Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1058/08.0TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
RECURSO
MATÉRIA DE FACTO
IN DÚBIO PRO REO
Data do Acordão: 03/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 32º DA CRP, 21º E 25 º DA LEI 15/93 DE 22 DE JANEIRO , 127º, 412ºE 428º DO CPP
Sumário: 1. No crime de tráfico de estupefacientes, crime de perigo abstracto, não se exige para preenchimento do tipo o desenvolvimento da globalidade da acção projectada pelo agente. Porém, a consumação exige que se dê por provada, pelo menos uma das ocorrências ali referidas: “Cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qual quer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar, ou ilicitamente detiver”, produto estupefaciente, não bastando o início de um qualquer processo executivo para se verificar a consumação.

2.A possibilidade de sindicância da matéria de facto quando assente na impugnação da decisão que sobre ela foi proferida depende da observância, por parte do recorrente, dos requisitos formais indicados no n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, em concreto da delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas que, em seu entender, impõem decisão diversa da recorrida, e (quando disso seja o caso) das que devam ser renovadas, especificações estas que hão-de ser feitas de acordo com o estabelecido no n.º 4 do preceito acima referido.

3.O tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que decidiu contra o arguido não obstante terem subsistido (ou deverem ter subsistido) dúvidas razoáveis e insanáveis no seu espírito ou se a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum.

4.Na apreciação da prova, o tribunal é livre de formar a sua convicção desde que não contrarie as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos.

5.Da conjugação de provas materiais, concretizadas e objectivadas, com outras indirectas e de cariz meramente indiciário, pode o tribunal formular uma conclusão em termos de determinar o modo como o pedaço da realidade em equação efectivamente sucedeu, sua motivação e intencionalidade e quem são os seus agentes, sem que, com isso, sejam postergadas as regras aplicáveis ao processo subjectivo de formação da convicção do julgador, por um lado, e as garantias constitucionais do arguido, por outro.

6.O princípio do in dubio pro reo sendo emanação do princípio da presunção de inocência surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo. Se, a final, persiste uma dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da actuação do acusado, esse non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a seu favor, sob pena de preterição do mandamento consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Integral: I – Relatório.

1.1. N…, com os demais sinais nos autos, foi submetido a julgamento porquanto indiciado, segundo acusação deduzida pelo Ministério Público, da prática enquanto autor material, sob a forma consumada, e como reincidente, de um crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade, previsto e punido através das disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1 e 25.º, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-C anexa ao mesmo diploma, bem como dos artigos 26.º; 75.º e 76.º, estes todos do Código Penal.

Realizado o contraditório, proferiu-se sentença determinando, ao ora relevante, condenar o arguido pela autoria do assacado ilícito, na pena de 20 (vinte meses) de prisão.

1.2. Arguido que não se revendo no assim sentenciado, interpôs o presente recurso apresentando, após motivação, as conclusões seguintes:

1.2.1.          A condenação imposta ao ora recorrente, assenta na detenção para venda de um produto prensado com um peso de 27,027 g, que sujeito a exame se apurou ser Cannabis, em resina.

1.2.2. A propósito, formou-se a convicção do Tribunal recorrido a partir de parte das declarações do arguido e no depoimento da única testemunha de acusação – C –.

1.2.3. Para que emirja a subsunção de uma conduta à previsão do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, torna-se indispensável a prova em Tribunal de que a detenção se mostra criminalmente ilícita. O que se não verificou,

1.2.4. Pois, no caso sub judice, apenas ficou demonstrado que o arguido encontrou e guardou o produto em referência.

1.2.5. Igualmente não ficou comprovado em audiência que o recorrente deteve o produto em causa, destinando-o à venda a outros reclusos que se propusessem comprar-lho.

1.2.6. Tudo porque o Tribunal a quo desconsiderou as próprias declarações do arguido nesse sentido e, pelo contrário, acolheu por verdadeiro o depoimento da única testemunha de acusação!

1.2.7. Com efeito, em momento algum afirmou a testemunha que o arguido detivesse, ilicitamente, o estupefaciente em referência ou se propusesse vender o mesmo.

1.2.8. Antes, o que dita testemunha afirmou foi que o recorrente era, á data da verificação dos factos, dependente de produtos estupefacientes.

