Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
501/17.1T9LMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS AGRAVADO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
TIPO OBJECTIVO
Data do Acordão: 12/18/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LAMEGO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 171.º, N.º 1, E 177.º, N.º 1, AL. A), AMBOS DO CP
Sumário: I - O bem jurídico protegido no crime de abuso sexual de criança, p.p.p. art.º 171.º, n.º 1 do CP, é a autodeterminação sexual mas aqui sob uma forma particular, não face a condutas que representem extorsão de contactos sexuais de forma coactiva, mas face a condutas de natureza sexual que, tendo em conta a pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade.

II - Acto sexual de relevo é aquele que de um ponto de vista predominantemente objectivo assume uma natureza, um conteúdo e um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e que, desse modo, representa um entrave importante para a liberdade de determinação sexual da vítima.

III – Incorre nessa previsão, agravada de acordo com o art.º 177.º, n.º 1, al. a), do CP, a conduta do agente que põe as mãos nos peitos de uma menor de 11 anos de idade, sua neta, fazendo pressão, apertando-lhe as pernas e puxando-a para se sentar no seu colo, fazendo força e impedindo-a de se levantar.

Decisão Texto Integral:










Acordam  no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.

Nos presentes autos de processo comum, com intervenção do tribunal singular, o Ministério Público acusa:

MC, casado, jornaleiro, filho de (...), nascido em (...), residente no Lugar (...),

Pela indiciada prática, em autoria material, e na forma consumada, de dois crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelo artigo 171.°, n.º 1 e 177.°, n.º 1, al. a) do Código Penal.

(...)

Após a realização de audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que julgou procedente por provada a acusação do Mº Pº e em consequência decidiu:

1. Condenar o arguido MC, pela indiciada prática, em autoria material, de dois crimes de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo art. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, cada um na pena de 1 ano e 10 meses de prisão;

Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de 2 anos e 10 meses de prisão; pena esta cuja execução se suspende, nos termos dos artigos 50°, 53° e 54°, do CP, por 2 anos e 10 anos, e será acompanhada de regime de prova, assente num plano individual de readaptação social, executado com vigilância e apoio durante o tempo de duração da suspensão da execução, dos serviços de reinserção social, com o envio de relatórios semestrais, e que deverá visar em particular a prevenção da reincidência, devendo para o efeito incluir sempre o acompanhamento técnico do condenado que se mostre necessário, designadamente através da frequência de programas de reabilitação para agressores sexuais de crianças e jovens.

(...)

  Desta sentença interpuseram recurso a assistente, AB e o arguido, MC, sendo do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do recurso:
(...)
MC
(...)
22.º Ora não ficou provado que o ilícito invocado se encontra preenchido, ou seja, o crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo art.º 171º, nº 1 e 177.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.
23.º Importa aqui definir o que é um ato sexual de relevo.
24.º O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 28-09-2009 define “…o ato sexual de relevo é aquele que, não sendo de cópula ou coito anal, esteja relacionado com o sexo, perturbe seriamente a autodeterminação sexual de uma criança e, objetivamente ocasione pelo menos, tanto ou mais perturbação que o “ato exibicionista…”, acrescentando que “não é pois, qualquer ato de natureza, conteúdo ou significado sexual que se integra naquele conceito… mas aqueles atos que constituam ofensa séria e grave à intimidade e liberdade sexual do sujeito passivo…”
25.º Delimitando o conceito pela negativa e citando o Prof. Figueiredo Dias, acentua que é de excluir do conceito de ato sexual de relevo não apenas os atos “insignificantes ou bagatelares”, mas também aqueles que não representem “ entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima” como por exemplo, os atos que, embora “pesados” ou em si “ significantes”, por impróprios, desonestos, de mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima.
26.º Logo é de concluir que os atos praticados pelo recorrente com a menor, não integram o conceito de ato sexual de relevo e, consequentemente, não preenchem o tipo objetivo ilícito do crime de abuso sexual de crianças.
27º Deve pois, por violação do disposto nos art.ºs 171º, nº 1 e 177.º, n.º 1, al. a) do Código Penal., a Douta Sentença ser revogada e substituída por outra nos termos sobreditos quanto à matéria de facto, que absolva o arguido quanto aos crimes por que vem acusado na pessoa de sua neta.
(...)

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência, cumpre agora decidir.

O recurso abrange matéria de direito e de facto já que a prova se encontra documentada.

