Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
139/05.6TBFAG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
CRÉDITO
DATA
Data do Acordão: 05/18/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FORNOS DE ALGODRES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 349º E 610º, AL. A), CC
Sumário: I – No apuramento da simulação do negócio e dos requisitos exigidos para a procedência da acção pauliana, em especial o da má fé do devedor e do terceiro interveniente no acto impugnado, envolvendo circunstancialismo que é muito difícil de demonstrar através de prova directa, já que, por regra, dele não fazem alarde os pactuantes, não divulgando os seus verdadeiros intentos a outrem, assumem particular relevância as presunções judiciais.

II – A anterioridade do crédito, exigida na primeira parte da al. a) do artº 610º CC, deve aferir-se pelo momento da constituição da relação obrigacional e não pela data da decisão judicial que, em processo intentado para obter a condenação do devedor no respectivo pagamento, reconheça o crédito.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1 - A... intentou, em 12/05/2005, no Tribunal Judicial da Comarca de Fornos de Algodres, acção de impugnação pauliana, com processo ordinário, contra B..., solteira, C.... e marido, D....., pedindo que fosse decretada a ineficácia em relação a si, autor, da compra e venda dos imóveis identificados nas als. a) e b) do artº 7º da p.i., outorgada pela escritura de 15/05/2002 no 1º Cartório Notarial de Viseu, devendo ainda ser ordenado aos segundos Réus a restituição dos referidos bens, de modo a que ele, autor, se pudesse pagar à custa dos mesmos.[1]

Sustentou, em síntese, para o efeito, que:

- Na sua actividade de construtor civil, celebrou com a primeira Ré, na pessoa do pai desta, seu procurador, em 30/06/1995, um contrato de empreitada para a construção de um prédio urbano em ...., não tendo a ré pago os trabalhos por si realizados, motivo pelo qual instaurou contra a mesma, em 12/07/1999, acção judicial em que esta, por decisão transitada em julgado, veio a ser condenada a pagar-lhe a importância de 35.577,76, acrescida de juros legais;

- A 1ª Ré, tendo apenas um prédio urbano e um prédio rústico, vendeu-os aos segundos Réus, por escritura de compra e venda lavrada no 1º Cartório Notarial de Viseu em 15/05/2002, sendo que, com tal negócio - que foi absolutamente simulado, porquanto as partes nenhum negócio quiseram efectivamente celebrar - visaram os RR., de comum acordo, ludibriar a possibilidade de ele, autor, concretizar a realização do recebimento do crédito que detinha sobre a 1.ª Ré.

2 - Contestando, pugnaram os RR pela improcedência da acção, alegando, em síntese, que:

- A compra e venda objecto dos presentes autos foi celebrada, o preço foi pago, não havendo proferida, aquando da realização de tal escritura pública, qualquer decisão judicial.

- Caso se considerasse que a dívida já então existia, não obstante a inexistência de qualquer decisão judicial, o dinheiro pago pelos segundos Réus, na altura da escritura, seria suficiente para pagar a dívida;

- Não houve qualquer intenção de fraude ou simulação, dado que a primeira Ré não se manteve na posse dos bens transaccionados;

- A aquisição a favor dos 2°s. RR está registada desde 22.05.2002, tendo decorrido mais de três anos desde aquele registo, para efeitos do disposto no art.º 291º, n° 2, do CC.

3 - Replicando, defendeu o Autor, além do mais, a anterioridade do crédito negada pelos RR, bem como a inaplicabilidade do disposto no art. 291° n° 2 do CC.

4 - Na sequência de despacho proferido ao abrigo do artº 508º do CPC, o autor veio esclarecer o seu pedido, apresentando petição aperfeiçoada.

5 - Foi proferido despacho saneador, tendo-se fixado os factos tidos como assentes e elaborado a base instrutória.

6 - Prosseguindo os autos os seus ulteriores termos, realizada que foi, com gravação da prova, a audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença, em 13/07/2009 (fls. 367 a 373), que julgou a acção totalmente procedente.

