Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
55/13.8GBFVN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO AUTÊNTICO
CHAPA DE MATRÍCULA
Data do Acordão: 01/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 255º, A) E 256º, Nº 1, A) E E) E 3 DO C. PENAL
Sumário: 1.- A chapa de matrícula de um veículo, designadamente, de um ciclomotor, depois de nele aposta, enquanto sinal que identifica e revela que foi feita a matrícula e que o respetivo número é o que dela consta, constitui um documento, para efeitos do crime de falsificação;

2.- Comete o crime de falsificação de documento qualificado, p. e p. pelos arts. 255º, a) e 256º, nº 1, a) e e) e 3 do C. Penal, o arguido que apõe no ciclomotor uma chapa de matrícula correspondente a outro ciclomotor.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra
 
I. RELATÓRIO


No Tribunal Judicial da comarca de Figueiró dos Vinhos o Ministério Público requereu o julgamento, em processo especial sumário, do arguido A..., com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º, nº 1, b) do C. Penal, e de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelos arts. 255º, a) e 256º, nºs 1, a) e e), e 3 do mesmo código.

Por sentença de 10 de Julho de 2013, foi o arguido condenado, pela prática do imputado crime de desobediência, na pena de 80 dias de multa, pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelos arts. 255º, a) e 256º, nº 1, a) e e) do C. Penal, na pena de 220 dias de multa, e em cúmulo, na pena única de 250 dias de multa à taxa diária de € 5,50, perfazendo a multa global de € 1.375.
*
            Inconformada com a decisão, recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
            “ (…).
            1 – O arguido A... foi condenado, em autoria material, pela prática de um crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 80 dias de multa e de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1, alínea e), por referência à alínea a), e 255º, alínea a), do Código Penal, na pena de 220 dias de multa, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 250 dias de multa, à taxa diária de € 5,50, o que perfaz um total de € 1.375,00.
2 – Resulta da matéria dada como provada que o veículo ciclomotor em causa possuía o número de matrícula 1CPR y..., que o mencionado veículo se encontrava apreendido por não ter sido efectuada a substituição de matrícula atribuída pela Câmara Municipal até 31 de Dezembro de 2008, e que o arguido apôs no veículo a matrícula com o número e letras z..., sendo certo que esta matrícula se encontra atribuída a outro veículo ciclomotor, como ademais resulta da prova documental junta aos autos, e que com essa matrícula aposta no ciclomotor com ele circulou na via pública.
3 – A chapa de matrícula aposta num veículo constitui o suporte material, visível para toda a gente e obrigatório, de um número criado por entidade pública com competência para tal – por isso com a fé pública que daí decorre. Não foi emitida por essa entidade, mas, uma vez fixada no veículo automóvel a que respeita a matrícula, passa a ter a mesma força probatória que um documento autêntico.
4 – As chapas de matrícula apostas nos veículos devem ser consideradas documentos com igual força à dos documentos autênticos.
5 – Pelo exposto, deve o arguido ser condenado por um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1, alínea e), com referência à alínea a), agravado pelo nº 3, por referência ainda ao artigo 255º, alínea a), ambos do Código Penal.