1.2.9. E que a cela onde foi encontrado o produto em causa, tinha sido anteriormente ocupada por reclusos traficantes.

1.2.10. Para concluir pela forma em que o fez, o Tribunal a quo socorreu-se de regras do ónus da prova, entendendo que a simples detenção do estupefaciente faz presumir a intenção do recorrente em vender ou traficar, o que se mostra legalmente inadmissível.

1.2.11. A decisão recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova, pois se, por um lado, consigna que a aludida testemunha afirmou que o recorrente “assumiu imediatamente ser dele o produto estupefaciente encontrado, quando perguntaram a quem pertencia dos três que ocupavam a cela”, mais adiante, sustenta que tal testemunha referiu que o arguido lhe “confessou não só ser da sua pertença o produto em causa mas que o destinava à venda a terceiros.”

1.2.13. Acresce, mesmo concedendo-se resultar exclusivamente do depoimento indirecto da testemunha em análise, a prova de que o recorrente destinava o produto estupefaciente a ser vendido.

1.2.14. Todavia, tendo o arguido prestado declarações (relembra-se que negando deter o produto estupefaciente para o vender), não deveria o Tribunal a quo tê-lo acolhido, por acatamento ao disposto no artigo 129.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e entendimento sustentado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 26 de Junho de 2002, acessível em www.dgsi.pt.

1.2.15. Uma vez que o Tribunal sindicado não logrou definir qual a intenção com que o recorrente detinha o produto, esse estado de dúvida não deveria, por aplicação do princípio do in dúbio pro reo, e, como sucedeu, impor a conclusão segundo a qual a simples detenção faz presumir a sua intenção de vender. 

1.2.15. Fazendo-o preteriu-se o estatuído pelo artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

Terminou pedindo a revogação da sentença recorrida, substituída por acórdão desta instância que determine a sua absolvição.

1.3. Notificado para o fazer, querendo, respondeu o Ministério Público sufragando a manutenção do decidido.

1.4. Proferido despacho de admissão da impugnação, foram os autos remetidos a esta instância.

1.5. Aqui, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente a igual improvimento.

1.6. Cumpriu-se com o disciplinado no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

1.7. No exame preliminar a que alude o n.º 6 do mesmo inciso, consignou-se nada obstar ao conhecimento de meritis.

1.8. Como assim, colhidos os vistos devidos, seguiram os autos para submissão à presente conferência.

1.9. Urge agora ponderar e decidir.


*

II – Fundamentação de facto.

2.1. Na sentença recorrida, foram considerados por provados os factos seguintes:

1. O arguido no mês de Julho de 2008 encontrava-se em cumprimento de pena de prisão no EPR de..

2. No dia 10 de J… de 2008, no decurso de uma revista à cela que o mesmo ocupava, escondido num saco de papéis, foi encontrado e apreendido um produto prensado com um peso de 27,027 g, que sujeito a exame se apurou ser Cannabis, em resina.

3. Tal produto fora encontrado e guardado pelo arguido que o destinava a outros reclusos que se propusessem comprar-lho.

4. Agiu livre, voluntária e conscientemente.

5. Sabia que não lhe era permitido deter, transportar, pôr à venda, ceder ou por qualquer forma proporcionar a outrem aquela substância estupefaciente, cujas características bem conhecia.

6. Sabia o seu comportamento proibido por lei e criminalmente punível.

7. Antes de preso vivia com a companheira, e uma filha (de 9 anos de idade), em casa arrendada; tem o 6.º Ano de Escolaridade.

8. Foi condenado:

A 9.07.2001, pela prática, a 10.08.99, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, em 75 dias de multa – extinta pelo pagamento;

A 21.01.2002, pela prática, a 7.04.2001, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, em 70 dias de multa – extinta pelo pagamento;

A 20.01.2002, pela prática, a 22.06.2000, de um crime de burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços, e de um crime de desobediência, em 100 dias de multa (pena única) – extinta pelo pagamento;

A 19.04.2002, pela prática, a 16.06.2000, de um crime de ameaça, em 150 dias de multa – extinta pelo pagamento;

A 10.05.2002, pela prática, a 10.05.2002, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, em 100 dias de multa – extinta pelo pagamento;

A 3.07.2003, pela prática, a 31.10.2002, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, em 9 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos – revogada e ordenado o cumprimento da pena de prisão; extinta pelo cumprimento;

