Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3043/12.8TBPRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL COMUM
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
Data do Acordão: 12/02/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INST.CÍVEL DE AVEIRO.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 64º DO CPC.
Sumário: I – A imputação a um administrador de insolvência, enquanto facto gerador de responsabilidade civil extracontratual, da omissão da obrigação de emitir factura apta a propiciar o desconto do IVA a um adquirente de bens vendidos na insolvência, não configura uma actuação desse administrador resultante do exercício de prerrogativas de poder público que lhe estejam atribuídas em função do seu estatuto funcional.

II – Embora tal estatuto funcional possa envolver, em determinadas circunstâncias, actuações na veste de oficial público, isso não sucede relativamente a obrigações de base fiscal decorrentes da realização de operações de venda de bens da massa no âmbito da insolvência, como sucede com a obrigação de emitir factura.

III – Tal obrigação resulta da circunstância de estar em causa, na venda em insolvência, uma transacção de bens, uma operação sujeita a IVA, que sempre desencadearia essa obrigação, independentemente das particularidades funcionais do agente dessa venda.

IV – Assim, é da competência dos tribunais comuns, não dos tribunais administrativos e fiscais, uma acção visando a imputação delitual de um administrador de insolvência por não ter entregue, ao adquirente de um bem na insolvência, factura para efeitos de desconto do IVA, afirmando-se esse adquirente prejudicado pela impossibilidade de realizar o desconto do valor correspondente ao IVA.

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa

            1. Na jurisdição comum[1] a sociedade S…, Lda. (A. e Apelante no contexto do presente recurso) demandou R… (1º R. e Apelado) e a Massa Insolvente de A…, S.A. (2ª R. e Apelada). O primeiro dos RR., administrador da insolvência da sociedade 2ª R., realizou, no quadro desse processo concursal, a venda de diversas verbas – aparentemente sucatas – apreendidas para a referida massa insolvente. Ora, existindo no valor total pago pela A. nessa aquisição à massa insolvente (€92.865,00) uma parcela respeitante a IVA (€17.363,00), que a A. deduziu na respectiva contabilidade[2], viu essa dedução ser desatendida pela Administração Fiscal, em acção inspectiva à A., por inexistência de factura ritualmente correcta[3], sendo que o 1º R. recusou a emissão de factura regular. Afirma a A. ter perdido esse valor do IVA, por impossibilidade de o deduzir, expondo-se, ainda, a outras sanções por infracção fiscal, imputando esta situação, a título de responsabilidade civil extracontratual (artigo 483º, nº 1 do Código Civil), aos RR., com especial ênfase na actuação do R. administrador da insolvência, formulando contra estes o seguinte pedido:
“[…]
[D]eve a acção ser julgada procedente por provada e por via dela serem os RR. condenados a pagar à A. a quantia de €17.365,00 e bem assim os encargos, designadamente juros moratórios e coimas que a Administração Fiscal exigir, e ainda dos custos do presente processo e com o mandatário, a liquidar em execução de sentença, tudo acrescido de juros legais até cumprimento integral e completo.
[…]”[4].

            1.1. Contestaram os RR., conjuntamente, pugnando pela improcedência da acção, afirmando ter constituído opção da A. – eventualmente do seu TOC – a dedução do valor do IVA aqui em causa, sendo a esta (à A.) imputável a hipotética não dedutibilidade desse valor. Afirmam os RR., ademais disso, não lhes ser exigível, como dever fiscal legalmente estabelecido, a emissão de factura relativamente às vendas realizadas na fase de liquidação num processo de insolvência.

            1.2. Findos os articulados, proferiu o Tribunal a fls. 114/120 o despacho previsto no artigo 595º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)corresponde este à decisão objecto do presente recurso –, declarando a incompetência em razão da matéria daquele tribunal comum por considerar ser competente a jurisdição administrativa e fiscal.