B) - Inconformados com tal decisão, dela recorreram os RR - recurso esse admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo -, terminando a Alegação recursiva com as seguintes conclusões:

[…………………….]

Terminaram com apelo ao disposto no art.º 712º do CPC, pedindo a revogação da sentença recorrida.

Nas suas contra-alegações o Recorrido pugnou pela confirmação da sentença impugnada.

Corridos os “vistos” e nada a isso obstando, cumpre decidir.

C) - Questões a resolver:

Em face do disposto nos art.ºs 684º, nº 3 e 4, 690º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)[2], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660º, n.º 2, “ex vi” do art.º 713º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [3]).

Assim, as questões a solucionar, consistem em saber;

- Se deve ser alterada a matéria de facto em que se fundou a sentença recorrida;

- Se, em face da factualidade que se tenha como provada, se mostra acertada a procedência da acção decidida pelo Tribunal “a quo”.

II - A) - Na sentença da 1.ª Instância considerou-se como factualidade provada, a seguinte matéria:

[…………………………………..]

B) - O poder de correcção e ampliação da Relação quanto à matéria de facto não se esgota aos casos em que o recorrente, discordando desta por razões que se prendem com a avaliação da prova - “rectius”, da apreciação da prova testemunhal - que foi feita pelo Tribunal da 1.ª Instância, procede à impugnação de que tratam os art.ºs 690.º-A e 712.º, n.º 2 e n.º 1, alínea a), 2.ª parte, ambos do CPC.

Assim, nos termos do referido art.º 712º, para além dos poderes de anulação que lhe são conferidos pelo n.º 4, a Relação pode também alterar a decisão de facto proferida pelo Tribunal recorrido:

- Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa (alínea a), 1.ª parte, do n.º 1);

- Se os elementos constantes do processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas (alínea b) do n.º 1);

- Se for apresentado pelo recorrente documento novo superveniente que, só por si, destrua a prova que fundamentou a decisão (alínea c) do n.º 1).

Nos poderes da Relação quanto à matéria de facto está incluído, também, o de a alterar, na parte impugnada, ampliando-a, com recurso às presunções judiciais, excepto quando essa ampliação contrarie as respostas dadas aos quesitos[4] - excepção esta de que já não fará sentido falar, claro está, se no caso estiver em aberto a valoração da prova registada, no âmbito dos referidos art.ºs 690º-A, n.ºs 1 e 2 e art.ºs 712º, n.ºs 2 e 1, alínea a), 2.ª parte -, bem como restringindo aquela, como sucederá, por exemplo, se o Juiz sentenciador, invocando presunção judicial, consignar como assente facto que contrarie a resposta que se deu, quanto a essa matéria, à base instrutória, ou que, muito embora não provoque essa contradição, seja o resultado de uma inferência ilegítima, porque não provados os factos-base que lhe serviriam de suporte.

Havendo-se procedido à gravação dos depoimentos prestados na audiência, a decisão do Tribunal de 1.ª Instância sobre matéria de facto é susceptível de ser alterada pela Relação se for impugnada, nos termos do art.º 690.º-A, a decisão com base neles proferida - (alínea a) do n.º 1 do art.º 712.º do CPC).
Importa salientar ser o princípio da livre convicção do julgador, estatuído no art.º 655.º, n.º 1, do CPC, aquele que vigora no domínio da valoração da prova testemunhal, bem assim como na valoração da prova documental, neste último caso, claro está, nas hipóteses em que a tal prova não seja atribuída força probatória plena.
Com efeito, salvaguardada a excepção que consigna no n.º 2, o art.º 655.º do CPC, preceitua no seu n.º 1 que o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
Analisadas as provas à luz das regras de experiência e da lógica, gerou-se no juiz o convencimento - fundado, não arbitrário - sobre a probabilidade séria da conformação dos factos a uma determinada realidade. A prova idónea a alcançar um tal resultado, é a prova suficiente, que é aquela que conduz a um juízo de certeza.
A apreciação das provas resolve-se, assim, em formação de juízos, em elaboração de raciocínios, juízos e raciocínios estes que surgem no espírito do julgador, como diz o Prof. Alberto dos Reis, “...segundo as aquisições que a experiência tenha acumulado na mentalidade do juiz segundo os processos psicológicos que presidem ao exercício da actividade intelectual, e portanto segundo as máximas de experiência e as regras da lógica...” [5].
A prova não visa, adverte o Prof. Antunes Varela, “...a certeza absoluta, (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente)...”, mas tão só, “...de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto.” [6].
A certeza a que conduz a prova suficiente é, assim, uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta.

