onde se parece confundir e fundir os dois tipos de responsabilidade em causa.

E não resultando que tenha sido por acto ilícito e culposo do recorrente que a sociedade arguida tenha ficado na impossibilidade de proceder ao pagamento da multa em que foi condenada, não se encontram verificados os pressupostos da responsabilidade subsidiária.

Não sendo, pois, o recorrente responsável seja a que título for pelo pagamento da multa em que a sociedade arguida foi condenada, deve o despacho recorrido ser revogado, procedendo o recurso interposto.
***
            III. Decisão
            Nestes termos acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido A... e, em consequência, revogar o despacho recorrido.
            Não há lugar a tributação em razão do recurso interposto.
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Coimbra, 28 de Maio de 2014



(Maria Pilar Pereira de Oliveira - relatora)

 (José Eduardo Fernandes Martins - adjunto)