6 – Pelas razões expostas, a douta sentença proferida nos autos violou o disposto nos artigos 255º, alínea a), e 256º, nº 1, alínea e), com referência à alínea a), e nº 3, ambos do Código Penal.
Termos em que se conclui no sentido supra exposto, julgando-se o presente recurso procedente e proferindo-se douto acórdão que revogue a sentença sindicada na parte colocada em crise e condene o arguido pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1, alínea e), com referência à alínea a), agravado pelo nº 3, por referência ainda ao 255º, alínea a), ambos do Código Penal,
Como é de toda a JUSTIÇA.
(…)”.
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            Respondeu ao recurso o arguido, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:
            “ (…).
            (a) O arguido A... foi condenado, em autoria material, pela prática de um crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1 alínea b), do Código Penal, na pena de 80 dias de multa e de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1, alínea e), por referência à alínea a), e 255º, alínea a), do Código Penal, na pena de 220 dias de multa, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 250 dias de multa, à taxa diária de € 5,50, o que perfaz um total de € 1.375,00.
(b) Da matéria dada como provada resulta que o veiculo ciclomotor em causa possuía o número de matricula 1-CPR y..., que o mencionado veículo se encontrava apreendido por não ter sido efectuada a substituição de matrícula atribuída pela Câmara Municipal até 31 de Dezembro de 2008 e que o arguido, apôs no veículo, a matricula z..., encontrando-se esta atribuída a um outro veículo ciclomotor, como ademais resulta da prova documental junta aos autos e que, com essa matrícula aposta no ciclomotor, com ele circulou na via pública.
(c) A chapa de matrícula aposta no veículo constitui o suporte material, visível para toda a gente e obrigatório, de um número criado por entidade pública com competência para tal e com a fé pública que daí decorre, passando a ter a mesma força probatória que um documento autêntico.
(d) As chapas de matrícula apostas nos veículos devem ser consideradas documentos com igual força à dos documentos autênticos.
(e) O arguido, ao ser condenado como foi, por um crime de falsificação de documento, p.p. pelo artigo 256º, nº 1, alínea e), com referência à alínea a), por referência ao artigo 255º, alínea a), ambos do Código Penal. foi-o também pelo nº 3 do referido diploma.
(f) Assim, a douta Sentença proferida nos autos não violou o disposto nos artigos 255º, al. a), e 256º, nº 1, al. e), com referência à al. a), e nº 3, todos do Código Penal.
Assim, atenta a douta Sentença a quo e com o mui douto suprimento de VV. Exa.s, deve o Recurso interposto pelo digno Magistrado do Ministério Público ser julgado improcedente, mantendo-se a pena acessória aplicada, fazendo VV. Exa.s JUSTIÇA!
(…)”.
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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderiu à argumentação da Digna Magistrada do Ministério Público recorrente, afirmou, face à pressuposta alteração da qualificação jurídica, a necessidade de agravação da punição do arguido, e concluiu pela procedência do recurso.
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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.
 