Saliente-se, ainda, que a relevante impugnação da decisão sobre a matéria de facto, efectuada de acordo com o disposto no art.º 690-A, n.ºs 1 e 2, do CPC (cfr, tb., art.º 712, n.º 1, alínea a), segunda parte, do mesmo Código), com base nos depoimentos prestados em audiência, além de pressupor que, no corpo das alegações de recurso, se faça a indicação concreta, especificada, dos pontos da matéria de facto objecto dessa impugnação, tem de assentar na indicação dos pontos concretos do depoimento em causa, que, “per se” ou em conjugação com outro(s) elemento(s) de prova, habilitem o Tribunal “ad quem” afirmar - e ao recorrido, contrariar, nos termos do n.º 3, do referido art.º 690-A - que a resposta a dar a tais factos é contrária, ou diversa, daquela que foi dada pelo Tribunal “a quo”.

Pois bem. Tendo-se procedido, no presente caso, ao registo da prova por gravação dos depoimentos prestados em audiência, os Recorrentes põem em causa a decisão proferida na 1.ª Instância sobre a matéria de facto, sustentando, (……..)

(…)

A conjugação destes meios de prova levaram-nos a concluir, sem margem para qualquer dúvida, que o negócio em causa nos autos foi simulado, e, perante a declaração de todos quantos à matéria depuseram, de que não são conhecidos outros bens à 1ª Ré, o conhecimento geral das pessoas sobre a acção que o A. tinha movido contra a 1- Ré (ou os pais, conforme explanado acima), os laços familiares que unem os RR. (a mãe da 1- Ré é prima da 2- Ré), e, designadamente, o comportamento da 2- Ré relativamente à casa em causa nos autos (não se colocando em causa o quintal, porquanto se admite que esta continue a explorá-lo como arrendatária, ou mesmo comodatária, ou nem sequer o explore - a prova não foi peremptória neste particular), fácil é extrair o dolo de ambas as partes intervenientes no negócio.

(…)

Relativamente ao valor dos prédios, teve-se em consideração o relatório de peritagem de fls. 355 e ss. dos autos, votado por maioria, colhendo a fundamentação objectiva dos dois srs. peritos que votaram favoravelmente a decisão (notando-se que o perito vencido é precisamente o indicado pelos RR., tendo o perito imparcial, indicado pelo tribunal, votado no sentido inverso).».

Recorda-se, salientando-o, que, sem ter sido alvo de impugnação no presente recurso, deu-se como assente, além do mais, a seguinte matéria:

 […………………………………………….....]

Na prova da simulação do negócio e dos requisitos exigidos para a procedência da acção pauliana, em especial, o da má fé do devedor e do terceiro interveniente no acto impugnado, respeitando a situações em que é muito difícil a prova directa, já que, por regra, delas não fazem alarde os pactuantes, não revelando os seus verdadeiros intentos a terceiros, assumem particular relevância as presunções judiciais.