Da discussão da causa resultaram provados os factos seguintes constantes da decisão recorrida:

1. AB, nasceu no dia 8 de julho de 2003, é filha de DF e não tem a paternidade estabelecida.
2. AB, viveu com os seus avós, tia e por alguns períodos de tempo também com a sua mãe, no Lugar do (...), desde o seu nascimento até 2/03/2016, data que ingressou na Casa da Criança da Santa Casa da Misericórdia (...) por acordo celebrado em processo de Promoção e Proteção.
3. AB tem surdez profunda bilateral.
4. O arguido MC, é avô da AB e coabitava com a mesma.
5. Em data que não foi possível apurar em concreto mas no ano de 2014, quando AB tinha 11 anos de idade, o arguido seu avô, quando se encontravam sozinhos pôs as mãos nos peitos daquela, fazendo pressão.
6. Desde data não concretamente apurada no ano de 2014 até 2/03/2016 o arguido, pelo menos por duas vezes, pôs as mãos nos peitos de AB, fazendo pressão, apertou-lhe as pernas e puxou-a para se sentar no seu colo, fazendo força e impedindo-a de se levantar.
7. Nessas ocasiões AB empurrou o arguido, tentando libertar-se, ao mesmo tempo que fez gestos para que este a deixasse, para que retirasse as mãos dos seus peitos e disse para que este parasse.
8. O arguido, após estes comportamentos, fazia o gesto de pôr o dedo indicador na frente da boca que era interpretado por AB como sendo sinal para que a mesma se calasse e não contasse o que se havia passado.
9. O arguido não se coibiu de praticar os atos supra descritos, ofendendo assim o sentimento de criança, de inocência e de vergonha de AB, bem como a integridade física e psicológica daquela.
10. O arguido sabia e tinha consciência da incapacidade de AB para lhe resistir e avaliar, atenta a sua idade e inexperiência, os actos sexuais que sobre a mesma praticava, o que lhe foi indiferente aproveitando-se de todas essas circunstâncias apenas para satisfazer os seus instintos libidinosos.
11. Sabia outrossim que ao actuar do modo atrás descrito não só afectava o livre desenvolvimento da personalidade na esfera sexual da AB como a limitava na sua liberdade de autodeterminação sexual, o que, igualmente, lhe foi indiferente por ter sido querida toda a sua conduta.
12. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram punidas e proibidas por lei como crime.
(...)
                                            *
Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto.

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. Portanto, são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar.

Questões a decidir:
(...)
- Qualificação jurídica;

Sustenta, ainda o recorrente que os actos por si praticados com a menor não integram o conceito de acto sexual de relevo e, consequentemente, não preenchem o tipo objectivo ilícito do crime de abuso sexual de relevo.
Vejamos:
O arguido, MC foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artº 171º, nº 1 e 177, nº 1, al a) do Cod Penal.
Dispõe o artº 171 n° 1 do Código Penal:
1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
E o artº 177, nº 1 al a):
As penas previstas nos arts 163º a 165º e 167º a 176º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for ascendente, descendente, adoptante, adoptado (…)
O bem jurídico protegido pelas incriminações citadas é a autodeterminação sexual mas aqui sob uma forma particular, não face a condutas que representem extorsão de contactos sexuais de forma coactiva, mas face a condutas de natureza sexual que, tendo em conta a pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade (cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo I, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, p. 541 a 553).
O arguido punha as mãos nos peitos de AB, fazendo pressão, apertou-lhe as pernas e puxou-a para se sentar no seu colo, fazendo força e impedindo-a de se levantar. Este acto numa criança de onze anos é sem dúvida um acto sexual de relevo.
Acto sexual de relevo é aquele que de um ponto de vista predominantemente objectivo assume uma natureza, um conteúdo e um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e que, desse modo, representa um entrave importante para a liberdade de determinação sexual da vítima (cf. loc. cit. p. 447 a 449).
Pressão sobre os peitos, o tocar nas pernas numa jovem de 11 anos, que começa o seu desenvolvimento sexual sem dúvida que é relevante para a determinação do conteúdo e significado do carácter sexual do ato. O abuso sexual pode ser caracterizado como um tipo de práticas que o menor, dado o seu estádio de desenvolvimento não consegue apreender e para as quais não está preparado, às quais é incapaz de dar o seu consentimento informado e que violam a lei, os tabus sociais e as normas familiares, atos estes que estão fora do carinho e afeto que deve existir na família, entre amigos e que ultrapassam a fronteira entre ternura e abuso e que visam tão só a satisfação ou gratificação do adulto.
Ora apurou-se que o arguido pressionou os peitos da menor, que era sua neta e apertava-lhe as pernas, obrigando-a a sentar-se no seu colo, são comportamentos inadequados para quem devia proteger e amparar alguém que estava á sua guarda e que, claramente, integram a previsão do nº 1 do artigo 171º do Código Penal.

Termos em que se tem o recurso interposto pelo recorrente MC por improcedente.

****
(...)

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido (...) .
Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 5 ucs

(...)

Coimbra, 18 de Dezembro de 2019

Alice Santos (relatora)

Belmiro Andrade (adjunto)