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO


            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
            Assim, atentas as conclusões formuladas pela Digna Magistrada do Ministério Público recorrente, a única questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se a falsificação da matrícula de ciclomotor preenche o tipo do crime de falsificação de documento qualificado, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1 e 3 do C. Penal ou apenas, o tipo simples do mesmo nº 1.

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            Para a resolução desta questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida.
Nela foram considerados provados os seguintes factos [por nós numerados e, pontualmente, com redacção rectificada relativamente à da transcrição de fls. 120 a 125]:
            “ (…).
            1. O arguido é proprietário do veículo ciclomotor marca Famel, modelo Z3, de cor preta, com número de quadro x....          
                2. No dia 2 de Maio de 2012 foi lavrado o auto de notícia por contra-ordenação e apreensão número 271094346, no âmbito do qual, naquela data, foi apreendido o veículo ciclomotor de matrícula 1-CPR y..., marca Famel, modelo Z3, de cor preta, com o número de quadro x..., cujo auto foi devidamente assinado pelo arguido A..., e no qual este foi constituído fiel depositário da mencionada viatura, por não ter sido efectuada a substituição de matrícula, atribuída pela Câmara Municipal competente até ao dia 31 de Dezembro de 2008.
                3. Nessa ocasião o arguido foi advertido pessoalmente, tendo assinado a respectiva notificação e ficado ciente do seu conteúdo, que o veículo ficaria à sua guarda, na qualidade de fiel depositário e ficava com a obrigação de o entregar quando fosse exigido, e de não remover, alterar o estado, utilizar, alienar, destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, sob pena de incorrer ma prática de um crime de desobediência.
                4. O arguido, em data não concretamente apurada, mas seguramente posterior a 2 de Maio de 2012, procedeu à substituição da chapa de matrícula com o número 1-CPR y..., correspondente ao número de quadro x..., que o ciclomotor ostentava, e pôs no seu lugar a chapa de matrícula número z..., sendo certo que esta matrícula se encontra atribuída a outro veículo ciclomotor.
                5. Não obstante o veículo encontrar-se apreendido, o arguido no dia 30 de Junho de 2013, cerca da uma hora e cinquenta e cinco, circulou com o mencionado veículo ciclomotor, o qual ostentava a matrícula z..., em Castanheira de Pêra, mais concretamente na Estrada Nacional 236, em Sapateira.
                6. Ao proceder à alteração da chapa de matrícula da forma acima descrita e ao circular com o veículo com a chapa de matrícula z..., o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com a intenção de criar a aparência de que a matrícula com o número z... pertencia aquele veículo ciclomotor, bem sabendo que tal não pertencia à verdade, e que dessa forma faltando à verdade lesava a segurança e confiança no tráfico jurídico.
                7. Mais sabia o arguido que as chapas de matrícula servem para individualizar e identificar os veículos a que pertencem, e que as alterações produzidas no veículo apreendido não assentavam nas características que lhe foram concedidas, pelos serviços competentes, e que por isso mesmo, o mesmo não se encontrava em condições de circular pela via pública, e não obstante não hesitou em fazê-lo, bem sabendo que lesava o interesse público na autenticidade e genuinidade de documentos autênticos e que punha em causa o seu valor probatório, nomeadamente a credibilidade e a fé que as mesmas gozam perante o público em geral e as autoridades em particular, prejudicando dessa forma o Estado Português.
                8. Agiu ainda livre, voluntaria e conscientemente, bem sabendo que devia obediência às ordens que lhe tinham sido regularmente comunicadas, as quais eram legítimas por provenientes de autoridade competente.
                9. Ao conduzir o veículo nas circunstâncias supra-descritas, o arguido agiu com o propósito de concretizar de desrespeitar a ordem que lhe tinha sido transmitida, não obstante saber que essa ordem fora emanada por autoridade competente e que lhe devia obediência, a qual foi regularmente comunicada através de notificação pessoal, bem como sabia que não a acatando incorreria na prática de um crime de desobediência.
                10. Mais sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
                11. O arguido confessou a prática dos factos.
                12. O arguido trabalha como jardineiro na Câmara Municipal de Castanheira de Pêra, onde aufere um vencimento mensal de 600 €.
                13. O arguido tem penhoras no vencimento, na sequência das quais recebe um vencimento líquido de 435 €.
                14. O arguido é solteiro, não tem filhos, vive sozinho em casa de familiares pela qual não paga renda, tem a 4ª classe de escolaridade, ainda não pagou a contra-ordenação que deu origem a estes autos e comprou uma nova mota, devidamente legalizada, pela qual paga 120 € por mês.
            (…)”.
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            Da qualificação jurídica da falsificação de matrícula de ciclomotor

            1. O presente recurso está limitado ao conhecimento de uma questão de direito, que é a de saber se a conduta que tem por objecto a falsificação da matrícula de um ciclomotor preenche o tipo do crime de falsificação de documento qualificado, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1 e 3 do C. Penal, como defende a Digna Magistrada recorrente ou se, como foi entendimento da sentença em crise, preenche o tipo base do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1 do C. Penal.
            Note-se, a propósito, que também o arguido entende que a conduta em questão preenche o tipo do crime qualificado, mas alega que foi precisamente condenado por este crime, e não pelo crime simples, tratando-se de mero lapso a omissão na sentença da referência à sua condenação pelo nº 3 do art. 256º do C. Penal.    
            Vejamos então, na nossa perspectiva, está a razão.