Nesse sentido mostre-se pertinente chamar à colação o que se lembrou no Acórdão da Relação de Lisboa de 25-03-03 e que agora se transcreve[7]: «Referia Manuel de Andrade, reportando-se à dificuldades de prova dos pressupostos normativos da simulação contratual, que não é natural a existência de uma contra-declaração assinada pelas partes em que fixem a verdadeira intenção subjacente às declarações negociais, justificando-se, assim, a formação da convicção com base na apreciação de factos circunstanciais à luz das regras da experiência comum.(4)Outro tanto ocorre em matéria de impugnação pauliana quando se reporta a actos formalmente onerosos. Fora do processo de falência, em que para determinadas alienações se prescreve uma presunção legal favorável aos credores (massa falida), nos termos do art. 158º do CPEREF, é sobre o autor que recai o ónus da prova dos factos integradores.

8. Ganham, assim, especial relevo os dados recolhidos da experiência que nos revelam a multiplicidade e a sofisticação das estratégias de fuga aos credores, merecendo destaque a transferência de bens para pessoas ligadas aos interessados por relações de confiança ou a intervenção de "testas de ferro" que formalmente assumem a titularidade dos bens que, de facto, continuam na disponibilidade dos transmitentes, a favor de quem subscrevem geralmente procuração irrevogável.

(…)

Ganham, assim, especial relevo as presunções definidas pelo art. 349º do CC como "ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido", e que incluem ainda as presunções judiciais ou "ad hominem".

Condicionadas a uma utilização prudente e sensata, isenta de excessivo voluntarismo, as presunções judiciais constituem um instrumento precioso a empregar, quando necessário e quando tal for legalmente admitido (art. 351º do CC), na formação da convicção que antecede a resposta à matéria de facto, o que se torna premente quando se trata de proferir decisão que, como ocorre relativamente à impugnação pauliana, se tornam dificilmente atingíveis através de meios de prova directa. (5)Conquanto nem sempre resulte explícita a sua intervenção na formação da convicção jurisdicional, constituem um importante mecanismo que pode levar o Tribunal a afirmar a verificação de certo facto controvertido, suprindo as lacunas de conhecimento ou de informação que não possam ser preenchidas por outros meios de prova; podem servir ainda para valorar os meios de prova produzidos.(6)9.».

Não se olvidando que os RR, como refere a Mma. Juiz, não lograram fazer a prova do alegado pagamento do preço (respostas aos quesitos 17º e 18º) e que, tendo sido este declarado na escritura (valor que não se provou corresponder ao valor real dos prédios - resposta ao quesito 19º) em 50.000, os peritos, por maioria, avaliaram os prédios em 167.000 e 1300 (mesmo o perito dos RR avaliou-os em 103.150 e 1360), a conjugação dos factos provados que acima se relembraram evidencia um quadro - v.g., com relevância especial para o valor do preço declarado e sua grande dissonância com o valor dos bens, para a ocasião em que, por reporte à data em que foi proferida a decisão sobre a matéria de facto na acção nº 72/99, foi realizada a escritura, para a circunstância de se tratarem dos dois únicos bens conhecidos à 1.ª Ré, para o facto de ser esta Ré que, do prédio urbano, desde então, faz casa de habitação de férias e fins-de-semana e permite que os seus pais igual uso lhe dêem a título gratuito -, que as regras de experiência comum, um mero juízo de probabilidade baseado no que, em situações semelhantes, acontece as mais das vezes (“id quod plerumque accidit”) permitem, em nosso entender, concluir que nenhuma compra e venda houve, realmente, entre os RR quanto aos prédios em causa, tratando-se, o plasmado na escritura, de negócio absolutamente simulado, sem real pagamento, pois, de qualquer preço.

Tal conclusão, bem assim como a que lhe é conatural - a do intuito dos RR em eximirem os prédios à satisfação do crédito do Autor -, decorre, por ilação, do apontado quadro factual provado, pelo que é lícito dizer que a afirmação da factualidade indagada nos quesitos 9º, 13º, 14º e 15º, poderia, assim, ser extraída por inferência fundada na prova “prima facie” ou de primeira aparência (cfr. art.º 351º do CC), cabendo aos RR contrariá-la para impedir a presunção judicial.

Note-se que o raciocínio exposto não desrespeita as regras do ónus da prova, designadamente, o que no art.º 342º, n.º 1, do CC, se preceitua, pois que, como salientou Vaz Serra, «…ao admitir-se a prova "prima facie" só se dá uma facilidade para a produção da prova e não uma total inversão do encargo da prova»[8].

Assim, da análise da prova produzida, com utilização das referidas presunções, não resulta, em nosso entender, outra convicção senão aquela que levou o Tribunal “a quo” a ter como assente a factualidade dada como provada nas respostas aos quesitos 9º, 13º, 14º e 15º, pelo que é de manter inalteradas tais respostas.

Em resultado do exposto a matéria de facto que se tem como provada é, pois, aquela que assim está elencada na sentença e acima já está discriminada (II-A) “supra”).

Os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, caso concorram as seguintes circunstâncias: 

1) Ser o crédito anterior ao acto ou, caso seja posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; 

2) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade. 

Ao exposto acresce, sendo o acto oneroso, a exigência de que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé. 

Não sofrendo alterações a matéria de facto elencada como provada na decisão recorrida, falece o pressuposto principal em que se estribavam os Apelantes na sua alegação de recurso - pois que, inequivocamente, está presente a factualidade que permite afirmar a má fé de todos os RR - apenas faltando analisar a negação dos RR quanto ao requisito da anterioridade do crédito relativamente à compra e venda impugnada.

Ora, no que concerne ao requisito da anterioridade do crédito, escreveu-se na sentença recorrida: «De igual forma ficou demonstrada a anterioridade do crédito inicial no montante de 35.577,56, porquanto, pese embora a data de prolação da sentença de primeira instância nos autos de Ac. Ordinária nº 72/99 seja posterior à venda (25/11/2002), e ter sido confirmada pelo STJ em 27/01/2004, certo é que o crédito do Autor é anterior à venda dos imóveis em crise, tendo aliás em 21/03/2002 (menos de 2 meses antes da venda em impugnação) sido proferida resposta à matéria de facto controvertida naquela acção, através da qual já se podia aquilatar o sentido da decisão.».

Sustentam os Apelantes que o crédito invocado não é anterior ao acto impugnado, salientando: “…quando a 1ª Ré vende aos segundos RR os bens constantes da escritura, vende-os em momento anterior à definição do crédito, que surge só e apenas com a sentença. No processo entre A e 1ª Ré ainda não há ainda sentença proferida pela primeira instância quando aconteceu a venda.”.

Como se vê, os apelantes reportam a verificação da anterioridade exigida para a impugnação ao momento do reconhecimento do crédito na sentença proferida na acção nº 72/99. Carecem de razão, todavia.

Notando-se que não obsta à impugnação pauliana o facto de o direito do credor não ser ainda exigível (art.º 614º, nº 1, do CC), considera-se que, efectivamente, como se entendeu no Acórdão do STJ de 22/04/2004 (Revista n.º 685/04), “A anterioridade do crédito como requisito da acção pauliana, nos termos da alínea a) do artigo 610 do Código Civil, afere-se pelo momento da constituição da relação obrigacional e não pela data da decisão judicial, com trânsito em julgado, que reconheça o crédito, nem pela data da dedução do correspondente pedido.”.

E esse mesmo entendimento se expressa no Acórdão, também, do STJ, de 19/10/2004, Revista nº 04B049, explicitando-se: “Consoante se advertia há pouco neste Supremo Tribunal (7) , trata-se de critério doutrinariamente sufragado nos nossos dias (8), e, aliás, correspondente à concepção tradicional em face do pretérito Código de Seabra, cujo artigo 1033, (9) consagrava a admissibilidade da acção pauliana a favor de credor anterior ao acto lesivo - e só nesse caso, não se admitindo então, segundo a tradição romanística, a impugnação a favor do credor posterior, inovatoriamente introduzida em 1967.