            1.3. Inconformada recorreu a A. formulando, a rematar a motivação de tal recurso, as conclusões que aqui se transcrevem:
“[…]
1. A douta sentença julgou verificada a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal a quo.
2. Errou a douta decisão, porquanto não se verifica, com o devido respeito, a alegada incompetência material, sendo competente para dirimir os factos constantes dos autos o Tribunal a quo.
3. O poder de liquidar impostos pertence à Administração.
4.O Administrador de Insolvência não é considerado órgão da Administração.
5. A responsabilidade que for imputada aos administradores de insolvência obedece ao regime geral e não ao regime da responsabilidade civil do Estado.
6. A douta sentença violou, entre o mais, o disposto no artigo 4º, a) e h) do ETAF; artigo 10º do CPPT; artigo 18º, nº 1 da LGT e artigo 483º e ss do Código Civil.
[…]”.


II – Fundamentação

2. Caracterizado o desenvolvimento do processo que conduziu à presente instância de recurso, importa apreciar a impugnação da Apelante, sendo que o âmbito objectivo desta foi delimitado pelas conclusões transcritas no item antecedente (artigos 635º, nº 4 e 639º do CPC)[5]. Assim, fora dessas conclusões só valem, em sede de recurso, questões que se configurem como de conhecimento oficioso. Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas (di-lo o artigo 608º, nº 2 do CPC). E, enfim – esgotando a enunciação do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

As incidências de facto relevantes para a apreciação do recurso são de cariz essencialmente processual, estão documentadas nos autos, e resultam do relato realizado ao longo do antecedente item 1.

2.1. Constitui único fundamento do recurso a determinação, no confronto entre o tribunal comum (aqui protagonizado pela Comarca de Aveiro) e os tribunais fiscais (a jurisdição administrativa e fiscal), qual o órgão jurisdicional materialmente competente para o julgamento de uma acção – esta acção – com as características que a A. conferiu à presente no articulado inicial, nos termos acima particularizados no item 1. deste Acórdão.

Ora, resumindo essas características – já que são elas que nos permitem resolver a questão de competência material colocada – diremos estar em causa, na petição inicial[6], uma acção fundada em responsabilidade civil extracontratual decorrente de um alegado preenchimento da facti species do artigo 483º, nº 1 do Código Civil (CC), por um administrador de insolvência, actuando nessa qualidade (e, por via da actuação dele, por uma determinada massa insolvente), traduzida essa imputação delitual na causação de danos patrimoniais à sociedade A., num quadro de alegado incumprimento por esse administrador de insolvência de uma obrigação fiscalmente relevante, traduzida na emissão de factura apta a servir de suporte ao desconto do IVA pela A., relativamente a uma compra realizada na fase de liquidação desse processo de insolvência administrado pelo 1º R. Desta omissão (interessará aqui o dever de praticar o acto omitido – artigo 486º do CC) teria resultado para a A. um prejuízo que esta quantifica no exacto montante do IVA não aceite para desconto.

2.1.1. O quadro legal de referência da acção proposta pela A. assenta, assumidamente, como dissemos, numa imputação delitual por omissão realizada aos RR., apresentada como fonte de um dever de indemnizar. Esta imputação pressupõe que alguém – aqui seria o administrador da insolvência enquanto gestor da massa insolvente –, com dolo ou mera culpa, viole ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, produzindo, em função dessa actuação danos. O mencionado pressuposto correspondente à violação de uma “disposição legal destinada a proteger interesses alheios” referir-se-ia aqui – e estamos a descrever a acção na perspectiva apresentada pela A. – à obrigação legal impendente sobre os RR. de emitir factura[7].

A questão da competência material, como referida à jurisdição administrativa e fiscal, é caracterizada na decisão recorrida por referência às alíneas a) e h) do nº 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF)[8].

Não cremos que a indicada alínea a) abarque, em si mesma, o tipo de situação visada por um pedido indemnizatório fundado em responsabilidade civil extracontratual, como aqui sucede, mesmo quando a caracterização dos pressupostos da imputação delitual visada configure o interesse legalmente protegido violado num quadro em que sejam relevantes normas de direito administrativo ou fiscal. Vale a este respeito, correspondendo a um argumento interpretativo sistemático, a constatação da referenciação expressa das situações em que está em causa responsabilidade civil extracontratual a outros locais do elenco do nº 1 do artigo 4º do ETAF (às alíneas g), h) e i)), indicando fortemente não ser esse o caso visado na alínea a) do mesmo nº 1[9].