A 10.11.2003, pela prática, a 12.04.2001, de um crime de contrafacção, imitação e uso ilegal de marca, em 100 dias de multa;

A 13.11.2003, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, em 4 anos e 6 meses de prisão;

A 2.04.2004, pela prática, a 25.09.2003, de um crime de furto simples, em 60 dias de multa;

A 17.06.2004, pela prática, a 15.07.2003, de um crime de furto simples, em 60 dias de multa;

A 9.02.2005, pela prática, a 28.04.2004, de dois crimes de condução de veículo sem habilitação legal, e a 29.04.2004 de um crime de desobediência qualificada e de um crime de desobediência simples, em 17 meses de prisão (pena única);

A 14.06.2005, pela prática, a 6.03.2004, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, em 11 meses de prisão;

A 12.10.2005, pela prática, a 10.03.2004, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, e dois crimes de desobediência simples, em 15 meses de prisão (pena única).

2.2. Na mesma sentença, mas agora no que concerne a factos não provados, precisou-se:

Inexistem.

2.3. Por fim, a motivação probatória inserta nessa peça processual é do teor que segue:

Foram determinantes para a fundamentar:

Factos 1.º a 3.º: As declarações do arguido – confirmando a sua situação de recluso, à altura, a revista à sua cela e apreensão do produto estupefaciente que se achava acondicionado num saco de papéis, mas pretendendo transmitir a ideia de que após ter encontrado o produto na cela para que mudara, o guardava para entregar ao seu dono (um recluso que antes habitara aquela cela), uma vez que não podia entregar o produto estupefaciente aos guardas prisionais, porque tinha medo de represálias por parte do dono do produto –, complementadas pelo depoimento da testemunha C., guarda prisional interveniente na ocorrência de revista da cela – que precisou que o arguido assumiu imediatamente ser dele o produto estupefaciente encontrado, quando perguntaram a quem pertencia, dos 3 que habitavam a cela; mais precisou que cada recluso tem um armário com chave própria, que só ele pode abrir e o armário onde foi encontrado o estupefaciente pertencia ao arguido –, e pelo teor do doc. de fls. 30 (exame toxicológico levado a cabo pelo LPC, da Polícia judiciária, que confirma o tipo de estupefaciente e o peso dado por assente).

Sendo a cela habitada por 3 reclusos que vão sendo movimentados por razões várias, como poderia o arguido adivinhar a quem pertencia o estupefaciente que foi encontrado na sua posse e pelo próprio foi referido ter sido por si encontrado escondido na cela? Poderia pertencer a um sem número de pessoas!... Como sabia o arguido há quanto tempo lá estaria, para poder dizer que pertencia a determinado recluso?

O passado criminal do arguido, do qual já constava um crime de tráfico de estupefacientes, e a falta de consistência e de sustentação probatória da sua pretensa justificação, não nos deixam dúvidas de que disse a verdade ao guarda prisional quando afirmou ser sua pertença o produto estupefaciente encontrado, que destinava à venda a terceiros;

4.º a 6.º: Presunção natural – atenta a idade do arguido, experiência criminal respectiva e experiência de vida;

7.º: As declarações do arguido – informando o tribunal sobre os seus elementos pessoais – que, na ausência de outros elementos mais consistentes, se consideraram atendíveis;

8.º: O teor do doc. de fls. 82 a 94 (CRC do arguido, de onde resultam os elementos especificados).


*

III – Fundamentação de Direito.

3.1. O artigo 428.º do Código de Processo Penal faculta a este Tribunal o conhecimento, em recurso, de facto e de direito.

Por outro lado, sabe-se, conforme jurisprudência corrente, uniforme e pacífica, o âmbito do recurso é definido através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (artigos 412.º, n.º 1 e 403.º, ambos do mesmo diploma), isto sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais (Ac. n.º 7/95, do STJ, publicado no Diário da República, I.ª Série, de 28 de Dezembro de 1995, em interpretação obrigatória).

In casu, porque se não vislumbra emergir fundamento que imponha tal intervenção oficiosa, vendo-se as conclusões do recorrente, resulta que o thema decidendum se atém ao que considera ter sido uma incorrecta ponderação da prova produzida, conducente à sua indevida condenação, tudo no justo ponto em que se considerou por ilícita a mera detenção da droga apreendida, e, ademais, que ela se destinava para venda a terceiros.

