Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
14/14.3T8MBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: TESTAMENTO
VONTADE DO TESTADOR
LEGADO
PRÉDIO URBANO
OBRIGAÇÃO
RENDIMENTO
VENDA
Data do Acordão: 09/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU, MOIMENTA DA BEIRA, INSTÂNCIA LOCAL – SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 212.º, N.º 1 E 2187º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. No testamento, por o mesmo incorporar disposições de última vontade, o fim da interpretação deve encontrar-se na determinação da vontade real do testador.

2. Tendo o testador deixado a propriedade do prédio à ora ré impondo-lhe o ónus de entregar anualmente dez por cento do rendimento ilíquido do mesmo à autora, apenas os rendimentos do prédio estão abrangidos na cláusula testamentária em questão, não se podendo enquadrar na referida deixa testamentária a quantia equivalente a dez por cento do produto da venda, no caso de tal prédio vir a ser vendido.

Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A..., com sede no concelho de Tabuaço, interpôs a presente acção declarativa com processo comum de declaração contra a B... , com sede na Rua (...) , Lisboa;

Pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia global de € 44.506,33, sendo € 30.276,33 a título de capital e € 14.230,00 a título de juros de mora, calculados à taxa legal de 4% devidos desde 1 de Janeiro de 2004, até à data da entrada da PI em juízo, ocorrida em 30/09/2014 e bem assim nos juros vincendos, até efectivo e integral pagamento.

Alega em síntese a A., que por testamento público, datado de 29 de Julho de 1966, C..., dispôs, para depois da sua morte, dos seus bens, sendo que uma das disposições de última vontade foi feita a favor da R., constituída pelo legado do seu prédio situado na Rua (...) , cidade de Lisboa, inscrito na matriz urbana de (...) , sob o artigo nº 1838, tendo a R. a obrigação de entregar à Junta de Freguesia A., anualmente, 10% do rendimento ilíquido do referido prédio legado. Salienta que após a morte do testador, ocorrida no dia 04.02.1975, a R. entrou na posse plena do referido imóvel legado, passando a ser sua legítima proprietária mas não cumpriu a sua obrigação de pagamento á A., razão pela qual esta recorreu aos Tribunais sendo que, no âmbito do proc. nº 139/07.1 TBTBC, veio a R. a ser condenada a pagar-lhe a quantia que viesse a ser liquidada em execução de sentença, correspondente a 10% do rendimento ilíquido anual do identificado prédio desde o ano de 1982 a 2006.

Mais alega a A. que na sequência da referida condenação, a então A. (...) instaurou incidente de liquidação de sentença, pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de 2.200€, correspondente a 10% do rendimento entre os anos de 1982 e 2003 e 30.276€, correspondente a 10% do preço pelo qual a R., no ano de 2003, tinha vendido o imóvel em questão, sendo que por sentença de 26/04/2013, devidamente transitada em julgado, o referido incidente foi apenas julgado parcialmente procedente, ali se tendo liquidado a quantia correspondente aos 10% do rendimento ilíquido anual e se considerou que o mesmo não abrangia o valor da aludida venda do prédio e que o pedido correspondente já teria que ter sido formulado na acção ou, então, numa outra acção autónoma com essa finalidade, sentença que veio depois a ser confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto.

Alega por isso a A. que procedendo à interpretação da referida deixa testamentária, embora o produto da venda não se possa considerar como um "rendimento", propriamente dito do prédio, a tal deve ser equiparado, nomeadamente para o efeito em questão, pelo que entende a A. que, com base na aludida disposição testamentária, lhe assiste o direito de exigir da R. 10% do preço da venda do imóvel objecto dessa mesma disposição.

Contestando, veio a R. defender-se por excepção e por impugnação, alegando aquela que já procedeu ao pagamento à A. de todas as quantias que lhe eram devidas no âmbito do referido processo nº 139/07.1 TBTBC, sendo que não se pode interpretar a referida declaração do testador no sentido pretendido pela A., já que o produto da venda do referido prédio não pode ser havido ou tido como “rendimento anual ilíquido do prédio” mas antes como o termo de tal rendimento anual, periódico, razão pela qual o pedido formulado nestes autos exorbita o teor da deixa testamentária e por isso deve ser indeferido.

Em sede de resposta à contestação, veio a A. pugnar pela improcedência das excepções invocadas pela R. na sua contestação e bem assim peticionar a condenação daquela como litigante de má-fé.