Mais adequada à situação que nos ocupa poderá parecer, à primeira vista, a alocação de competência material à jurisdição administrativa e fiscal constante das alíneas h) e i) do nº 1 do artigo 4º do ETAF – responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos e dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. Vale relativamente a estas situações, quando pretendemos abordar o caso concreto da actuação de um administrador de insolvência, a caracterização da posição deste como agente público (agente também dotado de poderes públicos), no sentido de algo existir na função que este exerce no âmbito do processo de insolvência que decorre de uma atribuição legal de poderes e faculdades de actuação que, originariamente, poderíamos referenciar à actuação do Tribunal (dos seus agentes públicos) no quadro correspondente à adjectivação concursal. Esta questão é semelhante, para não dizer totalmente idêntica, à que se coloca, na adjectivação executiva singular[10], relativamente à posição do agente de execução[11], quanto a possíveis incidências dos actos por ele praticados no exercício do respectivo múnus profissional, quando encarados na perspectiva de uma possível imputação delitual. Ora, a este respeito, reconhecendo-se que a questão da alocação de competência para apreciação desses actos à jurisdição comum ou à administrativa e fiscal é susceptível de conduzir a soluções dispares[12], propendemos a seguir – rectius, a referenciar ao administrador de insolvência pela actuação no quadro do processo concursal –, enquanto precedente que assumimos como persuasivo, o entendimento que se expressa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/04/2013 (Abrantes Geraldes)[13], assim sumariado (pelo respectivo Relator):
“[…]
1. Embora as atribuições do agente de execução não se circunscrevam às que são típicas de uma profissão liberal, envolvendo também actos próprios de oficial público, para efeitos de responsabilidade civil emergem os aspectos de ordem privatística que resultam, nomeadamente, da forma de designação, do grau de autonomia perante o juiz, do regime de honorários, das regras de substituição e de destituição, da obrigatoriedade de seguro ou do facto de o recrutamento, a nomeação, a inspecção e a acção disciplinar serem da competência de uma entidade que não integra a Administração.
2. A responsabilidade civil que aos agentes de execução for imputada, no âmbito do exercício da sua actividade, obedece ao regime geral, e não ao regime da responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas previsto no Decreto-Lei nº 48.051, de 21-11-1967 (entretanto substituído pela Lei nº 67/2007, de 31de Dezembro).

3. Assim acontece com a responsabilidade decorrente da realização indevida de uma penhora, numa ocasião em que a execução se encontrava suspensa por decisão judicial, nos termos do art. 818º, nº 1, do CPC, depois de o executado, que deduzira oposição, ter prestado caução.
[…]” (sublinhado acrescentado).

            2.1.1.1. Complementarmente, ampliando a justificação da opção aqui assumida – e desde já se adianta que o recurso procederá – pela exclusão da competência material da jurisdição administrativa e fiscal – optando-se, pois, por referir essa competência à jurisdição comum –, ampliando esta justificação, dizíamos, sublinharemos que o caso concreto, por via da actuação do 1º R. aqui apresentada como elemento desencadeador de uma imputação delitual, contém especificidades que reforçam que a solução da questão da competência material para o respectivo julgamento seja entendida em sentido divergente da decisão recorrida.

            Com efeito, estando em causa uma alegada omissão do dever de emitir factura, reportada a uma transmissão de bens realizada em processo insolvência, factura esta com os elementos previstos no Código do IVA (no respectivo artigo 29º, nº 1, alínea b) transcrito na nota 9, supra), verificamos que essa obrigação impende sobre todos os sujeitos passivos do imposto, independentemente da sua natureza[14], não se apresentando como conexionada com qualquer prerrogativa de poder público especificamente atribuída a um administrador de insolvência.

            Note-se que este elemento – estar em causa o exercício de uma prerrogativa de poder público – não é irrelevante no quadro da alocação da competência em razão da matéria para julgamento de litígios cujo objecto corresponda a imputações delituais dirigidas a entes públicos e respectivos servidores e agentes ou a sujeitos privados aos quais seja aplicável, como diz a alínea i) do nº 1 do artigo 4º do ETAF, o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público[15].