3.2. Breves e prévias considerações sobre os moldes em que é legalmente permitida esta impugnação permitirão aquilatar da sorte do recurso interposto.

De acordo com a regra geral contida no artigo 127.º do Código de Processo Penal, “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”

Ou seja, na apreciação da prova, o tribunal é livre de formar a sua convicção desde que não contrarie as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos. De facto, tal tarefa “não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.”[1] Sendo “a liberdade de apreciação da prova (…), no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir chamada «verdade material»”[2] que tem de ser compatibilizado com as garantias de defesa com consagração constitucional –, impõe a lei (cfr. n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal) um especial dever de fundamentação, exigindo que o julgador desvende o percurso lógico que trilhou na formação da sua convicção[3] (indicando os meios de prova em que a fez assentar e esclarecendo as razões pelas quais lhes conferiu relevância), não só para que a decisão se possa impor aos outros, mas também para permitir o controlo da sua correcção pelas instâncias de recurso.

Dentro dos limites apontados, o juiz que em primeira instância julga goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção[4] e apreciação da prova. Nada obsta, pois, que, ao fazê-lo, se apoie num certo conjunto de provas e, do mesmo passo, pretira outras às quais não reconheça suporte de credibilidade[5].

É na audiência de julgamento que este princípio assume especial relevância, encontrando afloramento, nomeadamente, no artigo 355.º do Código de Processo Penal, pois é aí o local de eleição onde existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova[6]. Só os princípios da oralidade e da imediação “permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.”[7]

No respeito destes princípios, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que decidiu contra o arguido não obstante terem subsistido (ou deverem ter subsistido) dúvidas razoáveis e insanáveis no seu espírito ou se a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum[8].

Assim, para impugnar eficientemente a decisão sobre a matéria de facto, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode (…) assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão.”[9]

É que “o Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si.”[10] Dito de outra forma: “o recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, e o tribunal de recurso em matéria de exame crítico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas.”[11]

A reponderação de facto não é ilimitada, antes se circunscreve à apreciação das discordâncias concretizadas pelo recorrente “já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.”[12]

Em conclusão: os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1.ª instância. E já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível) sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1.ª instância tem suporte na regra estabelecida no artigo 127.º do Código de Processo Penal, e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se.

Por outro lado, a possibilidade de sindicância da matéria de facto quando assente na impugnação da decisão que sobre ela foi proferida depende da observância, por parte do recorrente, dos requisitos formais indicados no n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, em concreto da delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas que, em seu entender, impõem[13] decisão diversa da recorrida, e (quando disso seja o caso) das que devam ser renovadas, especificações estas que hão-de ser feitas de acordo com o estabelecido no n.º 4 do preceito acima referido.

O Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se sobre as consequências desse incumprimento.

Assim, decidiu, por exemplo, no Acórdão n.º 259/02, publicado no Diário da República [DR], II.ª Série, de 13 de Dezembro de 2002, que se o recorrente não acata com o ónus de motivação indicado, fica incumprida a sua obrigação, e é como se ela não existisse. Donde não se justificar nessa hipótese um qualquer convite à sua formulação (pois que redundaria na concessão de uma nova oportunidade de recurso[14]) e, antes, impor-se a rejeição do recurso.

Por outro lado, ponderou num seu aresto de 31 de Outubro de 2003, publicado no DR, II.ª Série, de 17 de Dezembro de 2003, a situação na qual o que se deparava era a simples menção na motivação dos aludidos ónus, mas o seu não transporte adequado para as conclusões (não concretização nos moldes exigíveis). Aqui já antes se imporia um prévio convite ao recorrente para acatamento adequado do ónus devido, sob pena, agora sim, de violação das garantias de defesa do processo criminal plasmadas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa[15].

Certo também que a sindicância da matéria de facto pode, ainda (apenas ou mesmo simultaneamente com a impugnação da matéria de facto nos termos acabados de referir), obter-se pela via da invocação dos vícios da decisão (desta, e não do julgamento) – de resto, de conhecimento oficioso, como já mencionado –, que podem constituir fundamento do recurso “mesmo nos casos em a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito” como expressamente permitido no n.º 2 do encimado artigo 410.º. Esses vícios, os três que vêm enumerados nas alíneas deste preceito (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e erro notório na apreciação da prova), terão de ser ostensivos e passíveis de detecção através do mero exame do texto da decisão recorrida (sem recurso a quaisquer outros elementos constantes do processo), por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.