Foi proferido despacho saneador no qual o Tribunal julgou improcedentes as excepções de incompetência territorial e de caso julgado invocadas pela R. e bem assim se decidiu conhecer imediatamente do mérito da causa, concedendo-se ás partes a oportunidade de se pronunciarem, nada aquelas tendo dito nos autos, no referido prazo que lhes foi concedido.

Na sequência do que foi proferida a sentença de fl.s 96 a 108, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se julgou a presente acção totalmente improcedente, absolvendo-se a ré do pedido, bem como se julgou improcedente o pedido de condenação da autora por litigância de má fé, ficando as custas a cargo da autora e da ré, na proporção de 95,5% e 4.5%, respectivamente.

 

            Inconformada com a mesma, interpôs recurso a autora B..., recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo – (cf. despacho de fl.s 121), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1. Por rendimentos de uma coisa deve entender-se todos os proveitos materiais por ela proporcionados, não se podendo excluir desse conceito o produto da respectiva venda.

2. Tendo sido instituído um legado de um imóvel urbano com o encargo de a respectiva beneficiária (R.) entregar à A. 10% do rendimento anual ilíquido desse mesmo imóvel, não deve excluir-se desse rendimento o produto da respectiva venda, no caso de, como sucedeu, a legatária se decidir pela sua alienação.

3. Embora se possa objectar ao entendimento que ora se propugna o facto de o testador não referir expressamente, o certo é que também não diz o contrário, como nem sequer faz alusão alguma às rendas dos arrendamentos de que o imóvel legado era objecto.

4. Por isso, um entendimento como o que foi adoptado na sentença recorrida, no sentido de que apenas se devem /considerar abrangidos por esse encargo as rendas do mesmo imóvel parece-nos demasiado restritivo e não correspondente à vontade presumida do testador.

5. Até porque, para além de as rendas não poderem considerar-se rendimentos, mas sim frutos civis, não sendo considerado o produto da venda, bastava que a legatária vendesse o imóvel logo que o mesmo lhe fosse entregue para que a beneficiária do encargo, (a ora recorrente) acabasse por nada receber, assim resultando completamente frustrada e contrariada a vontade do testador.

6. Por tudo isso e pelo mais que decerto não deixará de ser superiormente suprido, entende a recorrente que o entendimento adoptado na sentença recorrida não é correcto, nem sob um ponto de vista estritamente legal, nem quanto à sua correspondência com a vontade presumida do testador, por isso nos parecendo não terem sido correctamente interpretadas e aplicadas ao caso as pertinentes disposições legais, nomeadamente os arts. 212º e 2187º do C. Civil pelo que

No provimento do presente recurso, deve decretar-se a revogação da sentença recorrida e, em sua substituição, ser proferida outra que, julgando a acção procedente, condene a R. no pedido, assim resultando, a nosso ver, melhor aplicada a lei e realizada a JUSTIÇA.

            Não foram apresentadas contra-alegações.

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

            Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do NCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se no encargo imposto pelo testador à ré, que consiste na obrigação de esta entregar anualmente à autora 10% do rendimento ilíquido de um prédio, se inclui a obrigação de lhe ser entregue a quantia equivalente a 10% do produto da venda, no caso de tal prédio vir a ser, como o foi no caso em apreço, vendido.

            É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. Por testamento público, datado de 29 de Julho de 1966, C..., solteiro, maior, nascido em 28.09.1888, na freguesia do Pereiro, proprietário, morador na Rua da (...), na cidade de Lisboa, dispôs, para depois da sua morte, dos seus bens.

2. Testamento esse escrito no Livro nº 162 de Testamentos e Revogação dos Mesmos, das notas do 6º Cartório Notarial da cidade de Lisboa,

3. No referido testamento foi efectuada disposição a favor da Ré nos seguintes termos: “ (…) Terceiro: À B..., com sede actualmente na Rua da (...) , número duzentos e trinta e sete, lega o seu prédio situado na Rua da (...) , número oitenta e seis a oitenta e seis, inscrito na matriz urbana de (...) , sob o artigo número mil, oitocentos e trinta e oito, com a obrigação de entregar anualmente dez por cento do rendimento ilíquido do mesmo à B..., e de em cada ano, também suportar o pagamento das quotas dos dez associados mais novos que entraram nesse ano para a B.... – Se a dita B...tiver que proceder à reconstrução do citado prédio, ficará desobrigado durante onze anos do encargo que acima se alude constituído, a favor da B.... (…)”.