            De facto, independentemente da possibilidade de assimilação ou equiparação à categoria de ente público do destinatário da imputação delitual, não deixa a questão da competência material para apreciação do litígio correspondente, tal como sucede com o próprio regime da responsabilidade do Estado quando estendido a privados ou entidades híbridas dotadas de algum tipo de poder de autoridade (e é o caso do administrador de insolvência), de pressupor que esteja em causa, na actuação destas, algum tipo de prerrogativa de poder público ou que esteja em causa, nessa actuação, matéria regulada por disposições ou princípios de direito administrativo (v. o nº 5 do artigo 1º do RRCEEEP indicado na nota 17)[16]. Não é este o caso do dever de emitir factura, sendo que tal obrigação impenderia, em qualquer transmissão de bens que preenchesse os pressupostos de tributação em IVA, sobre quem realizasse essa transmissão[17], não introduzindo qualquer especificidade relevante a circunstância dessa obrigação ser aqui referenciada pela A. à actuação de um administrador de insolvência no quadro de uma venda de bens apreendidos para a massa.

            2.2. Vale tudo o que se disse – e corresponde à conclusão decisória a formular no presente recurso – pela afirmação de corresponder a competência material para julgamento da presente acção à jurisdição comum (artigo 64º do CPC), com a consequente procedência do recurso.

            2.3. Sumário elaborado pelo relator:
I – A imputação a um administrador de insolvência, enquanto facto gerador de responsabilidade civil extracontratual, da omissão da obrigação de emitir factura apta a propiciar o desconto do IVA a um adquirente de bens vendidos na insolvência, não configura uma actuação desse administrador resultante do exercício de prerrogativas de poder público que lhe estejam atribuídas em função do seu estatuto funcional;
II – Embora tal estatuto funcional possa envolver, em determinadas circunstâncias, actuações na veste de oficial público, isso não sucede relativamente a obrigações de base fiscal decorrentes da realização de operações de venda de bens da massa no âmbito da insolvência, como sucede com a obrigação de emitir factura;
III – Tal obrigação resulta da circunstância de estar em causa, na venda em insolvência, uma transacção de bens, uma operação sujeita a IVA, que sempre desencadearia essa obrigação, independentemente das particularidades funcionais do agente dessa venda;
IV – Assim, é da competência dos tribunais comuns, não dos tribunais administrativos e fiscais, uma acção visando a imputação delitual de um administrador de insolvência por não ter entregue ao adquirente de um bem na insolvência, factura para efeitos de desconto do IVA, afirmando-se esse adquirente prejudicado pela impossibilidade de realizar o desconto do valor correspondente ao IVA.  


III – Decisão

            3. Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a decisão recorrida, considerando-se materialmente competente para o julgamento do processo a jurisdição comum. Nesta devem, pois, prosseguir os autos.

            As custas ficam a cargo da Apelada.

(J. A. Teles Pereira - Relator)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)


[1] Que, subsequentemente ao despacho de fls. 95/96, se estabilizou territorialmente na Comarca de Aveiro.
[2] Nos termos do Código do IVA:
Artigo 19º
Direito à dedução
1 – Para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem, nos termos dos artigos seguintes, ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efectuaram:

a) O imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos;

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.


[3] Interessa a este respeito o documento junto pela A. a fls. 17/21 e o disposto no artigo 36º do CIVA.
[4] Para efectiva compreensão do sentido da acção proposta – é em função do desenho desta pela A. que haverá que resolver a questão da competência material em causa neste recurso (v. nota 8, infra) –, para compreensão do sentido da acção, dizíamos, aqui transcrevemos os trechos centrais do respectivo articulado inicial:
“[…]

1.- A A. é uma sociedade comercial por quotas, cujo objecto é a comercialização de sucatas.

2.- No âmbito da sua actividade, a A. adquiriu em 31 de Janeiro de 2012 por adjudicação no processo de insolvência … a correr termos no segundo Juízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, em que é insolvente a empresa “A…, Lda”, as verbas n.ºs 1 a 87 do auto de apreensão de bens e das verbas n.ºs 90 a 97 do auto de apreensão de bens – aditamento, conforme documentos que se juntam e dão por reproduzidos.
[…]

3.- O preço global da venda foi de 75.500,00 €, a que acresceu o IVA de €17.365,00, importando o total de €92.865,00.