Ainda de anotarmos que o recorrente descortina na decisão recorrida pretensa violação ao princípio do in dúbio pro reo.

Sabe-se ser ele uma emanação do princípio da presunção de inocência, que surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo. Se, a final, persiste uma dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da actuação do acusado, esse non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a seu favor, sob pena de preterição do mandamento consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

Em todo o caso, convém não olvidar que na aplicação da regra processual da encimada «livre apreciação da prova» (ut citado artigo 127.º), não haverá que lançar mão, limitando-a, deste princípio (do in dúbio pro reo), se a prova produzida [Ainda que «indirecta»], depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto.

Isto porquanto e com efeito, o in dúbio pro reo «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador».[16]

A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade. Nessa tarefa, o juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar». E, por isso, é que, nos casos em que as regras da experiência, a razoabilidade e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (Suscitando, a propósito, “uma firme certeza do julgador”, sem que concomitantemente “subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto”.), não há lugar à intervenção da contra face (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva que é o in dúbio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador»).

A prova, o processo probatório traduz-se em verificar cada um dos enunciados factuais pertinentes para a apreciação e decisão da causa. Para o prosseguir, o tribunal está munido de uma racionalidade própria, em parte comum só a ela e que pode apelidar-se de razoável. A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador-juíz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível. Donde que não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido, mas apenas a chamada dúvida razoável (“a doubt for which reasons can be given”)». Isto porque nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida. Assim, pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais. A dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal.

Antecedendo a resolução do caso suscitado, uma segunda e parca nota cabe também coligir.

Imputada ao recorrente a autoria de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido através das disposições conjugadas dos citados artigos 21.º, n.º 1 e 25.º, alínea a).

Integra esta infracção o que a doutrina tem apelidado de crime “exaurido”, “excutido” ou “de empreendimento”, no qual o resultado típico se alcança logo, com aquilo que surge por regra como realização inicial do “iter criminis”, tendo em conta o processo normal de actuação, envolvendo droga que se não destine exclusivamente a consumo. A previsão molda-se, na verdade, em termos de uma certa progressividade, no conjunto dos diferentes comportamentos contemplados, que podem ir de uma mera detenção à venda propriamente dita.

Com tal progressividade pretende-se abarcar a multiplicidade de condutas em que se pode desdobrar a actividade ilícita relacionada com o tráfico de droga.

Tal preocupação, de perfil transversal, concretiza-se, com a integração vertical vertida em três tipos legais fundamentais que revelam a maior ou menor gravidade desta actividade em relação ao tipo fundamental daquele artigo 21.º, ou seja, o artigo 24.º no sentido agravativo e o artigo 25.º do mesmo diploma no sentido atenuativo.

Lateralmente com tal estrutura progressiva aceita-se que a natureza de crime de perigo abstracto, do crime do artigo 21.º citado, se traduz numa antecipação da tutela penal, independentemente da efectiva lesão do bem jurídico em causa, a saúde pública, antecipação cifrada na punição dos primeiros actos de execução do agente.

Não se exige, para preenchimento do tipo, o desenvolvimento da globalidade da acção projectada pelo agente. Porém, a consumação exige pois que se dê por provada, pelo menos uma das ocorrências ali referidas: “Cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qual quer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar, ou ilicitamente detiver” (sublinhado nosso) produto estupefaciente não bastando o início de um qualquer processo executivo para se verificar a consumação.[17],[18].

O caso presente:

Pese embora o arguido não tenha acatado os mandamentos inscritos como dito nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º, do Código de Processo Penal, certo é que sempre se alcança, acima consignámos, o desiderato da sua impugnação. Donde que nada obstaculiza tal omissão.

As particularidades da vida real, quando sujeitas ao crivo da apreciação judicial, reclamam e impõem, as mais das vezes, o apelo e recurso ao raciocínio lógico. Isto é, aquele raciocínio que, para além de qualquer dúvida razoável, parte de factos conhecidos e revelados para a extracção de factos desconhecidos mas que são, na normalidade do acontecer, a sua natural envolvência, sua experimentada vivência, sua inelutável consequência. Ou seja, da conjugação de provas materiais, concretizadas e objectivadas, com outras indirectas e de cariz meramente indiciário, mostra-se então possível e legítimo formular uma conclusão em termos de determinar o modo como o pedaço da realidade em equação efectivamente sucedeu, sua motivação e intencionalidade e quem são os seus agentes, sem que, com isso, sejam postergadas as regras aplicáveis ao processo subjectivo de formação da convicção do julgador, por um lado, e as garantias constitucionais do arguido, por outro.

