Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1361/10.9TJCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: EXECUÇÃO
DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
NEGLIGÊNCIA DAS PARTES
Data do Acordão: 02/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO EXECUÇÃO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.281 CPC
Sumário: 1. A “negligência das partes”, a que alude o art.º 281º do CPC, pressupõe efectiva omissão da diligência normal em face das circunstâncias do caso concreto.

2. No processo executivo, a que se refere o n.º 5 do mesmo art.º, deverá ser apreciada a imputação subjectiva da paralisação processual.

3. Tendo o exequente requerido o prosseguimento dos autos para a venda dos imóveis penhorados e, depois, a identificação, junto da Autoridade Tributária, dos herdeiros dos executados falecidos - ignorando-se se e quando o Fisco informou o agente de execução -, vindo a instaurar o incidente de habilitação de herdeiros contra o único herdeiro presumível decorridos cerca de 190 dias, tal é insuficiente para, sem notificar o exequente para se pronunciar (sobre a paralisação processual), estabelecer a sua negligência na paragem do processo.

4. Na interpretação e aplicação do art.º 281º, n.º 5 do CPC, haverá que levar em conta a actual “estrutura” do processo executivo marcada por uma acentuada desjudicialização, pela limitação dos poderes e da intervenção do juiz e pela ausência de uma relação hierárquica entre o juiz e o agente de execução.

Decisão Texto Integral:







            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:         
           

            I. Em 19.4.2010, na Comarca de Coimbra, B (…) S. A., instaurou execução para pagamento de quantia certa contra J (…) (1º executado), L (…) (2º executado), S (…) (3º executado) e L (…) (4º executado), indicando, no requerimento executivo, o valor (capital, juros e imposto de selo) de € 20 142,98 e os bens (dois imóveis) a penhorar.
            A exequente nomeou o agente de execução (AE).
            A exequente (que por força da fusão ocorrida em 07.12.2012 passou a denominar-se Banco (…), S. A.), em 27.6.2016, por apenso aos autos de execução, deduziu o presente incidente de habilitação de herdeiros contra o 1º executado, a fim de ser declarado habilitado como único herdeiro dos 3º e 4º executados e colocado processualmente na posição destes, para com ele prosseguir a causa até final.

            Sobre tal petição recaiu a seguinte decisão (de 06.7.2016):

            «O processo executivo, de que estes são apenso, mostra-se extinto por DESERÇÃO (tendo presente o que refere o despacho de 17-11-2015, no processo executivo principal, e a junção dos assentos de óbito, pela exequente, em 27-11-2015, tendo decorridos mais de 6 meses desde esse dia 27-11-2015 até 09-6-2016 – tendo sido descontados 13 dias das férias judiciais do Natal, sem que a habilitação de herdeiros tenha sido instaurada dentro desse período de tempo), pelo que o presente apenso, não tendo autonomia, deverá ser extinto por inutilidade superveniente da lide.

            Nestes termos, de harmonia com o disposto no artigo 277, al. e), do CPC, decido: - julgar extintos os presentes autos de Habilitação de Herdeiros por inutilidade superveniente da lide.

            Custas a cargo da Requerente, que deu causa ao presente apenso.

            Valor deste incidente: € 201 420,98.

            Notifique e registe.//**//Finalize o processo – art.º 551, n.º 5, do NCPC.»

            Inconformada, a exequente interpôs a presente apelação formulando as seguintes conclusões:

            (…)

            Não houve resposta à alegação de recurso.

            A única questão a decidir consiste em saber se podemos afirmar a deserção da instância executiva e consequente inutilidade superveniente do presente incidente de habilitação de herdeiros.


*

            II. 1. A factualidade a considerar é a que consta do anterior relatório, e ainda:[1]

            a) No requerimento executivo foram indicados à penhora os prédios urbanos descritos na 1ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob os n.ºs 2806 e 2454, mencionando-se o 3º executado como “associado” a esses bens. 

            b) A 2ª executada foi declarada insolvente por sentença de 25.01.2013, proferida no processo n.º 201/13.1TJCBR.

            c) Em 24.12.2010, a AE procedeu à penhora da “quantia disponível da pensão” da 2ª executada; em 20.8.2013, realizou a penhora dos imóveis ditos em II. 1. a).

       d) Em 26.02.2014, a AE informou nos autos que “exequente e executados encontram-se em negociações com vista à celebração de acordo de pagamento da dívida exequenda”.

            e) Mediante comunicação datada de 29.7.2014, a AE dirigiu-se à Exma. Mandatária da exequente solicitando “provisão com vista a satisfazer a conversão das penhoras em hipotecas” e indagando “se o Executado se encontra a cumprir o acordo de pagamento”.    

            f) Em 06.10.2015, a exequente interpelou a AE no sentido de “proceder às diligências necessárias à venda dos imóveis penhorados”.

            g) Por requerimento de 13.10.2015, a AE, “ao abrigo do disposto no n.º 7 do artigo 833º-A do CPC”, solicitou ao Tribunal o “levantamento do sigilo fiscal no sentido da Administração Fiscal conceder acesso” aos elementos relativos à “identificação dos herdeiros dos Executados falecidos, L (…) e S (…)

            h) Por despacho de 17.11.2015, proferido nos autos de execução, foi determinado o seguinte:

            - «Notifique o exequente para, em 10 dias, juntar certidão de óbito dos co-executados S (…) e L (…).

            Juntas as certidões, desde já, sem necessidade de novo despacho, se suspende a presente instância, nos termos dos artigos 269º, n.º 1, alínea a), e 270º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil.

            (…)

            Aguardem os autos por impulso processual (dedução do competente incidente de habilitação de herdeiros, no que concerne ao executado S (...), nos termos do artigo 351º, n.º 2, do Código de Processo Civil, uma vez que o seu falecimento, pese embora anterior à instauração da execução, foi certificado em consequência das diligências para a sua citação), sem prejuízo do decurso do prazo de extinção da instância por deserção (artigos 277º, alínea a), e 281º, n.º 5, do mesmo diploma legal).

            Notifique e comunique à Sr.ª Agente de Execução.


*

            (…) Juntas as certidões, desde já, se autoriza a consulta de elementos e/ou declarações protegidas pelo sigilo fiscal ou outros dados sujeitos a regime de confidencialidade para apuramento de eventuais herdeiros dos co-executados falecidos, ao abrigo do disposto nos artigos 749º, n.º 7, e 418º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil.

            Notifique e comunique à Sr.ª Agente de Execução. (…)».

            i) No mesmo despacho determinou-se a extinção da execução quanto à 2ª executada porquanto o processo de insolvência dito em II. 1. b) havia sido encerrado com fundamento na alínea d) do artigo 230º, n.º 1, do CIRE.

            j) Em 27.11.2015, a exequente juntou aos autos certidões dos assentos de óbito dos 3º e 4º executados (falecidos em 16.02.2009 e 09.4.2012, respectivamente).

            k) A AE foi notificada, em 01.12.2015, da junção do requerimento dito em II. 1. j) e do referido despacho de 17.11.2015.

            l) Em 19.11.2015, 07.12.2015, 07.3.2016 e 06.6.2016, a AE fez constar dos autos a seguinte informação relativa ao “ESTADO DE PROCESSO/INFORMAÇÃO ESTATÍSTICA”: «Suspensão: Falecimento ou extinção – alínea a) do n.º 1 do artigo 269º do CPC. A execução está suspensa em resultado do falecimento ou extinção de algum dos intervenientes

            m) Em 30.5.2016, foi elaborada, pela Sr.ª oficial de justiça, a seguinte “cota”: «(…) constata-se que os autos se encontram a aguardar o impulso processual há mais de seis meses. Assim nos termos do art.º 277º, alínea c) e art.º 281º, n.º 5 ambos do C. P. C., extingue-se a instância executiva.//Tendo sido paga e arrecadada pelo IGF a taxa de justiça devida nos autos, e não havendo lugar a pagamento de encargos, nos termos do art.º 29º, n.º 1 al. c), da Lei 7/2012 de 13 de Fevereiro, não há lugar à elaboração da conta.

            n) Desconhece-se qualquer outro acto processual.

            o) Porém, na fundamentação da alegação de recurso, a exequente refere, nomeadamente: a 12.10.2015, requereu à AE que oficiasse junto da Autoridade Tributária a identificação dos herdeiros dos Executados falecidos; a 07.12.2015, a AE notificou o 2º Serviço de finanças de Coimbra para prestar informação quanto à identificação e morada dos herdeiros dos Executados falecidos; a 26.7.2016, a AE voltou a insistir com o referido Serviço de Finanças; até à presente data, não foi obtida qualquer resposta quanto à identificação dos herdeiros dos executados falecidos, pelo que, o Banco Exequente tomou a iniciativa de instaurar o incidente de habilitação de herdeiros contra o Executado J (…), único herdeiro presumível conhecido pelo Exequente.

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

             Preceitua o art.º 281º do Código de Processo Civil[2] (sob a epígrafe “deserção da instância e dos recursos”): Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses (n.º 1); O recurso considera-se deserto quando, por negligência do recorrente, esteja a aguardar impulso processual há mais de seis meses (n.º 2); Tendo surgido algum incidente com efeito suspensivo, a instância ou o recurso consideram-se desertos quando, por negligência das partes, o incidente se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses (n.º 3); A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator (n.º 4); No processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses (n.º 5).

            O regime pretérito (CPC de 1961), relativo à interrupção e deserção da instância, era o seguinte: “A instância interrompe-se, quando o processo estiver parado durante mais de um ano por negligência das partes em promover os seus termos ou os de algum incidente do qual dependa o seu andamento” (art.º 285º); “Cessa a interrupção, se o autor requerer algum acto do processo ou do incidente de que depende o andamento dele, sem prejuízo do disposto na lei civil quanto à caducidade dos direitos” (art.º 286º); “Considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando esteja interrompida durante dois anos” (art.º 291º, n.º 1).

            Concluiu-se, assim, que a actual lei processual civil, além de ter encurtado para seis meses o prazo, até aí de dois anos, que a parte dispunha para impulsionar os autos sem que fosse extinta a instância por deserção, eliminou também a figura da interrupção da instância, ou seja, a instância fica deserta logo que o processo, por negligência das partes, esteja sem impulso processual durante mais de seis meses sem passar, portanto, pelo patamar intermédio da interrupção da instância; estamos, pois, perante um regime mais severo para sancionar a negligência das partes em promover o andamento do processo, colimando logo com a ´deserção` e consequente `extinção da instância` [art.º 277º, c)] aquela falta de impulso processual.[3]

            3. Nos termos do art.º 281º, para se considerar deserta a instância será necessário, não apenas que o processo esteja parado há mais de seis meses a aguardar impulso processual da parte, mas também que tal se verifique por negligência (da parte) em promover o seu andamento.

            Segundo a mesma previsão legal, a instância declarativa, ou o recurso, não se poderão considerar desertos “independentemente de qualquer decisão judicial” (despacho do juiz ou do relator), decisão que já não será necessária quando se trate de um processo de execução[4], aqui, ao que tudo indica, em virtude da utilização privilegiada e tendencialmente única, nesta forma de processo, dos procedimentos electrónicos e informáticos.

            Contudo, daí não se poderá concluir que se tenha pretendido prescindir, quanto ao processo executivo, da efectiva negligência das partes enquanto causa/requisito da situação do processo a aguardar impulso processual, de resto, exigência ou pressuposto claramente expresso na letra e no espírito da lei.

            A “negligência das partes”, segundo a citada previsão legal, pressupõe a efectiva omissão da diligência normal em face das circunstâncias do caso concreto [não resultando da lei que o exequente sempre devesse impulsionar os autos e reagir contra qualquer aparente paralisação superior a seis meses…], não podendo, assim, vingar uma qualquer responsabilidade automática/objectiva susceptível de abranger a mera paralisação aparente (por vezes, fruto de omissões e imprecisões graves do processo electrónico/informático).[5]

            4. Esta a perspectiva que domina na jurisprudência das Relações e que, nesta Relação, será até unânime.

            Na verdade, tem-se defendido que, no processo executivo, se é certo que a deserção da instância opera automaticamente - independentemente de qualquer decisão judicial que a declare - ela não se basta com a mera circunstância de o processo estar parado ou não apresentar qualquer movimento processual durante mais de seis meses; será ainda necessário que essa circunstância se deva a uma falta de impulso processual que possa ser imputada a negligência das partes.

            E tão pouco bastará, para esse efeito, que o processo esteja parado por culpa do agente de execução em promover os seus termos - o agente de execução, sendo embora escolhido pelo exequente, não está no processo ´como mandatário do exequente, ainda que sem representação, mas como auxiliar de justiça do Estado, escolhido pelo exequente`…E, sendo esta a veste do agente de execução, a sua actuação omissiva, consistente em não andar com o processo, não se ´repercute` automática e irreversivelmente sobre o exequente – sem que este seja notificado para se pronunciar sobre a paralisação processual decorrente de tal actuação omissiva – e não pode valer e ser ´iuris et de iure` considerada como inobservância, por negligência, do ónus de impulso processual por parte do exequente.

            A (eventual) inércia do agente de execução poderá determinar a sua destituição por incumprimento dos deveres inerentes às funções de que foi encarregado, mas, ainda que perdure por mais de seis meses, não será suficiente para fazer operar a deserção da instância, já que essa inércia não se repercute, de forma automática e imediata, sobre o exequente, sem que exista, pelo menos, uma notificação que transfira para a parte o ónus de reagir contra essa inércia, requerendo, designadamente, a destituição do agente de execução - o exequente apenas terá o ónus de reagir contra a inércia do agente de execução (para se concluir que, não o fazendo, a falta de movimento processual lhe é imputável) se for notificado para esse efeito, pelo que, constatando-se que o processo não apresenta movimento durante um período temporal que seja bastante para concluir que o agente de execução não está a cumprir os seus deveres, deverá o Tribunal notificar o exequente para requerer o que tiver por conveniente em face desse incumprimento; só a partir de então se poderá considerar que o exequente tem a obrigação e o ónus de tomar posição sobre esse incumprimento e que o processo aguarda o seu impulso processual, considerando-se deserta a instância se nada requerer nos seis meses subsequentes.[6]

            5. Reafirmando o referido entendimento, já se argumentou, de forma impressiva, que a ´solução final` (extinção da instância, por deserção) que se pretende dar ao processo, não pode ser sentenciada sem sujeitar a contraditório o que objectivamente resulta dos autos.

            Ainda que possam existir casos em que o contraditório prévio se mostre, aparentemente (em face de elementos dos autos), desnecessário e inútil - tanto por a negligência ser já patente, como por ser evidente a falta dela -, mesmo em tais hipóteses, há (sempre) que admitir que possa ter acontecido algo que, num plano de normalidade, não se entrevê, pelo que há que conceder ao ´visado` a possibilidade de o explanar.[7]

            6. Sabemos que no direito português anterior à reforma da acção executiva (operada pelo DL n.º 38/2003, de 08.3), cabia ao juiz a direcção de todo o processo executivo: cumpria-lhe providenciar pelo andamento regular e célere do processo, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao seu normal prosseguimento.

            Com a reforma de 2003, reduziu-se a intervenção do juiz no processo, cabendo-lhe ainda, inicialmente, por um lado, controlar a actividade do agente de execução e, por outro lado, decidir todas as questões suscitadas pelas partes ou terceiros intervenientes, inseridas na reserva constitucional de jurisdição, entre as quais a resolução de litígios entre as partes (cf., nomeadamente, o disposto no art.º 809º do CPC, nas redacções conferidas pelos DL n.ºs 38/2003, de 08.3 e 226/08, de 20.11).

            Actualmente (CPC de 2013) e no desenvolvimento de novas alterações ao processo executivo[8], os poderes do juiz foram drasticamente limitados.

            O juiz passou a exercer funções de tutela, intervindo em caso de litígio surgido na pendência da execução (art.º 723º, n.º 1, alínea b)), e de controlo, proferindo nalguns casos despacho liminar e intervindo para resolver dúvidas, garantir a protecção de direitos fundamentais ou matéria sigilosa (cf. os art.ºs 723º, n.º 1, alíneas a) e d), 726º, 738º, n.º 6, 749º, n.º 7, 757º, 764º, n.º 4 e 767º, n.º 1) ou assegurar a realização dos fins da execução (cf. os art.ºs 759º, 773º, n.º 6, 782º, n.ºs 2 a 4, 814º, n.º 1, 820º, n.º 1, 829º, n.ºs 1 e 2 e 833º, n.º 2), mas deixou de ter a seu cargo a promoção das diligências executivas, não lhe cabendo, nomeadamente, em regra, ordenar a penhora, a venda ou o pagamento, ou extinguir a instância executiva - a prática de tais actos, eminentemente executivos, bem como a realização de várias diligências do processo de execução, quando a lei não determine diversamente, passaram a caber ao agente de execução (art.ºs 719º, n.º 1 e 720º, n.º 6).

            Foi assim deslocado para um profissional liberal o desempenho dum conjunto de tarefas, exercidas em nome do tribunal, sem prejuízo da possibilidade de reclamação para o juiz dos actos ou omissões por ele praticados (art.º 723º, n.º 1), cabendo ao exequente proceder à sua designação e à sua destituição ou substituição, e criando-se um órgão disciplinar com o poder de destituição fundada (Comissão para a Eficácia das Execuções – cf., por último, o art.º 40º, n.º 1 da Portaria n.º 282/2013, de 29.8), regime mantido pelo CPC de 2013, ainda que o exequente deva, agora, expor o motivo da substituição (art.º 720º, n.º 4).

            Dúvidas não restam, assim, de que, sem retirar a natureza jurisdicional ao processo executivo, encontra-se hoje plenamente implantado um sistema caracterizado pela larga desjudicialização (entendida como menor intervenção do juiz nos actos processuais) e a diminuição dos actos praticados pela secretaria.[9]

            7. Vem sendo igualmente entendido que, considerada a pouca clareza do texto do art.º 281º quanto à competência para determinar a deserção da instância (e sem prejuízo do disposto no art.º 723º, n.º 1, alíneas c) e d)) e não havendo atribuição da competência para o efeito, quer ao juiz do processo, quer à secretaria, cabe ao agente de execução, nos termos do art.º 719º, n.º 1, decidir, em primeira linha, da deserção da instância do processo executivo.

            Na verdade, decorre da regra de competência residual estabelecida no art.º 719º, n.º 1, que o agente de execução tem competência para efectuar todas as diligências do processo executivo que não sejam da competência da secretaria (art.º 719º, n.ºs 3 e 4), nem do juiz (art.º 723º). No âmbito desta competência residual cabe a decisão sobre a deserção da instância, dado que a lei não atribui a competência para a decisão sobre aquela deserção nem ao juiz, nem à secretaria. A decisão do agente de execução é naturalmente reclamável para o juiz de execução (art.º 723º, n.º 1, al. c)).

            Esta perspectiva assenta no próprio teor literal do art.º 281º, n.º 5 - ao estabelecer que a instância executiva se considera deserta "independentemente de qualquer decisão judicial", o que demonstra que não é necessária nenhuma decisão do juiz de execução para que a instância se extinga por deserção -, sendo inequívoco que algum órgão tem de declarar a instância extinta e de comunicar essa extinção às partes, aos credores reclamantes e ao tribunal (art.º 849º, n.º 2 e 3), pois que a extinção não ocorre sem essa declaração e não é eficaz sem essa comunicação. Esse órgão só pode ser o agente de execução.[10]

            8. E nesta linha de entendimento conclui-se, ainda, que não há nenhuma relação hierárquica entre o juiz e o agente de execução - apesar de ser possível reclamar para o juiz de execução das decisões e dos actos do agente de execução (art.º 723.º, n.º 1, al. c)), cada um destes órgãos da execução tem uma competência funcional própria: se é evidente que o agente de execução não pode invadir a esfera de competência do juiz de execução (se isso suceder em actos de carácter jurisdicional, a consequência não pode deixar de ser mesmo a inexistência do acto ou da decisão daquele agente), também é claro que o juiz de execução não pode praticar, sob pena de nulidade, actos que pertencem à competência do agente de execução.[11]

            9. O agente de execução “tem o dever de prestar todos os esclarecimentos que lhe sejam pedidos pelas partes, incumbindo-lhe, em especial, informar o exequente de todas as diligências efectuadas, bem como dos motivos da frustração da penhora” [art.º 754º, n.º 1, a)] e esse dever de informação e comunicação do agente de execução perante as partes, garante da transparência na condução de cada processo, foi, por último, especialmente regulado pelo art.º 42º da Portaria n.º 282/2013, de 29.8 (aqui aplicável, na redacção introduzida pela Portaria n.º 233/2014, de 14.11 – cf. art.º 62º, n.º 1).[12]

            10. Assim, na interpretação e aplicação do art.º 281º, n.º 5, haverá, necessariamente, que levar em conta a actual “estrutura” do processo executivo, marcada por uma acentuada desjudicialização, pela limitação dos poderes e da intervenção do juiz e pela ausência de uma relação hierárquica entre o juiz e o agente de execução.

            Mas também não se poderá olvidar a actual “crise” económica e social, e seus efeitos, nomeadamente, ao potenciar o surgimento de novas situações adversas à regular tramitação das acções executivas, o que exigirá, porventura, redobrado ou, pelo menos, diferente empenho na detecção e na resolução de problemas/incidentes emergentes dessa mesma tramitação, quiçá, com uma diferente e mais avisada intervenção judicial.[13]

            11. No caso em apreço, verifica-se que a Mm.ª Juíza a quo considerou que a instância executiva ficou deserta em data não posterior a 09.6.2016 mas, tendo por referência o despacho de 17.11.2015, não atendeu ao período de férias judiciais da Páscoa… - cf. o art.º 28º da Lei n.º 62/2013, de 26.8.

            Independentemente do cômputo exacto do período temporal em causa, e sem quebra do respeito sempre devido, antolha-se evidente que o tribunal recorrido revela, por um lado, posição contrária ao explanado em II. 3. a 10., supra, e, por outro lado, considerável alheamento à realidade e ao princípio do contraditório…

            Ainda que possamos dizer que haviam decorrido cerca de 190 dias após a data “fixada” no dito despacho de 15.11.2015, e, assim, que o processo estava a aguardar impulso processual há mais de seis meses, imputou-se, por presunção, essa falta de impulso, à exequente, quando é certo que a deserção da instância executiva não dispensa que se apure, concretamente, que a falta de impulso processual dos autos se deve a negligência das partes, sendo que, no caso, não se apurou essa negligência relativamente à exequente.[14]

            Assim, não existiam razões para julgar verificada a deserção da instância, porquanto nada resulta dos autos que permita afirmar que a paralisação se tivesse ficado a dever ao incumprimento de qualquer ónus de impulso processual que recaísse sobre a exequente - apenas está objectivada, em termos de paralisação processual, a não comunicação da identificação dos herdeiros dos 3º e 4º executados, sendo certo que a AE não deixou de levar aos autos a informação mencionada em II. 1. l), supra, porventura complementada ou explicitada pela própria exequente, na alegação de recurso, onde acaba por imputar a “culpa” pelo sucedido “a uma terceira entidade que, notificada para o efeito, não respondeu com as informações solicitadas pelo Banco Exequente de forma a impulsionar o processo com a instauração do incidente de habilitação de herdeiros” [cf., sobretudo, a “conclusão 12ª”; ponto I, supra, e II. 1. o), supra].

            12. Nada apontando no sentido de que a acção executiva se encontrasse parada por falta de impulso da exequente e achando-se insuficiente a “informação conclusiva” referida em II. 1. l), supra, seria porventura de interpelar a AE para uma melhor concretização/explicitação do estado da execução.

            E porque não é a inércia do AE que se pretende punir com a deserção da instância executiva, mas a inércia do exequente, para que a paragem do processo lhe pudesse ser imputável, tinha de lhe ser dado conhecimento do estado dos autos e de que, na sequência da informação prestada, o prosseguimento do processo ficaria a aguardar pela sua resposta ou o seu impulso.[15]
            13. Resta dizer que a Secção não tem
competência funcional para aferir da deserção da instância (cf. II. 1. m), supra)[16], e que, in casu, não se mostravam verificados os respectivos pressupostos, na previsão do art.º 281º, n.º 5 (maxime, o não andamento do processo imputável a falta, negligente, de impulso do exequente), pelo que, em consequência, não podia ser, desde já, declarada a deserção e extinta a instância executiva e/ou inutilizado o presente apenso de habilitação de herdeiros (dos 3º e 4º executados).

            14. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


*

            III. Pelo exposto, procedendo a apelação, revoga-se a sentença recorrida e determina-se o prosseguimento dos presentes autos de habilitação de herdeiros.

            Sem custas.


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21.02.2017


Fonte Ramos ( Relator)

Maria João Areias

Vítor Amaral



           


           
               


[1] Atendendo aos documentos reproduzidos a fls. 6, 24, 25, 30/52, 32, 34, 36, 39, 50, 60, 72, 76 a 78, 88, 91, 94, 95 e 97.
[2] Diploma a que respeitam os normativos adiante citados sem menção da origem, aplicável à situação em análise (cf. o art.º 6º da Lei n.º 41/2013, de 26.6).

[3] Cf. o acórdão da RP de 02.02.2015-processo 4178/12.2TBGDM.P1, publicado no “site” da dgsi.

[4] Cf., neste sentido, à luz do novo CPC e tendo por objecto acções declarativas, entre outros, os acórdãos da RP de 02.02.2015-processo 4178/12.2TBGDM.P1 e da RC de 05.5.2015-processo 131/04.8TBCNT.C1, publicados no “site” da dgsi.

[5] Cf. o acórdão da RC de 16.12.2015- processo 651/08.5TBCTB-A.C1 (subscrito pelo relator e pela 1ª adjunta), publicado no “site” da dgsi.

[6] Cf. os acórdãos da RC de 01.12.2015-processo 2061/10.5TBCTB-A.C1 [com o seguinte sumário: «1 - Em todas as hipóteses de deserção da instância consideradas no art.º 281º do CPC se exige e alude à “negligência das partes”. 2 - Assim, embora o art.º 281º/5 do CPC, a propósito do processo de execução, diga que se “considera deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial”, tal não obsta a que, por despacho, se proceda à apreciação da imputação subjectiva da paralisação processual. 3 - Estando apenas retratado nos autos, em termos de paralisação processual, a ausência de actos por parte do agente de execução, tal é insuficiente para, sem notificar o exequente para se pronunciar sobre tal paralisação processual, estabelecer a sua negligência na paragem do processo.»] e 14.6.2016-processo 500/12.0TBAGN.C1 [assim sumariado: «I - Ainda que, no domínio do processo executivo, a deserção da instância opere automaticamente – independentemente, portanto, de qualquer decisão judicial que a declare – ela não se basta com a mera circunstância de o processo estar parado ou não apresentar qualquer movimento processual durante mais de seis meses; para que tal deserção se tenha por verificada, será ainda necessário que essa circunstância se deva a uma falta de impulso processual que possa ser imputada a negligência das partes, sendo irrelevante, para esse efeito, a falta de impulso processual que apenas é imputável ao agente de execução. II - Estando o processo a aguardar, há mais de seis meses, a realização de diligências que são da competência do agente de execução, não poderá concluir-se, sem mais, que a falta de movimento processual é imputável a negligência do exequente, sem que exista, pelo menos, uma notificação que transfira para este o ónus de reagir e tomar posição sobre a inércia e o incumprimento do agente de execução. III - Assim, constatando-se que o processo não apresenta movimento durante um período temporal significativo que seja bastante para concluir que o agente de execução não está a cumprir os deveres inerentes ao cargo, deverá o Tribunal notificar o exequente para requerer o que tiver por conveniente em face desse incumprimento; só a partir desse momento se poderá considerar que o exequente tem a obrigação e o ónus de tomar posição sobre esse incumprimento e que o processo aguarda o seu impulso processual, considerando-se deserta a instância se nada requerer nos seis meses subsequentes.»], publicados no “site” da dgsi.

   Com idêntico entendimento, cf. ainda, entre outros, os acórdãos da RP de 14.3.2016-processo 317/06.0TBLSD.P1, RC de 07.6.2016-processo 302/13.6TBLSA.C1 [referindo-se no ponto 3 do sumário: “Não dependendo, em regra, a marcha do processo executivo do impulso do exequente, só se poderá falar em inércia do exequente para promover os respectivos termos se for expressamente notificado, por parte do agente de execução ou por determinação do tribunal, de que o processo ficará a aguardar a sua resposta ou impulso.”] e 06.7.2016-processo 132/11.0TBLSA.C1, RL de 26.3.2015-processo 2530-09.0TBPDL-A.L1-2, 16.6.2015-processo 1404/10.6TBPDL.L1-7 e 09.7.2015-processo 3224/11.1TBPDL.L1-2 e da RG de 02.5.2016-processo 1417/10.8TBVCT-A.G1, publicados no “site” da dgsi.

[7] Cf. o citado acórdão da RC de 06.7.2016-processo 132/11.0TBLSA.C1.
[8] Por exemplo, com o DL n.º 226/08, de 20.11, o juiz perdeu o poder geral de controlo (que o anterior art.º 809º do CPC lhe conferia) e o poder de destituir, fundadamente, o agente de execução (cf. a redacção introduzida ao art.º 808º do CPC).
[9] Vide, neste sentido, J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 6ª edição, Coimbra Editora, 2014, págs. 29 a 34.

[10] Cf. o acórdão da RE de 19.11.2015-processo 84/13.1TBFAL.E1 [concluindo-se: “Não havendo atribuição da competência para o efeito, quer ao juiz do processo, quer à secretaria, cabe ao agente de execução, nos termos do art.º 719º, n.º 1, do CPC, decidir, em primeira linha, da deserção da instância do processo executivo.”] e a posição expressa sobre esta matéria pelo Professor Teixeira de Sousa no “blogue do IPPC.

   Em idêntico sentido, cf. o citado acórdão da RC de 07.6.2016-processo 302/13.6TBLSA.C1, relatado pela aqui 1ª adjunta [onde se refere: “Também relativamente à extinção da instância por deserção, a competência para a aferição dos seus pressupostos, incumbirá, em regra, ao agente de execução” e, depois, “Admitimos ainda que, nalgumas situações, também o juiz a poderá apreciar oficiosamente, desde que os autos lhe forneçam elementos seguros e objectivos para tal: por ex. se a inércia do exequente se segue a alguma interpelação por parte do tribunal ou após se ter certificado junto do AE, do estado do processo e de que os autos se encontram efectivamente parados pelo facto de se encontrarem dependentes de algum ato a praticar pelo exequente, e que tal inércia se prolonga há mais de seis meses.”].

[11] Cf. o dito artigo do Professor Teixeira de Sousa no “blogue” do IPPC.

[12] Cf. o preâmbulo da Portaria n.º 282/2013, de 29.8 e o n.º 1 do art.º 62º (sob a epígrafe “conteúdo do dever de informação e comunicação” e referente ao processo electrónico), que preceitua: O sistema informático de suporte à actividade dos agentes de execução assegura a disponibilização ao exequente, através do sistema informático de suporte à actividade dos tribunais, no endereço http://citius.tribunaisnet.mj.pt, de informação sobre: a) O resultado das diligências prévias à penhora, previstas nos artigos 748º e 749º do CPC; b) Todas as demais diligências efectuadas pelo agente de execução ou sob sua responsabilidade; c) O motivo de frustração da penhora (n.º 1).

[13] Cf. o acórdão da RC de 20.9.2016-processo 3690/14.3T8CBR.C1, deste mesmo colectivo, publicado no “site” da dgsi.

[14] Cf., a propósito, a decisão sumária desta Relação de 14.6.2016-processo 4386/14.1T8CBR.C1, publicada no “site” da dgsi.
[15] Cf. os arestos mencionados na “nota 6”, supra.

[16] Cf. os citados acórdãos da RC de 07.6.2016-processo 302/13.6TBLSA.C1 e de 20.9.2016-processo 3690/14.3T8CBR.C1.