            3. Começando pelo lapso da sentença invocado pelo arguido, cremos que não lhe assiste razão.
            Atentemos nos seguintes segmentos da fundamentação da sentença, transcrita a fls. 120 a 125, proferida que foi oralmente, nos termos do art. 389-A do C. Processo Penal [também pontualmente corrigidos, relativamente à redacção da transcrição]:
            “ (…).
            Relativamente ao crime de falsificação de documento, está punido no art. 256º do C. Penal, também por referência ao art. 255º, a) que explica o que é um documento para efeito destes crimes de falsificação e não há dúvida de que a chapa de matrícula é um documento. Isto resulta, enfim, da generalidade ou da maioria pelo menos, para não dizer, da unanimidade da jurisprudência que conheço, não tenho dúvidas em considerar a chapa de matrícula como documento. Aliás, existe um Assento do Supremo Tribunal de Justiça, que é o nº 3/1998, que equipara este documento, que atribui força de documento autêntico à chapa de matrícula. Portanto, nesta parte, não tenho qualquer dúvida de que a chapa de matrícula é efectivamente um documento para efeitos do crime de falsificação de documento. (…).
            Este crime de falsificação tem uma moldura penal que é de prisão até três anos ou pena de multa. Por referência ao art. 47º, esta multa pode ser fixada entre 10 e 360 dias. Pelos mesmos motivos me parece que posso optar perfeitamente ainda por uma pena de multa.(…).
            E portanto, o tribunal embora vá optar pela pena de multa, vai fixar a pena de multa em 220 dias, porque me parece também um bocadinho acima da média da moldura penal, na mesma lógica de que o senhor confessou e não tem antecedentes criminais, mas parece-me que este crime tem gravidade e o senhor tem que perceber isso de vez, que é para que isto não volte a acontecer.
            (…)”.           
           
            E no Dispositivo da sentença consta, na parte relevante:
            “ (…).
            O tribunal decide:
            (…).
            2. Condenar o arguido pela prática em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1, alínea e) por referência à alínea a), e 255º, al. a), do Código Penal na pena de 220 dias de multa.
            (…)”.

            Como se vê, apesar de a Mma. Juíza a quo fazer referência ao Assento nº 3/98 que, efectivamente, atribuiu à chapa de matrícula aposta em veículo automóvel a qualificação de documento com igual força à de um documento autêntico, concluiu apenas que a chapa de matrícula é um documento, para efeitos de preenchimento do tipo. Mais adiante, quando tratou da questão da escolha e medida da pena, referiu expressamente a moldura penal abstracta prevista nº 1 do art. 256º do C. Penal ou seja, prisão até três anos ou pena de multa, e não a prevista no nº 3 do mesmo artigo para o crime qualificado [prisão de seis meses a cinco anos ou multa de 60 a 600 dias]. Finalmente, depois de ter optado pela pena de multa e de ter mencionado a medida abstracta resultante do art. 47º, nº 1 do C. Penal – 10 a 360 dias – fixou a medida concreta em 220 dias de multa, com a consideração de que esta se situa acima da média da moldura penal, consideração esta que só pode referir-se à moldura resultante do art. 47º, nº 1 do C. Penal e portanto, ao crime de falsificação de documento previsto no art. 256º, nº 1 do mesmo código [quanto à pena de multa, o ponto médio da moldura abstracta situa-se em 185 dias], e não à moldura penal do crime de falsificação de documento qualificado, previsto no art. 256º, nºs 2 e 3 do C. Penal [quanto à pena de multa, o ponto médio da moldura abstracta situa-se em 330 dias].     

            É pois claro que a Mma. Juíza quis condenar o arguido como autor de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1 do C. Penal, e não que, tendo querido condená-lo pela prática de um crime de falsificação de documento qualificado tenha, por lapso, omitido a referência ao nº 3 do mesmo artigo. E se é certo que, face à imputação do crime qualificado feita na acusação, não discutiu nem expressamente afastou a circunstância qualificativa, e também não absolveu o arguido da prática do crime qualificado, todas estas questões se mostram, ainda que de uma forma não tecnicamente perfeita, implicitamente decididas.
 
            Problema distinto, de que cuidaremos de seguida, é o de saber se, ao assim decidir, a Mma. Juíza incorreu ou não em erro de julgamento.

