Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
646/10.9T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: UNIÃO DE FACTO
PRESTAÇÃO SOCIAL
ACÇÃO
ALTERAÇÃO LEGISLATIVA
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 02/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: LEI Nº 23/2010, DE 30/08
Sumário: I – A Lei nº 23/2010, de 30/08 (Regime Legal da Protecção da União de Facto), ao alterar o modo de exercício do direito às prestações sociais, designadamente do direito à pensão por morte, porque a comprovação do direito não está agora dependente do reconhecimento judicial, através da acção adrede instaurada contra a entidade responsável, mas da simples prova documental, nos termos do aditado artº 2º-A, não implica a extinção da instância, por inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide (artº 287º, al. e), do CPC), das acções pendentes.

II – A alteração da norma do artº 6º, nº 1, da Lei nº 7/2001, pela Lei nº 23/2010, de 30/08, sobre os pressupostos constitutivos do direito (bastando agora a comprovação da união de facto “independentemente da necessidade de alimentos”), tem natureza interpretativa.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I – RELATÓRIO

         1.1. - A Autora – A... – instaurou ( 30/3/2010 ) na Comarca de Baixo Vouga acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra o Réu – Instituto da Segurança Social IP.

         Alegou, em resumo:

No dia 27 de Junho de 2009 faleceu B..., no estado de divorciado, sendo beneficiário da segurança social, com quem a Autora viveu em união de facto desde 1998.

A Autora é pobre, vivendo do rendimento social de inserção, carece de alimentos, que não podem ser prestados quer pela herança de B..., quer pelos seus familiares.

Com fundamento no art.6 da Lei nº 7/2001 de 11/5 pediu:

A declaração de que a Autora vivia em união de facto com o beneficiário do Réu, há mais de dois anos, carece de alimentos, não podem ser prestados nem pela herança do companheiro falecido, nem por nenhuma das pessoas indicadas nas alíneas a) a d) do nº1 do art.2009 do CC;

A declaração de que a Autora é titular das prestações por morte de B..., no âmbito do regime da Segurança Social, previsto no DL nº 322/90 de 18/10, Dec. Reg. nº 1/94 de 18/1, art.6 nº3 e) da Lei nº7/2001 de 11/5 e a condenação do Réu a reconhecê-lo com as consequências legais.

Contestou o Réu, defendendo-se por impugnação, concluindo pela improcedência da acção.

1.2. - Por sentença de 7/9/2010 ( fls.59 a 63 ) decidiu-se julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.

Argumentou-se, em síntese:

Na pendência da acção foi publicada a Lei nº 23/2010 de 30/8 que alterou o regime jurídico das uniões de facto (Lei 7/2001 de 11/5, no DL nº 322/90 de 18/10), acabando com a necessidade da acção judicial e a exigência de prova dos alimentos, afirmando-se:

“ Segue-se, portanto, que a presente acção, indispensável face à legislação que à data da sua instauração regia a obtenção das referidas prestações por morte, é agora desnecessária e inútil uma vez que a prova da união de facto terá de ser feita por outro meio e que não é mais necessário demonstrar a necessidade de alimentos e a impossibilidade de os obter de determinadas pessoas”.

“ (…) este novo regime jurídico aplica-se imediatamente à situação da autora nos termos do disposto no art.12 nº2, parte final, do Código Civil, uma vez que a Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, não consagra solução diversa – o artigo 6º da lei respeita somente aos preceitos com repercussão orçamental: alínea d) do nº1 do artigo 3º “.

1.3. – Inconformado, o Réu recorreu de apelação ( fls.64 e segs. ) com as conclusões seguintes:

A morte do beneficiário ocorreu em 27/6/2009, logo antes da entrada em vigor da nova lei, sendo aplicável o regime anterior.

Como tal, cabe à Autora o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito à pensão de sobrevivência, não apenas da união de facto, mas da necessidade de alimentos e da impossibilidade de os obter.

A sentença violou as disposições conjugadas dos arts.8 do DL nº 322/90 de 18/10, 1 e 3 do Dec. Reg. nº1/94 de 18/1, 6 da Lei 7/2001 de 11/5, 2010 do CC, por estar em causa um evento morte ocorrido antes da entrada em vigor da nova lei da união de facto e, à data da entrada deste diploma, a relação jurídica extinguiu-se com o óbito do companheiro da Autora, portanto em momento anterior à entrada em vigor da Lei nº 23/2010 de 30/8, que assim é aplicável por força do art.12 nº1 CC.

Não houve contra-alegações.

        


II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. - A questão submetida a recurso consiste em saber se a aplicação da Lei nº23/2010 de 30/8 ( que alterou o regime legal da protecção da união de facto), ocorrida na pendência da acção, implicou a extinção da instância por inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide ( art.287 e) CPC).
Como se sabe, a inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por qualquer causa processual ou extraprocessual, o efeito jurídico pretendido através da acção já foi plenamente alcançado, porque a pretensão do autor obteve satisfação fora do esquema da providência pretendida, tornando-se, por isso, a lide desnecessária.
A impossibilidade superveniente da lide ocorre quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não possa subsistir por motivos atinentes ao sujeito, ao objecto do processo e à causa. Ou seja, é a impossibilidade da relação jurídica substancial que cessa por desaparecimento de um dos elementos essenciais, repercutindo-se na relação jurídico-processual, cessando, por isso, a matéria da contenda.

A inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide consubstancia-se naquilo a que a doutrina processualista designa por “modo anormal de extinção da instância”, visto que a causa normal é a sentença de mérito, declarando o tribunal extinta a instância, ou seja, a relação jurídica processual, sem apreciar o mérito da causa, assumindo a decisão natureza meramente declarativa (cf., por ex., ALBERTO DOS REIS, Comentário, vol. III, pág.364 e segs., RODRIGUES BASTO, Notas, II, pág.60, LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, vol.I, pág.512 ).

2.2. – Com a presente acção, a Autora veio exercitar o direito à pensão de sobrevivência, nos termos do disposto nos artigos 3º alínea e) e 6º da Lei nº 7/2001 de 11 de Maio ( vigente à data da propositura da acção).

As pensões de sobrevivência são prestações pecuniárias que têm por objectivo compensar os familiares do beneficiário da perda dos rendimentos de trabalho determinada pela morte deste e o DL nº322/90 de 18/10 consagrou, pela primeira vez, o princípio da equiparação entre a união de facto e o casamento, contendo uma disposição inovatória que inclui as situações de facto previstas no art.2020 do Código Civil, remetendo para regulamentação específica a sua aplicação, designadamente no que se refere à caracterização das situações e produção de prova.

         Como expressamente se refere no preâmbulo do Dec. Regulamentar nº1/94 de 18/1, “em matéria de pensão de sobrevivência, o acolhimento do princípio da relevância das uniões de facto de alguma forma equiparáveis, para efeitos sociais, à realidade conjugal, tem por objectivo a harmonização dos regimes internos de protecção social, bem como a adequação e recomendações formuladas no âmbito de instâncias internacionais “.

Deste modo, o interessado apenas teria de recorrer ao tribunal para ver reconhecido o pressuposto de que está dependente a sua qualidade de beneficiário para efeitos da pensão de sobrevivência, pelo que obtido este reconhecimento, o respectivo direito é uma consequência necessária e directa da decisão judicial, servindo a certidão da sentença como meio de prova para o respectivo requerimento administrativo da pensão.

         Posteriormente, com o objectivo de melhorar e aperfeiçoar as medidas protectoras da união de facto, foi publicada a Lei nº135/99 de 28/8, cujo art.6º previa os pressupostos legais da atribuição da pensão de sobrevivência. Mas sem que este diploma legal chegasse a ser regulamentado, foi publicada a Lei nº7/2001 de 11/5, com a adopção de medidas de protecção à união de facto, revogando expressamente aquela Lei nº135/99, carecendo ainda se regulamentação ( art.9º ).

         Sobre os pressupostos legais da atribuição da pensão de sobrevivência na união de facto, considerando as normas dos arts.3º alínea e) e 6º da Lei 7/2001, nº1 do art.2020 do CC, existem actualmente duas correntes jurisprudenciais e doutrinárias:

a) - Tese restrita:

Sendo a acção instaurada apenas contra a instituição da segurança social, o autor não tem de alegar e provar a necessidade de alimentos, mas apenas a situação da união de facto, ou seja, que no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges.

         Esta posição arranca da interpretação restritiva da remissão feita pelo art.6º da Lei nº7/2001 para o art.2020 do CC, da natureza da pensão de sobrevivência, e do princípio constitucional da proporcionalidade ( cf., neste sentido, por ex., FRANÇA PITÃO, União de Facto no Direito Português, 2000, pág.189, PIRES DA ROSA, “ Ainda a união de facto e pensão de sobrevivência”, Lex familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, ano 3 nº5, 2005, pág.111 e segs., GUILHERME DA FONSECA, RMP ano 25, nº99, pág.157, Ac TC nº88/2004 de 10/2/2004 ( DR II Série de 16/4/2004; Ac STJ de 20/4/2004, C.J. ano XII, tomo II, pág.30, Ac RL de 25/11/2004, C.J. ano XXIX, tomo V, pág.101, Ac da RL de 4/11/2003, de 3/2/2005, de 16/1/07, Ac RC de 9/5/2006, disponíveis em www dgsi.pt ).

         b) - Tese maioritária:

         Esta orientação ( prevalecente no STJ ) sustenta que o direito às prestações constantes das diversas alíneas do art.3º da Lei 7/2001, a favor das pessoas que vivam em união de facto depende da verificação de todos os requisitos previstos no nº1 do art.2020 do CC, com referência ao art.2009 nº1 a) a d) do CC, designadamente da prova da impossibilidade de obter alimentos de determinados familiares.

Argumenta-se, para tanto, que o nº1 do art.6º exige que estejam reunidas “ as condições constantes no artigo 2020 do Código Civil “, logo terá o autor de alegar os requisitos para a acção de alimentos, visto que a atribuição da pensão estar intimamente relacionada com as implicações económicas da morte do beneficiário, ou seja, com a diminuição dos meios de subsistência, e não com a participação nos aforros do contribuinte falecido ( cf., por ex., Ac do STJ de 13/9/07, de 23/10/07, de 28/2/08, de 27/5/08, de 16/9/08, de 23/9/08, todos disponíveis em www dgsi.pt; Ac TC nº195/03 ( DR II 22/5/2003), nº159/05 ( DR II 28/12/2005), nº614/05 ( DR II 29/12/2005); RITA XAVIER, Jurisprudência Constitucional, nº3, 2004, pág.16 e segs.).

2.3. - A Lei nº 23/2010 de 30/8 procedeu à alteração do regime legal da protecção das uniões de facto, designadamente da Lei nº 7/2001, verificando-se, além do mais, duas alterações essenciais:

A primeira, de natureza substantiva, quanto aos pressupostos legais ou factos constitutivos do direito, porquanto a lei nova exige apenas a comprovação da união de facto, independentemente da necessidade de alimentos, conforme art.6º nº1 ( “ O membro sobrevivo da união de facto beneficia dos direitos previstos nas alíneas e), f) e g) do artigo 3º, independentemente da necessidade de alimentos” ).

A segunda, de carácter adjectivo, quanto às condições de exercício dos direitos, por deixar de ser necessária a acção judicial com vista à declaração da união de facto, sendo agora suficiente a prova documental. Com efeito, a lei nova introduziu o art.2-A sobre a “prova da união de facto”, através de prova documental, sem necessidade de tutela judicial para efectivação dos direitos por parte do requerente.

A entidade responsável pelo pagamento das prestações, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente acção judicial com vista à sua comprovação, e desde que não tenha, decorridos mais de quatro anos ( art.6 nº2 e 3 Lei nº 7/2001 ).
Na sucessão de leis no tempo, potencialmente aplicáveis às relações jurídicas duradouras, o problema terá que ser resolvido, em primeiro lugar, através de normas de direito transitório especial (ou seja, normas da própria lei nova que disciplinem a sua aplicação no tempo), depois pelas normas de direito transitório sectorial ( ou seja, que regulem na aplicação no tempo das leis sobre certa matéria ), e finalmente por normas de direito transitório geral ( ou seja, que definam o modo de aplicação no tempo da generalidade das leis, independentemente da matéria sobre que versam ).
Por conseguinte, só na ausência de qualquer regime especial é que se deve indagar, sucessivamente, da existência de normas de direito transitório sectorial ou de direito transitório geral - como é o regime fixado no art.12º do CC - para, na sua falta, recorrer aos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência.
Noutra perspectiva, não tendo aqui natureza constitucional o princípio da não-retroactividade das leis, a sua eficácia temporal postula, antes de mais, um problema de interpretação, ou seja, se o legislador pretendeu, ou não, abranger as situações jurídicas constituídas antes da sua entrada em vigor. Por isso, não basta atender às regras enunciadas no artigo 12º do CC, que só em caso de dúvida são de observar e não têm mais força vinculativa que as das outras leis ordinárias, e daí que não prevaleçam sobre os resultados da interpretação da lei em causa ( cf. VAZ SERRA, RLJ ano 110, pág.271 e segs. ).
A Lei nº 23/2010 estipulou no art.11º uma norma de direito transitório especial, mas apenas relativa aos “ preceitos da presente lei com repercussão orçamental” que “produzem efeitos com a Lei do orçamento do Estado posterior à sua entrada em vigor”, e a Lei do Orçamento ( Lei nº 55-A/2010, DR nº253, Suplemento, Série I, de 31/12/2010) entrou em vigor em 1/1/2011 ( art.187 ).
Estando, portanto, já em vigor a Lei nº 23/2010, que veio alterar não só o modo de constituição do direito às prestações sociais ( alterando a fattispecie constitutiva ), como também o modo de exercício desse direito, vejamos agora as implicações na presente acção.

a) - Alteração ao modo de constituição do direito:

         No que se refere à alteração do art.6º nº1 da Lei nº 7/2001, sobre os pressupostos constitutivos do direito, o legislador adoptou a tese restrita, bastando apenas a comprovação da união de facto.

Importa saber se estamos perante uma norma inovadora ou interpretativa ( art.13 nº1 CC).

Sobre as leis interpretativas, escreveu BAPTISTA MACHADO:

“ É de considerar como lei interpretativa ( por natureza ) aquela que, com o fim de pôr cobro à controvérsia ( ou pelo menos à incerteza ) sobre o sentido de certa regra jurídica, vem consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adoptado: não necessariamente uma das correntes jurisprudenciais anteriores ou uma forte corrente jurisprudencial anterior – que, até pode não existir -, mas um sentido que os operadores jurídicos podiam ter extraído da norma “ ( Introdução ao Direito e Discurso Legitimador, 1983, pág.246 ).

Na mesma obra, estabelece os requisitos necessários para a qualificação da lei nova como lei interpretativa, referindo-se, a dado passo:

 “Para que uma LN possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou intérprete, em face dos textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a LN vem consagrar, então esta é decididamente inovadora ( pág.247 ).

A solução do direito anterior ( saber se é ou não constitutivo do direito à pensão de sobrevivência a necessidade de alimentos ) é claramente controvertida, como se evidencia pela divergência doutrinária e jurisprudencial. A solução definida pela nova lei situa-se dentro dos quadros da controvérsia e o julgador ou intérprete, em face dos textos antigos, estava autorizado a adoptar a solução consagrada na lei nova.

         Nesta medida, conclui-se pela natureza interpretativa da norma, que se integra na lei interpretada, sendo de aplicação imediata.

         De resto, mesmo que assim se não entendesse, e se qualificasse como norma inovadora, parece que, por força do art.12 nº2 ( 2ª parte ) do CC, também seria de aplicação imediata, pois a lei nova regula o conteúdo da situação jurídica “ abstraindo dos factos que lhe deram origem”, porquanto a norma do art.6º da Lei nº 7/2001 assume natureza imperativa, integrando a “ordem pública de protecção” dos unidos de facto, regulando ou modelando o seu “estatuto legal”.

b) - Alteração sobre o modo de exercício do direito:

A lei nova alterou o modo de exercício do direito às prestações sociais, designadamente do direito à pensão por morte, porque a comprovação do direito não está agora dependente do reconhecimento judicial, através da acção adrede instaurada contra a entidade responsável, mas da simples prova documental, nos termos do aditado art.2º-A pela Lei nº23/2010, tratando-se, por isso, de norma indiscutivelmente inovadora.

Foi essencialmente com base nessa alteração que a sentença recorrida declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, justificando, em síntese:

“ Segue-se, portanto, que a presente acção, indispensável face à legislação que à data da sua instauração regia a obtenção das referidas prestações por morte, é agora desnecessária e inútil uma vez que a prova da união de facto terá de ser feita por outro meio e que não é mais necessário demonstrar a necessidade de alimentos e a impossibilidade de os obter de determinadas pessoas”.

         Daí a questão: a lei nova que, na pendência da presente acção, alterou o modo de exercício do direito, implicou a inutilidade ou impossibilidade da lide?

         A resposta é negativa, pela simples razão de que nem o direito substantivo se extinguiu ( quanto aos sujeitos, objecto e causa), tornando a lide impossível, nem a Autora obteve ainda satisfação fora da acção, ou seja, não se mostra que tenha havido já o reconhecimento e pagamento da pensão requerida, de modo a tornar supervenientemente inútil a lide.

         Sobre a aplicação da lei processual no tempo, entende-se ( seguindo-se a doutrina do art.12 nº1 CC ) que a lei nova é de aplicação imediata, mas não retroactiva, significando que se aplica às acções futuras e aos actos que futuramente se praticarem nas acções pendentes.

         A circunstância de a lei nova deferir a competência à entidade administrativa para conhecer das prestações sociais, sem dependência da prévia acção judicial ( a não ser no caso específico do art.6º nº2, em acção proposta pela entidade responsável pelo pagamento ) e, por conseguinte, de haver cessado a competência material do tribunal, para o efeito, não tem aqui repercussão processual.

         É que o art.24 da Lei nº52/2008 de 28/8 ( LOFTJ ), consagrando o princípio da perpetuatio jurisdictionis ( ou perpetuatio fori ), diz que a competência se fixa no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, bem como as modificações de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa, o que não é o caso.

         Poder-se-á problematizar se a alteração legislativa acarreta, na acção pendente, a falta superveniente do interesse em agir.

         O interesse processual ou interesse em agir, tem sido concebido como pressuposto processual referente às partes e porque não previsto expressamente, é havido como pressuposto processual inominado, cuja falta gera a absolvição da instância ( art.288 nº1 e) CPC).

         Ele avulta em especial do lado do autor, mas também por parte do demandado, só assim se compreende que a desistência da instância dependa da aceitação do réu, após o oferecimento da contestação ( art.296 CPC).

         Pelo lado do autor, o interesse processual consiste na “necessidade de tutela judiciária”, ou seja, “ na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção”, sem que se trate de uma “necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada”, exigindo-se, por conseguinte “uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção”.

         Pelo lado do demandado, existe interesse processual ( no prosseguimento da acção) desde que a acção ( proposta com ou sem interesse) tenha sido instaurada contra ele, e quer quanto à obtenção de uma declaração judicial de conteúdo oposto ao solicitado pelo demandante, quer quanto aos pedidos reconvencionais ( cf. ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, 1984, pág.170 e segs., MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, pág.79 e segs.). Para ANSELMO DE CASTRO, o interesse processual surge “ da necessidade em obter do processo a protecção do interesse substancial, o que supõe a lesão desse interesse e a idoneidade da providência requerida para a sua reintegração ou, tanto quanto possível, integral satisfação “ ( cf. Direito Processual Civil Declaratório, II, pág.253 ).

         O fundamento para erigir o interesse em agir em pressuposto processual contende com o objectivo de evitar acções inúteis, pois se a lei proíbe a prática de actos inúteis ( art.137 CPC), por maioria de razão proibirá acções inúteis.

         Ainda que a sentença recorrida não tenha equacionado o problema no âmbito da falta de interesse em agir, importa sublinhar que a necessidade de tutela judiciária é flagrante, reportada ao momento da propositura da acção ( momento relevante, para o efeito, para aferir da adequação do meio ), estabilizando-se a instância com a citação do Réu ( art.268 CPC ). Só haveria falta superveniente do interesse em agir se o Autor já tivesse alcançado por outra via ( designadamente pelo simples procedimento administrativo ) o efeito pretendido com a acção, o que não está demonstrado.

         Pelo lado do Réu, uma vez negado o direito do Autor, requerendo expressamente a improcedência da acção, o interesse em agir é manifesto, na obtenção de uma sentença de mérito absolutória.

         Em resumo, não havendo fundamento legal para a declarada extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, impõe-se o prosseguimento do processo.

         2.4. – Síntese conclusiva:

1. A Lei nº23/2010 de 30/8 ( regime legal da protecção da união de facto), ao alterar o modo de exercício do direito às prestações sociais, designadamente do direito à pensão por morte, porque a comprovação do direito não está agora dependente do reconhecimento judicial, através da acção adrede instaurada contra a entidade responsável, mas da simples prova documental, nos termos do aditado art.2º-A, não implica a extinção da instância, por inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide ( art.287 e) CPC), das acções pendentes.

         2. A alteração da norma do art.6º nº1 da Lei nº 7/2001 pela Lei nº 23/2010 de 30/8, sobre os pressupostos constitutivos do direito ( bastando agora a comprovação da união de facto, “independentemente da necessidade de alimentos”), tem natureza interpretativa.


III - DECISÃO

         Pelo exposto, decidem:


1)

         Julgar procedente a apelação e, revogando a sentença recorrida, ordenar o prosseguimento do processo.


2)

         Custas pela parte vencida a final.


Jorge Arcanjo (Relator)
Isaías Pádua
Teles Pereira