Asserção pertinente ao caso sub judice, no qual os aludidos elementos infirmam a conclusão reclamada pelo arguido – esta é uma presunção natural resultante do que é normal e típico: a droga que se encontra em nosso poder, não se destinando ao próprio consumo, destina-se à venda a outrem (id quod plerumque accidit), salvo justificação contrária.

Em audiência, o arguido, confrontado com a circunstância de lhe ter sido encontrado o estupefaciente num armário próprio, de que só ele tinha a chave, e em quantidade que excedia o tido por normal para 10 dias de consumo, ao invés de apresentar uma versão que infirmasse o que era a conclusão resultante da apontada normalidade da vida, ofereceu uma outra assaz inverosímil (aprestar-se para o entregar ao seu dono verdadeiro e não o fazer aos guardas prisionais por temer as represálias daquele!..). Acresce que arguido já condenado pela prática de um crime de igual natureza…

Ou seja, juízo conclusivo do Tribunal recorrido a coberto da imposição de um qualquer ónus probatório sobre o recorrente.

Recorrente que argumenta ademais estribado em dois outros aspectos: o de que a detenção constatada sequer seria ilícita, além de que se depararia no texto da sentença proferida um erro notório na apreciação da prova.

A detenção de produto estupefaciente, salvo nas circunstâncias em que exista autorização nos termos do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, é ilícita.

A detenção, para consumo próprio, de produto estupefaciente que não exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias é ilícita do ponto de vista contra-ordenacional, configurando a infracção prevista no artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro.

O arguido detinha na sua posse 27,027 gramas de cannabis, em resina.

De acordo com o estabelecido na Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, esta quantidade excede largamente o necessário para o consumo médio individual durante o período de dez dias.

Isto é, e ao contrário do que sufraga, mostra-se penalmente prevista a conduta assumida, tal como sufragado na sentença alvo de sindicância[19].

Resta assim cuidar do último reparo oposto, qual seja, o de se configurar na mesma um erro notório na apreciação da prova.

Descortina-o o arguido porquanto, alega, o Tribunal considerou o facto de a única testemunha inquirida ter afirmado que o mesmo logo assumiu que a droga era dele e, mais adiante, considerou, também, que essa testemunha revelou que ele confessou que a droga não era só sua pertença mas que a destinava à venda de terceiros.

Importa relembrar, a propósito, que na factualidade dada como assente consta apenas que o arguido detinha a droga. Nesta perspectiva, não se vislumbre, inclusive, o relevo da argumentação expendida.

Arguido que, aliás, esclareceu a origem e destino do produto estupefaciente apreendido, limitando-se a testemunha de acusação a corroborar que lhe foi dada tal explicação.

O que também releva quanto ao segmento em que avança estarmos perante um depoimento indirecto desta: olvida que, por conhecimento directo, a testemunha apenas referiu que cada recluso dispõe de um armário com chave própria e a droga estava no armário afecto ao ora arguido.

Em todo o caso, a circunstância de o recorrente a par de haver admitido que a droga era dele, também ter afirmado que não era só sua pertença não implica, necessariamente, qualquer contradição. Apenas traduz que ela não lhe pertencia em exclusivo.

Tudo conjugado, depara-se-nos, pois, a inexistência de um qualquer desrespeito das regras da experiência e a inexistência na decisão impugnada de um juízo probatório assente em um raciocínio ilógico.

Por fim, de consignar-se a manutenção do acervo fáctico tal como acolhido na 1.ª instância.


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IV – Decisão.

São termos em que pelos fundamentos expostos, se nega provimento ao recurso interposto.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 5 UCs.


