Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
83525/14.3YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: INJUNÇÃO
ACÇÃO DE HONORÁRIOS
Data do Acordão: 05/27/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: DECRETO-LEI Nº 269/98, DE 1 DE SETEMBRO.
Sumário: O pagamento relativo a serviços prestados no âmbito dum mandato forense pode ser acionado através dum procedimento de injunção.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

                1.            L... (de futuro, apenas Autora) veio a juízo requerer a condenação de D... (de futuro, apenas Ré) a pagar-lhe € 7.211,91, mais juros de mora, a título de serviços que lhe prestou no âmbito da sua profissão de advocacia.

                Para o efeito utilizou o procedimento de injunção.

                Notificada, veio a Ré a deduzir oposição com fundamento em considerar exagerados os honorários pedidos.

                Remetidos os autos a Tribunal, e após exercício do contraditório, veio o M.mº juiz a proferir decisão liminar, absolvendo a Ré da instância, por considerar existir erro na forma de processo.

2.            Inconformada, vem a Autora apelar de tal decisão, formulando as seguintes conclusões:

...

3.            A Ré não contra-alegou.

Dispensados os vistos (art. 657º nº 4 do CPC), cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

4.            OS FACTOS

Transcrevem-se os argumentos essenciais da decisão recorrida:

«(…)

O Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, na senda da crescente preocupação com a simplificação da legislação processual e com o aumento da eficiência do sistema processual, veio acolher uma solução de desjudiciarização (com o regime da injunção) e de simplificação processual (através da acção declarativa de condenação nela contido).

Com efeito, dispõe o art.º 1.º do seu regime preambular que “é aprovado o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15 000, publicado em anexo, que faz parte integrante do presente diploma” (redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto).

E “considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o art.º 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro” (art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro).

O modelo de requerimento de injunção – aprovado por portaria do Ministério da Justiça – é apresentado na secretaria judicial e deve conter os elementos discriminados no n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, entre os quais avulta o constante da alínea d), nos termos da qual deve o requerente “expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão”.

Esta exposição sucinta dos factos que à pretensão do requerente serve de fundamento assume particular acuidade no quadro normativo em análise, consubstanciando verdadeiramente a causa de pedir prevista em tese geral nos artigos 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, alínea d), 1.ª parte, ambos do Código de Processo Civil.

Visa o presente procedimento, consoante se deixou já realçado, o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro e art.º 1.º do respectivo regime preambular). O seu âmbito material, coincidindo com o da acção declarativa prevista naquele diploma, estende-se, deste modo, aos casos de incumprimento contratual, apenas para exercício por parte do credor não inadimplente da acção de cumprimento de obrigação pecuniária de montante não superior à alçada da Relação (art.º 817.º do Código Civil), sem prejuízo das igualmente exigíveis obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro.

As obrigações pecuniárias aqui exigíveis terão que ter necessariamente fonte contratual (cfr. artigos 405.º e ss., inseridos sistematicamente na Secção I do Capítulo II do Título I do Código Civil e 874.º e ss., inseridos no Título II, ambos do Código Civil), excluindo-se assim outras fontes de obrigações pecuniárias.

Ora, verificada a causa de pedir expressa no requerimento de injunção, assim como o seu pedido, conclui-se que a requerente visa a condenação da requerida no montante de honorários e despesas relativos à sua intervenção como Advogada em diversas acções judiciais e em inquérito que correu termos nos Serviços do Ministério Público de Leiria.

Por conseguinte, face ao âmbito de aplicação desta acção especial, pode legitimamente concluir-se que tal pretensão não encontra aqui viabilidade. “Pensada essencialmente para os contratos de crédito ao consumo, esta acção não se coaduna com o pedido de condenação no pagamento de honorários por serviços de patrocínio prestados por advogados ou solicitadores no âmbito de contratos de mandato forense quando o seu montante tenha sido, como é a regra, fixado unilateralmente por aqueles causídicos” (Salvador da Costa, “A Injunção e as Conexas Acção e Execução”, 6.ª edição, 2008, pág. 50).

Deste modo, em regra, os mesmos só podem exigir o pagamento de honorários no âmbito das acções com processo comum desconexionadas dos procedimentos de injunção, havendo no caso em apreço uma situação de erro na forma de processo. (…)».

                5.            O MÉRITO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 608º nº 2, ex vi do art. 663º nº 2, do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).

No caso, uma única questão se impõe decidir: pode o pagamento de honorários forenses ser acionado no âmbito de um processo de injunção?

5.1.         HONORÁRIOS FORENSES E PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO

Se bem a interpretamos, a decisão recorrida faz residir o obstáculo ao uso do processo de injunção para se obter o pagamento de honorários forenses no facto de estes serem fixados unilateralmente.

Nos termos do art. 1º do Decreto-Lei nº 269/98, de 01.09 (sujeito a sucessivas alterações, a última das quais introduzida pelo Decreto-Lei nº 226/2008, de 20.11), e por força do art. 7º do seu regime Anexo, o procedimento de injunção destina-se a “exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior (…)”.

O preceito alude apenas a “contratos”, sem distinção, impondo apenas uma limitação em função do valor da obrigação que se pretende exigir.

E onde a lei não distingue, não deve fazê-lo o intérprete.

Ora, o mandato é um contrato de prestação de serviços; e, porque se tratava de “serviços de natureza jurídica”, ao caso cabe mais especificamente a figura do mandato forense, uma das modalidades da prestação de serviços: art. 1155º e 1157º do Código Civil (de futuro, apenas CC).

Ao que sabemos, a jurisprudência é largamente maioritária no sentido de poder recorrer-se ao procedimento de injunção para obter o pagamento de honorários resultantes de mandato forense. [[1]]

Mas, no que toca ao erro na forma de processo, outra perspetiva se impõe dado que se trata de uma questão adjetiva.

A injunção constitui um procedimento especial, como resulta, aliás, da própria epígrafe do artigo.

Enquanto procedimento especial, está sujeito às estipulações legais que lhe são próprias: art. 546º nº 2 do CPC.

Uma das características mais pertinentes deste procedimento de injunção é a sua natureza pré-judicial, comportando uma atividade meramente administrativa do secretário de justiça. [[2]]

Ora, se aceitarmos que o erro na forma de processo só existe para processos jurisdicionais, tanto bastaria para se concluir pela sua inexistência.

Sucede que esse procedimento de injunção prevê duas situações em que ele não termina como tal, antes se transmutando, assumindo outra natureza, a de ação declarativa de condenação, que pode ser especial ou comum, como decorre dos arts. 1º a 5º, ex vi do art. 7º e 17º nº 1 do referido Anexo ao Decreto-Lei nº 269/98.

Tais situações são a dedução de oposição ou a frustração da notificação do Requerido: art. 16º nº 1 do referido Anexo.

A transmutação ou metamorfose [[3]] significa a transformação de uma coisa em algo diferente.

                «O procedimento de injunção e a ação declarativa que, eventualmente, se lhe possa seguir, são, jurídico-processualmente, realidades diversas e que assumem natureza e efeitos diferenciados.». [[4]]

E, tratando-se de uma nova realidade (ação declarativa de condenação versus procedimento de injunção) já esta não pode estar sujeita às regras do procedimento anterior (de injunção).

No caso, a Ré deduziu oposição, o que implicou a transmutação da injunção para processo comum, mediante envio à distribuição com base no art. 16º nº 2 do Anexo ao Decreto-Lei nº 269/98.

Assim, o ato distribuição funciona como a instauração de uma ação, como se duma entrega da petição inicial na secretaria se tratasse. [[5]]

A partir daí já tudo se passará de acordo com as regras processuais aplicáveis à ação em causa, e não de acordo com as regras do procedimento de injunção.

Na verdade, há que atender não só à diversa natureza dessas realidades __ no caso do procedimento de injunção estamos face a um processo pré-judicial, de natureza administrativa; já a ação que se lhe segue assume natureza jurisdicional __, como ao seu distinto ritualismo processual.

Como é sabido, enquanto que as regras do processo comum podem ser aplicáveis subsidiariamente ou por analogia aos processos especiais, já a inversa não é verdadeira. [[6]]

Consequentemente, após o ato de distribuição, tratando-se já duma ação, não faz sentido imputar-lhe um erro na forma de processo por referência a um processo (de injunção) que “deixou de existir”.

Acresce que, a nulidade decorrente do erro na forma de processo, só deve implicar a extinção da instância nos casos em que os autos não possam ser aproveitados, designadamente por tal implicar uma diminuição das garantias do réu: art. 193º nº 1 e 2 do CPC.

Tal não ocorre no caso.

No requerimento de instrução, a Autora descriminou todos os serviços prestados e a Ré, ciente desses serviços (cuja nota, aliás, já lhe tinha sido previamente enviada), teve oportunidade de os impugnar, o que fez mediante oposição à injunção, onde, não negando os factos invocados, apenas suscita a questão de considerar os honorários exagerados.

Nenhum direito lhe foi pois postergado nem limitado.

                6.            SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)

O pagamento relativo a serviços prestados no âmbito dum mandato forense pode ser acionado através dum procedimento de injunção.

                III.           DECISÃO

7.            Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, devendo a ação prosseguir os seus termos.

Custas a cargo da Ré (sem prejuízo do apoio judiciário).

                                                                                                              Coimbra, 27/05/2015

(Relatora, Isabel Silva)

(1ª Adjunto, Alexandre Reis)

(2º Adjunto, Jaime Ferreira)

[[1]] Cf., do TRP, acórdão de 22.06.2006 (processo 0632709); do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), acórdãos de 30.04.2013 (processo 162450/12.1YIPRT.L1-7), de 02.10.2012 (processo 31205/09.8T2SNT-A.L1-7), de 27.03.2012 (processo 262406/09.5YIPRT.L1-7) e de 29.09.2009 (processo 167945/08.9YIPRT.L1-7); deste Tribunal da Relação de Coimbra (TRC), acórdão de 14.10.2014 (processo 138823/13.1YIPRT.C1) e, do Tribunal da Relação de Évora (TRE), acórdão de 05.05.2011 (processo 349611/10.4YIPRT.E1).
[[2]] Cf. Salvador da Costa, “A Injunção e as Conexas Acção e Execução”, Almedina, 6ª edição, pág. 165 e 277.
[[3]] Nas palavras de Edgar Valles, "Cobrança Judicial de Dívida, Injunções e Respectivas Execuções", Almedina, 4ª edição, pág. 110.
[[4]] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP), de 30.10.2007 (processo 0725025), disponível em http://www.dgsi.pt/, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[[5]] Segundo Salvador da Costa, obra citada, pág. 270, «A referida transmutação materializa-se através do acto de distribuição (...).»
[[6]] Neste sentido, cf. Alberto dos Reis, "Processos Especiais", vol. I, Coimbra Editora, pág. 2, 24 e 37; José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, "Código de Processo Civil Anotado", vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 236.