4.- Que a A. pagou.

5.- Tendo o primeiro R. emitido a declaração – Recibo – cfr. doc. n.º 1.

6.- O primeiro R. não emitiu a factura.

7.- Bem como também a não emitiu a segunda R., representada pelo primeiro R.

8.- Dado o IVA ser dedutível, porquanto é liquidado aquando a venda pela A., esta procedeu à sua dedução nos respectivos elementos contabilísticos.
[…]

9.- Em acção de inspecção tributária, a Administração Fiscal veio não considerar a dedução do IVA do atrás referido montante de €17.365,00.
[…]

10.- A A., por diversas vezes, solicitou ao primeiro R. que procedesse à emissão da factura para que regularizasse a situação fiscal.

11.- Sucede que o primeiro R. nunca emitiu a factura, apesar de inúmeras insistências, alegando não haver lugar à sua emissão.

12.- Por seu turno, a Administração Fiscal exigiu a factura, acabando por não considerar a dedução dos €17.365,00 .

13.- Ficando assim a A. prejudicada neste montante.
[…]

17.- A actuação do primeiro R. causou danos à A.

18.- Que ficou sem poder deduzir a seu favor o valor do IVA que suportou no montante de €17.365,00, porquanto a Administração Fiscal não aceitou a sua dedução.

19.- Tendo ainda de suportar os encargos que a Administração Fiscal fizer recair, designadamente juros moratórios e coimas, por força do disposto no art.º 114º, n.º 2 e 26º, n.º 4 do RGIT, por violação do disposto no art.º 20º, n.º 1 do Código do IVA.

20.- Tudo isto causado pelo primeiro R. a quem incumbia a emissão da factura, em nome da segunda R., assim recaindo a responsabilidade sobre ambas os RR.

21.- “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação” – cfr. art.º 483º, n.º 1 CC.

22.- Como se disse a A. está lesada no montante de €17.365,00 e dos encargos e coimas que advierem, para já não conhecidos, mas cuja liquidação se fará em execução de sentença.

23.- Pelo que devem os RR serem obrigados a pagar à A. todos os danos já verificados quanto ao imposto de €17.365,00 e quanto aos encargos e coimas que vierem a recair sobre a A., bem como os juros vincendos até à data em que os RR pagarem integralmente.

24.- Por culpa também dos RR tem a A. gastos com a presente acção, designadamente custas processuais e custos com o mandatário, não conhecidos, mas a liquidar em execução de sentença, porquanto foram ocasionadas por acção directa dos RR, devendo estes serem responsáveis pelo seu pagamento.
[…]”.
[5] Vale aqui como precedente, com contínua relevância no CPC actual, o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
Sumário:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[6] Já que “[a] competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta, concretamente, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada na petição inicial, relevando, designadamente, a identidade das partes, a pretensão e os seus fundamentos […]” [Acórdão do Tribunal de Conflitos de 20/09/2012 (Santos Botelho), processo 02/12, disponível na base do IGEFEJ em:
http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/9afc35e102cd118280257a8c003ae1...].
[7] Resultante do artigo 29º, nº 1, alínea b) do CIVA:

Artigo 29º
Obrigações em geral
1 – Para além da obrigação do pagamento do imposto, os sujeitos passivos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º devem, sem prejuízo do previsto em disposições especiais:
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
b) Emitir obrigatoriamente uma fatura por cada transmissão de bens ou prestação de serviços, tal como vêm definidas nos artigos 3.º e 4.º, independentemente da qualidade do adquirente dos bens ou destinatário dos serviços, ainda que estes não a solicitem, bem como pelos pagamentos que lhes sejam efetuados antes da data da transmissão de bens ou da prestação de serviços;
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.
Apresenta interesse prático, na caracterização desta obrigação de emissão de factura, a consulta ao Ofício nº 30136, de 19/11/2012, da Autoridade Tributária e Aduaneira – Direcção de Serviços do IVA, disponível no seguinte endereço do “Portal das Finanças”:
http://info.portaldasfinancas.gov.pt/NR/rdonlyres/AC8A229F-7070-4AAA-938CE5A37B86374D/0/IVA-of%20circ%2030136_ver2_.pdf
[8] Que aqui transcrevemos acrescentando, por razões que a ulterior exposição evidenciará, a alínea i):
Artigo 4º
Âmbito da jurisdição
1 – Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.
[9] Daí que “[a]s pretensões correspondentes às alíneas a) e b) [do artigo 4º, nº 1 do ETAF] [sejam] dirigidas à emissão de sentenças meramente declarativas ou de simples apreciação. Trata-se de obter apenas o reconhecimento (no sentido estrito de declaração) de situações jurídicas subjectivas (ou seja, de direitos ou interesses legalmente protegidos), de qualidades ou do preenchimento de condições.” (Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 2003, p. 95).
[10] E lembramos que, com algumas especificidades, o processo de insolvência constitui uma execução universal, conforme expressamente o define o artigo 1º do CIRE.
[11] Como o qualifica José Lebre de Freitas, “[…] misto de profissional liberal e de funcionário público, cujo estatuto de auxiliar da justiça implica a detenção de poderes de autoridade no processo executivo” (A Acção Executiva. À luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª ed., Coimbra, 2014, p. 34).
[12] Como indica José Lebre de Freitas na obra citada na nota anterior (pp. 34/35, nota 62).
[13] Acórdão proferido no processo nº 5548/09.9TVLSNB.L1.S1, disponível na base do IGFEJ, em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/40d1dd1cca4b2c3580257b4b002fd3ab.
[14] Aqui, por via da remissão do artigo 29º, nº 1 do CIVA, os sujeitos indicados no artigo 2º, nº 1, alínea a) do mesmo Código:
Artigo 2º
Incidência subjectiva
1 – São sujeitos passivos do imposto:
a) As pessoas singulares ou colectivas que, de um modo independente e com carácter de habitualidade, exerçam actividades de produção, comércio ou prestação de serviços, incluindo as actividades extractivas, agrícolas e as das profissões livres, e, bem assim, as que, do mesmo modo independente, pratiquem uma só operação tributável, desde que essa operação seja conexa com o exercício das referidas actividades, onde quer que este ocorra, ou quando, independentemente dessa conexão, tal operação preencha os pressupostos de incidência real do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) ou do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC);
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.
[15] Interesse ter presente a este respeito o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (RRCEEEP), aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, concretamente o seu artigo 1º, nºs 1, 2 e 5:
Artigo 1º
Âmbito de aplicação

1 – A responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial.

2 – Para efeitos do disposto no número anterior, correspondem ao exercício da função administrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.

5 – As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares de órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
[16] Como refere Filipa Galvão, anotando o artigo 1º do RRCEEEP:
“[…]
[A] distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada é ainda relevante para determinar o regime aplicável à responsabilidade das pessoas jurídicas privadas: estas ficam sujeitas ao presente regime quando as suas acções ou omissões sejam adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
[…]” (Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Rui Medeiros (org.), Lisboa, 2013, p. 64).
[17] Estamos aqui a argumentar tomando por base, como não poderia deixar de ser, a construção da acção nos exactos termos delineados na petição inicial. Nesta, a disposição legal destinada a proteger interesses alheios cuja violação é atribuída aos RR., corresponderia à obrigatoriedade de emitir factura decorrente do Código do IVA.
Saber se essa obrigatoriedade existia para os RR. como “vendedor” é questão já relativa à apreciação do mérito da acção e exterior à definição da competência material.
Note-se que a possibilidade de a obrigação de emitir factura ser aqui modelada, na sua referenciação, pela eventualidade de o devedor do IVA (o sujeito passivo do imposto) ser o adquirente (a A.) – e esta observação vale aqui como um simples obiter dictum – resulta da circunstância de parecer ter estado em causa uma venda de sucata à A. Esta incidência pode não ser irrelevante para determinação de quem (alienante ou adquirente dos bens) deve pagar o IVA nesta operação (v. o artigo 2º, nº 1, alínea i) do CIVA e o anexo E, para o qual este remete, e o nº 13 do artigo 36º do mesmo Código; esta situação é expressamente referida no ponto 6.2 da circular de 19/11/2012, da Autoridade Tributária e Aduaneira acima mencionada na nota 9 deste Acórdão).