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Coimbra, 25 de Março de 2010



[1] CPP de Maia Gonçalves, 12.ª edição, pág. 339.
[2] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I Volume, pág. 202.
[3] Cfr., com interesse, Ac. n.º 198/2004, do Tribunal Constitucional, de 24 de Março de 2004, in DR. II.ª Série, de 2 de Junho de 2004, no qual se exarou: “O acto de julgar é do tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.”
Como ensina F. Dias (Lições de Direito Processual Penal, pp. 135 e segs.), na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
A recolha de elementos – dados objectivos –, sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
Sobre esses dados recai a apreciação do tribunal, que é livre – art.º 127.º do CPP –, mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;
A liberdade da convicção aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, mas com a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;
Assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis como a intuição.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a da preparação da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio do in dúbio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.”
[4] A livre convicção “é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e á lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores.” – cfr. idem, ibidem, pág. 298 -.
[5] “ (…) há caos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução, pelo que se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será mais inatacável, já que proferida em obediência á lei que impõe que ele julgue de acordo coma  sua livre convicção.” – Ac. RG, de 20 de Março de 2006, processo n.º 245/06-1.
[6] Como se refere no Ac do STJ, de 20 de Setembro de 2005, disponível no site www.dgsi.pt, “a convicção do tribunal é constituída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, olhares, “linguagem silêncios a e de comportamento”, coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidades manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos. Elementos de que a reapreciação em recurso não dispõe.”
[7] F. Dias, ob. cit, págs. 233/4.
[8] Cfr. Ac deste Tribunal da Relação, de 6 de Março de 2002, in CJ, Ano XXVII, Tomo II, pág. 44: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a pode criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum.”
[9] Cfr. Ac. do TC supra citado.
[10] Cfr. Ac. da RC, de 3 de Outubro de 2000, in CJ, Ano 2000, Tomo IV, pág. 28.
[11] Cfr. Ac. do STJ, de 7 de Junho de 2006, in processo 06P763.
[12] Cfr. Ac. do STJ, de 12 de Junho de 2008, in processo 07P4375.
[13] “Note-se que a lei se refere às provas que «impõem» e não as que «permitiriam» decisão diversa. É que se afigura indubitável existirem casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência á lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.” – Ac. do STJ, de 17 de Fevereiro de 2005, in processo 04P4324.
[14] Em linha com tal entendimento, a redacção do actual artigo 417.º, n.º 4 do CPP, em cujos termos, “O aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação.”
[15] O que mereceu consagração legal ao estatuir-se agora no dito artigo 417.º, mas seu n.º 3, que “Se a motivação de recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada.”
[16] Cristina Líbano Monteiro, In Dúbio Pro Reo, Coimbra, 1997.
[17] Cfr. Acórdão do STJ, de 03.09.08, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Santos Cabral, e acessível no site www.dgsi.pt.
[18] Ou, como escreveu o Ex.mo Conselheiro Souto de Moura, no aresto prolatado no STJ, em 16.04.07, igualmente disponível naquele site: «Tal como é do entendimento uniforme da jurisprudência e da doutrina, o crime de tráfico de estupefacientes é um crime formal ou de mera actividade e de perigo abstracto, pelo que não pressupõe a existência de um resultado, bastando que se produza uma situação de perigo para que seja objecto de protecção pressuposto no tipo penal, daí que Johannes Wessels, in Direito Penal, Parte Geral, Ed. Sérgio António Fabris, Porto Alegre 1976, pág. 10, considere que por se tratar de um crime de empreendimento se equiparam a consumação e a tentativa, “inexistindo para a tentativa a prevista possibilidade de atenuação de pena”.
Nos crimes de perigo concreto exige-se que se crie uma realização típica que crie uma situação efectiva de perigo, sendo por isso o perigo um elemento do tipo, diversamente do que sucede no crime de tráfico de estupefacientes, em que, por ser um crime de perigo abstracto, o perigo não é um elemento do tipo, mas a razão que levou o legislador a incriminar a conduta. Esta parte “de uma praesumptio juris et de jure de perigosidade das condutas que contempla, não dando acolhimento a provas de sinal contrário destinados a demonstrar a ausência de risco no caso concreto...”. Neste sentido, vide Soto Nieto, in El Delito de Tráfico Ilegal de Drogas, Madrid, 1999.»

[19] E, ao menos não fora (isto é, acaso destinasse o produto ao seu exclusivo consumo, o que não defendeu, lembramos) por força do entendimento resultante do disciplinado através do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para Fixação de Jurisprudência, n.º 8/2008, de 5 de Agosto, in Diário da República, I Série, n.º 150, de 2008-08-05, em cujos termos, «Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só «quanto ao cultivo» como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias».