Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1110/21.6T8LMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
RESIDÊNCIA HABITUAL DA CRIANÇA
Data do Acordão: 06/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE LAMEGO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 59.º, 62.º E 63.º DO CPC E REGULAMENTO (CE) N.º 2201/2003, DE 27 DE NOVEMBRO
Sumário: I - Nos termos do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, o conceito de “residência habitual da criança” deve ser definido a partir da legislação comunitária, da finalidade do próprio Regulamento Comunitário, aferindo-se casuisticamente, sendo certo que se pressupõe uma certa duração e estabilidade, devendo corresponder ao lugar que traduz a integração da criança num ambiente social e familiar e que não se trate de uma presença num determinado Estado-Membro de carácter temporário ou ocasional.

II - No caso, as crianças viviam em Portugal desde 2019, quando, fruto de um acordo de promoção e proteção, em agosto de 2021, foi aplicada uma medida cautelar de apoio junto do pai, por um mês, tendo em vista o restabelecimento da saúde da mãe, vindo então aquele a levá-las para França.

III - Neste contexto, o tribunal português é competente para a regulação do exercício das responsabilidades parentais.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            Está em causa a seguinte decisão:

O Ministério Público veio instaurar a presente acção de regulação das responsabilidades parentais das crianças AA e BB, contra os seus pais CC e DD.

Foi suscitada a questão da competência internacional dos Tribunais Portugueses.

Pronunciou-se a progenitora, através do requerimento junto com a refª 5173224, pugnando pela competência deste Tribunal para a regulação das responsabilidades parentais, uma vez que as crianças tinham a sua residência habitual até Agosto de 2021 em Portugal, e foi por intervenção da CPCJ, como medida temporária, que foram para França.

A Digna Magistrada do Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser declarada a incompetência internacional deste Tribunal.

Vejamos.

Resulta dos autos que as crianças AA e BB se encontram a residir com o progenitor em França desde Agosto de 2021, o que se mantém à data- cfr. Acordo de promoção e proteção, peças processuais do processo da CPCJ que se encontram juntos e ainda as declarações dos progenitores prestadas na conferencia de pais.

Os presentes autos foram instaurados em 13.10.2021.

De acordo com o art.59º do CPC, “sem prejuízo do que se ache estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos arts.62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do art.94º.”

Os factores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses encontram-se, assim, referidos nos artigos 62.º e 63.º do CPC, sem embargo do estabelecido nas normas de direito internacional, bem como nas convenções internacionais ratificadas pelo Estado Português – cf. artigo 8.º da CRP.

Entre estas contam-se os Regulamentos da Comunidade Europeia de que Portugal (como a França) fazem parte.

Em causa está o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, que revogou o anterior Regulamento (CE) n.º 1347/2000.

Na esteira do que se dispõe no seu artigo 8.º, n.º 1 que:

“Os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal”.

Refere-se na sua consideração 12.ª que: “As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado-Membro de residência habitual da criança, excepto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental”.

Preceitua o art.12.º, no seu nº3, que: Os tribunais de um Estado-Membro são igualmente competentes em matéria de responsabilidade parental em processos que não os referidos no n.º 1, quando:

a) A criança tenha uma ligação particular com esse Estado-Membro, em especial devido ao facto de um dos titulares da responsabilidade parental ter a sua residência habitual nesse Estado-Membro ou de a criança ser nacional desse Estado-Membro; e

b) A sua competência tenha sido aceite explicitamente ou de qualquer outra forma inequívoca por todas as partes no processo à data em que o processo é instaurado em tribunal e seja exercida no superior interesse da criança. Acrescenta ainda o artigo 17.º que o tribunal de um Estado-Membro no qual tenha sido instaurado um processo para o qual não tenha competência nos termos do presente regulamento e para o qual o tribunal de outro Estado-Membro seja competente, por força do presente regulamento, declara-se oficiosamente incompetente.

Assim, a chave da solução para a determinação da competência internacional está no facto de as crianças residirem “habitualmente” num determinado Estado-Membro.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 20/01/2009, Processo n.º 08B2777, in www.dgsi.pt, quanto ao que se deve entender por “residência habitual”: “O significado da expressão deve ser interpretado em conformidade com os objectivos e as finalidades do Regulamento. Deve-se sublinhar que não se trata de um conceito de residência habitual com base na legislação nacional, mas de uma noção “autónoma” de legislação comunitária. (…) A determinação caso a caso pelo juiz implica que enquanto o adjectivo “habitual” tende a indicar uma certa duração, não se pode excluir que uma criança possa adquirir a residência habitual num Estado-Membro no próprio dia da sua chegada, dependendo de elementos de facto do caso concreto”.

Em idêntico sentido se pronunciou o STJ, nos seus Acórdãos de 26 de Janeiro de 2017, Processo n.º 1691/15.3T8CHV-A.G1.S1 e de 28 de Janeiro de 2016, Processo n.º 6987/13.6TBALM.L1.S1, in www.dgsi.pt, referindo-se, neste último e citando Maria Helena Brito, in Estudos em Memória do Prof. Doutor António Marques dos Santos, vol. I, Almedina, pág. 323, que por residência habitual se deve ter “o local onde o interessado fixou, com a vontade de lhe conferir carácter estável, o centro permanente ou habitual dos seus interesses, entendendo-se que, para efeitos de determinação dessa residência, é necessário ter em conta todos os elementos de facto dela constitutivos”.

Ali se acrescentando que por referência à supra mencionada consideração n.º 12, “as regras de competência nele (Regulamento em apreço) fixadas são definidas em função do superior interesse da criança, em particular do critério da proximidade”.

Citando-se, ainda, a decisão do TJUE, de 22 de Dezembro de 2010, no qual se referiu que a residência habitual, na vertente ora em causa “corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar” e que não se trate de uma presença num determinado Estado-Membro de “carácter temporário ou ocasional”.

Ora, in casu, as crianças são naturais de França (cfr. assentos de nascimento juntos com a petição inicial) e sempre residiram em França até 2019, data em que vieram com a progenitora para Portugal (de acordo com as declarações de ambos os progenitores); as crianças neste momento e à data da instauração da acção já tinham a sua residência na França, onde se encontram atualmente a frequentar estabelecimento de ensino.

Assim, face ao exposto temos de concluir que as crianças têm a sua residência habitual em França, pelo que ao abrigo dos arts. 59º do CPC, e 17º do Regulamento 2201/2003 é este tribunal internacionalmente incompetente.

Face ao exposto e com os fundamentos invocados, julgo este Juízo de Família e Menores internacionalmente incompetente e, consequentemente e ao abrigo do disposto nos artigos 96.º, al. a), e 99.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, absolvo os requeridos da instância.

Sem custas.” (Fim da citação.)


*

Inconformada, a progenitora das crianças recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

I. O presente recurso visa colocar em crise e modificar a Decisão Ínsita no Despacho da Meritíssima Juiz a quo que julgou o Juízo de Família e Menores ... internacionalmente competente para a regulação das responsabilidades parentais das filhas menores da Requerida/ Recorrente.

II-O Tribunal recorrido funda a sua decisão no facto de considerar que as menores têm a sua residência habitual em França.

III-A Recorrente /requerida defende que o processo deve ser tramitado no País, Portugal, e neste Tribunal, onde as crianças tinham a sua residência habitual até Agosto de 2021, pois foi por intervenção da CPCJ como medida temporária e só desta forma aceite pela mãe, que foram para França, sendo que a condição aceite é que a mãe demonstrasse condições financeiras e emocionais para voltar a ter as filhas á sua guarda, o que já demonstrou suceder há vários meses, pois tem actividade profissional remunerada estável, tem habitação condigna onde pode cuidar e educar as filhas, foi sempre ela quem cuidou das mesmas (e até o facto de o pai afirmou no decurso do processo que a mãe cuidava bem das filhas).

IV-Assim, não corresponde á verdade que a residência habitual das filhas seja em França, pois na verdade, só ali residiram enquanto os pais residiram juntos até 2019, estando desde essa data a residir em Portugal e só por acordo na CPCJ, a mesma consentiu, temporariamente que as mesmas fossem ali residir com o Pai, até tratar da sua saúde e arranjar emprego, tal como fez.

V- As crianças são portuguesas e não existe qualquer decisão ou processo judicial em França sobre a guarda das filhas da Recorrente/requerida.

VI- Abordando o que refere o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, que revogou o anterior Regulamento (CE) n.º 1347/2000 e a análise e conclusões a que chegou o Tribunal a quo diremos o seguinte.

VII- No seu artigo 8.º, n.º 1 refere que: “Os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal”. Mas também refere que na sua consideração 12.ª que: “As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado-Membro de residência habitual da criança, exceto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental”. Preceitua o art.12.º, no seu nº3, que: Os tribunais de um Estado-Membro são igualmente competentes em matéria de responsabilidade parental em processos que não os referidos no n.º 1, quando: a) A criança tenha uma ligação particular com esse Estado-Membro, em especial devido ao facto de um dos titulares da responsabilidade parental ter a sua residência habitual nesse Estado-Membro ou de a criança ser nacional desse Estado-Membro; e b) A sua competência tenha sido aceite explicitamente ou de qualquer outra forma inequívoca por todas as partes no processo à data em que o processo é instaurado em tribunal e seja exercida no superior interesse da criança.

VIII- Entendeu a Meritíssima Juiz a quo que a chave da solução para a determinação da competência internacional está no facto de as crianças residirem “habitualmente” num determinado Estado-Membro.

IX- Só que olvidou que tal residência dos menores só ocorreu de forma transitória e comummente acordada com os pais, até que a CPCJ considerasse que a Recorrente mãe já estaria em condições de voltar a acolher as crianças.

X- Mais, é o próprio M.P. que perante todas estas circunstâncias factuais, requer a regulação das responsabilidades parentais no ....

XI- Na verdade, o superior interesse das crianças, deveria antes levar a que rapidamente o Tribunal verificasse em que condições se encontram as crianças em França, entregues regularmente a quem, sem condições de higiene e segurança a um pai que refere que não deixará mais as crianças estarem com a mãe, etc.

XII- São duas crianças menores portuguesas, que estavam escolarizadas em ... desde 2019, que ali tinham quem cuidava delas e restante família e amigos e esse conjuntamente com o critério do superior interesse das crianças deve ser o decisivo para os critérios legais constantes do Regulamento supra citado.

X- Aliás, tal como consta nos Doutos Acórdãos do S.T.J., mencionados na decisão

recorrida, reproduzindo-se com o devido respeito, os mesmos e sua menção no Douto Despacho (…).

XI- A não atuação do Tribunal Recorrido, pode impedir definitivamente a guarda e até o contacto com as filhas da requerida, que se tornou ainda mais difícil desde a diligência judicial que ocorreu neste Tribunal, o que se traduz numa forma de alienação parental.

XII- Assim, deve o presente Despacho ser anulado, por violação legal, sendo declarado como residência habitual das menores ... e não França atendendo ao critério do superior interesse das crianças e do conceito referido de proximidade, tanto mais que as crianças só temporariamente foram residir com o Pai em França, e ser declarado competente para prosseguir com a regulação das responsabilidades parentais o Juízo de Família e Menores ..., o que se propugna.

XIII- Pelo que se requer seja revogado o Despacho recorrido, por violação do Artigo 9º Do RGPTC e Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro de 2003, nos termos supra expostos.


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            O Ministério Público contra-alegou, defendendo a correção do decidido.

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A questão a decidir é relativa à competência do tribunal português, estando em causa uma conexão das crianças ao espaço francês e português.

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            Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente e ainda do seguinte:

            Pais e filhas são portugueses;

Quando os progenitores se separaram, em 2019, as crianças vieram com a mãe para Portugal, sem oposição do pai; tinham 7 e 4 anos;

Em julho de 2021, foi participado à CPCJ um distúrbio psicológico da mãe;

Nesta CPCJ, em 13.8.2021, foi obtido um acordo de promoção e proteção, pelo qual, como medida cautelar (art.37 da LPCJP), as crianças ficavam à guarda do pai, por um mês, até que a mãe apresente condições de saúde; as gestoras do processo alertaram para o caráter temporário da medida;

Por falta de meios em conferir a situação do progenitor, a CPCJ remeteu o processo para o Ministério Público, aludindo à necessidade de se regular o exercício das responsabilidades parentais;

Este processo foi instaurado em outubro de 2021.


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            Todos (aqui) estamos de acordo no enquadramento legal desta situação e no respeito pelo direito europeu. (Nesta Relação é exemplar o acórdão de 5.11.2019, no proc. 4564/17, em www.dgsi.pt.)

            A divergência reside, afinal, na interpretação dos factos e na conclusão que se retira da mesma.

            Desde 2019, com o acordo dos pais, as crianças residiam em Portugal.

            Esta residência ganhou caráter de habituabilidade.

Em julho de 2021, a progenitora teve um problema de saúde e foi internada.

            Para responder a este problema, na CPCJ, com o acordo dos pais, foi aplicada a medida de apoio junto do pai, por um mês, como medida cautelar.

            O artigo 37.º da Lei de Proteção de crianças em perigo (aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de setembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2003, de 22 de agosto, pela Lei n.º 142/2015, de 8 de setembro e pela Lei n.º 23/0217, de 23 de maio) prevê estas medidas cautelares, para situações em que se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente, tendo a duração máxima de seis meses, devendo ser revistas no prazo máximo de três meses.

            E, nesse âmbito, o pai levou as filhas para França.

            Neste contexto, entendemos que o tribunal português é o competente para a regulação do exercício das responsabilidades parentais.

            Os dois anos decorridos desde 2019, quando tinham 7 e 4 anos, permitem presumir a integração das crianças na realidade portuguesa, sendo certo que os seus pais são portugueses, estando o progenitor a trabalhar em França.

            Entendeu-se que o problema da mãe seria temporário, o que conduziu a um acordo para uma medida cautelar, para durar apenas até que a progenitora recuperasse a saúde, concordando o pai nisso, por entender então que a guarda daquela era adequada.

            A medida cautelar é aplicada por uma autoridade portuguesa que estava obrigada à sua revisão. A falta de meios foi a justificação para a Comissão de Proteção enviar o processo para tribunal, aludindo à necessidade de regular o exercício das responsabilidades parentais.

            O Ministério Público instaura esta ação cerca de 2 meses depois do acordo de promoção e proteção.

            Face a esta realidade, a ligação das crianças a França deve ser vista com a sua natureza temporária (o que nada tem a ver com a possibilidade de entrega definitiva a qualquer dos progenitores, na decisão final do processo).

A integração daquelas crianças em França, no momento da entrada da ação, é reduzida ou pouco relevante, quando confrontada com a integração que se presume decorrer dos 2 anos anteriores em Portugal.

É no contexto do que se passou em Portugal, quando a integração delas aqui estava estabilizada, que grande parte do litígio se desenvolverá.

Foi aquele contexto que legitimou a autoridade portuguesa, com o acordo dos pais, a aplicar uma mera medida cautelar. A guarda do pai é uma imposição portuguesa temporária.

Por tudo isto, a Recorrente tem razão, não se podendo manter a decisão recorrida.


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Decisão.

            Julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão recorrida e declara-se que o tribunal português é competente para a ação.

            Sem custas.

Coimbra, 2022-06-28


(Fernando Monteiro)

(Carlos Moreira)

(Moreira do Carmo)