4. C... faleceu em 04/02/1975.

5. Por sentença proferida em 15/01/2009, transitada em julgado, no proc. nº 139/07.1TBTBC, a Ré foi condenada a pagar à Autora a quantia a liquidar em execução de sentença, correspondente a 10% do rendimento ilíquido anual do prédio sito na Rua (...) , desde o ano de 1982, até ao ano de 2006, acrescido de juros moratórios à taxa legal, contados a partir do final de cada um dos anos respectivos e referenciados ao capital correspondente a 10% do rendimento ilíquido até integral pagamento.

6. Em 17 de Setembro de 2003, a Ré vendeu a D... o prédio urbano sito na Rua da (...) , , tornejando para a Travessa de (...) , nº 26, em Lisboa, freguesia de (...) , inscrito na matriz da freguesia da (...) , sob o nº 322, com o valor patrimonial de € 46.619,88, e descrito na primeira Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº 804, da freguesia de (...) , pelo preço de trezentos mil, duzentos e setenta e seis euros e trinta e três cêntimos.

7. Por requerimento de 10/11/2010 veio a A. a instaurar no âmbito do referido processo nº 139/07.1TBTBC incidente de liquidação da sentença referida em 5, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 42.776,00, acrescida de juros moratórios legais a contar da data da citação até efectivo e integral pagamento, correspondendo € 2.200,00 a 10% do rendimento entre 1982 e 2003, e € 30.276,00 a 10% do valor da venda efectuada em 2003.

8. Por sentença de 26/04/2013, foi julgado o referido incidente de liquidação parcialmente procedente e, em consequência, liquidados os valores de 10% do rendimento líquido anual do prédio sito na Rua (...) , inscrito na matriz urbana da freguesia de (...) , em Lisboa, sob o artigo 1838, nos seguintes termos:

- € 39,67 (trinta e nove euros e sessenta e sete cêntimos)/ano relativamente aos anos de 1982 a 1986;

- € 42,69 (quarenta e dois euros e sessenta e nove cêntimos)/ano relativamente aos anos de 1987 a 1991;

- € 45,93 (quarenta e cinco euros e noventa e três cêntimos)/ano relativamente aos anos de 1992 a 1996;

- € 49,42 (quarenta e nove euros e quarenta e dois cêntimos)/ano relativamente aos anos de 1997 a 2001;

- € 53,18 (cinquenta e três euros e dezoito cêntimos)/ano relativamente aos anos de 2002 a 2006.

9. Mais se considerou na referida sentença o seguinte: “(…) Do mesmo modo, também não podemos deixar de considerar manifestamente improcedente o pedido formulado pela Autora de fixação de 10% do valor da venda do prédio, celebrada em 2003, como liquidação da quantia que a Ré está obrigada a pagar, porquanto tal não resulta da condenação imposta. A questão da venda não foi, como vimos, tomada em conta na sentença ou no acórdão que a confirmou e não pode sê-lo, agora, em sede de liquidação. O pagamento à Autora de uma parte do preço da venda do prédio não se pode considerar incluído na condenação da Ré no pagamento de 10% do rendimento ilíquido anual do prédio, não se afigurando o produto da venda como “rendimento anual” do prédio, mas antes como o termo de tal rendimento anual, periódico. Pretendendo a Autora reivindicar um qualquer direito relativamente ao produto da aludida venda efetuada em 2003, designadamente de indemnização pela perda do rendimento anual a que tinha direito, em virtude da alienação da coisa, sempre teria que o ter feito na p.i. apresentada, em 2009, nos presentes autos, ou instaurar, para tal, ação autónoma. Tal discussão excede, manifestamente, o objeto do presente incidente”.

10. A sentença referida em 8 foi confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03/02/2014, em cujo sumário se exarou além do mais o seguinte “ (…) Não tendo sido a questão da venda do prédio ajuizado tomada em conta na sentença liquidada ou no acórdão que a confirmou, não pode sê-lo, agora, em sede de liquidação, tanto mais que o preço da venda do prédio não se pode, de todo, considerar-se incluído na reconhecida condenação da Ré no pagamento de 10% do rendimento ilíquido anual do mesmo prédio, entendendo o rendimento anual do prédio, como tudo aquilo que o prédio produz periodicamente e sem prejuízo da sua substância, ou dito de outra forma, o produto da venda encerra a substância da coisa (prédio) não o seu rendimento”.

Se no encargo imposto pelo testador à ré, que consiste na obrigação de esta entregar anualmente à autora 10% do rendimento ilíquido de um prédio, se inclui a obrigação de lhe ser entregue a quantia equivalente a 10% do produto da venda, no caso de tal prédio vir a ser, como o foi no caso em apreço, vendido.

Alega a autora que sentença recorrida parte de um entendimento redutor da vontade do testador explícita na deixa testamentária em causa, pois que da mesma não se pode extrair a conclusão de que só as rendas podem ser entendidas como rendimento de um prédio, qualificando-as a lei como “frutos civis”, sendo que na referida deixa testamentária nem sequer se referem as rendas, do que conclui que ali se deve, também, incluir o produto da venda do prédio.

Na sentença recorrida, ao invés, considerou-se que se o testador ali tivesse querido incluir o produto da venda, o teria dito, de forma explícita, como o fez relativamente aos demais rendimentos nela constantes.

Não oferece dúvidas que o testamento é um negócio jurídico unilateral, singular, que integra a prática de um acto pessoal de disposição de bens para depois da morte – artigos 2179.º e 2182.º, n.º 1, do C. Civil, devendo, além disso, obedecer a forma solene, e, sendo público, é escrito pelo notário no seu livro de notas.

Em matéria de interpretação do testamento, rege o disposto no artigo 2187º do Código Civil, de acordo com o qual:

«1. Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.

2. É admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa».

Este preceito constitui uma excepção às regras gerais de interpretação do negócio jurídico (artigos 236.º s seg.s do CC), consagrando-se aqui uma perspectiva subjectivista na interpretação de um testamento.

Asserção, esta, que acolhe a unanimidade da jurisprudência, como resulta, entre outros dos Acórdãos do STJ, de 30/01/2003, Processo 02B4448; de 17/04/2012, Processo 259/10.5TBESP.P1.S1 e de 08/05/2013, Processo 13706/09.0T2SNT.L1.S1, todos disponíveis no respectivo sítio do ITIJ, referindo-se no de 17/04/2012 que este preceito:

“acolhe uma orientação subjectivista na interpretação do testamento, o que é o mesmo que dizer que o negócio jurídico de disposição testamentária deve valer em conformidade com a vontade real do testador, de acordo com aquilo que ele realmente quis.

Assim, quando confrontado com disposição que comporte a possibilidade de valer com mais que um sentido, impõe-se ao intérprete a tarefa de averiguar com recurso a todos os meios disponíveis a efectiva vontade do testador.

Trata-se, afinal, de – em divergência com as regras gerais que regem sobre interpretação do negócio jurídico (arts. 236.º a 238.º C. Civil) – cumprir a vontade do testador (a vontade que manifestou e manteve até ao fim dos seus dias, pois que o testamento incorpora justamente as disposições de última vontade do seu autor), matéria em que nenhum (outro), interesse, de destinatários ou do tráfego, prevalece sobre este objectivo substancial (…)

Valendo, no testamento, a vontade querida pelo testador, apenas com a limitação da exigência da repercussão literal mínima, ainda que imperfeitamente expressa no respectivo contexto, exigida pela sua natureza formal, essa interpretação de cariz subjectivista, a reflectir o sentido atribuído à declaração pelo respectivo autor, deve ser acolhida reportada ao tempo da elaboração e aprovação do texto, mas sem desprezar a globalidade das circunstâncias reconhecíveis ao tempo da sua abertura (cfr. Ferrer Correia, “Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico”, 225.”.

O mesmo se defendendo no citado Acórdão de 30/01/2003, ali se referindo que

“o negócio jurídico de disposição deve valer em conformidade à vontade real do testador, de acordo com aquilo que ele realmente quis.

            O fim da interpretação deve encontrar-se na vontade do testador. Nenhum interesse, de destinatários ou do tráfego, prevalece sobre este objectivo essencial.

            (…)

            No testamento, vale a vontade querida pelo testador – declarante – com a limitação, segundo a lei, explicada por razões de objectividade, da exigência da repercussão literal mínima, ainda que imperfeitamente expressa, no contexto do testamento.”.

            Havendo a acrescentar, como referido no Acórdão de 08/05/2013, que a interpretação de cariz manifestamente subjectivista se deve ao facto de no caso de um testamento se estar perante uma “declaração unilateral; aqui não há destinatário directo e imediato cujo interesse deva ser protegido; a declaração deve valer de acordo com a vontade do testador (…) no caso do testamento, sendo a declaração sempre unilateral, importa averiguar o entendimento e, por via deste, a vontade do respectivo autor.”.

            Por apelo a E. Betti, in Teoria Geral do Negócio Jurídico, 1969, tomo II, pág. 304, considera-se que, em matéria de testamentos “a meta principal da interpretação é, aqui, o pensamento do disponente, ainda que não se encontre exprimido de maneira adequada na declaração, desde que coincida, univocamente, com ela, e resulte de circunstâncias exteriormente reconhecíveis, no círculo social do disponente, mercê de ilações tiradas da experiência comum.”.

            Como refere Oliveira Ascensão, in Direito Civil Sucessões, 5.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2000, a pág. 293, no testamento, por o mesmo incorporar disposições de última vontade, o fim da interpretação deve encontrar-se na determinação da vontade real do testador, não havendo que salvaguardar nenhuma confiança ou expectativa dos destinatários, por não poder ser justificadamente invocada, porque o título que estes possuem é justamente e apenas, o que se funda na vontade do autor da sucessão – o testamento.

            Ali acrescentando, cf. fl.s 294 a 296 que se exige um mínimo de correspondência no contexto das cláusulas do testamento, admitindo-se a prova complementar destinada a averiguar a vontade do testador, mas sem que esta surta qualquer efeito, se não tiver no contexto do testamento um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa e concluindo que o recurso a elementos externos ao testamento “não se faz para buscar novas disposições, mas para apurar o sentido das disposições testamentárias. Toda a interpretação supõe uma matéria portadora de um sentido que se quer apurar.”.

            E mesmo em matéria de integração das cláusulas testamentárias se impõe como limite que a ideia, ou o fim objectivo do testamento, coincidente com a vontade real ou presumida do testador, a contemple, cf. pág. 302.

            Posto isto, tenha-se em atenção a deixa testamentária em causa, a fim de averiguar se na mesma também se inclui a quantia equivalente a 10% do produto da venda do prédio nela referida.

            Tem a mesma o seguinte teor:

“(…) Terceiro: À B..., com sede actualmente na Rua da (...) , número duzentos e trinta e sete, lega o seu prédio situado na Rua da (...) , número oitenta e seis a oitenta e seis, inscrito na matriz urbana de (...) , sob o artigo número mil, oitocentos e trinta e oito, com a obrigação de entregar anualmente dez por cento do rendimento ilíquido do mesmo à B..., e de em cada ano, também suportar o pagamento das quotas dos dez associados mais novos que entraram nesse ano para a B.... – Se a dita B...tiver que proceder à reconstrução do citado prédio, ficará desobrigado durante onze anos do encargo que acima se alude constituído, a favor da B.... (…)”.

           

Resulta da mesma que o testador quis deixar a propriedade do prédio nela referido à ora ré, mas fê-lo impondo-lhe, ao mesmo tempo o ónus de “entregar anualmente dez por cento do rendimento ilíquido do mesmo à B...”.

            Para além desta, nela não constam outras limitações ou ónus ao direito de propriedade transmitido à ora ré, designadamente que, em caso de venda do prédio (hipótese muito comum em imóveis), se mantinha a obrigação da ré entregar à autora a quantia correspondente a igual percentagem, relativa ao preço de venda.

            Ora, se o testador quisesse prever tal situação teria sido muito fácil, incluí-la no conteúdo do testamento, mas, apesar disso, não o fez e nem resulta que do contexto de todas as demais cláusulas do testamento (do seu contexto), resulte algo que o imponha (nem a autora alegou quaisquer factos que a tal conduzam).

            De resto, como se estipula na parte final da cláusula em apreço, o testador previu a hipótese de ser necessário proceder a obras de reconstrução do prédio, caso em que, a ré ficaria desobrigada, durante onze anos, do encargo instituído.

            O que mais reforça que o testador, especifica e concretamente, só quis, só teve em vista, onerar a ré, nos precisos termos que ali constam – entregar anualmente dez por cento do rendimento ilíquido do mesmo à B... – e nada mais.

            Interpretar esta cláusula com um conteúdo diferente do que ali consta, implica que se extravase a redacção da mesma, a referida limitação da exigência da repercussão literal mínima, ainda que imperfeitamente expressa no contexto do testamento, que é exigida pela natureza formal deste, não podendo, de acordo com o disposto no artigo 2187.º do CC, presumir-se no testador uma vontade que ele não manifestou, designadamente uma limitação ou ónus ao direito de propriedade que versa sobre um imóvel, não contemplada numa cláusula testamentária ou a retirar do contexto do testamento.

            Reitera-se, se o testador quisesse que tal obrigação se mantivesse em caso de venda do prédio, poderia muito bem tê-lo dito de forma clara e precisa, mas não o fez nem isso se pode presumir do respectivo teor, nem do conjunto das cláusulas que constituem o teor integral do testamento em causa.

            Efectivamente, ali consta que a obrigação de entrega da percentagem do rendimento propiciado pelo prédio à ora autora é anual, o que, como é óbvio, pressupõe que a propriedade do mesmo se mantenha na esfera jurídica da ré, não podendo esta continuar a entregar tal quantia se já não auferir os rendimentos que o prédio potencia.

            Não se nega, como o refere a autora que, assim sendo, no caso de venda do prédio, se põe termo à receita ali tida em vista, de que era beneficiária, mas o facto é que, como supra referido, tal obrigação impende apenas sobre os rendimentos do prédio e não consta do testamento nenhuma exigência ou condição de que a ré tivesse que permanecer como proprietária do prédio durante um qualquer período de tempo ou que não o respeitando (ou vendendo-o) tivesse que indemnizar a autora, designadamente, mediante a fixação da obrigação de ter de lhe entregar parte da quantia relativa ao preço da venda ou qualquer outra.

            Sintetizando, o testador poderia prever que, em caso de venda do prédio, se mantinha a obrigação da ré entregar à autora a percentagem fixada, a título do produto de tal venda; bem como poderia estipular que a ré não poderia vender o prédio, antes de um determinado período de tempo, sob pena de ter de entregar à autora uma certa e determinada quantia.

            Não fez nem uma coisa nem outra, fixando apenas a limitação/ónus ao direito de propriedade assim transmitido à ora ré, que consiste na obrigação desta entregar à autora anualmente 10% por cento do rendimento ilíquido do prédio, ali não se incluindo, pois, idêntica percentagem relativamente ao preço da eventual venda do prédio.

            Assim, não pode proceder a pretensão da autora.

            E esta conclusão mais se reforça ao atentarmos no facto de que a percentagem a que se alude na referida cláusula testamentária se referir ao “rendimento ilíquido” do prédio, onde se não pode incluir o preço da venda do prédio que produz os rendimentos em causa.

            Nos termos do disposto no artigo 212.º, n.º 1, do CC “Diz-se fruto de uma coisa tudo o que ela produz periodicamente, sem prejuízo da sua substância.”, sendo que, nos termos do seu n.º 2, as rendas constituem frutos civis, que são produzidos pela coisa em consequência de uma relação jurídica.

            Como referem P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição Revista E Actualizada, Coimbra Editora, 1982, a pág. 204, são duas as características fundamentais dos frutos: são de produção periódica e não afectam a substância da coisa que os produz, devendo apreciar-se este segundo requisito, segundo a forma normal de exploração (económica) da coisa.

            Ora, o rendimento mais comum de um prédio urbano são, precisamente, as rendas cobradas na sequência da celebração de contrato de arrendamento que verse sobre o mesmo, as quais se revestem de carácter periódico e não contendem com a substância do prédio.

            Ao invés, a quantia resultante da venda de um prédio, não tem carácter periódico, mas único e cessa a relação jurídica (de propriedade) com a coisa vendida, contendendo com a substância da própria coisa (que deixa de pertencer ao vendedor – cf. artigos 879.º e 882.º do CC), pelo que não se enquadra na definição legal de fruto (rendimento) do prédio.

            Ora, como acima referido, só os rendimentos do prédio estão abrangidos na cláusula testamentária em questão, pelo que, salvo o devido respeito por opinião em contrário, não se pode enquadrar na referida deixa testamentária o preço da venda do prédio nela descrito, o que determina a manutenção da sentença recorrida.

Consequentemente, improcede o presente recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

            Coimbra, 15 de Setembro de 2015.

           

Arlindo Oliveira (Relator)
Emidio Francisco Santos
Catarina Gonçalves