Por isso se escrevia, em comentário ao vetusto normativo, que a acção pauliana «não compete a qualquer credor, mas somente aos credores que o forem por virtude de acto ou contrato anterior ao acto fraudulento» (itálicos no original). Precisando-se, ademais, que a «anterioridade do crédito é regulada somente pela data em que foi contraída a respectiva obrigação» (itálicos nossos), sem necessidade de que, «ao tempo do acto fraudulento, já estivesse instaurada a acção ou execução para a cobrança do crédito» (10)”.

Este último aresto do STJ contrariou, precisamente, o entendimento da aí ré e recorrente - similar ao defendido pelos ora Apelantes - que contestava que o crédito da aí autora fosse anterior ao acto, uma vez que, como «crédito litigioso», só se consolidara, tornando-se efectivo e exigível, mediante a sentença, posterior ao acto, que a condenara a solvê-lo àquela.

Em termos de direito comparado, nota-se que, muito nitidamente, face a preceito semelhante ao nosso art.º 610 do CC - art.º 2901 do Código Civil italiano - os tribunais superiores italianos têm entendido não obstar à instauração da acção pauliana a circunstância de o crédito invocado pelo autor ser litigioso[9], esse mesmo entendimento expressando Santi Di Paola, salientando que a qualidade de credor exigida para efeitos da acção pauliana é de entender num sentido amplo, sendo de considerar como tal, face à função conservatória da acção, não só aqueles cujo direito esteja sujeito condição ou a termo, mas também, por maioria de razão, aqueles que aquando do acto impugnado sejam titulares de um crédito litigioso.[10]

Assim, a circunstância de não estar definido, por sentença transitada, o exacto montante do crédito do empreiteiro sobre o dono da obra - discutido na acção por este intentada contra aquele para exigir o pagamento do preço e em que o dono da obra invoca, por exemplo, a existência de defeitos nesta, para obter a redução do preço - não obsta a que se considere verificada a anterioridade do crédito, para efeitos de instauração de acção pauliana respeitando à venda, efectuada pelo réu no decurso dessa acção, dos seus únicos bens penhoráveis.

No caso “sub judice”, embora só reconhecido judicialmente por sentença que veio a ser confirmada pelo STJ em 27/01/2004, o crédito do autor constituiu-se em data anterior a 12/07/1999, data da instauração dessa acção n° 72/99, consequentemente, muito antes da compra e venda impugnada, ocorrida a 15 de Maio de 2002.

Diga-se, “ex abundanti”, que os termos da condenação de que a 1.ª Ré foi objecto na aludida sentença confirmada pelo STJ em 27/01/2004, evidenciam de forma ostensiva a apontada anterioridade, pois que mesmo os juros de mora em que tal ré foi condenada, remontam a 26/02/1999, data muito anterior à da impugnada compra e venda.

Verifica-se, pois, o referido requisito da anterioridade do crédito.

Estando em causa, tão só, face ao pedido formulado, a eficácia do negócio relativamente ao impugnante, a isso não obstando a consideração da nulidade do acto (cfr. art.ºs 615º, nº 1, 616º, nºs 1 e 4, do CC), não se vê, no caso, a relevância do disposto no art.º 291º, nºs 1 e 2, do CC, sempre se adiantando que, ainda que assim não fosse, para além de os Apelantes não poderem ser considerados terceiros, para efeitos da protecção prevista nessa norma[11], o decidido quanto à má fé sempre excluiria a respectiva aplicação (cfr. tb. artº 617º, nº 2, do CC).

Estando reunidos, pois, como se concluiu na sentença recorrida, todos os requisitos necessários à procedência da impugnação pauliana da compra e venda em causa, nada há a apontar negativamente a tal decisão, sendo destituída de fundamento, claramente, a nulidade que lhe imputam os Apelantes, pois que ao juízo de procedência da acção, também quanto ao prédio rústico, se não opõe a circunstância de se haver respondido negativamente à matéria do quesito 12º da BI[12], sabendo-se que uma tal resposta não equivale a ter-se por assente o contrário daquilo que perguntava e que os elementos factuais relevantes para a decisão de direito, designadamente os atinentes à simulação, respeitaram a todo o negócio, ou seja, a ambos os prédios que dele foram objecto.

Para que se dê a contradição considerada na alínea c) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC, é essencial que se verifique - o que, como se disse, no caso não sucede - uma real contradição entre os fundamentos e a parte dispositiva da sentença ou do acórdão. O raciocínio do julgador terá de enfermar de um vício real: “a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente” - cfr. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pág. 590; Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil - 1992 - nota 4 ao artigo 668; Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. 5.º, págs. 140 e 141.

Uma aplicação do direito sem suporte suficiente na decisão proferida sobre a matéria de facto, não configura a aludida nulidade, antes consubstanciando erro de julgamento. No caso “sub judice", porém, como se viu, nem um nem outro ocorrem.

Do exposto poder-se-á sintetizar:

a) No apuramento da simulação do negócio e dos requisitos exigidos para a procedência da acção pauliana, em especial, o da má fé do devedor e do terceiro interveniente no acto impugnado, envolvendo circunstancialismo que é muito difícil demonstrar através de prova directa, já que, por regra, dele não fazem alarde os pactuantes, não divulgando os seus verdadeiros intentos a outrem, assumem particular relevância as presunções judiciais;

b) A anterioridade do crédito, exigida na primeira parte da alínea a) do artigo 610º do Código Civil, deve aferir-se pelo momento da constituição da relação obrigacional e não pela data da decisão judicial, que, em processo intentado para obter a condenação do devedor no respectivo pagamento, reconheça o crédito.

Do acima explanado resulta, assim, ter sido correcta a decisão do Tribunal “a quo” ao julgar a acção procedente, não tendo a sentença recorrida infringido as disposições legais cuja violação os Apelantes lhe imputam.

III - Decisão:
Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a Apelação improcedente, mantendo a sentença recorrida.

Custas pelos Apelantes.


[1] Pedido este que aqui se reproduz já na versão constante da petição rectificada, apresentada na sequência do despacho-convite de 10/10/2005.
[2] Os preceitos que deste Código forem citados, reportam-se, salvo indicação em contrário, à redacção anterior à introduzida pelo DL n.º 303/07, de 24/08.
[3] Consultáveis na Internet, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, endereço este através do qual poderão ser acedidos todos os Acórdãos do STJ, ou os correspondentes sumários, citados sem referência de publicação.
[4] Cfr. Acórdão do STJ de 09/06/2005 (Revista n.º 05B1196) e demais jurisprudência aí citada.
[5] Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pág. 245.
[6] Manual de Processo Civil, Coimbra Editora - 1984 - págs. 419 e 420.
[7] Relatado pelo Des. Abrantes Geraldes, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Nº 165 Tomo II/2003, págs. 91 e ss..
[8] BMJ nº 68 , pág. 87.
[9] Suprema Corte di Cassazione, Sezioni Unite Civili, ordinanza n. 9440, de 18/05/2004.
[10] Santi Di Paola, Nunzio, “in”, La revocatoria ordinaria e fallimentare nel decreto sulla competitività, pág 45.
[11] O terceiro a que se reporta o artigo 291.° do Código Civil é “…o sub-adquirente posterior à celebração do primeiro contrato afectado de nulidade, que é protegido, na medida em que lhe não pode ser oposta a nulidade do primitivo contrato de compra e venda, se tiver adquirido o direito sobre imóveis a título oneroso, de boa fé, tiver inscrito no registo predial a sua aquisição e tenha decorrido um triénio sobre a data do primeiro contrato sem haver sido instaurada a acção de nulidade.” (Acórdão da Relação de Lisboa de 30-11-2006 (JusNet 6874/2006, processo n.° 7918/06).
[12] Quesito com o seguinte teor: «A R. B.... vem facultando o uso gratuito aos seus pais do prédio referido em B), que o vêm agricultando, semeando e colhendo os respectivos frutos, em benefício próprio e com o consentimento e autorização da R. B....? ».