Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
604/10.3TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: PRESCRIÇÃO
OBRA ILÍCITA
Data do Acordão: 01/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 119º, Nº 2, AL. A), DO CP, 32º DO RGCO, ART. 98º, Nº 1, A) E Nº 2 DO DL 555/99, DE 16/12.
Sumário: Não constituindo a manutenção da obra ilícita elemento da contra-ordenação da realização de operações urbanísticas sujeitas a prévio licenciamento ou autorização sem o respectivo alvará, a prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado, correspondente à data da conclusão da obra.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

            Nestes autos de recurso de contra-ordenação, “MC..., Ldª”, com os demais sinais dos autos, foi condenada na coima de € 500,00 pela Câmara Municipal de ..., pela prática de contra-ordenação p. p.  no art. 98º, nº 1, a) e nº 2 do DL 555/99, de 16/12.

            Inconformada, a arguida impugnou judicialmente aquela decisão, invocando a prescrição.

            O tribunal a quo, após se certificar da inexistência de oposição à decisão por despacho, conheceu da impugnação com grande sintetismo, fixando os factos e decidindo-se pela prescrição em decisão que na parte que releva tem o seguinte teor:

            “(…)

            Factos com interesse para a decisão:

            1. A 15 de Outubro de 2003 foi levantado auto por a arguida ter procedido “à construção de um telheiro aberto com a área de 359 m2 e um depósito de carrasca com a área de 59 m2, sem que possuísse a necessária licença emitida pela Câmara Municipal de .... As referidas obras situam-se em A…, freguesia de Colmeias e encontravam-se concluídas naquela data”.

            2. Foi enviado o auto à arguida por carta de 2-11-2006 e que a arguida recebeu a 6-11-2006 (cfr. fls. 9).

            3. A arguida foi notificada da decisão administrativa a 26-02-2009 (fls. 16).

            O Direito:

            O facto ilícito de não ter licença tem natureza permanente, o que implica que o início da prescrição ocorre quando cessa tal ilícito (art. 119º, nº 2, a) do C.P. ex vi art. 32º do RGCO). O facto de a obra estar concluída nada tem a ver com o ilícito em questão, o que importa é que foi construída sem licença. O prazo prescricional é de 5 anos (art. 27º, a) do RGCO). Ocorreram duas interrupções (assinaladas em 2., em 2006 e 3., art. 28º, nº 1, a), do RGCO, reiniciando-se o prazo de cinco anos, não estando decorrido o prazo descrito no art. 28º, nº 3 do RGCO).

            Assim sendo, inexiste prescrição.

            Atenta a simplicidade da questão, não se corrige o montante da taxa de justiça (art. 8º, nº 4, do RCP).

            Decisão:

            - Improcede a presente impugnação judicial, condenando-se MC..., Ldª, da prática da contra-ordenação p. e p. no art. 98º, nº 1, a) e nº 2 do DL 555/99, de 16/12 na redacção dada pelo DL nº 177/01 de 4-6, ocorrida a 15-10-2003, na coima de quinhentos euros.

            (…)”.

            Novamente inconformada, recorre a arguida, retirando da motivação do recurso interposto as seguintes conclusões:

A - A 15 de Outubro de 2003 foi levantado auto pela CM ..., pelo facto da Arguida ter procedido a construção de natureza urbana sem que possuísse a necessária licença emitida pela Câmara Municipal de ..., encontrando-se tais obras concluídas na data do levantamento do auto.

B - Foi enviado o auto à Arguida por carta de 02/11/2006 e que a Arguida recebeu a 06/11/2006, tendo esta sido notificada da decisão administrativa a 26/02/2009.

C - Ocorreram duas interrupções do prazo prescricional, uma correspondente ao prazo que mediou entre a data da notificação à Arguida da nota de acusação até 27/NOV/2006 e outra correspondente ao prazo que mediou entre esta data e a data da notificação à firma Arguida da decisão final em 26/FEV/2009.

D - Totaliza, em conformidade, o tempo relevante para efeitos de aferição de eventual prescrição, 5 (cinco) anos e 113 (cento e treze) dias.

E - Não tem razão o respeitado Tribunal que, a presente contra ordenação não se encontrava prescrita pelo facto do facto ilícito de não ter licença tem natureza permanente, o que implica que o inicio da prescrição ocorre quando cessa tal ilícito.

F - E não tem razão porque a conduta típica não é a da manutenção de construção mas sim a da sua realização e, nessa medida, o tipo contra-ordenacional imputado à Arguida é um ilícito instantâneo, embora de efeitos duradouros, consumados e exaurido com a finalização da obra sem a devida licença ou autorização.