            2. Integrado no Livro II, Título IV – Dos crimes contra a vida em sociedade, Capítulo II – Dos crimes de falsificação, do C. Penal, o crime de falsificação ou contrafacção de documento é um crime comum, de perigo abstracto e de mera actividade, que tutela a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que à prova documental respeita (cfr. Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, parte Especial, Tomo II, pág. 680), e tem como elementos do respectivo tipo (art. 256º, nº 1 do C. Penal):
            [Tipo objectivo]
            - Que o agente, a) fabrique ou elabore documento falso, b) falsifique ou altere documento, c) abuse da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento, d) fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante, e) use documento falsificado ou contrafeito, f) por qualquer meio, faculte ou detenha documento falsificado ou contrafeito;
[Tipo subjectivo]
            - O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto;
            - O dolo específico, a intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si ou outra para pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

            O art. 255º, a) do C. Penal define documento como, a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.
            Para efeitos do tipo supra descrito, documento é pois, a declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante, e o sinal feito, dado ou posto numa coisa para provar um facto juridicamente relevante,
            Desta forma, a chapa de matrícula de um veículo, designadamente, de um ciclomotor, depois de nele aposta, enquanto sinal que identifica e revela que foi feita a matrícula – entendida como o resultado do acto de matricular isto é, o acto administrativo de registo de um veículo destinado ou autorizado a circular na via pública, efectuado pela entidade competente, que identifique o veículo e estabeleça as suas condições de circulação (art. 2º, b) do Dec. Lei nº 128/2006, de 5 de Julho) – e que o respectivo número é o que dela consta, constitui um documento, para efeitos do crime de falsificação.  

            Sendo a chapa de matrícula de um ciclomotor, para efeitos penais, um documento, a apurada conduta do arguido, traduzida na substituição dolosa da chapa de matrícula 1-CPR y..., atribuída ao seu ciclomotor, pela chapa de matrícula z..., atribuída a um outro ciclomotor, a fim de com aquele poder circular na via pública, preenche a previsão do art. 256º, nº 1, e) do C. Penal. Aliás, no recurso não vem questionado o cometimento do crime de falsificação de documento, pois com ele concordam, Ministério Público e arguido. 

            3. Vejamos agora se o crime de falsificação de documento é ou não qualificado pelo nº 3 do art. 256º do C. Penal, sendo que também quanto a este aspecto, Ministério Público e arguido coincidem quanto a ser o crime qualificado.

            Dispõe este nº 3:
            Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.

            Os veículos a motor só são admitidos em circulação desde que matriculados (art. 117º, nº 1 do C. da Estrada, em vigor na data dos factos), correspondendo a cada veículo matriculado um documento, destinado a certificar a matrícula, do qual devem constar as suas características identificadoras (art. 118º, nº 1 do mesmo código).             Nos termos dos arts. 4º e 5º do Dec. Lei nº 128/2006, de 5 de Julho, compete à DGV [hoje, ao IMT] matricular os veículos com motor e, portanto, atribuir-lhes o número de matrícula.
            De tudo isto resulta que os veículos com motor só podem circular nas vias públicas tendo apostas as chapas de matrícula e estas, como é óbvio, devem ter impresso o correspondente número de matrícula, criado e atribuído ao veículo por aquela entidade pública.
            Em condutas como a levada a cabo pelo arguido, a falsificação não atinge a chapa mas o número criado pela entidade pública, número de que aquela é mero suporte físico. Por isso que, muito embora a chapa não seja emitida pela entidade pública, porque constitui o suporte físico de um número – o número de matrícula – que, para além de obrigatório, foi emitido por uma entidade pública e no exercício da competência que a lei lhe atribui, depois de fixada no veículo, passa a ter a força probatória de um documento autêntico.

            Acresce que, na vigência do C. Penal de 1982, no Assento nº 3/98 (DR I-A, de 2 de Dezembro) fixou a seguinte jurisprudência, relativamente ao crime de falsificação qualificado, (então p. e p. pelos arts. 228º, nºs 1 e 2 e 229º, nº 3, ambos do C. Penal): «Na vigência do Código Penal de 1982, redacção original, a chapa de matrícula de um veículo automóvel, nele aposta, é um documento com igual força à de um documento autêntico, pelo que a sua alteração dolosa consubstancia um crime de falsificação de documentos previsto e punível pelas disposições combinadas dos artigos 228.º n.º 1, alínea a) e 2, e 229.º, n.º 3 daquele diploma».    
            As alterações posteriores ao crime de falsificação de documento não alteram a estrutura do respectivo tipo, e no que respeita à qualificação, foi apenas ampliada a respectiva previsão [pelo aumento do elenco dos documentos relevantes]. Por isso, ainda que o Assento se refira à chapa de matrícula de um veículo automóvel, e a chapa de matrícula que integra o objecto dos autos respeite a um ciclomotor, não vemos razão para que a jurisprudência ali uniformizada não seja igualmente aplicável à chapa de matrícula de ciclomotor, pois não só o verdadeiro número de matrícula do veículo do arguido foi atribuído por uma entidade pública no exercício das suas atribuições, in casu, a Câmara Municipal de Castanheira de Pêra, como no regime legal vigente, o acto administrativo de matricular automóveis, motociclos, ciclomotores, triciclos quadriciclos compete à mesma autoridade, o IMT (cfr. arts. 4º, 5º e 33º do Dec. Lei 128/2006, de 5 de Julho).

            Em conclusão, o arguido, com a sua apurada conduta, preencheu o tipo do crime de falsificação de documento qualificado, p. e p. pelos arts. 255º, a) e 256º, nº 1, a) e e) e 3 do C. Penal, pelo que, com a procedência do recurso, deve ser pela prática do mesmo condenado.

            4. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, pronunciando-se pela procedência do recurso, entendeu ainda que a punição deveria ser agravada em função da diferente qualificação jurídica.

            Reconhecendo-se que possa ser essa uma consequência natural, quando se passa da condenação pelo crime simples para a condenação pelo crime qualificado, em função da diferente moldura penal aplicável, agora mais grave, é para tanto necessário, cremos nós, que o recorrente expresse no recurso também a sua discordância quanto à medida da pena. Com efeito, imputação penal e determinação da sanção são questões distintas que podem ser apreciadas e decididas autonomamente e por isso, devem constar especificamente dos fundamentos do recurso e das respectivas conclusões (cfr. arts. 403º, nº 1 e 2, d) 412º, nº 1 do C. Processo Penal).
            Acontece que a Digna Magistrada recorrente limitou o recurso nos seguintes termos, «A douta sentença proferida não pode merecer a nossa concordância, em matéria de direito, sendo que o objecto do presente recurso centra-se na qualificação jurídica realizada quanto à prática do crime de falsificação de documento.», e não encontramos, seja no corpo da motivação, seja nas respectivas conclusões, a mais pequena referência à medida concreta da pena decretada.

Assim, não podendo deduzir-se do recurso a pretensão do agravamento da pena decretada – esta cabe na moldura penal abstracta prevista para o crime de falsificação de documento qualificado e, em tese, é admissível que com a sua concreta medida concorde a Digna Magistrada recorrente – e porque esta alteração não se traduziria numa reformatio in melius, deve manter-se a pena fixada pela 1ª instância para o crime de falsificação de documento.
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            III. DECISÃO


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso. Consequentemente, decidem:

A) Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelos arts. 255º, a) e 256º, nº 1, a) e e) do C. Penal, e condenar o arguido pela prática de um crime de falsificação de documento qualificado, p. e p. pelos arts. 255º, a) e 256º, nº 1, a) e e) e 3 do C. Penal, mantendo-se a pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos) que ao crime foi fixado pela 1ª instância.
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            B) Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.
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            Recurso sem tributação.
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Coimbra, 29 de Janeiro de 2014


 (Heitor Vasques Osório - Relator)

 (Fernando Chaves)