G - Assim, tendo presente que "o facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido"; tendo presente também que, á data da constatação da infracção pela entidade administrativa as obras já se encontravam concluídas e que, pelo menos desde essa data até à data da notificação à Arguida da decisão da entidade autuante, descontados já os períodos de interrupção passaram mais de 5 (cinco) anos encontra-se extinto por efeitos da prescrição.

H - Ainda que assim não se entenda, o que apenas por mera cautela de patrocínio se admite, avulta da decisão administrativa, bem como da douta sentença em crise que a data da conclusão das obras de construção não licenciadas não vem indicada, existindo a dúvida sobre o momento do cometimento da contra-ordenação, sendo certo que, na sua defesa a Arguida alegou que a construção em causa nos autos foi efectuada no ano de 1999, e, sendo certo também que se tal não foi considerado como provado, também é certo que não foi dado como não provado pelo que, reitera-se, subsiste a dúvida sobre o momento da construção ilícita.

I - O Tribunal deveria ter tomado posição, em termos de a considerar provada ou não provada a ante indicada alegação da Arguida da data da conclusão das obras, porém, tal não aconteceu, o que constitui a ausência de tomada de posição sobre elemento factual crucial para a decisão, porquanto estaria então em causa (caso se provasse a construção em 1999) o D.L. nº 433/82 de 27/10, na redacção que lhe foi dada pelo D.L. nº 244/95 de 14103, que tem um regime mais favorável para a Arguida em termos de prescrição do procedimento por contra ordenação.

Termos em que e no que mais que será doutamente suprido, deverá a contra ordenação ser considerar extinta por efeitos da prescrição e ainda que assim não se entenda, sempre a decisão da impugnação judicial enferma de omissão de pronúncia, nos termos do art. 379°, nº 1, al. c) do CPP, cumprindo, como permite o disposto no art. 75°, nº 2, al. b) do D.L. 433/82, de 27/12, determinar a sua anulação e a devolução do processo ao tribunal recorrido, para supressão da apontada omissão, assim se fazendo justiça.

            O M.P. respondeu, sustentando que a contra-ordenação se consumou com a verificação do facto contra-ordenacional e o levantamento do respectivo auto de notícia pela autoridade competente, data em que esta teve conhecimento da prática do facto, pelo que o procedimento contra-ordenacional não estaria ainda prescrito.

Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto acompanhou a posição do M.P. em 1ª instância, adiantando que a considerar-se que a contagem do prazo de prescrição se inicia com a conclusão da obra erigida sem licença, será imperioso determinar tal data, facto que foi ignorado na sentença recorrida, pelo que haveria que anular a decisão recorrida e determinar a sua substituição por outra que tome posição relativamente à data da conclusão da obra.

            Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

            Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

            No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, importa verificar se estão preenchidos os pressupostos de que depende a prescrição do procedimento contra-ordenacional.

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II - FUNDAMENTAÇÃO:

            A decisão recorrida concluiu pela inexistência de prescrição, considerando que o ilícito resultante da falta de licença tem natureza permanente, a implicar o início da prescrição do quando cessa o ilícito, nos termos do art. 119º, nº 2, al. a), do CP, ex vi art. 32º do RGCO.

Esta decisão incorre em erro considerável no que concerne à classificação conceptual da infracção verificada, confundindo infracções de natureza duradoura ou permanente com infracções de efeito duradouro, erro que se veio a reflectir na decisão de fundo.

            Pelo seu ajustamento ao caso sub judice, transcreveremos o que escrevemos em situação semelhante, na decisão sumária que proferimos no processo nº 1180/09.5TBFIG.C1, recurso que correu termos nesta mesma secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra (tratando-se, no entanto, de caso em que o auto foi levantado quando a obra ainda não estava concluída):

«(…)

Luís Osório, duma forma simples mas elucidativa (ainda que não muito precisa), distingue assim entre crimes instantâneos e crimes permanentes: Os crimes serão instantâneos ou permanentes “conforme se prolonga ou não, depois de produzidos, a mesma actividade que os produziu” [1].

Tipos de crimes permanentes [2], no dizer de Eduardo Correia [3], que cita como exemplo o crime de cárcere privado (actualmente, crime de sequestro), “são aqueles em que o evento se prolonga por mais ou menos tempo” e em que é possível distinguir duas fases: uma primeira fase correspondente à produção de um estado antijurídico, sem nada de característico em relação a qualquer outro crime; e uma outra, típica, correspondente à permanência ou à manutenção do evento, “… que consiste no não cumprimento do comando que impõe a remoção, pelo agente, dessa compressão de bens ou interesses jurídicos em que a lesão produzida pela primeira conduta se traduz”. Figueiredo Dias, numa visão mais actual, clarifica os conceitos nestes termos: “O crime não será instantâneo, mas antes duradouro (também chamado, embora com menor correcção, permanente) quando a consumação se prolongue no tempo, por vontade do autor. Assim, se um estado antijurídico típico tiver uma certa duração e se protrair no tempo enquanto tal for vontade do agente, que tem a faculdade de por termo a esse estado de coisas, o crime será duradouro. Nestes crimes, a consumação, anote-se, ocorre logo que se cria o estado anti-jurídico; só que ela persiste (ou dura) até que um tal estado tenha cessado. O sequestro (art. 158º) e a violação de domicílio (art. 190º-1) são exemplos desta espécie de crimes” [4].

Os crimes permanentes são assim designados por contraposição aos crimes instantâneos, ainda que estes possam ter efeitos permanentes. A diferença entre os dois tipos de ilícito reside na consumação (ou, com maior propriedade, na relação entre os efeitos do crime e a sua consumação). Assim, por exemplo, no crime de sequestro, “a pluralidade de actos necessários à detenção e encerramento da vítima, à manutenção da privação da sua liberdade e ao impedimento da fuga constitui uma única acção (típica) de sequestro” [5]. Enquanto se mantiver a privação da liberdade da vítima subsiste a consumação do crime (a sua consumação material inicia-se com a efectiva privação da liberdade e só termina com a libertação da vítima) [6]. Daí que relativamente aos crimes permanentes, o prazo de prescrição só corra desde o dia em que cessar a consumação [art. 119º, nº 2, al. a), do Código Penal]. Já no crime de furto, que é um crime instantâneo, a consumação ocorre com a pacífica apropriação do bem pelo agente, ainda que subsistam os efeitos do crime (subsiste o desapossamento do proprietário relativamente ao bem furtado). Trata-se, como refere Maia Gonçalves, de “… infracções em que a reunião dos seus elementos constitutivos (…) se adquire num determinado momento e só as suas consequências se prolongam no tempo, tratando-se, apesar das aparências, de uma verdadeira infracção instantânea que deve reputar-se definitivamente cometida na data da sua realização”.[7]

Aplicando os mesmos princípios às contra-ordenações, resulta com linear clareza que a infracção imputada ao arguido se insere nesta última categoria – infracção instantânea com efeitos duradouros – tanto quanto é certo que a manutenção da obra ilícita não constitui elemento do tipo. »

            Na verdade, dispõe o art. 98º, nº 1, al. a), do DL nº 555/99, de 16/12, que:

            1 — Sem prejuízo da responsabilidade civil, criminal ou disciplinar, são puníveis como contra-ordenação:

a) A realização de quaisquer operações urbanísticas sujeitas a prévio licenciamento ou  autorização sem o respectivo alvará, excepto nos casos previstos nos artigos 81º e 113º;

            Não constituindo a manutenção da obra ilícita elemento do tipo em apreço, a prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado, correspondente à data da conclusão da obra. Nessa medida, a verificação da prescrição pressupunha que o tribunal de 1ª instância se tivesse pronunciado sobre o facto correspondente, aliás, alegado pela recorrente e para o qual ofereceu prova. E assim, não tendo o tribunal recorrido apreciado questão de que necessariamente deveria ter conhecido, incorreu em omissão de pronúncia, nos termos do art. 379º, nº 1, al. c), do CPP, aplicável ex vi art. 75º, nº 2, al. b), do DL nº 433/82, de 27 de Dezembro, outra solução não restando senão a de anular a decisão proferida para que a primeira instância, após a produção da prova que ao caso couber, supra aquela omissão, proferindo nova sentença retirando dos factos que apurar as pertinentes consequências jurídicas.

 

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III – DISPOSITIVO:

            Nos termos apontados, concede-se provimento ao recurso, anulando-se a decisão recorrida, determinando-se a sua substituição por outra que nos termos apontados tome posição relativamente à data de conclusão das edificações a que se reporta a decisão administrativa.

            Sem tributação.

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Jorge Miranda Jacob (Relator)

   Maria Pilar de Oliveira


[1] - Cfr. “Notas ao Código Penal Português”, vol. I.
[2] - A distinção foi originariamente gizada para os crimes, mas aplica-se nos mesmos termos às infracções de natureza contra-ordenacional.
[3] - Cfr. “Direito Criminal”, Vol. I, pag. 309, Ed. de 1971, cuja exposição acompanhámos de perto na redacção deste parágrafo.
[4] - Cfr. “Direito Penal”, Parte Geral, tomo 1, pag. 314.
[5] - Idem, a fls. 984, a propósito da unidade típica de acção.
[6] - Cfr. Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, anot. ao art. 158º, pag. 409.
[7] - Cfr. “Código Penal Português”, anot. ao art. 13º, Ed., pag. 63.